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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.3 São João del-Rei jul./set. 2021

 

Entre apagamentos e afirmações: reposicionamentos do trabalho e da deficiência

 

Between Deletions and Affirmations: Repositioning of Work and Disability

 

Entre eliminaciones y afirmaciones: reposicionamiento del trabajo y discapacidad

 

 

Maudeth Py BragaI; Marcia Oliveira MoraesII

IProfessora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutoranda em Psicologia pela UFF
IIProfessora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Pesquisadora CNPq, Bolsista Faperj Cientista do nosso Estado

 

 


RESUMO

O artigo objetiva discutir efeitos da reforma trabalhista no Brasil, em 2017, na relação deficiência e trabalho. Adotamos como questões: quais são os reposicionamentos que a multifuncionalidade do trabalhador, marca da especialização flexível, coloca para o modelo social da deficiência? E quais reposicionamentos estão colocados com o modelo social da deficiência, nas pistas de Débora Diniz, Marcia Moraes e Anahi Mello? Com base em pesquisa documental e bibliográfica, colocamos em cena o apagamento do trabalho no cenário brasileiro atual, com as leituras de David Harvey e Ricardo Antunes. A Carteira de Trabalho foi tomada como um analisador, pela escrita de Simone Guedes. A condição de contribuinte passa a ser determinante com a versão digital nas pactuações e contratações de trabalho, cada vez mais precárias. Junto com a "pejotização", cresce o trabalho informal e a marca do trabalho doméstico: a invisibilidade. O que apagamos e afirmamos com nossas escritas de pesquisa?

Palavras-chave: Deficiência. Reforma trabalhista. Modelo social da deficiência.


ABSTRACT

The article aims to discuss the effects of labor reform in Brazil, in 2017, on the relationship between disability and work. We adopt as questions: What are the repositioning that the multifunctionality of the worker, a mark of flexible specialization, poses to the social model of disability? And what repositioning are placed with the social model of disability, in the tracks of Deborah Diniz, Marcia Moraes and Anahi Mello? Based on a documentary and bibliographical research, we put on the scene the deletion of the work in the current Brazilian scenario, with the readings of David Harvey and Ricardo Antunes. The work card was taken as an analyzer by the writing of Simone Guedes. The condition of taxpayer becomes determinant with the digital version in the increasingly precarious agreements and hiring work. Along with "pejotização", informal work grows and the mark of domestic work: invisibility. What do we erase and affirm with our writing policies?

Keywords: Disability. Labor reform. Social model of disability.


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo discutir los efectos de la reforma laboral en Brasil, en 2017, sobre la relación entre discapacidad y trabajo. Adoptamos como preguntas: ¿Cuáles son los reposicionamientos que la multifuncionalidad del trabajador, una marca de especialización flexible, pone para el modelo social de discapacidad? ¿Y qué reposicionamientos se colocan con el modelo social de discapacidad, en las pistas de Débora Diniz, Marcia Moraes y Anahi Mello? Basado en la investigación documental y bibliográfica, pusimos en escena la eliminación del trabajo en el escenario brasileño actual, con lecturas de David Harvey y Ricardo Antunes. La tarjeta de trabajo fue tomada como un analizador, por escrito de Simone Guedes. El estado del contribuyente se vuelve determinante con la versión digital en los acuerdos y contratos de trabajo, cada vez más precarios. Junto con la "pejotização", crece El trabajo informal y la marca del trabajo doméstico: invisibilidad. ¿Qué borramos y afirmamos con nuestros escritos de investigación?

Palabras clave: Discapacidad. Reforma laboral. Modelo social de discapacidad.


 

 

Introdução

A dimensão do não lugar invadiu o trabalho? O trabalho digno está sem lugar no cenário econômico brasileiro? Você está convidada(o) a percorrer, com a leitura deste trabalho, algumas reflexões sobre o que chamamos de apagamento do trabalho neste momento político e econômico brasileiro. Por isso, destacamos, para abrir a introdução, a imagem em que o letreiro do Ministério do Trabalho é retirado, devido a sua extinção, em janeiro de 2019. Essa foi uma das mudanças no redesenho da nova estrutura ministerial do governo Jair Bolsonaro. As atribuições do extinto Ministério do Trabalho foram distribuídas entre as pastas: da Economia, Justiça e Cidadania. A seguir está a fotografia.

 

 

Descrição afetiva da imagem: A parede do Ministério ao fundo. A palavra MINISTÉRIO ainda está para ser retirada. O complemento DO TRABALHO já havia sido retirado pelos três trabalhadores uniformizados e de capacete, que utilizavam um andaime. Dois estão na parte de cima do andaime e um está no chão, andando de costas e parece estar saindo cabisbaixo. Peças de andaime e outros materiais estão encostados embaixo, na parede, no lado esquerdo.

A imagem nos convoca a pensar o apagamento do nome trabalho em um momento de retirada de direitos trabalhistas avassaladora em escala mundial. Pretendemos, neste espaço textual, destacar alguns pontos da reforma trabalhista no Brasil e suas implicações na relação trabalho e deficiência. A Carteira de Trabalho, como significante, será uma via de apoio a essa discussão, sem a intenção de traçar uma historiografia desse documento. O propósito, então, é assinalar alguns pontos da reforma trabalhista mais relacionados à questão do tempo de trabalho. Os sobre tempos, cada vez mais presentes, parecem colocar o tempo em uma esteira, um tempo que se esvai em uma máquina de aceleração produtiva implacável.

Sendo assim, as questões relativas ao que pode ser entendido como deficiência não podem ser descoladas das transformações no campo do trabalho, dos modelos produtivos e da referência do modelo social da deficiência; seja porque pode remeter ao padrão ideal de "homem" produtivo, com um efeito normalizador, seja por estabelecer um "grau" cada vez mais fechado de acesso aos direitos. A crítica feminista incide nessa métrica: quem cabe nesse padrão produtivo? Além disso, discute a invisibilidade dos cuidadores, bem como destaca a interdependência como central para o viver. A seguir, desenvolvemos essa discussão com base em pesquisa documental e bibliográfica. O artigo está fundamentalmente baseado no texto: "Políticas da deficiência em tempos de precariado" (Braga, 2019).2

Momentos do modelo social da deficiência

Os movimentos sociais e estudos sobre deficiência (Disability studies) nos anos 1970 e 1980, no Reino Unido3 e nos Estados Unidos, notadamente, marcaram uma guinada em relação ao modelo biomédico que enfatiza o corpo com lesão, toma a normalidade como parâmetro e desconsidera as condições de desigualdades. Em contraposição, o modelo social propõe a luta contra a estrutura social que oprime o corpo com lesão. Nesse enfoque, a tensão corpo-sociedade baliza o que é deficiência, relacionada às barreiras, condições socioambientais e políticas de acessibilidade. O conceito de deficiência é colocado como instrumento de justiça social e não somente como questão individual. Observamos que não está colocada uma definição, e sim um conceito passível de atualização. Está em curso um reposicionamento: a deficiência passou a ser o resultado da interação de um corpo com lesão em uma sociedade discriminatória. É tenso esse movimento. A exigência de laudos médicos continua como prerrogativa para acesso a várias situações. A reivindicação pelo protagonismo dos movimentos na luta por direitos e mudança social persiste e insiste. As práticas medicalizantes parecem embrenhadas nas Instituições. Esse embate pela afirmação do modelo social está em pleno vigor, em se tratando de uma questão política e de justiça social no cenário brasileiro. É o que está ocorrendo, neste momento, quando o Conselho Nacional da Pessoa com Deficiência (Conade) luta por seu lugar na decisão sobre a criação de um Sistema Nacional de Avaliação da Deficiência. Na Lei Brasileira de Inclusão (LBI - Lei n. 13.146/2015) está prevista que a avaliação, de caráter biopsicossocial, será realizada por equipe multidisciplinar, cabendo ao Poder Executivo a criação de um instrumento até 2018, dois anos após a vigência da Lei.

O Índice de Funcionalidade Brasileiro (IFBr), resultante de uma pesquisa coordenada pela Universidade de Brasília, foi construído na direção desse deslocamento para o modelo social, em uma perspectiva relacional entre um corpo com impedimentos e as barreiras restritivas à participação social. No entanto, o Ministério da Economia apresentou um instrumento, Protocolo Brasileiro de Avaliação da Deficiência (Probad), que não contou com a participação do movimento das pessoas com deficiência. Na contramão do lema, "nada sobre nós sem nós", propõe uma avaliação com médicos e assistentes sociais. O lema adotado pelo movimento das pessoas com deficiência, "Nada sobre nós, sem nós", afirma que toda decisão que as afete só pode ser tomada com a participação delas.

Na primeira geração do modelo social, apresentado como um "primeiro momento" (Diniz, 2007), a busca de um tipo ideal de sujeito produtivo era o que pautava esse movimento, muito provavelmente por ter sido formado por homens com deficiência física que reconheciam na capacidade produtiva um modo de pertencimento em uma organização social em que o valor da independência e do trabalho produtivo eram primordiais. No entanto, o modelo social preconizava que a deficiência fosse considerada em termos de uma variabilidade de corpos na relação com a sociedade, sendo a experiência da opressão um marcador fundamental.

A crítica feminista incide diretamente sobre essa centralidade da independência, por reconhecer que nem todos os corpos teriam a possibilidade de atingir o patamar de condições produtivas. Sendo assim, tomam a interdependência como valor central, bem como chamaram atenção para o que significava viver em um corpo lesado, recolocando em cena a dor, a lesão e o cuidado. Realçar o papel das cuidadoras e cuidadores, e associar a deficiência ao processo de envelhecimento, também foram contribuições feministas nesse "segundo momento".

Anahi Guedes de Mello4 (2016) assinala como "terceiro momento" a questão da interseccionalidade,5 afirmando uma conexão com outras marcas de opressão, como raça, idade, orientação sexual e gênero. A ativista insiste que é preciso dar visibilidade ao capacitismo, que é o preconceito e discriminação em relação às pessoas com deficiência. Quando é dito, por exemplo, "mulher no volante, perigo constante", é um exercício do capacitismo em um enlace com a questão de gênero. Ao avaliar um candidato como incapaz, muitas vezes veladamente, por uma questão racial, é uma prática racista e um exercício do capacitismo. Sunaura Taylor (2017)6 afirma que "toda a hierarquia é capacitista", então, deduzimos que todos os corpos são perpassados pelo capacitismo.

Em uma primeira leitura, entendemos que Sunaura Taylor opera com o conceito de deficiência de forma expandida, ou seja, também faz conexão com formas de opressão em várias escalas: humanas e "não humanas". A opressão humana está atrelada, inexoravelmente, à opressão animal. Sendo assim, a luta anticapacitista, necessariamente, passa pela dignidade dos humanos e dos animais. Arriscariamos dizer que isso vai na direção do que Donna Haraway (2008, p. 163) diz sobre o corpo: "[...] o corpo é sempre um fazer; é sempre um emaranhado vital de escalas, tempos, maneiras de ser heterogêneas ligadas em presença encarnada, sempre um tornar-se, sempre constituído em relação". Por considerar que as diversas formas de opressão são mutuamente constitutivas, Sunaura Taylor coaduna com a perspectiva desse terceiro momento, com uma perspectiva inovadora.

Multifuncionalidade e deficiência em tempos de acumulação flexível

A expressão acumulação flexível foi cunhada pelo geógrafo David Harvey (1994) para designar uma nova configuração do capitalismo, a partir da década de 1970, que, em contraposição ao sistema taylorista-fordista, se apoia na flexibilidade:

A acumulação flexível [...] se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. (Harvey, 1994, p. 140).

Avalia o quanto a subjetividade foi afetada nos últimos 15 anos pelas transformações decorrentes da mudança de formas de organização de trabalho que transitam de um processo baseado no fordismo para o toyotismo (acumulação flexível).

O fordismo pode ser entendido como um sistema de produção em massa, em série, com produtos homogêneos (concatenando tempo e movimento) fabricados em grandes linhas concentradas em um único espaço. Baseado na racionalidade de processos, durabilidade dos produtos, política salarial de promoção do trabalhador e ampliação de sua capacidade de consumo. A velocidade da esteira pautava a produtividade, enquanto o cronômetro foi a marca da regulação do tempo de produção no taylorismo.

O toyotismo é um modelo japonês que se baseia na qualificação polivalente do trabalhador - multifuncionalidade -, na desconcentração do espaço físico, operando com unidades fabris desconcentradas. As empresas mantêm um núcleo mínimo de empregados polivalentes e uma infinidade de trabalhadores flutuantes, terceirizados. Com isso, os mercados de trabalho tendem a diminuir o número de trabalhadores efetivos e ampliar a força de trabalho facilmente demitida. Medidas de proteção social do trabalhador são cada vez mais restritivas, para tanto é preciso uma política governamental que viabilize a lógica liberal. A regulação da produtividade e do tempo de trabalho se amplificam com novas tecnologias de controle, com modelos de gestão que cada vez mais independem da figura de um chefe, mas estão embutidas na própria lógica de funcionamento e operacionalidade. O enfraquecimento de um sindicalismo combativo, por categoria, está relacionado a um funcionamento com sindicatos por empresas, favorecendo a dispersão.

Ricardo Antunes (2008, 2010), ao analisar a nova morfologia do trabalho, alude à classe que vive do trabalho em uma precarização que cresce assustadoramente. A flexibilidade, a terceirização e a informalidade compõem a tríade de uma desmedida empresarial. As estatísticas sobre o trabalho no Brasil computam, em setembro de 2019, 38,6 milhões de brasileiros atuando na informalidade, ou seja, 41% da força total de trabalho, estimada em 105 milhões de brasileiros (IBGE, 2019).

A vinculação contratual de emprego, cada vez mais rara, é baseada na lógica de um trabalhador polivalente, multifuncional. Com isso, as barreiras no âmbito do trabalho estão postas na sua própria lógica de descartabilidade do que não atende a um padrão competitivo. As ações afirmativas, que são indiscutivelmente um espaço de resistência, são fortemente atingidas, já que as cotas são estabelecidas proporcionalmente ao número total de empregados. No cenário brasileiro, esse quadro se agrava com a reforma trabalhista.

Tempo de trabalho segundo a reforma trabalhista no Brasil

A seguir, foram destacados, de forma resumida, alguns pontos da reforma trabalhista que, nas vias da acumulação flexível, retira o protagonismo dos sindicatos nas negociações de trabalho,9 flexibiliza o tempo de trabalho e cria a figura do trabalho intermitente,8 que na prática dissocia trabalho e direitos. Essas mudanças, aliadas ao incremento da terceirização, impactam sobremaneira a lei de cotas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho, seja pela redução da oferta de vagas, seja pela modificação na regulação do tempo. O tempo produtivo passa a ser a tônica do que é entendido como jornada de trabalho, configurando uma relação de poder bastante desigual (Hermanson, 2019). A convocação do empregado, em se tratando do trabalho intermitente, deverá ser feita com três dias corridos de antecedência. E consta ainda que, no período de "inatividade", poderá prestar serviços a outros contratantes. É a exacerbação do corpo útil, tal como colocado por Michel Foucault (1987), ao atentarmos o que passa a ser entendido como jornada de trabalho. É considerado como "tempo de trabalho o tempo efetivamente trabalhado ou à disposição do empregador". Não são consideradas dentro da jornada de trabalho as atividades como estudo, higiene pessoal, troca de uniforme (quando não houver a obrigatoriedade de troca na empresa), alimentação, por exemplo. O intervalo dentro da jornada de trabalho poderá ser negociado, desde que tenha pelo menos 30 minutos, mas considera a possibilidade de indenização caso não seja concedido o intervalo para almoço ou concedê-lo parcialmente. É importante pensar que até mesmo na universidade, que em princípio estaria "fora" dessa legislação, é cada vez mais comum a sobreposição do tempo de almoço com outras atividades, como reuniões. O tempo de férias pode ser dividido em três períodos, sendo que um deles não poderá ser inferior a 14 dias corridos, e os demais não poderão ser inferiores a cinco dias corridos, cada um. Segundo Dejours (1988, p. 42), "O que parece correto do ponto de vista da produtividade é falso do ponto de vista do corpo".

Vivemos à sombra do precariado, afirma Ruy Braga (2014, par. 2): "grupo de pessoas despojadas de garantias trabalhistas, submetidas a rendimentos incertos e carentes de uma identidade coletiva enraizada no mundo do trabalho". O termo precariado, combinação de precário mais proletariado, foi cunhado por Guy Standing, economista britânico, que aposta que o futuro dos movimentos sociais vai depender da ação desse grupo.

Em tempos de precariado e com as contrarreformas no cenário brasileiro, são restritas as possibilidades do trabalho inclusivo, visto que opera com uma corponormatividade, pela regulação temporal e intensificação da produtividade. O tempo de mobilidade para o trabalho, por qualquer meio de transporte, não é computado, por não ser o tempo à disposição do empregador. Provavelmente, esse entendimento descaracterizaria o acidente de trajeto como sendo de responsabilidade do empregador. Parece que ainda depende de jurisprudência o não reconhecimento do acidente de trajeto, ou seja, aquele que ocorre na ida ou vinda do trabalho.

A mobilidade é conjugada ao acesso, ao trabalho, ao tratamento, ao lazer etc. Então, essa mudança que desvincula o trajeto do trabalho é perniciosa, sobremaneira no campo da deficiência. Outro ponto a ser destacado é o trabalho remoto (home office), no qual o controle do trabalho é feito por tarefa. Contratualmente, são formalizados com o empregador gastos com energia, internet e uso de equipamentos. Isso está muito longe de reconhecer toda uma peculiaridade no modo e tempo na utilização de equipamentos, ainda que sejam dotados dos requisitos de acessibilidade. Qual o prazo definido para o cumprimento da tarefa?

O trabalho parcial também segue a lógica horista, com possibilidade de limite de 30 horas semanais, sem possibilidade de horas extras ou de 20 horas semanais ou menos, com até 6 horas extras. O que cabe em uma hora?9 Na perspectiva de quem?

Com a regulamentação da terceirização em diversas áreas do serviço público (Decreto n. 9.507, 2018), foi ampliado o escopo do que poderia ser terceirizado. O vento da precarização do trabalho está soprando no serviço público como nunca. Nós, autoras, presenciamos a demissão sumária de trabalhadoras e trabalhadores terceirizados na Universidade. A maioria com muitos anos de casa, convivendo conosco nas portarias, no serviço de limpeza e na área administrativa. Com a troca das empresas contratadas, os empregados são demitidos bruscamente. Muito difícil para eles, certamente, e para nós também. São laços fortes, tecidos em anos de convívio. E essa movimentação é uma das facetas das mudanças "operacionais" no âmbito das universidades federais.

A Carteira de Trabalho em tempos de descartabilidade

A busca por emprego muitas vezes foi antecedida por essa expressão: "Vou tirar a Carteira de Trabalho". Além disso, portar a Carteira de Trabalho era uma salvaguarda para muitas pessoas em batidas policiais, afinal tratava-se de um "trabalhador", não de um "malandro". Era um documento muito importante para os brasileiros, além de ter lugar documental nas pactuações contratuais individuais de trabalho, registros de pagamentos, licenças etc. O "escrito" passa a valer legalmente em relação a pactuações informais com base na oralidade. A assinatura da Carteira, bem como as atualizações eram feitas a mão e não podia ter rasuras. Portar a Carteira de Trabalho tem, até hoje, um valor cultural e simbólico. Esse documento foi instituído em 1932, no governo de Getúlio Vargas, no bojo de uma legislação trabalhista que, assentada no ideário de uma proteção social, pretendia exercer um controle social das relações de classe entre empregadores, empregados e sindicatos. Era um documento obrigatório. Segundo Guedes (1999, p. 88), era a "certidão de nascimento cívico".

É muito importante assinalar que a intervenção estatal na regulação das relações de classe assume um caráter de outorga de direito para os trabalhadores, consolidados em documentos legais. A instituição, em 1932, da carteira de trabalho é, como tem sido frequentemente anotado, o signo maior do acesso a estas dádivas, assumindo, até os dias de hoje, conotações simbólicas cruciais como referencial na identificação dos trabalhadores.

Até os anos 1980, a Carteira continha uma apresentação que expressa a disciplinarização pelo trabalho. A permanência no emprego era louvável e muitas vezes tomada como critério para se obter uma vaga em uma empresa.

A carteira de trabalho, pelos lançamentos que recebe, configura a história de uma vida. Quem examina logo verá se o portador é um temperamento aquietado ou versátil; se ama a profissão escolhida ou se ainda não encontrou a própria vocação; se andou de fábrica em fábrica como uma abelha, ou permaneceu no mesmo estabelecimento, subindo a escala profissional. Pode ser um padrão de honra. Pode ser uma advertência. (Alexandre Marcondes Filho, Ministro do Governo Vargas).10

 

 

 

Descrição afetiva da imagem. A carteira de trabalho tem capa azul, na qual está escrito: MINISTÉRIO DO TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL, DEPARTAMENTO NACIONAL DE MÃO-DE-OBRA, CARTEIRA DE TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL, sendo que o brasão da república está no centro.

Quase dois anos depois da reforma trabalhista (2017), foi criada a Carteira de Trabalho e da Previdência Social Digital (Carteira de Trabalho digital, 2019). No momento da contratação, o trabalhador precisa apresentar o número do CPF (Cadastro de Pessoa Física), que passa a ser o número válido para fins de registro trabalhista para brasileiros e estrangeiros com CPF. As anotações serão feitas e acompanhadas no modo eletrônico. Para habilitar o novo documento digital, é preciso criar uma conta de acesso no endereço www.gov.br/trabalho. Sem entrar no mérito das vantagens e desvantagens econômicas e funcionais desse modo eletrônico de produção de documentos, o que nos interessa assinalar é o esfumaçamento da identificação pelo trabalho que essa mudança contém, em um cenário de retirada de direitos.

 

Considerações finais

Com a carteira digital e a identificação do trabalhador pelo CPF, dois modos de inscrição estão postos: como pessoa física e como pessoa jurídica. Isso não significa a prevalência da condição de contribuinte? Aliás, desde o nascimento, esse modo de identificação já é possível. Daí advém os chamados "pejotizados", que se somam aos "intermitentes", "flexíveis", "uberizados" etc. E à margem dessas novas "categorizações" se encontra um grande contingente no trabalho informal.

A invisibilidade do trabalho doméstico remonta à acumulação primitiva, segundo Silvia Federic (2017). Sem qualquer forma de reconhecimento, atravessou séculos pela expropriação e subjugação da mulher pelo patriarcado. A autora, que não acredita em troca igualitária no capitalismo, aposta na inversão dessa lógica, ou seja, a revolução passa pelo reconhecimento do trabalho doméstico como valor de uso e valor de troca. Estar à margem marcou um corpo servil das mulheres por longo tempo. Reverter esse quadro é a verdadeira revolução, que caminha entre apagamentos e afirmações. A servidão invadiu o trabalho contemporâneo?

Frases como: "não queremos ser mais o etc. das lutas", "queremos estar nos 3/4 da população", são ditas, insistentemente, por ativistas no campo da deficiência em vários fóruns relacionados à questão da acessibilidade e acesso aos direitos. A vida digital dá relevo a questões de acessibilidade às plataformas, aos sites, a inúmeras produções acadêmicas inacessíveis por meio eletrônico para pessoas cegas ou com baixa visão, por exemplo. O trabalho remoto depende de uma avaliação minudente no que tange às condições e modos de trabalhar para ser adjetivado como acessível.

Quais são os reposicionamentos que a multifuncionalidade do trabalhador, marca da especialização flexível, coloca para o modelo social da deficiência? E a recíproca é verdadeira: quais os reposicionamentos que o modelo social da deficiência coloca para a especialização flexível? Como a pesquisa acadêmica pode fazer composição com esses enfrentamentos? O apagamento do lugar da pesquisa na formação é o grande combate do momento no país. Escrever sobre isso é uma produção de marcas pela afirmação da pesquisa. A escrita é um espaço de luta nesse sentido. Pesquisar é trabalhar e escrever é pesquisar.

Intervir na deficiência é intervir no tempo. Sem a abertura para temporalidades diversas, nessa vida digital (que não é para todos), a relação deficiência e trabalho fica comprometida, em uma perspectiva emancipatória. Quais questões de acessibilidade serão reveladas com essa nova configuração de documentos digitais relacionados ao trabalho formal? Tanto a noção de trabalho quanto a noção de deficiência estão longe de ser tomadas como um "universal", em viés feminista. Ao contrário, podem ser debulhadas em miríades de modos de existência. O que apagamos e o que afirmamos com nossas escritas de pesquisa?

 

Referências

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Recebido em: 15/7/2020
Aceito em: 1º/7/2021

 

 

1 Disponível em: https://folhapress.folha.com.br/foto/12880567.
2 Braga, M. Políticas da deficiência em tempos de precariado. Texto apresentado para a qualificação de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Orientadora: Marcia Moraes, 17 de setembro de 2019.
3 No período de 1979 a 1990, Margaret Thatcher, a dama de ferro, foi primeira-ministra britânica. Líder do partido conservador, adotou medidas de cunho liberal com restrições às ações dos sindicatos trabalhistas.
4 Anahi Guedes de Mello é antropóloga, doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, surda, feminista e ativista no campo da deficiência
5 Em debate realizado na sede municipal do Psol, em Niterói/RJ, em 2 de setembro de 2019.
6 Sunaura Taylor é uma artista, escritora e ativista que mora em Nova Iorque. Nasceu em 1982 no Arizona, USA, com artrogripose, doença congênita rara caracterizada por contraturas articulares e fraqueza muscular. Autora do livro: Beasts of burden: animal and disability liberation (2017).
7 Convenções e acordos coletivos prevalecem sobre a legislação e a contribuição sindical passa a ser opcional.
8 O trabalho intermitente permite que o trabalhador seja pago por período trabalhado, recebendo pelas horas ou diária, com direito ao décimo terceiro, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e férias proporcionais. O valor da hora trabalhada não poderá ser inferior à remuneração dos empregados que exerçam a mesma função.
9 Perguntamos "O que cabe em uma hora?" em uma discussão com os colegas de Departamento sobre a confecção do Relatório Anual Docente (RAD).
10 Citação retirada da Carteira de Trabalho (p. 4).

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