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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.3 São João del-Rei July/Sept. 2021

 

Feminismos ciborgues em uma cama de gato, ciência e saberes coletivos universitários de mulheres

 

Ciborgian Feminism in the Cat's Cradle, Science and University Collective Knowledge of Women

 

Feminismo ciborgs, ciencia y universidad: conocimiento colectivo de mujeres

 

 

Dolores Cristina Gomes GalindoI; Fábio Henrique Martins da SilvaII; Flávia Cristina Silveira LemosIII

IDoutora e mestra em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Psicóloga pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Professora associada II de Psicologia Social da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). E-mail: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com
IIMestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Psicólogo pela Unesp. E-mail: fabio@gmail.com
IIIDoutora em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Psicóloga pela Unesp. Professora de Psicologia Social associada II da UFPA. Bolsista de produtividade de pesquisa CNPq-PQII. E-mail: flaviacslemos@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo é um ensaio feminista sobre ciência, saberes e universidade. Parte de contribuições relevantes dos trabalhos de Donna Haraway para pensar práticas tecnocientíficas de fabulação. A partir das considerações de Haraway, argumenta-se que é possível pensar a construção de jogos de corda como operador metodológico feminista que converge para a produção de saberes locais nas universidades, em teias potentes de efeitos ciborgues que fraturam a ciência institucionalizada de base masculinista, agonística e pouco aberta à fabulação. Finaliza-se com indagações à Psicologia a partir da possível incorporação de um dos operadores metodológicos de Donna Haraway, a sym fiction.

Palavras-chave: Feminismo. Universidade. Ciborgue. Fabulação. Mulheres.


ABSTRACT

This article is a feminist essay about science and collective knowledge and the university. It starts from relevant contributions from the works of Donna Haraway to think about technoscientific fabulation practices. Based on Haraway's considerations, we understand that it is to think the construction of rope games as possible as a feminist methodological operator that converges to the production of local knowledge in universities, in powerful webs of cyborg effects that fracture institutionalized science with a masculinist, agonistic and little open to fabulation.

Keywords: Feminism. University. Cyborg. Science. Women.


RESUMEN

Este artículo es un ensayo feminista a respecto de la ciencia, el conocimiento colectivo y la universidad. Se parte de las contribuciones relevantes de los trabajos de Donna Haraway para pensar en las prácticas de fabricación tecnocientífica. Con base en las consideraciones de Haraway, entendemos que se trata de pensar la construcción de juegos de cuerdas como posible como un operador metodológico feminista que converge a la producción de conocimiento local en las universidades, en poderosas redes de efectos ciborg que fracturan la ciencia institucionalizada con un carácter agonista y masculinista y poco abierto a la fabulación.

Palabras clave: Feminismo. Universidad. Ciborg. Ciencia. Mujeres.


 

 

Este artigo é um ensaio temático que visa discutir a trama de fios urdida a partir das teorias feministas transculturais e antirracistas pela bióloga, filósofa, escritora e professora estadunidense Donna Haraway (1944), materializada na figura do jogo de cordas e suas variações ao longo de alguns dos trabalhos da autora. Pretende-se, especialmente, pensar três de suas obras: Manifesto Ciborgue (1985/2013), Manifesto em favor das espécies de companhia (2003) e Seguir con el problema: generar parentesco en el Chthuluceno (2019). Os textos, mesmo separados por um espaço de quase três décadas, anunciam um dos focos centrais do trabalho de Donna Haraway, qual seja, o de contribuir para o florescimento de alguns mundos e não de outros, bem como o lugar da fabulação e do jogo de cordas como operadores conceituais e metodológicos nesse processo.

Para Donna Haraway, as figuras das ciborgues que animam seus primeiros textos e das espécies companheiras que animam os seus últimos textos mantêm entre si uma relação de parentesco por meio de conexões parciais, não havendo uma linha evolutiva entre elas. A tela que abre este texto é posterior ao "Manifesto em favor dos ciborgues" e ao extenso trabalho de colaboração criativa entre Haraway e a artista Lynn Randolph, mas corporifica o denso universo das fabulações de Donna Haraway que conjugam um forte teor imagético e um profundo senso de responsividade ao presente.

Na tela (Figura 1) de Lynn Randolph, duas meninas olham fixamente a espectadora da tela enquanto no seu entorno pairam as torres da industrialização decadente, uma usina nuclear em funcionamento, daimons e anjos e, aos pés de ambas, o fogo das queimadas que não as tocam. Ao mesmo tempo, criaturas do seu tempo e, de algum modo, dele descoladas, as crianças fabulam sua própria sobrevivência em meio à devastação.

 

 

Mais do que metáforas, os ciborgues, as espécies companheiras e a simbionte Camille são parentes com os quais se estabelecem relações de aliança visando à sobrevivência em um mundo em ruínas. Tendo em vista abordar essas alianças, é importante retomar a noção de jogo de cordas, proposta por Donna Haraway, em texto publicado na década de 1980, bem como algumas das suas variações no trabalho da autora, por entendermos que é um dos principais operadores conceituais e metodológicos que nutrem as alianças entre as diferentes figurações propostas ao largo da obra.

Donna Haraway: uma fabuladora de mundos

Donna Haraway pode ser apresentada, dentre tantas outras formas de fazê-lo, como uma fabuladora que conjuga um exercício tentacular de atenção ao presente e aos fios soltos que dele escapam, e, justamente por isso, permitem traçar brechas que funcionam como exercícios de ficção fabulativa, ciência ficção ou ficção espectulativa. Diferentes expressões se encontram albergadas sob o título de SF, um acrônimo múltiplo. Quando entrevistada por Fabrizio Terranova, nos anos 2000, Donna Haraway, então aposentada das suas funções na Universidade de Santa Cruz, pontua que, dos livros das suas estantes, não se desfaria dos livros de ficção científica, os quais, para ela, albergam sementes de mundos e são teorizações sociais.

Donna Haraway caminha pela ficção científica e pela ciência como ficção material corporificada, interpondo um movimento de questionamento das fronteiras entre o factual e o ficcional na produção teórica feminista. Trata-se da ficção científica como teorização sobre e com o mundo, de maneira que as histórias contadas com outros/as humanos/as e mais/não/outros que não humanos/as nem sempre são óbvias, e é necessário percorrer os alfabetismos da ficção e da ciência.

SF é um potente tropo material-semiótico para as riquezas da fabulação especulativa, ou como traduzidas do inglês, as SFs também são sinônimas de feminismo especulativo, ciência ficção, ficção especulativa, fato ciência, fantasia da ciência. Sementes germinativas e pontos de erupção. Para Haraway (2019), a ciência ficção (expressão que adotamos, em vez da tradução direta ao português como ficção científica) e o jogo de cordas (cama de gato) são práticas processuais de um torna-se-com em, ao menos, três sentidos:

Em primeiro lugar, puxando fibras promiscuamente entre práticas e eventos densos e coagulados, tento seguir o caminho dos fios para poder rastreá-los e encontrar seus emaranhados e padrões cruciais para continuar com o problema em tempos e lugares reais e particulares. Desta forma, a SF é um método de rastreamento, seguindo um fio no escuro, em uma perigosa história de verdadeira aventura em que quem vive, quem morre e de que forma poderia se tornar mais evidente para o cultivo de uma justiça multiespécies. Em segundo lugar, a figura dos fios não é rastreada, mas sim a coisa em questão, o padrão e a montagem que exige uma resposta, aquilo que é a mesma coisa para nós, mas com a qual se une, deve continuar. Terceiro, fazer figuras de cordas é passar e receber, fazer e desfazer, pegar cordas e deixá-las ir. (Haraway, 2019, s/p, tradução nossa).

Com o jogo de cama de gato, busca-se escapar à ciência como agonística e exercício militarizado. A busca por imagens diferentes da agonística para pensar a ciência e a vida aparece, em sua plenitude, na proposição sobre simpoesis e problematização das narrativas darwinistas. No lugar da competição, a interdependência como condição para vida, incluindo-se aí desde pequenas criaturas como bactérias e águas vidas a humanos e humanas. Lynn Margulis observa, sobretudo, bactérias e processos de infecção, volta-se às bordas das criaturas, substituindo a competição como cooperação. Estamos diante de uma reviravolta feminista nas narrativas biológicas e no modo como entendemos a constituição de humanos e não humanos. Vamos nos constituindo por meio de infecções mútuas, não sendo possível rastrear cada espécie isoladamente.

Deparamo-nos com a infeção como um processo multiespécie, operando por lateralidade e em múltiplas direções. De Lynn Margulis recupera a pequena M. paradoxa como um fio que traz o prazer da confusão de fronteiras:

Essa pequena criatura filamentosa zomba da noção de ser delimitado, único e separado para proteger investimentos genéticos. O problema que nosso texto apresenta é simples: o que constitui M. paradoxa? Onde acaba o protista e outra coisa começa dentro do intestino grosso fervilhante desse inseto comedor de madeira? Na classificação da vida em cinco reinos, um protista é um membro do reino Protista, que é formado por micro-organismos e seus descendentes maiores compostos de "genomas heterólogos múltiplos". Não pertencentes aos reinos vegetal, animal, dos fungos nem das bactérias, mas constituindo-se de um reino próprio, os protistas incluem algas, mofo-limo, ciliados e amebas, além de muitos outros. Os "genomas heterólogos múltiplos" são a fonte do meu prazer nesses seres abundantes, complexos e barrocos. (Haraway, 1995/2021, p. 10).

A escrita e a pesquisa de Donna Haraway podem ser nomeadas como uma poética tecnocientífica, cujas palavras são fios em uma tessitura não linear, notas de rodapé extensas, práticas de citação de conversas informais com colegas. Uma escrita que se alia a um modo de vida não heterocispatriarcal que leva Donna Haraway a enfrentar-se a questões que dizem respeito, por exemplo, à circulação de bens em famílias queer, como a sua e de outras colegas, que não têm filhos e, portanto, não se enquadram nas linhas sucessórias verticalizadas.

Pensar a prática científica, a partir do trabalho de Donna Haraway, convida a abandonar linhas naturalizantes que podem reduzir o hibridismo a uma homogeneização das culturas, pois quando se fala do aspecto potente do híbrido,

Queremos nos referir a um processo de ressimbolização em que a memória dos objetos se conserva e em que a tensão entre elementos díspares gera novos objetos culturais que correspondem a tentativas de tradução ou de inscrição subversiva da cultura de origem em uma outra cultura, então estamos diante de um processo fertilizador. (Bernd, 2004, pp. 100-101).

Haraway (2013) caminha nesse lugar de re-figuração da mulher, do humano, para escapar das amarras identitárias e categorias universais, propõe figuras densas que percorrem múltiplas escalas, materiais e tempos.

Sem poder mais contar com nenhum sonho original relativamente a uma linguagem comum, nem com uma simbiótica natural que prometa uma proteção da separação "masculina" hostil, estamos escritas no jogo de um texto que não tem nenhuma leitura finalmente privilegiada nem qualquer história de salvação. Isso faz com que nos reconheçamos como plenamente implicadas no mundo, libertando-nos da necessidade de enraizar a política na identidade, em partidos de vanguarda, na pureza e na maternidade. Despida da identidade, a raça bastarda ensina sobre o poder da margem e sobre a importância de uma mãe como Malinche. As mulheres de cor transformam-na, de uma mãe diabólica, nascida do medo masculinista, em uma mãe originalmente alfabetizada que ensina a sobrevivência (Haraway, 2013, p. 89).

Ciborgues são ficções materiais que "mapeiam nossa realidade social e corporal e, também, um recurso imaginativo que pode sugerir alguns frutíferos acoplamentos" (Haraway, 2013, p. 37). As ciborgues derivam de um exercício fabulativo, de um jogo de cordas realizado por Donna Haraway a partir de uma multiplicidade de fios de diferentes ordens, que recolhe de outras mãos, algumas delas masculinistas e antropocêntricas como aquelas que se empenham na guerra atômica e na jornada espacial.

Em 2019, Donna Haraway revisita a figura dos ciborgues e continua a afirmar sua importância na configuração terrena de mundos, contudo, pontua que não são a figura principal do nosso tempo. Volta a essa figura e, a partir dela, das suas camadas e desperdícios, puxa fios de corda para seguir fabulando especulativamente mundos multiespécies sobre uma terra ferida. A partir da convivência com a cadela, em envelhecimento, Cayenne, Haraway acopla a si, como autora-ciborgue a sua amada companheira, ambas expostas a estrógenos e aos riscos cardíacos genéticos. É uma história localizada que importa e dista das grandes narrativas. A autora-ciborgue segue, amorosamente, os rastros de urina de Cayenne. Em determinado momento, desdobra-se que as ciborgues riem do sonho de imortalidade que lhe foram conferidos e, sim, teriam problemas de válvula mitral, como humanas e outras criaturas.

Como participar de um jogo de cordas?

Durante a cerimônia de recebimento de premiação, pela Science Fiction Research Association, Donna Haraway explicita que não são suficientes leituras de mundos e metáforas textuais. É necessário implodir aparatos de produção corporal e reconfigurar a escrita para cultivar mundos. Utilizamos a figura do cultivo para referir a temporalidades que distam de monoculturas de pensamento e de ação política.

[...] não é apenas ler as teias de produção de conhecimento; a questão é reconfigurar o que conta como conhecimento nos interesses de se reconstituir as forças gerativas de incorporação. Estou chamando esta prática de refiguração materializada; ambas as palavras importam. A questão é, em resumo, fazer a diferença - por mais modesta e parcialmente que seja, sem narrativa ou garantias científicas. (Haraway, 1994, p. 62).

Donna Haraway utiliza diversos recursos figurativos ao criar um dispositivo analítico que permite percorrer fluxos interligados e interligar fios, em uma multiplicidade de tramas. Essa figura, que entre nós é conhecida como jogo do barbante, chega às mãos de Donna Haraway por meio das relações com a cultura indígena Navajo. Com efeito, uma cama de gato busca traçar quais são os fios que estão entrecruzados nas redes de linhas múltiplas, em heterogênese e, portanto, em criação.

Em "A Game of Cat's Cradle: Science Studies, Feminist Theory, Cultural Studies", Donna Haraway (1994) destaca dois fios que compõem a cama de gato que alimenta o seu trabalho. O primeiro fio são as práticas tecnocientíficas feministas, transculturais e antirracistas. O segundo fio é delineado pelas produções de releituras que não são suficientes, nem mesmo quando o próprio texto se define como o mundo. No bojo dessas análises, Haraway ressalta que duas fibras coloridas correm por seus trabalhos, sendo que a primeira atrai linhas de análise divisoras, e a segunda se dedica a lidar com as complexidades das narrativas em um campo de nós e buracos negros.

Os trabalhos de Haraway estão repletos de contribuições para nos aprofundarmos, no que diz respeito às mudanças criadoras de corpos híbridos por meio de mutações, das ficções e da fabricação de performances ciborgues. O "Manifesto Ciborgue" (1985) e o artigo "Saberes localizados" (1995), posteriormente, fizeram parte da elaboração da escritura "Cama de Gato: Estudos de ciência, teoria feminista, estudos culturais", no ano de 1994. O conjunto dessas obras ressalta a necessidade de o mundo "poder ser de outra forma"; diante da "desordem estabelecida", e o que "os estudos de tecnociências podem ser" (Haraway, 1994).

A cama de gato é composta por emaranhados para a produção de uma efetiva prática crítica, forjada tal qual um jogo que requer jogadores heterogêneos, de categorias diferentes. Esses jogadores estão em mobilidade e podem se tornar anominalistas, em uma rede repleta de surpresas, na medida em que é jogado com e por muitas mãos. Desse modo, Donna Haraway apresenta modos de visualizar o jogo no qual os feminismos ciborgues são tecidos de forma figurativa e encontram-se inseridos em composições de nós, tais quais: conexões, campos de forças e estratégias coletivas. Segundo Haraway (1994), a cama de gato convida a um senso de trabalho coletivo, ao considerar que uma pessoa não é capaz de criar sozinha padrões interessantes, pois uma cama de gato se faz de mão a mão.

A investigação amparada em dispositivos das tecnociências são aqui, segundo Haraway, uma prática semiótico-material que emaranha redes de discursos não hegemônicos e não exclusivos, frequentemente mutuamente constitutivas, mas não isomórficas. Haraway nomeia essa investigação como "estudos de tecnociência feminista multicultural e antirracista". Em "Seguir con el problema: generar parentesco en el Chthuluceno", Haraway (2019) chama a atenção para a importância de estudos decoloniais com enfoque no transconhecimento, chamado por ela de EcoEvoDesaHistoEtnoTecnoPsico (Estudos Ecológicos do Desenvolvimento Histórico Etnográfico Tecnológico Psicológico), como possibilidade de questionamento dos mundos que habitamos, mundos perpassados por práticas coloniais eurocêntricas.

Aqui estão as regras do jogo "cama de gato", que pressupõem movimentos encadeados que dependem das habilidades das jogadoras. Para Haraway, não se vence em um jogo de cama de gato; o jogo é interessante porque é aberto. Sair dos padrões fixos e inventar saídas são propostas que acompanham as obras de Haraway, que visam apontar um caminho que, segundo ela, não passa por um ponto zero, inicia de fios puxados e tecidos em figuras móveis cuja estabilidade se dá até que a próxima mão as refaça.

No "Manifesto em favor dos ciborgues", Donna Haraway (2013) localiza os ciborgues da vida cotidiana nas camadas subalternizadas do capitalismo mundial integrado, quando nos remete ao exemplo das mulheres trabalhadoras de uma aldeia no sudeste asiático, nas empresas eletrônicas japonesas e estadunidenses, descritas por Aihwa Ong, "elas estão ativamente reescrevendo os textos de seus corpos e sociedades. A sobrevivência é o que está em questão nesse jogo de leituras" (Haraway, 2013, p. 99). A ciborgue em Donna Haraway é mestiça, não branca, escrita em paralelo a um exercício de colaboração artística com Lynn Randolph e contribuições de Gloria Anzaldúa.

A cama de gato de Haraway é tecida nos entremeios das habilidades dos nós que fazemos a partir dos fios puxados para a composição e das práticas tecnocientíficas orientadas ao florescimento de alguns mundos. Ela adverte que nem sempre é possível repetir padrões interessantes, mas ressalta a importância de uma habilidade analítica incorporada, que nos faça descobrir os padrões e que resulte de forma intrigante a novos modos de existir e de jogar. Ao admitir que o jogo é realizado por jogadoras ao redor do mundo, destaca que os jogos e suas maneiras de ser jogado têm considerável significância cultural. Dessa forma, Haraway é enfática ao escrever: "Cama de gato é ao mesmo tempo, local e global, distribuído e amarrado juntos" (Haraway, 1994, p. 70, tradução nossa).

Como se aprende a jogar a cama de gato? Por que nos interessa entender nossas articulações com o Estado associadas às figurações desse jogo?

A cama de gato é, sobretudo, um jogo matemático sobre práticas complexas e colaborativas para se fazer e com o objetivo de fazer passar padrões culturais interessantes: "A cama de gato não pertence a ninguém, a nenhuma cultura ou a nenhum sujeito ou objeto congelado. Cama de gato é um maravilhoso jogo para se desmistificar noções como posições do sujeito e campos de discurso" (Haraway, 1994, p. 70, tradução nossa).

O jogo de cama de gato nos faz pensar teorização e ativismos que não se localizam nos jogos militarizados de encontros agonísticos infindáveis e nas tentativas de força de uns sobre as outras. Fazer uma figura de cordas exige cuidado e atenção, um jogo delicado e arriscado, sempre prestes a se desfazer... A cama de gato está para ser pensada, repensada, experimentada e desejada até onde nossas ideias possam conquistar novas configurações nos espaços que queremos ocupar coletivamente. Cama de gato é sobre não estar sozinha nas instituições, majoritariamente, científicas masculinistas.

É necessário questionar o lugar antropocêntrico, que coloca o ser humano, homem, branco, europeu e heterosexual no lugar de privilégio. Por isso, convoca-se neste artigo à construção de psicologias feministas e antirracistas, conjugando o não-lugar irrepresentável (Irigaray, 1984) e invisível da mulher, ao acrescentar-se aqui outras categorias irrepresentáveis com a figura do ciborgue.

É importante iniciarmos essa discussão partindo do que Guattari em "Linhas de Fuga" (2013) nos antecipa a respeito da desterritorialização dos corpos. A produção de novos enunciados que possam intensificar os fluxos locais diante de toda organização do social, criará "atividades marginais residuais", tendo em vista o sufocamento sobreposto de uma certa "ditadura do significante". Para Guattari (1992), nossos corpos tendem a todo momento a pertencer a um território de linguagens que permita produções de sentido na vida. A produção de sentido, que ocorre em nível verbal, pressupõe a dependência de uma língua significante. A falta de palavras para os sentidos nos aprisiona como se estivéssemos condenados a esperar por cadeias de significantes linguísticos para interpretar e controlar os caminhos autorizados, os sentidos proibidos e as brechas toleradas.

Anfitriã das ciborgues nas chamadas Ciências Humanas, Donna Haraway faz ruir e desmoronar dicotomias e contribui para proliferar corpos que extrapolam os limites do dentro e do fora, do sagrado e do profano, da ciência e do senso comum, do público e do privado, revelando-nos presença de fluxos que questionam relações de poder. Acompanhar essas intensidades e pertencer a elas, a partir de leituras feministas, permite-nos movimentar devires.

Com o título "Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX", publicado em 1985, Haraway apresentava um mito político do ciborgue, figura criada das conexões elétricas a partir das funções humanas melhoradas, uma figura construída entre a máquina e o organismo, o prazer da confusão de fronteiras. A figura da ciborgue segue a corporificar o rompimento de algumas fronteiras, as que antes a epistemologia e a ontologia ocidental nos fizeram reconhecer como único modo de conhecer.

Em um jogo de cordas denso, Donna Haraway, ao corporificar, na figura da ciborgue, as fronteiras do que poderia ser binário (natureza-cultura, homem-mulher, humano-animal, primitivo-civilizado, passado-presente), nos permite nutrirmo-nos, prosseguirmos e, assumirmos a "responsabilidade de sua construção" e, inclusive, acatar as limitações e nos abrirmos às variações (im)possíveis quando as cordas mudam.

Figuras de corda Navajo: variações no jogo de cordas ante o Chthuluceno

Haraway (2016, 2019) propõe um trabalho colaborativo das pessoas com outros seres da terra em arranjos multiespécies, no que chama de Chthuluceno. Isso requer uma prática de fazer com, autocriação, um composto de raízes gregas (Khthôn e Kainos) que juntas formam um tipo de espaço/tempo para aprender a seguir com o problema de viver e morrer com respons-habilidade. Nesse jogo denso, nada deve significar passado, presente ou futuro convencionais, mas presenças contínuas e densas performadas por todo tipo de temporalidades e materialidades. Milhares de seres, em interdependência, jogam cordas cotidianamente, em um viver e morrer juntos e diferentemente. Pode-se sempre jogar cordas, desde que se mantenha um ritmo entre dar e receber, propõe Donna Haraway.

A noção de Chthuluceno é uma resposta de Donna Haraway às imagens falocêntricas do Antropoceno, figura que povoa os textos sobre os horrores de Gaia. Para ela, outro nome era necessário a fim de enfatizar a dimensão de composição e da multiplicidade de criaturas presentes nas tramas daquilo que veio a ser nomeado Antropoceno para alguns e Capitaloceno para outros. A proposição de Antropoceno acaba por responsabilizar a espécie humana pelas condições atuais do planeta, já bastante alteradas se comparadas ao Holoceno, implicando questões relativas ao Capitalismo, uma "criação" humana que, por suas relações produtivas, impulsionou tal modo de relação com os recursos do planeta que os leva ao quase esgotamento. Estaríamos desconsiderando toda complexa dinâmica ecológica envolvida na composição biótica do nosso planeta.

O Chthuluceno é feito, segundo Haraway (2019), de heranças, de memórias e também de chegadas, de criar e nutrir o que ainda pode chegar a ser. Aprender a seguir com o problema de viver e morrer juntos em uma terra ferida favorece um tipo de pensamento que fornecerá os meios para construir um futuro mais habitável. Convida a subverter o sentido de humano que pensa como húmus, como adubo, criando fabulações especulativas, científicas, que em rede, em teias, produzem histórias, conceitos que nos permitam e impulsionam a pensar a juntar forças, morrer e viver bem sem negligenciar um dito passado de perdas e devastações irreversíveis.

Eu sou uma compostista, não uma pós-humanista: somos todos compostos, adubo, não pós-humanos. O limite que é o Antropoceno/Capitaloceno significa muitas coisas, incluindo o fato de que a imensa destruição irreversível está realmente ocorrendo, não só para os 11 bilhões ou mais de pessoas que vão estar na terra perto do fim do século 21, mas também para uma miríade de outros seres (Haraway, 2016, p. 141).

O Cthulhuceno de Donna Haraway (2016, 2019) não é sobre um deus patriarcal, como o de Lovecraft, e sim sobre a deusa Nagã das serpentes nadando nos mares entre a Austrália e a Indonésia. Apresenta o Cthulhuceno como uma ninhada, já que é uma história grande o suficiente para fazer parte do trabalho de resistir aos sistemas de dominação, de resistir aos Tentaculares; como nos alerta, estes pertencem e vivem na terra e na água, eles não são os que olham para o céu. O Cthulhuceno não pode contar histórias sobre transcendência.

No Cthulhuceno encontra-se simultaneamente passado-presente e futuro por vir e, por isso, neste, os seres de mundificação terrena - os terráqueos - não estão relegados ao que foi derrotado, surgindo nessa densa fluência temporal em jogo. Estamos perante as criaturas mundanas e abraçamos a fluência temporal. Nesta, abordamos os múltiplos fins de mundos e continuidades apesar dos fins. É uma insistência na alegria e no terror de viver e morrer bem nessa terra. O importante da palavra ceno, para Haraway (2014), é que ela significa uma densa época presente agora que tem muitas durações, muitos tipos de viver e morrer. Lutar pelo que está debaixo da terra e sobre a terra; lutar pelas alianças que nos mostram que ser um é, sempre, tornar-se com muitos.

O jogo de cordas, no livro Seguir con el problema, adquire toda densidade e perigos que abarca. Haraway (2019) em uma das ilustrações traz o jogo de cordas Navajo, que se traduz por dois coiotes correndo em direções contrárias. Para a autora, o jogo de cordas Navajo vem a acrescentar à cama de gato e ao jogo de barbantes, que não são suficientes para contar as histórias na forma de um tecido contínuo, inclusive a história do surgimento do povo Navajo.

Não se trata, portanto, da mesma figura de cordas que aparecia nos primeiros textos de Donna Haraway. Nem melhores, ou piores. Operadores metodológicos fabulativos que buscam se colocar diante de questões e a colocar questões diferentes. Para a intrincada relação entre o viver e o morrer em um planeta danificado, entra em cena, para Donna Haraway, um jogo de cordas que, em uma cosmologia indígena, versa sobre vida e morte. Fazem parte de um amplo conjunto de jogos de corda com os quais se brinca nas noites frias do inverno, conhecidos por Dinè String Games. De acordo com Helen Torres, tradutora da Donna Haraway ao espanhol, a autora utiliza jogo de cordas (juego de las cuerdas), jeux de ficelles e string figures de maneira diferenciada ao longo da sua obra.

Os jogos de cordas Navajo são, para Donna Haraway (2019), práticas de pensamento, pedagógicas e cosmológicas. Esses jogos estariam mais próximos dos jogos especulativos em SF que são menos receptáculos e mais padrões provisórios, práticas de fazer com arriscadas, contingentes e relacionais. As figuras produzidas pelos indígenas Navajo trazem "histórias de conquistas, recuperação e ressurgimento (Haraway, 2019, p. 18)". Trazem "as alegrias de compor uma cosmopolítica mais vivível" (Haraway, 2019, p. 19). Para a autora, rever o modo como se jogam as cordas é parte inexorável do trabalho a ser feito pelas mulheres que descendem das histórias coloniais e imperialistas de dominação, voltar-se ao particular e ao local conforme já propunha desde a década de 1990 em defesa de saberes localizados e parciais.

Donna Haraway (2019) se pergunta sobre como os jogos de cordas chegaram à Europa e observa que a chegada foi bastante tardia. Ao que assinala que jogos originários e ocidentalizados divergem, mesmo compondo, aparentemente, uma mesma figura, como o demonstra o estudo etnológico de Caroline Furness Jayne citado por ela.

Camille, filha da compostagem: prática de ficção simbionte (sym fiction)

Donna Haraway (2019) relata muitas histórias, criadas com figuras de cordas, que emergem de práticas colaborativas. Chamamos atenção, neste tópico, para a narrativa sobre as cinco gerações de Camille, uma espécie simbionte, ainda-não-nascida e ainda-não-saída-da-concha, filha da compostagem que surgiu na terra para dizer não ao pós-humano.

Camille é uma criatura material de ficção, criada em um jogo de cordas, mão a mão, por Donna Haraway, Vinciane Despret e Fabrizio Terranova durante a oficina "Narration spéculative" em Cerisy, Normandia, em 2013. O colóquio havia sido organizado por Isabelle Stengers e os três se inscrevem em uma oficina de escrita SF, narração especulativa, um dos gestos especulativos que marcava o evento. Durante a oficina, no primeiro dia, as participantes foram subdivididas em grupos de duas ou três pessoas que receberam uma tarefa. Foi-lhes pedido que fabulassem um bebê e que o acompanhassem por cinco gerações.

O conto narrado por Donna Haraway consiste em uma recordação do que foi produzido pelo grupo naquela reunião. Finalizada a oficina, Haraway, Despret e Terranova continuaram a escrever narrativas sobre Camille e, às vezes, as trocavam entre si para renarrações e, outras vezes, não. Fabrizio Terranova, diferentemente de Donna Haraway, compôs um relato fílmico que está na docuficção "Donna Haraway: Story Telling for Earth Survival".

Ao criarem Camille, os três tinham nos braços um bebê que não queria saber nada de gênero convencionais, nem de excepcionalismo humano, por isso, por Camille. Um bebê nascido para fazer-com e torna-se-com uma ninhada heterogênea e outros terráqueos, que ensinou Haraway (2019) a dizer "Fazer parentes, não bebês!" Donna Haraway dialoga, aqui, com o impulso colonial de habitar a terra com filhos e filhas do falocentrismo colonial, reduzindo as tramas de parentesco ao horizonte da conquista.

Camille nasce em um momento de surgimento de muitas comunidades planetárias interconectadas que se sentiram compelidas a ir para lugares em ruínas, a fim de trabalhar em sua salvação com associados humanos e não humanos, construindo nós e redes de e para um mundo novamente habitável. As comunidades da compostagem são espaços na Terra que surgem, no início do século XXI, em um mundo marcado por terras e águas arruinadas. Essas comunidades se comprometem a "contribuir de maneira radical para reduzir a quantidade de humanos durante alguns séculos, uma vez que se desenvolveram práticas de justiça ambiental multiespécie de uma miríade de tipos" (Haraway, 2019, s/p, tradução nossa).

As filhas da compostagem têm a pretensão de modelar uma vida terrena a partir de soluções externas que se materializam para problemas locais e sistêmicos. As relações de parentesco podiam se formar em qualquer momento da vida por genitores e outros tipos de parentes ou inventar-se em momentos de transição significativos. As meninas e meninos da compostagem nascem de todas as maneiras possíveis e são denominados por Haraway (2019) de sims, pois aprendem a viver com um animal em simbiose, ao menos por cinco gerações humanas.

Para a autora, "simbiontes humanos e animais mantêm a continuidade dos relevos da vida moral, herdando e, ao mesmo tempo, inventando práticas de recuperação, sobrevivência e florescimento (Haraway, 2019, s/p, tradução nossa)". É importante delimitar que simbiontes correspondem a seres vivendo em interdependência, que pode ser benéfica para ambas ou não. Para Donna Haraway (2019, p. 359), "a simbiogênese gera um tipo novo de organização, não apenas novos bichos. A simbiogênese abre a paleta - e o paladar - a um viver colaborativo possível".

Sigamos a narrativa sobre as gerações das comunidades da compostagem nas quais vive Camille... A comunidade da compostagem de Camille se mudou para o sul da Virgínia Ocidental, nos Apalaches, para um lugar ao longo do rio Kanawha, em torno do Monte Gauley. Lugar que havia sido devastado pela mineração de carbono. Os rios e seus afluentes estavam contaminados e os vales cheios de restos de minério. As pessoas locais foram exploradas e abandonadas pelas companhias de minerais. A gente de Camille se alinhou às comunidades multiespécies em apuros que eram habitantes dos vales e montanhas, tanto pessoas locais quanto animais (Haraway, 2019).

Com os meninos e meninas do Composto, Haraway (2019) chama a atenção para a degradação natural/cultural nas complexas histórias narradas pelas feministas de comunidades e povos indígenas e regionais que enfrentam uma contínua opressão étnica, de classe e de Estado. Nas Comunidades do Composto, cada novo bebê tem ao menos três progenitores humanos, e "as progenitoras gestantes exercem a liberdade reprodutiva de eleição de um animal simbionte para o bebê, uma eleição que se ramifica nas distintas gerações de todas as espécies" (Haraway, 2019, s/p, tradução nossa).

Nas diferentes gerações, Donna Haraway nomeia Camille a partir de números... Camille 1, Camille 2... Nem todas as gerações se reproduzem por filiação, e mesmo as características físicas podem ser, em algumas situações, alteradas por pactos simbióticos também não orientados a uma necessidade. É assim que, por exemplo, Camille 2, quando fez 15 anos e chega à maioridade, pede de presente um queixo de antenas de abelhas, uma espécie de barba tentacular e, com isso, o associado humano poderia herdar a intensa degustação dos mundos dos insetos, ajudando na tarefa de prazeres corporais no devir-com (Haraway, 2019). Cada geração anterior de Camille prepara a seguinte, vide o fim da vida de Camille 4 e a iniciação de Camille 5:

Depois de décadas na investigação sobre as ecologias dos insetos em seus holobiomas humanos e não humanos, Camille 4 visualiza que as monarcas, apesar de sua extensão geográfica e sua diversidade, seriam as primeiras a desaparecer. Por isso, Camille 4 dedicou-se a ensinar e acompanhar Camille 5 por caminhos distintos daqueles que Camille 3 a havia guiado; um tipo de iniciação diferente e árdua, pois levaria Camille 5 a aprender a ampliar suas experiências com outros sims que haviam perdido seus bichos. (Haraway, 2019, s/p, tradução nossa).

Diferenciando-se do gênero ficcional conhecido como fan fiction (ficção por fãs), Donna Haraway (2019) localiza os meninos e meninas da compostagem como parte de uma sym fiction (ficção simbionte). Na sym fiction, as histórias de Camille se comprometem com o fortalecimento de formas para propor futuros possíveis e presentes implausíveis, mas reais. Camille rompe com discursos direcionados às rupturas e fracassos, e gera outras possibilidades. O que a autora aponta é: ainda temos muitos problemas, muitos parentes com quem continuar a seguir com o problema de viver e morrer em arranjos multiespécies.

As histórias de Camille bagunçam fronteiras, colocam-nos a questionar os mundos que habitamos; incitam-nos a criar figurações que possibilitam inventar novos mundos, proposições e articulações de fazer parentes. De acordo com Donna Haraway (2016, 2019), fazer parentes é, talvez, a parte mais difícil e urgente de seguir com o problema, pois isso significa mais do que entidades ligadas por ancestralidade ou genealogia. Parentesco, na fabulação de Haraway, torna-se uma acepção que carrega em si um arranjo, porque "fazer parentes requer não somente divindades e espíritos situados [...], mas também bichos biologicamente heterógenos" (Haraway, 2016, p. 144).

Helen Torres (2019) destaca um aspecto central às narrativas de Camille, que consiste na decisão coletiva sobre a criação de cada novo humano ou humana, ainda que ninguém possa vir a ser castigada por parir sem seguir os desígnios coletivos. Ademais, destaca que o poder reprodutivo mais apreciado nas comunidades da compostagem reside em escolher um animal simbionte para cada bebê, nas suas diferentes gerações. A partir das leituras de Donna Haraway, Helen Torres vem ministrando oficinas que denomina como "Ficção Científica sem Futuro", que visam a "potencializar um imaginário coletivo e formas de pensar que nos permitam vislumbrar formas de viver e morrer que deixem de reproduzir o capitalismo, o patriarcado e a colonização" (Torres, 2019, s/p, tradução nossa).

 

Considerações finais

Acolher feminismos ciborgues nas práticas científicas das universidades brasileiras requer jogos de cordas, que passam de mão em mão, atenção às práticas localizadas, aos acoplamentos, às matérias e às histórias que contamos. Donna Haraway nos convida a jogar figuras de corda com espécies de companhia e unir forças para constituir refúgios em um mundo de refugiadas e sem refúgios. Parte do trabalho de florescimento de mundos consiste em incorporar, com mais vigor, a fabulação feminista antirracista e os jogos de cordas nas nossas práticas de pesquisa.

Nos acoplamentos-feministas-ciborgues às universidades brasileiras, "é hora de voltar a se perguntar como encontrar sementes para terra formar para o bem de um mundo de diferenças terrenas e em recuperação, onde abunda o conhecimento sobre como matar (Haraway, 2019, p. 211, tradução nossa)". Com quem jogamos cordas e urdimos figuras provisórias, mas mortais o suficiente para produzir a nossa aniquilação? Quais fios puxamos para nossas figuras de cordas?

Podemos deixar de lado o sonho de criaturas autopoéticas e autossustentáveis em prol da figura da simpoesis como propõe Donna Haraway? Quantas gerações fabularemos para que a interdependência e a relacionalidade do jogo de cordas, a cama de gato, os jogos de cordas Navajo venha a compor mais fortemente os mundos que constituímos em nossas práticas científicas em Psicologia? Afinal, a Psicologia pode valer-se, também, das sym fictions e quais responsabilidades se colocam se efetuarmos tal deslocamento?

 

Referências

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Recebido em: 20/11/2019
Aceito em: 27/7/2021

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