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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.4 São João del-Rei oct./dic. 2021

 

Percepção sobre a sexualidade da mulher com deficiência × crenças culturais moçambicanas

 

Perception about the Sexuality of Disabled Women × Mozambican Cultural Beliefs

 

La percepción de la sexualidad de las mujeres con discapacidad Creencias × culturales de Mozambique

 

 

Alexandra Justino SimbineI; Maria Salomé MassingueII

IUniversidade Eduardo Mondlane. chandanhamussua@gmail.com
IINweti. msmassingue@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo entender como a mulher com deficiência e a sociedade percepcionam a sexualidade dessas mulheres, numa cultura em que as crenças tradicionais permeiam as causas da deficiência. Para a realização deste estudo, recorreu-se à entrevista, à observação direta e às narrativas das mulheres com deficiência. Foram entrevistados e observados 24 participantes, divididos em dois grupos: 10 participantes do sexo feminino com deficiência, com idades variadas na faixa etária reprodutiva dos 18 aos 45 anos de idade; e 14 participantes que conviviam com pessoa com deficiência ou não, a partir dos 18 anos de idade em diante, de ambos sexos. A análise de dados foi de índole qualitativa, explorando-se as informações colhidas em comparação com o que outros autores já referiam. Como consequência, observou-se que as mulheres com deficiência vivenciam uma experiência caracterizada por discriminação, violação dos seus direitos humanos, julgamentos e limitações sociais que lhes proíbem gozar plenamente sua sexualidade e seus direitos sexuais e reprodutivos.

Palavras-chave: Deficiência. Sexualidade. Crença.


ABSTRACT

This article aims to understand how women with disabilities and society perceive the sexuality of this woman, in a culture in which traditional beliefs permeate the causes of disability. To carry out this study, interviews, direct observation and narratives of women with disabilities were used. Twenty-four participants were interviewed and observed, divided into two groups: ten female participants with disabilities, aged between eighteen (18) and forty-five (45) years; and 14 participants who lived with people with disabilities or not, from the age of 18, of both sexes. The data analysis was qualitative in nature, exploring the information collected in comparison with what other authors had already mentioned. As a result, it was observed that women with disabilities live an experience characterized by discrimination, violation of their human rights, lawsuits and social limitations that prohibit them from fully enjoying their sexuality and their sexual and reproductive rights.

Keywords: Disability. Sexuality. Belief.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo comprender cómo las mujeres con discapacidad y la sociedad perciben la sexualidad de estas mujeres, en una cultura en la que las creencias tradicionales permean las causas de la discapacidad. Para la realización de este estudio se utilizaron entrevistas, observación directa y narrativas de mujeres con discapacidad. Se entrevistaron y observaron veinticuatro participantes, divididos en dos grupos: diez participantes femeninas con discapacidades, con edades comprendidas entre los 18 y los 45 años; y 14 participantes que convivieron con personas con discapacidad o no, a partir de los 18 años, de ambos sexos. El análisis de los datos fue de carácter cualitativo, explorando la información recopilada en comparación con lo que ya habían mencionado otros autores. Como resultado, se observó que las mujeres con discapacidad viven una experiencia caracterizada por la discriminación, violación de sus derechos humanos, juicios y limitaciones sociales que les prohíben disfrutar plenamente de su sexualidad y sus derechos sexuales y reproductivos.

Palabras clave: La Discapacidad. La Sexualidad. Creencias.


 

 

Introdução

[...] a família dele não me queria por eu ser uma mulher deficiente, dizia: "vai trazer deficiência na família, porque os filhos também serão deficientes". Tivemos 3 filhos quando fiquei de baixa [...] quando regressei, encontrei a casa vazia, tiraram tudo e levaram os meus dois filhos, chamei meu esposo, que veio com os irmãos, bateram-me e levaram o outro filho que estava comigo [...], os meus filhos já cresceram, casaram-se, mas eu não tenho contato com eles, foram proibidos de me procurar porque sou feiticeira [...]. (Narrativa, 2018).

Na história da humanidade, sabe- se que a mulher sempre foi considerada inferior e, por isso, privada de gozar de uma grande parte dos seus direitos humanos, situação que se agrava quando a mulher tem alguma característica apontada como deficiência, deixando-a vítima de discriminação e estigma de forma dupla. Esse fator toma uma dimensão ainda mais preocupante para a mulher com deficiência em Moçambique, pois esta é perpassada por questões de crenças culturais.

A crença tem um grande domínio na vida do ser humano, por isso é um elemento que faz parte da cultura e é passada de geração em geração no processo da socialização1 com muita segurança e fidelidade, sem questionamentos, apenas valorizando e colocando a crença num lugar de privilégio. Em Moçambique, há crenças culturais que definem a mulher com deficiência como alguém que não está em condições de usufruir de uma vida sexual plena, pois é vista como fruto de alguma maldição, podendo passá-la para quem dela se aproximar afetivamente.

Donna Haraway (1995),2 no texto "Saberes localizados", nos faz pensar em como os conhecimentos são construídos. A autora pontua que só conhecemos o mundo por meio de mediações, ou seja, só conhecemos a partir de um lugar, por intermédio das relações e conexões que criamos com pessoas, objetos, lugares etc. A deficiência em Moçambique tem conceitos e causas que transcendem os saberes do ocidente. Para entender a deficiência no contexto moçambicano, é preciso pensar por dentro das crenças socioespirituais, pois elas são a base para a construção e materialização dos conhecimentos que circundam e até se articulam com os conhecimentos científicos (Simbine, 2016).

Este estudo é relevante - na medida em que permitirá que a própria mulher com deficiência analise sua vida sexual, que se modifique a percepção dos pais e da sociedade em geral sobre o direito à vida sexual das filhas com deficiência e, dessa feita, que se identifiquem as crenças, valores e mitos em torno da sexualidade da mulher com deficiência - e busca responder à questão: como é que a mulher com deficiência e a sociedade percepcionam a sexualidade da mulher deficiente numa cultura em que as crenças tradicionais permeiam as causas da deficiência?

Em contextos como o de Moçambique, principalmente na zona rural, a distribuição social das tarefas ainda não se distancia do modelo em que a expectativa é de que a mulher se dedique inteiramente às exigências específicas decorrentes dos cuidados a serem prestados às crianças, mesmo que isso implique o abandono da carreira profissional e das perspectivas de realização pessoal. Em termos institucionais, não se encontram em Moçambique recursos humanos e materiais para providenciar cuidados adequados às necessidades dessas famílias.

No mundo há 600 milhões de pessoas com alguma deficiência, sendo que destas 80% vivem nos países pobres (OMS, 2003, apud Martins, 2013). Em Moçambique existem 727.620 pessoas com deficiência, o equivalente a 3% do total da população moçambicana, estimada em 27.909.798 habitantes, (Censo, 2017). São pessoas que enfrentam diversos desafios para serem reconhecidas pela sociedade.

É de salientar que, para o estudo, teve-se como foco a análise da percepção da sexualidade da mulher com deficiência, partindo das experiências das mulheres com deficiência, membros da Associação Moçambicana das Mulheres com Deficiência, bem como indivíduos com familiares com ou sem deficiência.

 

Método

Para o alcance do objetivo do estudo, optou-se por uma pesquisa qualitativa, pois, de acordo com Gerhardt e Silveira (2009), a pesquisa qualitativa não se preocupa com representatividade numérica, mas, sim, com o aprofundamento da compreensão de um grupo social, uma organização. E, para a recolha de dados, recorreu-se a técnicas como a entrevista, a revisão da literatura, assim como narrativas das próprias mulheres com deficiência. A entrevista nos permitirá colher a sensibilidade das mulheres sobre a autopercepção que elas têm sobre sua sexualidade.

Foram entrevistadas(os) 24 participantes, divididos em dois grupos: 10 participantes do sexo feminino com deficiência (8 com deficiência física e 2 visual), com idades variadas na faixa etária dos 18 aos 45 anos de idade, que constitui a faixa etária da fase reprodutiva, sendo todas mães, trabalhadoras, porém com pouca e ou nenhuma escolarização; e 14 participantes que conviviam com uma pessoa com deficiência ou não, a partir dos 18 anos de idade em diante de ambos sexos. O anonimato trazido nas narrativas é uma forma de preservar a imagem das participantes.

Interpretação da deficiência na cultura moçambicana

Nas culturas africanas e ou moçambicana, a pessoa está em contato com os poderes espirituais, e é por meio da prática dessa espiritualidade que acessam as suas divindades (conjunto de mitos, ritos e simbolismos), o Deus supremo (dono do céu) e o sagrado. Encontra, nas suas práticas de espiritualidade e rituais, uma linguangem que vai além da consciência e da psique humana, entrando em contato com a própria energia organísmica que o protege dos seus efeitos autodestrutivos. Essas práticas estabelecem nos indivíduos ou nas comunidades um sentido para a vida, isto é, um resgate a esse ser humano ecológico e ético (Barros, 2011). Assim, a interpretação que a sociedade moçambicana apresenta em relação à chegada de uma criança com deficiência numa família é perpassada pelas crenças culturais.

Na sociedade moçambicana, quando uma criança nasce com algum tipo de deficiência, esse acontecimento é concebido como um infortúnio, o que, por vezes, circunscreve e dita a vida dessa criança e de sua família. Não obstante, a deficiência da criança poderá ser igualmente interpretada como um castigo que resulta de um pecado cometido por um ancestral ou até dos seus progenitores. Poderia ainda ocorrer que a deficiência resulte de uma maldição, uma sanção ritual que é declarada publicamente, sendo que esta, para ser efetiva, terá que ser moralmente justificável. Por isso, o acontecimento de uma maldição ou sua mera ameaça é considerado um valioso elemento na preservação e na reposição da ordem social.

As interpretações tradicionais3 sobre pessoas que nascem com deficiências são citadas como sendo as que perpetuam a discriminação e o estigma, sendo necessário que haja um deslocamento por parte de toda a comunidade, incluindo a família dessas mulheres e as próprias mulheres, para que ambos se desloquem e produzam juntos um outro modo de se relacionar com isso que as concerne: é preciso que haja um movimento de transformação subjetiva recíproca. Essa discriminação contra a mulher com deficiência se estende até ao direito de gozar da sua sexualidade, assim como ao direito de gerar uma criança, para o caso das mulheres que desejam ser mães.

Para Osório & Silva (2008, p. 135), a sexualidade fornece não apenas o normativo social e as formas como foi apropriada, mas também, e fundamentalmente, a compreensão do modo como as relações sociais de gênero são construídas e subvertidas. As autoras afirmam que, sendo o corpo portador de significados, exprimindo modelos culturais correspondentes a cada grupo, ele é o lugar por excelência do controle da ordem pela disciplina e pela vigilância que sobre ele é exercida (Mauss, 1974; Foucault, 1984). Sendo assim, para elas a sexualidade é o resultado da apropriação de valores e normas pelo sujeito.

A forma como percebemos e manifestamos a sexualidade muitas vezes é aprendida e emparelhada aos papéis sociais definidos na construção social de gênero, por isso, quase sempre, a mulher é limitada no conhecimento de seu corpo, na manifestação de sua sexualidade. A sociedade, desde cedo, a educa para reprimir-se, e ao homem é dada toda liberdade, desde criança, para traçar seus próprios caminhos, para lutar pelos prazeres da vida.

Quando a mulher tem alguma deficiência, a ordenação, o controle e a limitação tende a opulentar, pois, como referimos anteriormente, ela sofre dupla proteção, é-lhe colocado o rótulo de assexuada, vedando o acesso à informação sobre a sexualidade, o desenvolvimento e mudanças no corpo.

Sexualidade e mulher com deficiência

De acordo com Mello (2014), entre alguns aspectos relacionados à autopercepção do corpo feminino e aos efeitos do duplo estigma estão a "passividade" do sujeito, os sentimentos de inferioridade, de solidão e de exclusão social, a falta de autoestima, a repressão da sexualidade e as dificuldades de estabelecer relações afetivo-sexuais que marcam momentos da experiência com a deficiência, porquanto a falta de adaptações no ambiente resulta na não apropriação do corpo, isto é, o acesso ao corpo é a apropriação do corpo; nesse caso um corpo que, em função de sua história, tem de ser reapropriado para poder usufruir das rampas geográficas e transpor com dignidade e conforto as rampas sociais.

Mesmo no contexto de Moçambique, a mulher com deficiência é aquela vista como incapaz de incorporar os papéis socialmente determinados, minando o alcance da expectativa social quanto ao ser uma mulher casada, cuidadora do esposo, lar e das crianças, por isso é colocada à margem da possibilidade de ter um relacionamento amoroso e satisfação sexual, porque parte-se de princípio de que seu corpo é incompleto, logo não irá proporcionar prazer ao seu parceiro e, por isso, não deve ter desejo sexual.

Sobre o acesso à informação sobre sexualidade, saúde sexual e reprodutiva

[...] aos 16 anos a menstruação começou, mas eu não disse a ninguém, a minha tia descobriu porque fui tomar banho várias vezes e troquei a calcinha, chamou, me explicou que devia colocar panos e tomar bem banho e que não devia brincar com homens [...].

À semelhança das outras mulheres, quando chega a menarca, há uma dificuldade de orientar claramente sobre o seu significado e a necessidade de prevenção. Muitos pais e encarregados de educação optam apenas por amedrontar a adolescente no sentido de não se aproximar dos rapazes, sem explicar as razões.

O estudo do aparelho reprodutor e a explicação sobre o surgimento da menarca e sua função está programado no currículo escolar, no caso de Moçambique, para ser leccionado desde a 5ª classe no ensino primário, mas muitas vezes os professores, se chegam a falar, o fazem só a partir da 7ª classe em diante, e com muitas reservas.

Essa questão de não disponibilização de informação aos adolescentes é uma questão geral por parte dos pais e encarregados de educação, mas para a pessoa com deficiência não há outros locais onde possam buscar essa informação, diferentemente dos outros que não têm nenhuma limitação para procurar outras alternativas como fonte de informação sobre sua sexualidade, saúde sexual e reprodutiva.

Percepção cultural sobre o envolvimento da mulher com deficiência em relações amorosas e gozo do prazer sexual

Me disseram que não tinha como namorar sendo deficiente porque senão a minha família teria de pagar ao homem [...].

[...] entreguei-me ao primeiro homem que me conquistou porque eu desejava ter alguém e tinha medo de que isso nunca pudesse acontecer [...].

[...] depois que fiquei órfã de mãe aos 3 anos, então aos 17 anos que fiquei deficiente visual levaram-me para ficar de baixa em casa de um curandeiro. Lá fui transferida para um Zione4 que mandou um dos homens ajudantes ter relações sexuais comigo. Logo fiquei grávida e tive que ficar com ele [...].

Na entrevista, é possível perceber que não foram respeitados os direitos sexuais e reprodutivos dessa mulher, pois ela foi violada sexualmente e ainda teve que considerar o violador como seu marido, embora ela não se veja como violada. Encontramos também na fala da mulher questões de crenças tradicionais a partir do momento em que é encaminhada para ficar de baixa na casa do curandeiro, pois julga-se que sua deficiência tem ligação com questões espirituais (maldição dos antepassados), como cita Simbine (2016, p. 27):

As famílias têm frequentemente o hábito de ir consultar um curandeiro, logo nos primeiros dias, após o surgimento da deficiência (depois do nascimento ou de um acidente), para tentar atenuá-la ou fazê-la desaparecer por meio de um ritual de "purificação" e/ou de um remédio especialmente preparado por este profissional. Diante de tal situação que se descortina, a presença da figura do curandeiro é considerada, até certo ponto, como alguém que está capacitado para a resolução de questões que afligem essa sociedade.

"[...] senti muita dor, muitos homens só querem uma experiência com a mulher com deficiência. Não gostam, não apreciam, só querem saber se é diferente ou é igual com uma relação feita com outras mulheres [...]".

Mirnerz (2010, p. 123), citando Tom Shakespeare (2000), destaca a falta de condições de privacidade e de condições financeiras decorrentes de situação de dependência econômica; o estigma vinculado à imagem corporal; a baixa autoestima e autoconfiança; a dificuldade no estabelecimento de relações interpessoais; a alta incidência de situações traumáticas de abuso sexual (principalmente entre mulheres), dificultando o estabelecimento de laços de confiança para o exercício da sexualidade.

Essas situações tendem a ser normalizadas, sendo que as mulheres com deficiência acabam por se conformar com a situação e, na sua maioria, não percebem que estão diante de uma situação de violação de seus direitos sexuais.

Experiência reprodutiva das mulheres com deficiência no contexto moçambicano

A experiência reprodutiva para as entrevistadas é traumática pelas situações de discriminação e julgamento que elas tiveram de enfrentar e o defeituoso atendimento nas unidades sanitárias.

Quando fiquei grávida foi difícil, a família do meu marido não queria porque acreditava que eu iria dar parto a crianças com deficiência [...].

[...] na primeira relação sexual, fiquei grávida e o parto foi a cesariana, disseram que não era preciso usar planeamento no hospital, fiquei grávida a segunda vez logo depois de desmamar. Quando desmamentei o segundo, logo engravidei novamente e depois do parto laquearam- me sem falar comigo [...] quando foi a outro relacionamento tentei engravidar, fui ao hospital e disseram que eu tinha feito laqueação e nem sabia.

[...] minha família perguntou por que o meu parceiro me engravidou vendo a situação de deficiência [...].

Ao mesmo tempo em que se apela para que as famílias com mulheres com deficiência assumam um papel predominante na sua proteção - uma vez que elas necessitam do seu apoio para sua integração na sociedade -, revela-se, por outro lado, essencial a modulação desse cuidado por parte dessas famílias, de modo a não culminar em um cuidado individualizado, isolado, tutelado. A relação da pessoa com deficiência com o outro, com o mundo e com seus próprios corpos, passa pela possibilidade de sua inserção em espaços, movimentos e grupos sociais, tais como clubes escolares, redes de amigos etc.

Tendo em conta que as causas da deficiência em Moçambique são perpassadas por questões culturais, é frequente a proliferação de mitos que afirmam que as pessoas com deficiência são estéreis, geram filhos com deficiência ou não têm condições de cuidar deles. Importa sublinhar que na sociedade moçambicana há deficiência sem causas, muitas vezes apontando para o feitiço.

As mulheres com deficiência passam por situações de desaprovação constante e são carimbadas à incapacidade de responder aos papéis definidos socialmente para as mulheres. Há um questionamento sobre a possibilidade de exercer a maternidade.

Além disso, a mulher com deficiência, não pode, por vezes, manifestar o desejo de ser mãe, pois a sociedade já atribui a incapacidade de alcançar e ou gozar tal direito reprodutivo, como indica Rifiotis (2012), citado por Mello (2014, p. 131), ao firmar que a

visão, aliada a representações conservadoras que vinculam a sexualidade à reprodução, restringe-lhes as possibilidades de reconhecimento como sujeitos de direitos, já que para muitas sociedades contemporâneas as mulheres com deficiência representam "o degenerado que não deve ser reproduzido".

Percepção da sociedade sobre direitos sexuais e reprodutivos das pessoas com deficiência em Moçambique

Acho que não tem mesmos direitos porque é deficiente. Há coisas que não irá saber ou conseguir fazer, [...] mas pode depender da deficiência. [Se for] a física não tem direito de casar porque não vai fazer nada.

[] Acho que ninguém vai gostar de casar com uma deficiente, cega, com falta de membro, é uma vida sofrida, é complicado falar das questões íntimas.

As pessoas que convivem com alguém com deficiência divergem nas suas percepções em relação à sexualidade das mulheres com deficiência. Algumas acreditam que a pessoa com deficiência, em particular a mulher, não tem os mesmos direitos sexuais e reprodutivos que as outras pessoas, porque tem limitação para responder às expectativas sociais, e outras afirmam que sim, as mulheres com deficiência têm os mesmos direitos e que a sociedade deve apoiar para que possam gozar, por exemplo, dos direitos reprodutivos, que foram muito apontados.

Tratamento entre mulher e homem com deficiência, no que concerne à sexualidade na cultura moçambicana

Há diferença entre uma mulher e um homem com deficiência, [...] geralmente nas famílias que são pobres as mulheres sofrem abuso sexual, são aproveitadas principalmente as com deficiência visual. Na maioria das vezes os homens não querem uma mulher deficiente, enquanto a mulher pode gostar de um homem deficiente.

Há mais discriminação da mulher do que do homem com deficiência?, pergunta esta mulher. Quando casar como vai fazer?

É uma questão que, para alguns participantes, não têm feito uma análise, enquanto outros participantes claramente relataram que a mulher com deficiência, para além de ser rejeitada e passar por situações de violação e abuso sexual, é maioritariamente discriminada, com pouca aceitação para estar num relacionamento. Há situações em que até tem um relacionamento, mas a família do parceiro a rejeita, sendo difícil manter a relação.

Simbine (2016, p. 67) sustenta que

tem-se reparado na sociedade, principalmente em Moçambique, o estigma que a mulher com deficiência sofre, onde a rejeição é maior em relação às pessoas com deficiência do sexo oposto. No trabalho, quem mais tem chances de ser contratado é o homem em relação a esta. A estigmatização prolifera até na esfera afetiva, ou seja, na constituição duma família. É comum deparar-se com um homem deficiente que tenha conseguido constituir sua família, o que fica mais difícil para as mulheres, pois há a significação cultural de que mulheres com deficiência são incapazes de cuidar e/ou até administrar uma família.

Foi possível observar que algumas mulheres com deficiência não ultrapassaram as mágoas que têm com os familiares, bem como com os ex- parceiros. As declarações feitas tanto pelas mulheres com deficiência como pelas interpeladas que convivem ou não com uma pessoa com deficiência refletem o que os diversos autores afirmam sobre a discriminação e julgamento das mulheres com deficiência para o gozo da sua sexualidade, bem como as limitações e desafios que, em particular, as mulheres têm, e ainda o fato de estarem vulneráveis aos maus tratos, violação sexual e violência obstétrica.

De acordo com Fonseca (1989, pp. 7-13), na história da humanidade observamos que muitas condições sociais são consideradas deficientes, refletindo normalmente esse fato um julgamento social; julgamento esse que se vai requintando e sofisticando à medida que as sociedades se vão desenvolvendo tecnologicamente, em função de valores e de atitudes culturais específicas. Em muitos aspectos, a problemática da deficiência reflete a maturidade humana e cultural de uma comunidade. Há implicitamente uma relatividade cultural que está na base do julgamento que distingue entre o deficiente e o não deficiente. Essa relatividade obscura, tênue, sutil e confusa, procura, de alguma forma, afastar ou excluir os indesejáveis, cuja presença ofende, perturba e ameaça a ordem social.

 

Considerações finais

Após a elaboração dessa pesquisa, cujo título é Percepção da sexualidade da mulher com deficiência, que teve um

ponto de partida os membros da Associação Moçambicana da Mulher com Deficiência, com vista a analisar como a mulher com deficiência e outros membros da sociedade percepcionam a sexualidade dessa mulher, pode-se afirmar que desembarcamos no cumprimento dos objetivos anteriormente traçados.

De acordo com a pesquisa realizada, pode-se concluir que as mulheres com deficiência têm experimentado situações de violação dos seus direitos sexuais e reprodutivos, na medida em que a partir do meio familiar há falta de orientação para elas e ausência de informação de como vivenciar a sexualidade livre de qualquer discriminação com base na deficiência.

Há uma percepção por parte dessas mulheres de que não devem procurar alimentar seus desejos de ter um parceiro amoroso, mas que devem sempre esperar a sorte. E quando o primeiro homem aparecer - não importa se elas se interessam por ele ou não - devem percebê-lo como sua única chance de ser feliz.

A sociedade no geral não está preparada para se adaptar à convivência com as pessoas com deficiência, camuflando-se nas crenças tradicionais. E, principalmente se essa pessoa for mulher, causará admiração, questionamentos e debates de julgamento sobre se é capaz de ter desejos sexuais, satisfazer-se sexualmente e experimentar a maternidade. Quando essa mulher está grávida, é alvo de escárnio, porque a sociedade não a vê como capaz de passar por um parto, dar à luz a um bebé saudável e cuidar de seus filhos. Usam- se as questões culturais para perpetuar a exclusão da mulher.

Por isso, há casos em que a família do parceiro tira as crianças da guarda da mulher deficiente, pois acredita que, mesmo tendo sido capaz de dar à luz, não é digna de cuidar dos seus filhos, sob pena de lhes passar a deficiência à medida em que eles crescerem, e/ou pelo fato de que essas crianças, ao serem cuidadas por essa mulher, futuramente poderão gerar crianças com deficiência, de acordo com as superstições ligadas a essa condição.

Individualmente, a mulher deficiente acaba perdendo a autoestima, desenvolve complexo de inferioridade e, muitas vezes, acabam por se autoestigmatizar. É importante que ações de empoderamento individual sejam levadas a cabo, aliadas à abordagem humanista, de forma a revitalizar as mulheres com deficiência.

Para as famílias, é uma questão de inadaptação e falta de preparo para lidar com a situação de ter um membro com deficiência. As crenças de que a deficiência é resultado de alguma dívida com os antepassados e/ou com a Divindade acabam por condenar as famílias a carregarem esse peso que desperta comportamentos de rejeição e/ou super proteção, carecendo de um apoio psicossocial, de forma a buscarem melhores formas de convivência harmoniosa.

 

Referências

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Recebido em: 27/9/2019
Aceito em: 4/11/2021

 

 

1 Socialização: processo pelo qual o indivíduo assimila e internaliza as normas, valores e os hábitos de uma determinada comunidade e de uma cultura específica.
2 Haraway, D. J. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5, 7-41.
3 Interpretações tradicionais referem-se à atribuição do significado aos acontecimentos com base nas crenças culturais (com maior destaque para a espiritualidade).  A evocação dos fenômenos espirituais é tida como um fator primordial nas vivências da sociedade moçambicana.
4 Zione: denominação religiosa tipicamente africana.

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