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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.3 São João del-Rei July/Sept. 2021

 

Crítica à categoria universal de "mulher": por uma articulação entre feminismo e Psicanálise

 

Criticism to the Universal Category of "Woman": For an Articulation between Feminism and Psychoanalysis

 

Crítica a la categoría universal de "mujer": por una articulación entre feminismo y Psicoanálisis

 

 

Flavia BonfimI; Rosa SchechterII

IPsicóloga. Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
IIPsicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do Projeto Praça Onze

 

 


RESUMO

A proposta deste artigo é problematizar a noção da categoria universal "mulher", com a intenção de pensar uma possível aproximação entre o feminismo e a Psicanálise. Para tanto, iniciamos com as considerações do psicanalista Jacques Lacan sobre o feminino, a partir de seu aforismo "A mulher não existe". Em seguida, discutimos a crítica de Judith Butler sobre a inexistência do sujeito que o feminismo almeja representar, na medida em que o momento inicial do movimento dissociou a temática do gênero das questões raciais, classistas e étnicas. Como exemplo dessas questões negligenciadas, destacamos o feminismo negro como um analisador dos impasses do discurso universalizante no interior do movimento feminista. Por fim, concluímos que tanto Lacan quanto Butler, com as particularidades de suas produções teóricas, denunciam a precariedade de uma identidade "mulher".

Palavras-chaves: Mulher. Psicanálise. Feminismo. Identidade. Feminismo negro.


ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze the universal category "woman" as a representation of feminism in an effort to think a possible contact between the feminism and psychoanalysis. We start by the psychoanalyst Jacques Lacan's aphorism about the feminine, "The Woman does not exist". We then discuss Judith Butler's criticism about the inexistence of the subject that feminism aims to represent. This is because, according to her, at its inception the movement dissociated gender from racial, class and ethnic issues. As an example of these neglected issues, we highlight black feminism as one of the deadlocks of the universalizing discourse within the feminist movement. We conclude that both Lacan and Butler, with the particularities of their theoretical productions, denounce the precariousness of a "woman" identity.

Keywords: Woman. Psychoanalysis. Feminism. Identity. Black feminism.


RESUMEN

El propósito de este artículo es problematizar la noción de la categoría universal "mujer", con la intención de pensar en una posible aproximación entre feminismo y psicoanálisis. Con este fin, empezamos con las consideraciones del psicoanalista Jacques Lacan sobre lo femenino, desde su aforismo "La mujer no existe". Luego discutimos la crítica de Judith Butler sobre la inexistencia del tema que el feminismo pretende representar, ya que el primer momento del movimiento disoció el género de los problemas raciales, de clase y étnicos. Como ejemplo de estos problemas desatendidos, destacamos el feminismo negro como un analizador de los impases del discurso universalista dentro del movimiento feminista. Finalmente, concluimos que tanto Lacan como Butler, con las particularidades de sus producciones teóricas, denuncian la precariedad de una identidad "mujer".

Palabras clave: Mujer. Psicoanálisis. Feminismo. Identidad. Feminismo negro.


 

 

Introdução

Um coletivo mais digno talvez possa advir ali onde a alteridade consentida possa ser a condição de estar com os outros.

(Fuentes, 2016, p. 198)

Partimos da Psicanálise. Isso implica demarcar que nossa posição teórico-clínica nos conduz a uma práxis cuja proposta está em tratar o Real pelo Simbólico. Afastando-nos de qualquer noção "individualista" acerca da Psicanálise, Marie Helene Brousse (2003) nos alerta quanto à necessidade de se interessar pela política e pela cidade para nos conduzirmos nessa práxis. Brousse toma o próprio ensino lacaniano como ponto de apoio para tal justificativa, na medida em que Lacan afirmou que o analista deve renunciar a sua função se não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época.

O contexto social e político que vivenciamos atualmente no Brasil, no qual ganham força posições radicais e extremistas, que promovem de forma explícita o machismo, o racismo, a segregação, o ódio gratuito aos homossexuais e transexuais, dentre outras formas de opressão, nos interroga como mulheres orientadas pela Psicanálise sobre o modo como frequentemente o feminismo comparece em produções psicanalíticas (e vice-versa). Entendemos que esses campos se cruzam, se opõem, se encontram e se desencontram. Por outro lado, sustentar somente a vertente antagônica, por vezes com tom desqualificador, nos parece ser uma posição irresponsável nos dias atuais, tendo em vista o aumento da violência e das formas de opressão contra as mulheres. Mulheres morrem por serem mulheres: isso é suficiente para reconhecer a importância do movimento feminista e para pensar outras maneiras de se conduzir nesse debate. Além disso, tanto o feminismo quanto a Psicanálise sofreram modificações em seu arcabouço teórico - o que muitas vezes é desconhecido por ambos os lados, fomentando um distanciamento acirrado que exaure o debate.

Nesse sentido, buscaremos aqui trabalhar e problematizar a noção de categoria universal de "mulher", em um esforço de pensar uma possível aproximação entre feminismo e Psicanálise, destacando também o feminismo negro diante dos efeitos de um discurso que se pretende universal no interior do movimento feminista. A escolha do feminismo negro não é aleatória, mas busca apontar para a nossa posição política na luta antirracista. É digno de nota que, como mulheres brancas - ao nos posicionarmos nessa luta -, estamos cientes dos privilégios simbólicos e materiais que dispomos em uma sociedade racista como a brasileira, sobretudo, em relação às mulheres negras - o que nos faz distinguir as formas de opressão e o nosso lugar de não protagonismo quando levantamos essa discussão.

Sendo assim, mais uma vez reiteramos que partimos da Psicanálise, mas seguimos em direção às discussões que perpassam o movimento feminista, especificamente a crítica apresentada no livro Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, de Judith Butler, sobre a mulher como uma categoria universal. Além disso, abordaremos os questionamentos produzidos pelo feminismo negro ao próprio movimento, pois eles testemunham de maneira radical a impossibilidade de tal universalidade. Colocamo-nos, portanto, implicadas com o que acontece para além das paredes do consultório, o que, por sua vez, não deixa de se refletir no que acontece dentro dele, como um espaço moebiano que comunica o dentro e o fora.

"A mulher não existe"

O ensino lacaniano é permeado por aforismos, com seus conteúdos opacos, que não permitem serem apreendidos apressadamente, nem de maneira puramente literal. Com seu estilo peculiar, Lacan (1972-73/1985) afirma o quanto suas elaborações têm por hábito produzir mal-entendidos. Por outro lado, uns dos efeitos desse modo particular de transmissão é nos colocar em trabalho e sinalizar o quanto a experiência do discurso analítico permite apreender que o sentido é aparência e pode nos conduzir também ao fracasso.

A ideia de que "A mulher não existe" é um desses aforismos. Ao contrário do que se poderia supor, não implica em afirmar que a mulher não existe em termos de reconhecimento, nem se apresenta como uma justificativa para fundamentar uma inferioridade do lado feminino tão frequentemente imposta ao longo da história. Esse aforismo busca ressaltar que não há um universal, um modelo do lado feminino. Nas palavras de Lacan (1972-73/1985, p. 98): "A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal". Sobre isso, Colette Soler (2005, p. 18) assinala: "se A Mulher, escrita com maiúscula, é impossível de identificar como tal, uma vez que 'não existe', isso não impede que a condição feminina exista".

Dizendo de outro modo, a mulher não possui um traço identificatório que possa se apoiar e lhe indicar como ser mulher ou o que é uma mulher. Não existe um significante que forneça um suporte ao ser feminino - o que implica que cada mulher precisa se inventar. As mulheres não podem ser localizadas em um conjunto fechado, pois permanecem em sua infinitude. Elas devem ser tomadas uma a uma.

É necessário, então, situar que Lacan formula a ausência de um universal do lado feminino, tomando como recurso teórico a noção de matema e a formulação lógica em torno do que se passa no campo denominado por ele de "sexuação". Tais elaborações correspondem ao que ficou denominado de "último Lacan", portanto, referem-se a desdobramentos apresentados durante a década de 1970, no qual Lacan não está imune - e vice-versa - às discussões apresentadas pelo movimento feminista.

A construção da noção de sexuação se inicia no Seminário 18: de um discurso que não fosse semblante, passa pelo Seminário 19: ...ou pior, contudo, é no Seminário 20: mais, ainda, que Lacan propõe seu quadro sobre as fórmulas quânticas da sexuação. Nesse livro, Lacan coloca em xeque toda a construção teórica sobre a feminilidade apresentada por Freud e, até então, por ele mesmo. Trata-se, portanto, de um avanço teórico, visto que desloca o Complexo de Édipo do cerne da discussão sobre a sexualidade. Quanto a isso, Soler (2005) argumenta que Lacan refuta o campo do mito na Psicanálise - o Édipo, o Totem e Tabu - para reduzir a questão da sexuação à lógica da castração, salientando que essa lógica não regula todo o campo do gozo, visto que parte dele não passa pelo Um fálico e permanece real, fora do simbólico. Assim, para situar a feminilidade, Lacan sustentou um além Édipo, bem como passou a considerar que o conceito de falo não é suficiente para dar conta de tudo o que se passa com a sexualidade das mulheres.

O conceito de falo acompanha as teorizações psicanalíticas sobre a sexualidade, sendo um termo caro, emblemático e controverso que não escapou a muitos questionamentos1 e confusões, especialmente ao se igualar falo ao pênis (vertente imaginária). Confusão que rendeu o esforço por parte de Lacan em distanciar a noção de falo do órgão masculino, para situá-lo como um significante - que, como todo significante, tem lugar no discurso do Outro - e posteriormente, como uma função - tal como é pensado nos Seminários 18, 19 e 20.

Lacan (1958/1998) pondera que Freud, ao se servir do termo falo, extraiu a referência de simulacro que a imagem fálica tinha na antiguidade. Os símbolos em forma de falo no mundo romano, grego e egípcio visavam atrair fertilidade e sorte, bem como afastar o "mau-olhado" (Calvicchioli, 2008; Brandão, 2001). O significado de sua imagem tinha um estatuto metonímico: ele representava o coito, a relação sexual, e não propriamente o orgão masculino2 (Biblio, 2018). Os cidadãos passaram a fabricar falos e a organizar procissões em culto ao deus do falo (Priapo) como uma forma de antídoto contra a impotência, traduzindo-se em símbolo de fecundidade (Brandão, 1991). Portanto, o que se extrai desse termo é que desde a antiguidade ele se liga à esfera da sexualidade e da fertilidade.

Lacan demarca que, na ausência do instinto que produziria uma ordenação e um saber sobre a sexualidade, o sujeito tem do campo do Outro um significante, um recurso puramente simbólico, para lidar com sua estruturação sexual. Ele comporta a presença e a ausência. É, nesse sentido que, em seu primeiro ensino, seguindo os passos de Freud, Lacan situou o homem como aquele que pensa ter o falo, e a mulher como aquela que não tem e que se faz ser o falo - estando a sexualidade ordenada nesses termos. Já no fim do seu segundo ensino, mais precisamente com os avanços teóricos produzidos a partir das fórmulas quânticas da sexuação, Lacan continua a apontar que a referência fálica é um organizador da sexualidade, mas reconhece que a mulher não está totalmente submetida a ela.

Nesse sentido, Lacan (1972-73/1985) passa a discutir a questão da sexuação por meio da oposição de duas lógicas (a do todo-fálico nos homens e do não-todo nas mulheres) e também a duas espécies distintas de gozo (o fálico e o suplementar). Lacan é categórico ao situar que essa separação não corresponde à distinção anatômica dos sexos. O que realmente importa é a posição sexuada determinada no discurso do sujeito, que pode inclusive estar em desacordo com sua própria anatomia. Não se trata, portanto, de dizer que o sujeito nascido com o sexo masculino estaria localizado na lógica fálica e aquele nascido com o órgão feminino estaria não-todo regido pelo falo. A proposta lacaniana segue em outra direção. É considerado do "lado masculino" aquele totalmente regido pela lógica fálica, aquele que se agarra e estrutura seu gozo de forma defensiva pelo falo e "feminino", aquele que experimenta e se posiciona a partir do gozo além do falo. Para exemplificar essa modalidade de gozo além do falo, Lacan cita São João da Cruz e sua experiência mística de gozo. Vale, então, ressaltar que esse gozo além do falo permite pensar um campo mais aberto às expressões e vivências com o sexual e o gozo. Nesse sentido, não haveria nenhuma objeção para pensar as mulheres trans, por exemplo, pois não estamos aqui no registro da identidade de gênero, nem das práticas sexuais, mas do gozo. A pergunta é sobre como o sujeito aceita, nega, objeta ou satisfaz a função fálica - operador lógico da sexuação nesse momento do ensino lacaniano.

Enfim, homens e mulheres são meros semblantes, e a lógica do todo e não-todo fálico não se refere à "anatomia ou ao gênero, mas ao corpo falante, ao sujeito e às suas marcas de gozo, à realidade sexual do inconsciente e à dimensão sintomática que lhe corresponde" (Macêdo, 2016, pp. 5-6). O interesse de Lacan está, portanto, em discutir, para além dos semblantes, as ordenações distintas de gozo e suas formas de parcerias sexuais - sempre sintomáticas, vale dizer, já que não há dois conjuntos binários fechados, homem e mulher, que se complementariam.

Nessas ordenações distintas de gozo, Lacan (1972-73/1985) identifica o homem como aquele que está totalmente inscrito na função fálica, como já mencionamos. Isso quer dizer que todo homem e o homem como um todo está submetido à castração. Contudo, a partir de formulações lógicas, ele inclui a isso que existe um homem para quem a função fálica não funciona; existe um homem que não está submetido à castração. Isso, porém, é uma referência puramente mítica, visto que esse homem seria o pai da horda primitiva, configurando o Um totalizante. A partir da relação entre a regra e a exceção, que poderia ser pensada como uma contradição, Lacan argumenta que a exceção confirma a regra e configura o todo masculino como um conjunto fechado - todo homem. Esse Um totalizante indica para o homem um modo de gozo fálico, localizado e limitado, com um caráter autístico de gozo, diz-nos Lacan (1972-73/1985).

Assim, uma vez que portar o pênis não assegura o que é ser homem, a crença é colocada no pai mítico como o portador do falo, cujo efeito é unificar a experiência de ser homem, no qual todos precisam se posicionar de forma semelhante. A sexuação fálica é sustentada, portanto, por uma estrutura de "ficção". Não obstante, é importante destacar que a posse fálica é instrumento de uma potência enganosa e signo da impostura masculina nos termos lacanianos.

Do lado da mulher, Lacan (1972-73/1985) propõe que o feminino não tem um gozo guiado unicamente pelo falo. Em termos lógicos, ele formaliza que não existe mulher para quem a função fálica não funcione, que não há mulher que não esteja assujeitada à castração. Vale destacar que, para Lacan, a noção de castração está relacionada com o fato de que, em determinado momento, o sujeito é forçado a renunciar a algum gozo. Ou seja, o que está em jogo é a perda de gozo e não do pênis; portanto, essa noção pode se aplicar a homens e mulheres.

Ainda sobre a lógica da sexuação do lado das mulheres, Lacan (1972-73/1985) estabelece que para não-todo sujeito é correto afirmar que a função fálica funcione. Isso implica em dizer que a mulher é não-toda referida à castração, de modo que nem tudo em uma mulher está submetido à lei do significante. Algo fica de fora e ultrapassa essa dimensão - o que lhe dá acesso a um gozo suplementar, um gozo ilimitado no corpo do qual os místicos dão testemunho.

Diante disso, não é possível estabelecer a mesma relação entre a regra e a exceção do lado feminino, tal como é pensado para o lado do homem. Dizendo de outra maneira, não existe do lado feminino nenhuma figura fundadora de um conjunto de mulheres, já que nenhuma se situa fora da castração e nem faz exceção à regra. Isto é: as mulheres não podem ser incluídas em um conjunto fechado, só podendo ser contadas uma a uma. A radicalidade das diferenças entre as mulheres alcança, assim, uma posição de destaque. O que é ofertado na cultura, no simbólico, para nomear e tentar cernir a experiência do feminino é insuficiente e precário. Nenhum significante, nenhum lugar simbólico preestabelecido, nenhum predicativo é capaz de defini-la, cabendo a cada uma delas inventar seu próprio modo de feminilidade.

A consequência do não-todo, portanto, é que a mulher, tal como o é para o homem, é Outro dela mesma; ela é para ela o próprio desconhecido. Isso explica a curiosidade e o encantamento que as mulheres têm umas pelas outras, pois, na medida em que não existe um traço simbólico que unifique e universalize todas as mulheres, o recurso pode ser tentar buscar em sua semelhante um traço de feminilidade que lhe escapa. Dizendo de outro modo, não há um único referente do lado da mulher, permitindo dizer que "A mulher não existe" enquanto um conjunto. Nesse sentido, Ondina Machado (2012, p. 10 nos dá a seguinte indicação:

Um conjunto se forma em torno de uma exceção interior ao próprio conjunto. No caso do gozo feminino, como ele não se organiza somente pelo falo, não há, sob a ótica do simbólico, um ponto de identificação que conjugue seus elementos. É nesse sentido que esse conjunto não existe porque ele só comporta diferenças.

O impossível da categoria universal de "mulher"

É inegável toda a força produtiva e contestatória produzida pelo movimento feminista ao longo da história do Ocidente, no qual a categoria "mulher" foi de extrema importância para demarcar um lugar, para apontar desigualdades e preconceitos, bem como para reivindicar direitos. Entretanto, em seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990/2016), Butler pondera que a "mulher", como uma categoria de gênero, foi entendida pelo movimento feminista como tendo uma identidade definida, como um sujeito que deveria ser representado politicamente de modo a garantir sua visibilidade e legitimidade.

Servir-se dessa identidade revelou sua importância, tendo em vista as condições culturais, sociais e econômicas que as mulheres viviam e toda falta de representatividade que se colocava. Se, por um lado, a representação serve como uma ferramenta política para legitimar lutas e dar voz às que são oprimidas, discriminadas e subjugadas, por outro, exerce uma função normativa de unificar mulheres em categorias e tornar homogêneo sujeitos singulares.

Convém situar que o feminismo ao qual Butler se refere aqui é o movimento feminista hegemônico, branco, centrado nas experiências dos Estados Unidos e Europa. Salientar essa localização no campo do conhecimento torna-se relevante para não desprezarmos a existência na história de outras formas de lutas protagonizadas por mulheres contra a opressão em diferentes contextos de classe, raça e fora do eixo europeu e americano.

Assim, para Butler, é no interior do próprio movimento feminista que a categoria mulher passa a ser repensada e questionada, posto que o sujeito mulher não é mais tomado como estável ou permanente. De acordo com Carla Rodrigues (2005), Butler sinalizou que estamos diante de um problema, a saber: a inexistência do sujeito que o feminismo quer representar. Vale ressaltar que esse debate já estava em evidência no meio acadêmico e que, portanto, antecede a Butler (Rodrigues, 2005). Inclusive, essa discussão só é possível graças aos questionamentos anteriormente apresentados, por exemplo, pelas teóricas feministas de origem proletária e pelas feministas negras.

Somando-se ao problema de se pensar a categoria mulher como universal, Butler inclui no debate a crítica ao modelo binário de sexo e gênero. Esse inclusive, é o ponto de partida central da autora, mais do que propriamente a noção de interseccionalidade. Sua crítica parte do pressuposto de que a categoria "mulher" foi construída no interior de uma matriz heterossexual de poder, no qual o homem é o opressor e a mulher oprimida. Portanto, seu esforço se encontra tanto em desconstruir a noção de gênero quanto de sexo.

Ao situar a categoria mulher em um ponto de indeterminação, Butler (1990/2016) pondera que isso não culminaria em um fracasso do feminismo; pelo contrário, ela sustenta que "problemas são inevitáveis e nossa incumbência é descobrir a melhor maneira de criá-los, a melhor maneira de tê-los" (Butler, 1990/2016, p. 7). Sua intenção é, portanto, questionar um sistema epistemológico que ontologiza a categoria "mulher", produzindo uma identidade primária, que responde a uma heterossexualidade compulsória. Butler (1990/2016) entende que a formalização de uma identidade de mulher comum como fundamento da política feminista coloca obstáculos para uma compreensão crítica sobre as construções e normas disciplinadoras que sustentam as identidades por meio de um binarismo de gênero. Nesse sentido, a construção de mulheres como o sujeito representado pela teoria feminista pode atuar como uma reinteração das normas de gênero - sendo contrário ao objetivo feminista. Se a teoria faz críticas às naturalizações perpetuadas pelo sistema patriarcal do lugar destinado à mulher, como então essencializar o sujeito possível de ser representado pelo feminismo?

Para dar um encaminhamento a essa discussão, Butler apoia-se em Focault. Relendo Butler a partir do pensamento foucaultiano, Márcia Arán e Carlos Peixoto Junior (2007) argumentam que as regulações de gênero constituem uma modalidade de poder específico, produtoras de efeitos constitutivos sobre a subjetividade. Nesse sentido, os discursos reguladores que produzem o gênero do sujeito são os mesmos responsáveis pela produção de sua sujeição - o que leva a filósofa a afirmar que o gênero é uma forma de regulação social. Nesse sentido, não se trata de estabelecer um abismo entre regulação e gênero, no qual o primeiro atuaria sobre o sujeito sexuado, visto que o sujeito só passa a existir à medida que se sujeita às regulações. E, para Butler, tais regulações instituem ao mesmo tempo uma heterossexualidade compulsória e uma hierarquia entre masculino e feminino (Arán & Peixoto Junior, 2007).

Seguindo de forma mais radical o pensamento foucaultiano, Butler (1990/2016) problematiza o próprio discurso feminista. Ela considera que a política que representa as mulheres como sujeito do feminismo é uma produção discursiva com fins representacionais que ao mesmo tempo constitui as próprias mulheres. Ou seja, a política feminista produz sujeitos com traços de gênero em conformidade com a estrutura binária: mulher, que luta contra a submissão e objetificação, em oposição ao homem entendido como dominador e opressor. Ainda por esse viés, toda questão da opressão das mulheres é reduzida a uma forma única e hegemônica de dominação masculina, no qual a noção de um patriarcado universal pareceu atender - noção que vem sendo criticada em alguns estudos feministas.

Outro problema levantado por Butler está no fato de que mesmo o uso do termo mulheres para abarcar uma pluralidade tornou-se problemático, pois o gênero sofre alterações no que concerne a sua coerência e consistência, dependendo do contexto histórico e social em que se insere. Além disso, não é possível dissociar o gênero das interseções políticas e culturais (raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais) de identidades constituídas que o acompanha. Portanto, a luta política travada inicialmente pelo movimento feminista desconsiderou outras especificidades do feminino, desvalorizando diferentes modalidades de opressão e outros eixos de poder ao promover uma noção singular e estável de identidade, que não se encerra no binarismo (Butler, 1990/2016).

Nessa mesma linha, Paul B. Preciado (2018, p. 118) argumenta que o feminismo, ao reduzir seu sujeito representável às mulheres, pode vir a atuar como "um instrumento de normatização e de controle político". Para o autor, não há neutralidade ou universalidade possível no termo "mulher", já que neste "esconde-se uma multiplicidade de vetores de produção de subjetividade: sexo, raça, classe, sexualidade, idade, capacidade, diferenças geopolíticas e corporais, etc." (Preciado, 2018, p. 118).

Portanto, mesmo tendo uma proposta emancipatória, a ideia de um sujeito estável e uno no feminismo encontra seus limites por revelar os poderes coercitivos e reguladores em suas reivindicações representacionais. Não há uma base única e permanente no feminismo. Pensar com essa lógica, para Butler (1990/2016), é naturalizar e imobilizar a identidade de mulher, pois ela só encontra estabilidade e coerência na matriz heterossexual. Logo, isso leva a excluir outros sujeitos que não se conformam com as exigências normativas.

Diante disso, o intuito de Butler, segundo Rodrigues (2005), é desconstruir o conceito de gênero no qual o feminismo está fundamentado. A política feminista encontrou na divisão sexo e gênero seu apoio para introduzir questionamentos e reivindicações sobre a posição da mulher na sociedade. O sexo, entendido como natural, e o gênero, como algo socialmente construído, foram os pilares fundacionais dessa política. A partir desses pilares, as teorias feministas procuraram desnaturalizar o papel associado às mulheres de fragilidade e submissão, que serviu ao longo da história (e ainda serve) para justificar opressões. Nesse caso, o sexo foi aceito nas teorias feministas como substância, como essência, como algo idêntico a si mesmo - portanto, uma proposição metafísica -, ao passo que o gênero foi tomado como um "atributo" da pessoa (Rodrigues, 2005).

Ainda de acordo com Rodrigues (2005), podemos afirmar que a troca do termo mulher para mulheres não é suficiente para Butler, pois, na visão da filósofa, ele ainda comporta uma normatização e promove restrições à teoria feminista ao tentar representar um sujeito estável e fixo. Ou seja, trata-se de distanciar o feminismo do campo do humanismo, no qual se pressupõe uma essência universal do homem. A ideia de um sujeito com identidade fixa impede a possibilidade de pensá-lo como um devir permanente.

Em outras palavras, o feminismo se alimenta do sujeito "mulher" como categoria fixa, detentor de uma identidade definida para poder representar politicamente o sujeito em questão. No entanto, essa categorização da mulher promove uma ideia naturalizante e essencialista. Há uma presunção de um binarismo na criação de um movimento que precisa representar um gênero fixo para atestar a sua existência. O movimento feminista passa, então, a operar em sintonia com a própria estrutura que é questionada em sua teoria, o discurso binário. O feminismo é um lugar produzido a partir do discurso que generaliza as posições hegemônicas e que também as produz. Assim, enquanto poder político, ou produtor de um discurso, promove aquilo que condena e sobre o qual tece as suas críticas. De acordo com Butler (1990/2019, p. 19), "Assim, o sujeito feminista se revela discursivamente constituído, e pelo próprio sistema político que supostamente deveria facilitar sua emancipação". Para Butler, as mulheres não devem apenas questionar sobre como podem ser representadas politicamente, devem também perguntar como o discurso feminista produz e reprime por meio da categorização da "mulher", enquanto sujeito representável, na mesma estrutura de poder pelo qual almeja se emancipar.

Vale destacar que uma das repercussões dessa teorização de Butler foi o fortalecimento da teoria queer e dos movimentos organizados por gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros - o que levou alguns a situar sua teoria como pós-feminista. Em entrevista a Porchat (2010), Butler afirma que "é feminista" em termos categóricos, sabendo que com isso estaria se rendendo à linguagem de identidades - ponto sobre o qual tece inúmeras críticas. Por outro lado, sua função é ressaltar que ainda que questione a identidade fixa de mulher, não é possível abandonar o feminismo, visto que, mesmo com alguns avanços conquistados, o sofrimento, as desigualdades, a opressão, a violência e a discriminação econômica contra a mulher não cessaram. A luta ainda está muito viva, segundo ela. Portanto, o debate que Butler introduz é sobre as formulações no interior do movimento, e não uma teorização que se colocaria como antifeminista (Porchat, 2010).

Impasses do discurso universalizante no interior do movimento feminista

Quando o sujeito mulher passa a ser questionado na própria teoria feminista, surge toda uma discussão de quem são os sujeitos que podem ou não ser representados pelo feminismo. Para Butler (1990/2019), a representação no feminismo é constituída pela exclusão dos que não se conformam à norma, daqueles que não estão inseridos em um contexto binário. Diante disso, Butler (1990/2019, p. 25) faz o seguinte questionamento: "Que relações de dominação e exclusão se afirmam não intencionalmente quando a representação se torna o único foco da política?" Com isso, Butler faz eco a uma crítica que a antecede, fruto de um conjunto de importantes lutas travadas por feministas racializadas, homossexuais e periféricas.

Se antes do feminismo as mulheres não eram representadas ou mesmo alçadas a uma categoria política com possibilidade de representação, foi a partir desse movimento político que sujeitos identificados como mulher vieram a ser representados e subjetivados como cidadãos que podiam e deveriam lutar pela garantia dos seus próprios direitos. Sendo assim, não questionamos aqui a legitimidade do feminismo como política que promoveu inúmeras conquistas sociais, econômicas e jurídicas. No entanto, o que podemos perceber mediante sua história é que, em seu início, quem representava e era representável tinha cor e classe: eram mulheres brancas de classe média.

Foi a partir da diferença de classes que o feminismo passou a ser questionado em sua própria estrutura. As discussões sobre classe e de como isso dividia as mulheres veio antes ainda dos questionamentos de raça. De acordo com bell hooks (2019), as mulheres brancas proletárias reconheceram pontos excludentes do feminismo e se insurgiram quanto à presença de classes no interior do movimento feminista. Para a teórica norte-americana: "Inserir classe na pauta feminista abriu um espaço em que interseções entre classe e raça ficaram aparentes" (hooks, 2019, p. 69).

No início do movimento feminista, as reinvindicações das mulheres brancas, de classes mais abastadas, eram mais visíveis do que as de mulheres negras e racializadas de outras classes. Isso se deu na esfera do poder público, pois as questões levantadas pelas mulheres brancas eram as que ganhavam visibilidade. No entanto, o feminismo negro começou a se insurgir contra a invisibilidade das pautas das mulheres negras a partir da segunda onda do feminismo, entre os anos 1960 e 1980 (Ribeiro, 2018). Apontando para as diferenças de pautas e reinvindicações, hooks (2015, p. 203) escreve que

mulheres negras observaram o foco feminista branco na tirania masculina e na opressão das mulheres como se fosse uma revelação "nova" e acharam que esse foco tinha pouco impacto na sua vida. Para elas, o fato de as mulheres brancas de classe média e alta precisarem de uma teoria para "informá-las de que eram oprimidas" era apenas mais uma indicação de suas condições de vida privilegiadas.

Quando os marcadores de raça ou classe não são reconhecidos na teoria ou militância feminista, há a impossibilidade de garantir que múltiplas mulheres possam ser representadas a partir de um movimento político. Ou seja, quando as mulheres negras deixaram evidente a falta de visibilidade que viviam no próprio feminismo - que até a segunda onda se considerava como sendo hegemônico e universal -, foi possível compreender a instabilidade do movimento como algo que não pode representar múltiplos sujeitos. A falta de empatia e reconhecimento das opressões raciais, de classe, entre outras, provocou a exclusão de várias mulheres do feminismo. Nesse sentido, bell hooks (2015, p. 196) comenta que

As mulheres brancas que dominam o discurso feminista - as quais, na maior parte, fazem e formulam a teoria feminista - têm pouca ou nenhuma compreensão da supremacia branca como estratégia, do impacto psicológico da classe, de sua condição política dentro de um Estado racista, sexista e capitalista.

Para Sueli Carneiro (2003), é por meio de um novo olhar feminista e antirracista que surge a possibilidade de uma identidade política que possa representar a mulher negra. O movimento de mulheres negras pode tornar visíveis as reinvindicações das pautas raciais e, ao mesmo tempo, as lutas feministas no Brasil, fazendo com que ambas as vertentes reconheçam as especificidades das mulheres negras. Enegrecer a luta feminista, para Carneiro, tem uma importância de ação concreta, pois permite instituir na agenda do movimento a necessidade de pensar políticas públicas e de saúde que considerem o peso da questão racial.

Há de se levar em conta, por exemplo, um modo particular de violência contra as mulheres negras, no qual é preciso pensá-la pelo viés do conceito de "violência racial". Há ainda a necessidade de delimitar e dirigir a atenção para os problemas de saúde específicos, que incidem na população negra, e sobre as políticas demográficas que excluem e exterminam essa população. Não menos importante, faz-se necessário uma discussão crítica sobre os mecanismos de seleção do mercado de trabalho em torno do perfil de "boa aparência", na medida em que mantém privilégios e desigualdades entre mulheres brancas e negras (Carneiro, 2003).

Diante disso, se constatamos que as opressões não incidem igualmente em cada sujeito, a questão se coloca em como poder representá-los. Os questionamentos de Butler (1990/2019) incidem na problemática no que tange a delimitar se há algo em comum que permeie todas as mulheres. Estariam as mulheres identificadas a partir das opressões? Mais ainda, existe algo que permeie todas as práticas de ser mulher, de se sentir mulher, de performar um gênero dito feminino, que possamos encontrar em todas as culturas? Posto isso, Butler (1990/2019, p. 21) argumenta que

A presunção política de ter de haver uma base universal para o feminismo, a ser encontrada numa identidade supostamente existente em diferentes culturas, acompanha frequentemente a ideia de que a opressão das mulheres possui uma forma singular, discernível na estrutura universal ou hegemônica da dominação patriarcal ou masculina.

Para Butler (1990/2019), o feminismo corre o risco de fracassar, já que há uma recusa em ver que se utiliza dos mesmos mecanismos presentes nos discursos opressores. Apesar de apontar a instabilidade do sujeito, daquele que precisa se fazer representar por intermédio das demandas políticas, Butler não orienta para uma recusa das políticas representacionais, mas sinaliza para a possibilidade de existir um período pós-feminista, momento em que poderia haver a reflexão sobre o sujeito inserido no feminismo e a premissa de existência desse sujeito como categoria fixa. Butler aponta ainda para a importância de formular a prática da política feminista por meio de uma outra política representacional.

É a partir da necessidade de se apontar uma política de representação que podemos pensar sobre o uso político da identidade com Avtar Brah (2006). Para a autora, em alguns momentos esse uso se justifica principalmente para criar uma unidade de reinvindicação de direitos. Por meio da criação dessas identidades, pode-se exceder a sua origem de opressão e discriminação, bem como utilizá-las como ferramenta política e forma de resistência. Quando pensado como resistência, o uso político do conceito de identidade transcende à sua origem. Em vez de se criar uma identidade oriunda de um olhar de fora, estereotipado, pode-se pensar a partir de dentro e mobilizar aquilo pelo qual se luta. Ao localizar um determinado grupo e delimitá-lo como categoria, temos a possibilidade não só de pensarmos sobre as vivências desse grupo, mas também de propor e elaborar políticas públicas específicas para atender às demandas grupais. Nas palavras de Brah (2006, p. 375), "Em sua necessidade de criar novas identidades políticas, grupos dominados muitas vezes apelarão para laços de experiência cultural comum a fim de mobilizar seu público".

Sobre as políticas identitárias, Kimberlé Crenshaw (1991) - uma das principais intelectuais norte-americanas sobre a teoria crítica da raça - atenta para a tensão existente desse uso. Para grupos tidos como minoritários, Crenshaw considera que o uso político tem sido uma fonte de força, comunidade e desenvolvimento intelectual. No entanto, categorias identitárias, como raça e gênero, são muitas vezes vistas como vestígios de dominação e sujeição. Outro problema apontado pela intelectual é que o uso do conceito de identidade frequentemente ignora diferenças intragrupais. No artigo "Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color", Crenshaw (1991, p. 1242, tradução nossa) analisa que

No contexto da violência contra as mulheres, essa exclusão da diferença nas políticas de identidade é problemática, fundamentalmente porque a violência que muitas mulheres experimentam é frequentemente moldada por outras dimensões de suas identidades, como raça e classe. Além disso, ignorar a diferença dentro dos grupos contribui para a tensão entre os grupos, outro problema da política de identidade que incide nos esforços para politizar a violência contra as mulheres. Os esforços feministas para politizar as experiências das mulheres e os esforços antirracistas para politizar as experiências das pessoas racializadas, frequentemente, procederam como se os problemas e as experiências de cada grupo ocorressem em terrenos mutuamente exclusivos.

Crenshaw (1991) aponta ainda que as experiências enfrentadas por mulheres negras não podem ser separadas em diferentes dimensões, desconsiderando os marcadores de raça ou de gênero. A indissociabilidade entre esses marcadores também é apontada por Grada Kilomba (2019, p. 94) nos seguintes termos: "A experiência envolve ambos porque construções racistas baseiam-se em papéis de gênero e vice-versa, e o gênero tem um impacto na construção de raça e na experiência do racismo".

É com base nessa problemática que abordamos uma noção fundamental para as discussões do feminismo: o conceito de interseccionalidade. A interseccionalidade explicita como as múltiplas dimensões em que raça, gênero e outras identidades sociais interagem e se interseccionam para mostrar que não é possível avaliar apenas uma única vertente da experiência quando estudamos sistemas relacionados à opressão. "De pronto, a interseccionalidade sugere que raça traga subsídios de classe-gênero e esteja em um patamar de igualdade analítica" (Akotirene, 2019, p. 36). Portanto, analisar as opressões vividas por mulheres negras sob o viés do racismo ou do machismo separadamente não abarca toda a realidade em que essas múltiplas opressões submetem essas mulheres.

Por exemplo, em seus estudos, Crenshaw (1991) analisa experiências de mulheres racializadas vítimas de violência. Para se pensar em estratégias de intervenção, não é suficiente considerar as situações vividas por essas mulheres somente sob o viés do gênero. Por não compartilharem a mesma classe ou cor, as barreiras enfrentadas são absolutamente diferentes. Para Crenshaw, o caso das mulheres racializadas vítimas de violência exemplifica como os diferentes padrões de subordinação se interseccionam em suas experiências. Pelo fato de as mulheres negras serem submetidas pelo racismo de uma forma diferente das opressões sofridas por homens negros, e vivenciarem o machismo de uma forma distinta das mulheres brancas, o feminismo e as lutas e práticas antirracistas separadamente são limitadas para descreverem a experiência vivida por elas. Para a autora, embora as pautas formais do feminismo e das lutas antirracismo incluam mulheres negras, o racismo normalmente não é problematizado no feminismo, assim como o sexismo não é problematizado nos discursos antirracistas.

Nesse sentido, podemos dizer que o feminismo negro testemunha e escancara toda uma dificuldade para o próprio movimento feminista de propor uma universalidade em torno de pautas e lutas sob a categoria "mulher". O lugar da mulher negra na estrutura social aponta para problemas que vão além do gênero. Ao combinar questões de raça, classe e formas de opressão diversas, o feminismo negro contribui para um olhar interseccional altamente importante para o avanço de perspectivas teóricas e políticas tanto do feminismo quanto de outros campos de produção de conhecimento.

 

Considerações finais

Diante dos desdobramentos que traçamos neste artigo, foi possível perceber os atravessamentos que a inexistência de uma identidade "mulher" engendra no sujeito e na política feminista. Da Psicanálise e, consequentemente, da clínica, recolhemos que o não-todo feminino se articula com a falta de um suporte, de um significante, de um traço identificatório que defina o que é ser mulher, no qual cada uma precisa se inventar - o que lhe dá, sem dúvida, maiores possibilidades de operar com os semblantes, ao mesmo tempo em que comporta dificuldades quanto a faltas de garantias e sustentação para lidar com a complexidade do sexual e do seu gozo. Se da cultura vem sendo imposta às mulheres a identificação com o lugar de mãe com características como a passividade, a fragilidade, a submissão, a falta, todas essas identificações fracassam e não permitem dizer o que é uma mulher e como ela pode experimentar e viver sua sexualidade, pois a sexuação sempre implica em um trabalho singular de saber-fazer com o gozo.

Na política feminista que extraímos das concepções de Butler, constatamos o quanto a identidade "mulher" foi importante em um dado momento histórico para contrapor um sistema que as oprimia em nível cultural, social e econômico, com um rechaço a sua representatividade. Atualmente, contudo, essa unificação tem uma função normativa que pretende homogeneizar sujeitos singulares, visto que desconsidera as interseções políticas e culturais (raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais). Isso teve consequências na própria história do movimento feminista, que em seu início abarcou predominantemente mulheres brancas de classe média com suas formas particulares de opressão e dificuldades.

É nesse sentido que o feminismo negro vem se colocar como um ponto questionador dos impasses do discurso universalizante no interior da teoria feminista, indicando a necessidade de sua reformulação e da não invisibilização de pautas e lutas de mulheres racializadas e periféricas, no qual o conceito de interseccionalidade torna-se fundamental para uma abordagem teórica e política do feminismo. Não seria demais dizer que o feminismo negro extrapola o próprio campo do feminismo, uma vez que tem produzido importantes avanços epistemológicos em diferentes campos de saber, inclusive para a Psicanálise. Aliado a uma perspectiva decolonial, o feminismo negro tem produzido um forçamento sobre os psicanalistas a respeito da necessidade de refletir sobre as particularidades do processo de constituição e sobre a modalidade de sofrimento específico da pessoa negra por estar inserida em um sistema racista. Foge do escopo deste trabalho nos aprofundarmos nessa questão, mas não podemos deixar de mencionar algumas importantes mulheres negras e psicanalistas que têm contribuído para o avanço da práxis psicanalítica, como Neusa Santos, Isildinha Nogueira, Lélia Gonzalez e Grada Kilomba. Avanços importantíssimos para pensarmos uma clínica descolonizada em solo brasileiro.

Assim, para além dos caminhos e alcances teóricos e práticos distintos, identificamos que tanto a Psicanálise lacaniana como a política do movimento feminista questionam a universalidade da noção de mulher e a inconsistência dessa identidade, permitindo reconhecer uma aproximação onde historicamente predominam tensões. Isso não implica em desconsiderar que elas existem, no entanto, nossa intenção foi sustentar que, para além das divergências, há também uma possível articulação que poderia enriquecer o debate, bem como salientar que seria frutífero pensar em mais possibilidades de diálogo entre a Psicanálise e o feminismo.

Destarte, encerramos ressaltando que não há para Lacan nem para Butler nenhuma essência de mulher, logo, suas possibilidades estão abertas a invenções. Posto isso, as precisas considerações de Rafael Cossi e Christian Dunker (2017, p. 7) nos parecem bem oportunas para finalizar essa discussão:

A mulher surge como uma categoria intrinsecamente crítica da lógica da identidade, como queria Butler. Ficamos então entre as múltiplas identificações em Butler e nenhuma identificação em Lacan. A mulher como gênero-categórico deve ser refutada. Mulher é uma construção normativa que promove a ilusão de uma identidade de que tanto Butler quanto Lacan denunciam a precariedade. É só a partir da conceituação de que a mulher não pode existir que as construções históricas referentes às mulheres podem mudar.

 

Referências

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Recebido em: 25/10/2019
Aceito em: 11/8/2021

 

 

1 Entre os questionamentos, não podemos deixar de mencionar as críticas empreendidas pela própria Butler, em seu livro Problemas de gênero, à Psicanálise por pensar a sexualidade a partir dos conceitos de falo, Édipo, diferença sexual e simbólico.
2 Referência ao livro Falo no jardim: Priapéia Grega, Priapéia Latina, do professor de letras clássicas da USP, João Ângelo Oliva Neto, extraído a partir dos comentários sobre sua participação em uma atividade da Biblioteca da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) em preparação ao XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano - A queda do falocentrismo: consequências para a Psicanálise.

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