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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.4 São João del-Rei out./dez. 2021

 

O impacto do beber feminino

 

The Impact of Female Drinking

 

El impacto de la bebida femenina

 

 

Maria das Graças Borges da SilvaI; Tereza Maciel LyraII

IDoutora e mestra em Saúde Pública do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães (CPqAM/Fiocruz). Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde do Recife e do Serviço de Orientação Educacional da Fiocruz/PE. E-mail: gracasborges@gmail.com
IIDoutora e pesquisadora do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães (CPqAM/Fiocruz/PE). Docente da Universidade de Pernambuco (UPE), Faculdade de Medicina, Brasil. E-mail: terezalyra@cpqam.fiocruz

 

 


RESUMO

O estudo objetivou analisar os discursos e condutas de mulheres cadastradas na Unidade Saúde da Família diante do consumo abusivo de álcool. Esse consumo gera julgamento moral, preconceito e estigma, além de acarretar danos em sua vida social, mental e biológica. Pesquisa qualitativa, descritivo-exploratória, realizada com nove mulheres, usou entrevista semiestruturada, que é uma das estratégias de escolha mais comum para trabalhar as representações sociais. Constatou-se que as mulheres fazem uso abusivo de álcool por prazer e para aliviar sofrimento e declararam não ter danos relacionados a esse consumo. Mesmo diante de alguns prejuízos, apagões, quedas, sexo desprotegido, infertilidade e síndrome pré-menstrual, não relacionaram esses danos ao consumo e afirmaram que não tiveram nenhuma orientação profissional sobre o tema. Para elas, o álcool não é considerado uma droga, sendo assim, os resultados sugerem um alerta no provável impacto psicossocial em torno do uso abusivo de álcool na vida dessas mulheres.

Palavras-chave: Bebidas alcoólicas. Impacto psicossocial. Saúde da mulher.


ABSTRACT

The study aimed to analyze the speeches and conduct of women registered in the Family Health Unit regarding alcohol abuse. This consumption generates moral judgment, prejudice and stigma, as well as causing damage to your social, mental and biological life. Search qualitative, descriptive-exploratory research, conducted with nine women, used semi-structured interviews, which is one of the most common choice strategies for working on social representations. It found that women with alcohol abuse meant pleasure and alleviate suffering. They declared no damage related to this consumption. Even in the face of some damage, blackouts, falls, unprotected sex, infertility and premenstrual syndrome. They did not relate these damages to consumption and stated that they had no professional guidance on the subject. Alcohol was anchored not being a drug. The results suggest a warning about the probable psychosocial impact around alcohol abuse in these women's lives.

Keywords: Alcoholic beverages. Psychosocial impact. Women's health.


RESUMEN

El estudio tuvo como objetivo analizar los discursos y la conducta de las mujeres registradas en la Unidad de Salud de la Familia con respecto al abuso de alcohol. Este consumo genera juicio moral, prejuicio y estigma, además de causar daños a su vida social, mental y biológica. La investigación cualitativa, descriptiva-exploratoria, realizada con nueve mujeres, utilizó entrevistas semiestructuradas, que es una de las estrategias de elección más comunes para trabajar en representaciones sociales. Descubrió que las mujeres con abuso de alcohol significaban placer y aliviar el sufrimiento. No declararon daños relacionados con este consumo. Incluso ante algunos daños, desmayos, caídas, relaciones sexuales sin protección, infertilidad y síndrome premenstrual. No relacionaron estos daños con el consumo y declararon que no tenían orientación profesional sobre el tema. El alcohol estaba anclado no siendo una droga. Los resultados sugieren una advertencia sobre el probable impacto psicosocial en torno al abuso de alcohol en la vida de estas mujeres.

Palabras clave: Bebidas alcohólicas. Impacto psicosocial. Salud de la mujer.


 

 

Introdução

As pesquisas Internacionais e Nacionais apontam o aumento significativo de mulheres consumindo bebidas alcoólicas de forma abusiva (Laranjeira et. al., 2013; Organização Mundial de Saúde, 2018), o que provoca julgamento preconceituoso e estigma, além de gerar danos na vida social, mental e biológica dessas mulheres (Cesar, 2006; Pillon et al., 2014).

O III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, de 2017, foi realizado pela Fundação Oswaldo Cruz em parceria com várias outras instituições. Os dados considerados mais alarmantes com relação aos padrões de uso de drogas no Brasil não estão relacionados às substâncias ilícitas, e sim ao álcool. Apontou que mais da metade da população brasileira de 12 a 65 anos declarou ter consumido bebida alcoólica. Ressaltou que 24,0% dos homens e 9,5% das mulheres informaram ter consumido mais de cinco doses nos últimos 30 dias. Apontou ainda que as mulheres (86,1%) compreendem, mais frequentemente do que os homens (79,0%), que o consumo abusivo de bebidas alcoólicas é um risco grave para a saúde. Cerca de 2,3 milhões de pessoas apresentaram critérios para dependência de álcool nos 12 meses anteriores à pesquisa (Bastos, Vasconcellos, De Boni, Reis, & Coutinho, 2017).

Atualmente considera-se consumo abusivo de álcool, ou binge drinking, (nomenclatura mais adotada internacionalmente) a partir de uma sessão única de consumo que conduza à intoxicação, ou seja, o consumo de cinco ou mais doses de bebidas alcoólicas em uma ocasião para os homens e quatro ou mais doses para as mulheres. Segundo a Organização Mundial da Saúde, uma dose diária (10-12 g de álcool puro) equivale a 330 ml de cerveja/chopp, 100 ml de vinho ou 30 ml de destilado (Organização Mundial de Saúde, 2018). Vale citar que o consumo abusivo não inclui a tolerância, abstinência e nem um padrão de uso compulsivo, estes ligados aos sintomas clínicos da doença do alcoolismo (César, 2006; Organização Mundial de Saúde, 2018).

O álcool é a substância psicoativa mais antiga, ou seja, o consumo do álcool entre homens e mulheres sempre existiu ao longo dos tempos, em todas as culturas e religiões, variando segundo critérios relativos a cada cultura e cada época. Isso porque o ser humano sempre buscou, através dos tempos, maneiras de aumentar o prazer e diminuir o sofrimento (Ronzani & Furtado, 2010).

No cotidiano social, observa-se que, hoje em dia, o consumo de bebidas alcoólicas entre mulheres, em público, é bastante comum, na medida em que as mulheres assumiram novos papéis e responsabilidades sociais, tornando-se mais competitivas no mercado de trabalho e na vida pública, assumindo o direito de poder escolher, tal fato repercutiu na representação de comportamentos que anteriormente eram mais comuns aos homens (Ronzani & Furtado, 2010). Estudar, trabalhar fora do lar e frequentar bares são exemplos de ações compartilhadas que abrem as oportunidades femininas para consumir bebidas alcoólicas ou mesmo outras substâncias psicoativas (Fachini & Furtado, 2012).

Apesar das conquistas em relação à emancipação, as mulheres ainda sofrem desvantagem social, devido a uma cultura fortemente machista, preconceituosa e discriminatória em vários aspectos, incluindo o consumo abusivo de bebidas alcoólicas, em uma sociedade que considera que a mulher não pode se embriagar. Assim, o consumo do álcool também seria algo usado em diversas sociedades para diferenciar e regular os papéis de gênero, sendo aceito com mais naturalidade entre os homens do que entre as mulheres (Fachini & Furtado, 2012; Saffioti, 2013).

Sabe-se que em toda sociedade encontramos padrões construídos e institucionalizados de uso das bebidas alcoólicas, tanto para o homem como para a mulher, e uma variedade de motivos e de oportunidades construídos para o ato de beber (Fachini & Furtado, 2012; Saffioti, 2013).

A proibição, em algumas culturas, em relação ao uso de álcool entre as mulheres também simbolizaria a submissão destas, sendo um modo de controle do seu corpo e de seus comportamentos, tendo como argumento a questão de saúde, da moral e do social (Fachini & Furtado, 2012; Saffioti, 2013).

É por meio da compreensão de significado sobre o consumo de bebidas alcoólicas pelas mulheres, a respeito do seu processo de saúde, que se pode entender muitas condutas e práticas desses grupos relativos a esse processo. A capacidade de dizer se o corpo está doente ou saudável pertence ao próprio indivíduo, mediante suas normas culturais, crenças religiosas, exigências do trabalho, violência, relação familiar, entre outros (Fachini & Furtado, 2012; Saffioti, 2013; Passos, Souza, 2011).

Portanto, pode-se alegar que o uso de bebidas alcoólicas é um fenômeno social, do qual a mediação simbólica é constitutiva. Nesse sentido, parece pertinente estudar o consumo de bebidas alcoólicas entre mulheres como sistema simbólico complexo, no qual um conjunto de autores, representações e práticas entram em interação.

Monteiro, Dourado, Graça Júnior e Freire (2011) já vinham apontando que o elevado consumo abusivo de bebidas alcoólicas entre mulheres pode ocasionar alguns tipos de danos e alterações biológicas, psicológicas e sociais, tais como relações sexuais de modo desprotegido, síndrome pré-menstrual, mais conhecida com TPM, e problema de infertilidade. Além disso, também se identificam dificuldades interpessoais, ansiedade, depressão e consequências clínicas, aumentando os riscos de morbimortalidade. Os mesmos autores sugerem que os fatores sociais e culturais exercem forte influência sobre o padrão e grau de ingestão de álcool pelas mulheres, o que altera sua vulnerabilidade ao desenvolvimento de problemas decorrentes do consumo abusivo de bebidas alcoólicas.

Por outro lado, autores como Pillon et al., (2014) alegaram que os profissionais de saúde têm dificuldade de identificar os problemas relacionados ao consumo de álcool no gênero feminino. Vale destacar que gênero indica a criação social de ideias sobre os papéis ajustados aos homens e às mulheres. Enquanto o sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa, o gênero diz respeito à sua construção como sujeito masculino ou feminino (Saffioti, 2013). Tal fato faz com que os problemas clínicos apresentados pelas mulheres não sejam reconhecidos como sintomas secundários do abuso de álcool.

Também não se leva em conta que a ingestão do álcool age diferentemente no organismo da mulher, em relação ao organismo do homem. Isso acontece devido à quantidade menor de água corporal e de maior quantidade de gordura existente no organismo feminino, associadas a uma quantidade menor de enzimas que metabolizam o álcool. Isso implica no fato de que as mulheres precisam da metade da dose ingerida pelos homens para se intoxicar, considerando-se sempre seu peso e sua altura. Logo, as mulheres são menos tolerantes ao álcool do que os homens, atingindo concentrações sanguíneas de álcool mais altas com as mesmas doses (Kerr-Corrêa, Tucci, Hegedus, & Trinca, 2008).

A Organização Mundial da Saúde (2018) aponta que o consumo abusivo de álcool entre homens e mulheres encontra-se na terceira posição entre os principais fatores de risco para doenças não transmissíveis que são susceptíveis de modificação e prevenção.

Diante desse panorama, a Organização Mundial de Saúde (2018) e o Ministério de Saúde Brasileiro (2011), vêm recomendando que sejam incrementadas nas unidades de saúde estratégias na área de prevenção e de promoção de saúde diante do consumo abusivo de álcool. Entretanto, essa não tem sido a realidade nos serviços de saúde do Brasil, onde se abordam, em sua maioria, as pessoas já com alcoolismo (Ministério da Saúde, 2011; Organização Mundial de Saúde, 2018).

Nesse cenário, é necessário o aprofundamento de estudos a fim de compreender as ações socialmente construídas diante do uso abusivo de bebidas alcoólicas na atualidade. Portanto, torna-se necessário apreender a forma como as mulheres entendem e atribuem sentido em suas experiências no lugar em que vivem, compreendendo as relações, as visões e o julgamento dos diferentes atores sobre o beber feminino. Logo, compreender como as usuárias interpretam suas experiências e guiam suas ações em relação ao uso abusivo de bebidas alcoólicas, no contexto sociocultural em que vivem, é o eixo condutor do presente trabalho (Passos & Souza, 2011; Ronzani & Furtado, 2010).

Para isso, o estudo é sustentado na Teoria das Representações Sociais, sendo uma opção na descrição e na explicação dos fenômenos sociais, pois reproduzem pensamentos e comportamentos comuns a um grupo de indivíduos. As representações sociais são o conjunto de explicações, crenças e ideias comuns a um determinado grupo de indivíduos e resultam de uma interação social, sem perder de vista, contudo, a questão da individualidade (Arruda, 2002; Campos & Reis, 2010). A adoção da Teoria das Representações Sociais pode contribuir para tornar familiar algo até então pouco conhecido, com a possibilidade de classificarmos e dar nome a novos acontecimentos e ideias, assimilando esses casos (Arruda, 2002; Campos & Reis, 2010).

Em geral, as publicações sobre o consumo de bebidas alcoólicas por mulheres deixam de esclarecer que as conclusões são baseadas em amostragens apenas masculinas, ou comparativamente entre os sexos, com praticamente nenhum foco sobre as especificidades das mulheres (César, 2006; Kerr-Corrêa et al., 2008). Embora reconheçam que a mulher apresenta uma série de diferenças em relação ao homem, não só em relação à constituição anatômica e fisiologia, mas também em relação à conduta social e emocional, há um pressuposto comumente aceitável de que aquilo que é achado nas pesquisas com homem vale igualmente para as mulheres (César, 2006; Kerr-Corrêa et al., 2008).

É evidente que as particularidades das mulheres precisam ser trazidas para esse panorama de debates e para a operacionalização das práticas de cuidado em saúde, uma vez que elas não têm sido satisfatoriamente assistidas como sujeitos das políticas públicas, em particular quando o tema é sensível, como o uso de bebidas alcoólicas. Historicamente, quando as mulheres são foco de políticas, na maioria das vezes, estas são voltadas para a vida reprodutiva, muito mais por uma preocupação com o feto ou bebê do que com a mulher efetivamente.

Com base nessas verificações, objetiva-se neste estudo compreender os discursos e condutas vividas por mulheres cadastradas nas Unidades de Saúde da Família diante do consumo abusivo de bebidas alcoólicas. Nesse sentido, espera-se poder contribuir tanto para o estado da arte quanto para o desenvolvimento de políticas públicas com foco nas especificidades das mulheres, incluindo orientação educativa, preventiva, redução de danos e encaminhamento, se necessário, ao tratamento especializado, com resultados potencialmente mais favoráveis.

 

Métodos

Os dados deste estudo provêm de uma pesquisa original do tipo exploratória e descritiva, desenvolvida com base em métodos quantitativo e qualitativo. Na abordagem quantitativa, foram usados dois instrumentos: um questionário sociodemográfico e o teste de identificação de problemas relacionados ao uso de álcool (Audit) em 864 mulheres, sendo que, destas, 42,0% se encontravam em consumo de risco (Silva, Lyra, & Diniz, 2019).

Na abordagem qualitativa, o instrumento aplicado foi a entrevista semiestruturada, norteada pelo referencial teórico metodológico das representações sociais, adotando o enfoque processual, que compreende as representações como "elaborações partilhadas nos processos e produtos simbólicos dos indivíduos, construídas como uma visão consensual da realidade" (Jodelet, 2001, p. 71).

Nesse sentido, Minayo, Deslandes e Gomes (2016) afirma que interpretar o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis, e o número restrito de sujeitos não compromete a validade do material coletado. Declara ainda que a análise qualitativa é mais do que a categorização de opiniões, mas a descoberta de indicadores sociais a partir do levantamento dessas opiniões.

A partir da classificação obtida no Audit, foram entrevistadas três mulheres na zona de baixo risco, três na zona de médio risco e três na zona de alto risco, totalizando nove mulheres entrevistadas. No presente artigo, abordaremos exclusivamente os resultados da abordagem qualitativa.

Cabe ressaltar que as participantes optaram por escolher um nome de fantasia para garantir a confidencialidade, todas Marias. A escolha de cada uma das Marias, gerou momentos emocionantes, em relação ao simbolismo e à associação com seu estado emocional no momento da pesquisa. Optamos também por manter literalmente a fala das entrevistadas.

O local de estudo foi numa única Unidade de Saúde da Família (USF) do Sistema Único de Saúde (SUS) na cidade do Recife/PE. A escolha deveu-se ao fato de a pesquisadora ter acesso e à colaboração das equipes da USF, facilitando o agendamento das entrevistadas.

O roteiro das entrevistas foi constituído com perguntas norteadoras abrangendo três dimensões: afetiva; conduta e social. Na dimensão afetiva, buscou-se analisar a percepção sobre uso e abuso de álcool no cotidiano das mulheres que bebem, seus sentimentos, avaliações pessoais e sociais. Na dimensão de conduta, foram explorados os motivos que levaram ao uso do álcool, as consequências do uso e as situações de uso. Finalmente, na dimensão do social, buscou-se descrever os aspectos comportamentais envolvidos na representação social do uso de álcool, incluindo a percepção dessas mulheres a respeito de orientação ou ajuda sobre o consumo de bebidas alcoólicas pela equipe da USF ou de outras pessoas.

A escolha dessas dimensões deveu-se à concordância com Arruda (2002) e Jodelet (2001), para quem as representações sociais devem ser estudadas articulando elementos afetivos, comportamentais e sociais.

As entrevistas foram analisadas por meio da técnica da análise de conteúdo e, nessa técnica, empregou-se a Condensação de Significados, que consiste no resumo dos significados encontrados no conteúdo das entrevistas, em formato condensado, sem perder a sua essência.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do CPqAM/Fundação Oswaldo Cruz, Parecer n. 1.594.177, CAAE: 51086515.0.0000.5190, e é parte da tese de doutorado em Saúde Pública do Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz. As entrevistas foram realizadas em agosto de 2018.

 

Resultados e discussão

Apresentando as Marias

Iniciamos apresentando as nove mulheres estudadas, suas caraterísticas sociodemográficas e suas classificações de risco diante do consumo de bebidas alcoólicas.

As Marias classificadas na zona I: baixo risco no uso de álcool

Maria Compreensiva (que será tratada por Maria C): 19 anos, com religião, solteira, não tem filho, mora com os pais em casa própria, ensino médio completo, renda familiar de um salário mínimo, não trabalha. Começou a consumir bebidas alcoólicas aos 18 anos junto com o irmão e a cunhada em cerimônia de casamento.

Maria Equilibrada (que será tratada por Maria E): 21 anos, com religião, solteira, não tem filho, mora com a mãe em casa própria, trabalha, ensino fundamental completo, renda familiar maior que um salário mínimo. Começou a consumir bebidas alcoólicas aos 18 anos na casa de amigos

Maria Guerreira (que será tratada por Maria G): 50 anos, com religião, casada, tem um filho e mora com a companheira em casa própria, desempregada, ensino médio completo, renda familiar menor que um salário mínimo. Começou a beber aos 16 anos em festa na casa de familiares.

As Marias classificadas na zona II: médio risco no consumo de bebidas alcoólicas

Maria Família (Maria F): 22 anos, sem religião, solteira, não tem filho, trabalha sem carteira assinada como babá e vende lanches, mora com a família em casa própria, ensino médio completo, renda familiar menor que um salário mínimo. Iniciou o uso de bebida aos 14 anos junto com um primo em festa na casa da família.

Maria Harmonia (Maria H): 39 anos, casada, não trabalha, católica, ensino médio completo, mora com a família em casa própria, tem filhos e com uma renda familiar de um salário mínimo. Começou a fazer uso de bebidas alcoólicas aos 16 anos com o namorado, que hoje é seu marido.

Maria Inteligente (Maria I): 34 anos, com religião, casada, trabalha, ensino fundamental completo, mora com a família em casa própria, tem filhos e com uma renda familiar maior que um salário mínimo. Começou a beber aos 17 anos junto com amigas.

As Marias classificadas na zona III: alto risco

Maria Determinada (ou Maria D): 25 anos, sem religião, solteira, não tem filho, mora em casa própria junto com a família, ensino médio completo, trabalha como babá sem carteira assinada, renda familiar de um salário mínimo. Iniciou o uso de bebida aos 16 anos junto com as amigas.

Maria Justa (que será tratada por Maria J): 38 anos, solteira, sem religião, trabalha, ensino fundamental incompleto, mora com os irmãos em casa própria, não tem filho e com uma renda familiar menor que um salário mínimo. Começou a consumir bebida alcoólica ainda criança, oferecida pelo pai e pela mãe.

Maria Majestosa (Maria M): 61 anos, com religião, separada, trabalha, ensino fundamental incompleto, mora com o filho em casa alugada, com uma renda familiar maior que um salário mínimo. Começou a fazer consumo de bebidas alcoólicas aos 15 anos na casa das amigas.

A dimensão afetiva

Na dimensão afetiva, observou-se que as Marias evidenciaram sentimento de prazer e de festividade relacionado ao uso de álcool. As Marias declararam que apreciam os efeitos experimentados no consumo de bebidas alcoólicas, isso porque seu uso permaneceu relacionado a festividades, rituais religiosos, alívio das frustrações e tensões, indução de prazer e aumento da interação social (César, 2006; Pillon et al., 2014).

Nos achados, a ingestão de bebidas alcoólicas foi parte integrante da vida social, atuando como um importante marcador das relações sociais, dos espaços de sociabilidade, da experiência corporal. Observou-se que o ato de beber com os familiares ou com as amigas no bar, após o trabalho ou em ocasiões festivas, por exemplo, delimitam a periodização do tempo e dos espaços sociais - trabalho/lazer e trabalho/casa, definindo locais nos quais o uso de álcool é plausível, aceitável e mesmo estimulado.

Concordamos com os autores Campo e Reis (2010) quando salientam que todo discurso sobre o álcool é também um discurso sobre a sociedade. Pode-se observar o universo consensual no discurso de todas as Marias, independentemente das classificações de risco em relação ao consumo de bebidas alcoólicas:

[...] comecei a beber aos 16 anos em festa na casa da minha família com as minhas amigas. Foi surpreendente e fiquei bem alegre. Bebo muito pouco nos finais de semana em festas, quem gosta de beber mais é minha companheira. (Zona I, baixo risco, Maria G).

[...] gosto de beber junto das minhas amigas em festas e também com a minha família. Acho normal mulheres beberem depois de um dia de trabalho. (Zona II, baixo risco, Maria F).

Ressalta-se que as Marias classificadas nas zonas de médio risco e alto risco não fizeram vinculação entre seus problemas de saúde e o consumo abusivo de bebidas alcoólicas, tendo em vista as falas das entrevistadas a seguir. Observa-se que, no início, a dificuldade ocasionada pelo consumo é ignorada e também é rejeitado o argumento de que o álcool seja uma droga psicotrópica que atua no sistema nervoso central, provocando uma alteração no comportamento de quem o consome, podendo levar à dependência (Esper, Corradi-Webster, Carvalho, & Furtado, 2013; Passos, Souza, 2011; Pillon et al., 2014).

[...] não tenho nenhum prejuízo ou danos pelo o meu uso de bebida. Mas tive dificuldade de ficar grávida por causa da minha ansiedade de ser mãe e estava um pouco gordinha. A médica diz não ver problema nenhum do meu uso porque eu faço o uso socialmente. Aí minha vizinha me chamou para fazer atividades física na academia para perder peso e aí fiquei sem fazer uso de bebidas. Foi na ocasião que fiquei grávida. Agora não faço mais academia, fiquei sem tempo. (Zona II, médio risco, Maria I).

[...] tive um filho e durante a minha gravidez não bebi. Passei 10 anos da minha vida sem beber. E aí nesses 10 anos sem beber, sem ficar bêbada, tive meu filho, mas aí o meu casamento, depois de 11 anos de casamento, o casamento acabou e fiquei numa tristeza enorme, é uma solidão sem fim. Eu voltei a beber abusivamente, e aí parece que o mundo caiu. Aí exagerei demais, parece que eu estava com muita sede E depois de três anos de separada veio a tonada da menopausa... eu tinha apena 43 anos, foi horrível, com depressão, muito calor, irritada, insônia e muita dor de cabeça, foi triste. Aí que bebi com vontade. (Zona III, alto risco, Maria M).

Pode-se cogitar que muitas pessoas consideram que droga é somente aquela substância cujo consumo é proibido, ou seja, as chamadas drogas ilegais. Já o álcool é uma das drogas psicotrópicas que tem o seu consumo admitido e é até incentivado pela sociedade (Souza & Santos, 2008). Nos achados, o álcool foi referido como não sendo uma droga psicotrópica, bem citado nos discursos do senso comum das entrevistadas.

[...] acho horríveis as pessoas que usam drogas. Eu jamais vou usar droga, as pessoas que usam ficam violentas, roubam e fazem muita maldade às outras pessoas. (Zona I, baixo risco, Maria C).

[...] não uso droga de forma alguma, não sou tão louca assim. (Zona III, alto risco Maria M).

[...] meu marido bebe mais do que eu e brigamos até chamar nomes feios comigo, eu também, no final brigamos por besteira, porque dois bêbados conversando é horrível. Meu filho adolescente fuma maconha. Eu e o pai nunca na nossa vida usamos drogas. Meu filho não teve esse exemplo da gente. (Zona II, médio risco, Maria H).

Os achados deste estudo apontam que nas representações sociais, em relação ao uso de drogas, todas as entrevistadas, classificadas nas zonas de riscos, revelaram conceitos e valores no pronunciamento semelhantes em analogia às drogas lícitas (o álcool) e ilícitas. Afirmaram que o álcool não é uma droga, pois drogas são aquelas pesadas que as pessoas usam e "tornam-se pessoas ruins", que provocam violências para os outros. E que a nossa sociedade não aceita de forma alguma o seu uso, sendo por isso proibidos sua venda e seu uso.

Esse achado ainda revelou o preconceito das Marias em relação ao uso de drogas ilícitas e a dificuldade delas por não conseguirem perceber os efeitos desse uso. Mesmo usando uma dessas drogas - o álcool -, negavam usar e afirmavam que nunca haviam experimentado tais drogas. No Brasil, o consumo de álcool por indivíduo é considerado aceitável, sendo o álcool legalizado e não considerado droga pelo senso comum (Campos & Reis, 2010; Souza & Santos, 2008). De maneira geral, os discursos sobre as drogas são focados essencialmente nas drogas ilícitas, mantendo-se ainda os danos decorrentes do uso do álcool em segundo plano.

Vale fazer referência que em todas as épocas e lugares os seres humanos deliberadamente usaram (e abusaram de) substâncias capazes de modificar o funcionamento do sistema nervoso, induzindo sensações corporais e estados psicológicos alterados. Ressaltamos que as bebidas alcoólicas são substâncias psicoativas como tantas outras. À diferença de outras, têm, hoje, sua produção, comércio e uso permitidos por lei, o que as tornam extremamente acessíveis, embora já tenham sido proibidas. O álcool é a droga de maior consumo no mundo, nas mais diferentes culturas, podendo-se dizer que o consumo de substâncias que têm a capacidade de alterar estados de consciência e modificar o comportamento parece ser um fenômeno universal (Esper, et al., 2013; Souza & Santos, 2008).

Os depoimentos das Marias deixam claro que a sociedade, com seus valores e normas, rege o comportamento do sujeito em relação ao uso do álcool. É notório que a crença de que a bebida alcoólica não é droga contribui para o estímulo e incentivo do consumo dessa substância, não só por mulheres jovens, mas por todas as pessoas que a consumem. Nesse sentido, Arruda (2002) argumenta que as crenças e as representações sociais significam um conjunto de explicações no cotidiano, no desenrolar das comunicações interindividuais. O autor compara as crenças e mitos das sociedades tradicionais como uma versão de senso comum de hoje.

A dimensão de condutas

Na dimensão de condutas, visou-se identificar as causas atribuídas pelas Marias estudadas sobre o consumo de álcool nos seguintes aspectos: o que leva ao uso de álcool, consequências do uso e a situação de uso.

Verificou-se que as Marias classificadas na zona de baixo risco afirmaram que os motivos porque fazem uso de bebidas alcoólicas é o social, mas ocorre raramente. Também alegaram que não houve consequências negativas diante do consumo de bebidas alcoólicas em sua saúde.

No entanto, outros motivos que levaram ao uso de álcool, citados pelas Marias classificadas nas zonas de médio e alto risco, foram separação conjugal, tristeza e desilusão. Nota-se que começaram a beber com maior frequência e abusivamente a partir da ocorrência de eventos vitais significativos, como o término de uma relação afetiva (Cesar, 2006; Pillon et al., 2014). Percebe-se, assim, que eventos traumáticos podem desencadear o uso, o abuso e consequentemente o alcoolismo em algumas mulheres. Essas situações foram bem sintetizadas pelas falas das Marias classificadas nas zonas de médio e alto risco.

[...] Problema com a minha separação. Porque ele tinha outra pessoa. E eu não sabia de nada. Separei, só tive desengano e tristeza e fui beber sem parar para esquecer. Mas já bebia e só piorou. (Zona II, médio risco, Maria F).

[...] Depois de cinco anos de relacionamento veio a separação, que tristeza e desilusão!... E aí que bebi para valer, bebia o tempo inteiro para dormir e bebia para despertar. (Zona III, alto risco, Maria M).

Nas falas das Marias, o que as levou a beber foi o sentimento de desengano e de tristeza significativa, apontando para fatores psicológicos que podem desempenhar um importante papel no desenvolvimento do uso abusivo de álcool como uma saída para amenizar sofrimentos. Assim, o álcool passa a ser usado como suporte de alívio, cada vez mais frequente e mais precocemente, passando a fazer parte da vida das pessoas.

As Marias classificadas nas zonas de médio e alto risco alegaram que houve algumas consequências do uso de álcool em suas vidas, tais como apagões e problemas ginecológicos. Segundo alguns autores, como Campos e Reis (2010), Esper et al. (2013), Souza e Santos (2008), são apontadas consequências do consumo abusivo de bebidas alcoólicas entre as mulheres que podem estar associadas a diversos problemas de saúde, como interrupção da menstruação, tensão pré-menstrual e problemas de fertilidade, como observado nos relatos a seguir.

[...] passo meses sem menstruar, não fico grávida, tenho desejo de ter filho, não lembro o que fiz; (apagão), já tive várias quedas e arranhões pelo meu corpo. Fico bastante irritada quando vou ficar menstruada e durante. (Zona III, alto risco, Maria M).

[...] eu bebo só com as minhas amigas e bebi demais com a minha separação de cinco anos de casada e como eu queria ter filho dele e nunca fiz nada para evitar gravidez. Quando bebo esqueço tudo isso, é muito gostoso beber conhaque e vinho. (zona III, alto risco, Maria D).

[...] eu acho que a mulher bebe pela empolgação, para ficar leve e alegre... aí às vezes acaba extrapolando. E bebe também porque tem problema. Mas não resolve nada e depois vem a tristeza. Há um tempo me chamavam de boca de álcool, essas coisas, e eu pegava qualquer homem, porque eu estava bebendo muito. (Zona II, médio risco, Maria F).

Observa-se que o consumo abusivo eventual pode colocar a mulher em situação arriscada, gerando ações cujas consequências são imprevisíveis: a tomada de decisões sem pensar, a perda da capacidade de memorizar acontecimentos recentes, levando a danos pessoais, incluindo acidentes, agressão, violência e comportamento sexual de risco (Reisdorfer, Büchele, Pires, & Boing, 2012).

Maria H (zona II, médio risco) alegou que sofre de pancreatite aguda, pois bebia semanalmente, há quatro anos. De acordo com a literatura, o uso abusivo do álcool é a causa mais comum do primeiro episódio de pancreatite aguda, ocorrendo entre quatro e sete anos após o início do uso alcoólico pesado (César, 2006; Pillon et al., 2014).

Avaliando os locais em que as Marias costumam consumir bebidas alcoólicas, independentemente de ser a primeira vez ou em usos subsequentes, o estudo identificou os bares/festas e o próprio domicílio. As companhias mais frequentes para o consumo foram amigas e os familiares, sublinhado na fala de Maria F.

[...] comecei a beber aos 14 anos com um primo na casa de minha tia. Era uma festa e gostei muito; minha mãe e minha irmã bebem sem problema; acho normal a mulher beber. Só bebo junto da minha família. Nunca usei drogas, nunca fiquei violenta com ninguém. (Zona II, médio risco).

O relato de Maria F, de que o início do uso de bebidas alcoólicas aconteceu na adolescência e socialmente, junto dos seus familiares, representou o discurso de todas as Marias, revelando que o uso precoce de álcool entre as Marias levou ao consumo abusivo e à dependência.

De acordo com a literatura, na adolescência, quem bebe tende a se expor a situações de risco, como iniciação precoce da vida sexual, prática de sexo sem preservativo, existência de múltiplos parceiros sexuais, gravidez indesejada, embriaguez e a chance de experimentar outras drogas. Provavelmente, esse risco esteja associado à dificuldade de julgamento do risco da situação, havendo influência do álcool, também, na escolha dos pares e dos contextos que favorecem esses encontros (Babor, Caetano, Casswell, & Edwards, 2010).

A dimensão social

Enfim, na dimensão social, foram encontrados, nas falas das entrevistadas em zonas de risco, os aspectos comportamentais entrelaçados na representação social do uso de álcool, que envolveu a percepção das Marias a respeito da saúde das mulheres que fazem uso de álcool e de orientação ou ajuda sobre o consumo de bebidas alcoólicas pela equipe da USF ou de outras pessoas.

As Marias classificadas nas zonas de risco declararam que têm uma boa saúde e avaliaram de forma positiva o consumo de bebidas alcoólicas entre mulheres. Alegaram que todas as pessoas bebem e que, hoje em dia, não tem essa história de não beber, que a maioria das amigas e dos amigos bebem sem problema.

Os relatos das Marias na zona de alto risco deixam visível o desconhecimento da população acerca dos malefícios da ingestão abusiva de bebidas alcoólicas e, por consequência, do despreparo das próprias mulheres, dos profissionais de saúde e da sociedade para lidar com a situação que se apresenta. Devido ao fato de não haver uma vontade impulsiva pelo uso do álcool, que é um dos sintomas do alcoolismo, o uso abusivo não desperta essa inquietação. Esse fato é ilustrado nas falas das Marias a seguir.

[...] nunca tive nada na minha saúde porque bebo. Mas já tive várias quedas, corte no braço e levei pontos, às vezes não me lembro o que faço. E que a vida é isso mesmo, a vida é beber, é fica bêbada, alguns tem sorte, outros não... é o destino. (Zona III, alto risco, Maria J).

[...] eu não tenho problema com meu uso de bebidas alcoólicas porque não uso diariamente. Trabalho todos os dias da semana, até no sábado as 13horas. Só bebo no final de semana, porque ninguém é de aço. E quando bebo fico bem alegre, falante e depois dá um sono, durmo com roupa e tudo. No outro dia, às vezes, sinto tontura pela manhã depois de ter passado a noite bebendo, sem poder me levantar, é a ressaca, tomo um banho e aí vou trabalhar. (Zona III, alto risco, Maria M).

No entanto, as pesquisas científicas demonstram a íntima relação entre o consumo de bebidas alcoólicas e o risco de doenças, maior vulnerabilidade às situações de risco (acidente de trânsito e sexo sem proteção) e danos à saúde (Fachini & Furtado, 2012; Passos, & Souza, 2011; Pillon et al., 2014).

Apresentou-se ainda um discurso do senso comum nas falas das Marias classificadas nas zonas de risco, que alegaram que não tiveram nenhuma orientação ou apoio sobre o uso e abuso de álcool na vida delas e que nenhum profissional de saúde abordou sobre o assunto. E que, às vezes, as amigas falam para "beber pouco para não ficar tão bêbada". O relato das Marias ratifica os estudos recentes sobre o consumo de álcool entre as mulheres, balizando que a visão da sociedade e, em geral, da própria mulher e dos profissionais de saúde, permanece relacionada ao marcador das relações sociais, aceito e não patológico, dificultando o seu diagnóstico por parte dos profissionais de saúde (Campos & Reis, 2010; Silva et al., 2019).

Esse despreparo no atendimento e no cuidado das pessoas que se encontram com problema com álcool e outras drogas pode estar ligado ao julgamento moral e à exclusão social. Arruda (2002) e Jodelet (2001) alegam que esses julgamentos morais, estigma, preconceito e exclusão social são também vivenciadas pelas pessoas com transtorno mental, como pessoas pertencentes a outro mundo, não sendo muito diferente com as mulheres "embriagadas" que consumem bebidas abusivamente, que incomodam, como as loucas, impedindo o atendimento eficaz da verdadeira dificuldade vivenciada pelas usuárias.

Portanto, os significados atribuídos ao uso e abuso de álcool ou outras drogas precisam estar conjugados não somente aos efeitos químicos, mas aos seus atributos simbólicos, ao imaginário social e ao aspecto cultural dos contextos de onde emergem. O conhecimento acerca das representações sociais sobre o uso de álcool permite melhor compreensão sobre atitudes e comportamentos relacionados a esse fenômeno (Campos & Reis, 2010; César, 2006).

Convém ressaltar que, a partir da interpretação dos resultados das Marias classificadas nas zonas de risco, torna-se importante trabalhar a questão do beber feminino na unidade de saúde investigada. Um grito único das Marias aparece bem representado na fala de Maria M. "[...] nunca ninguém falou ou orientou sobre o meu consumo de bebida. É a primeira vez que alguém pergunta sobre isso... só nessa pesquisa. Nesta unidade, ninguém da equipe fala sobre bebidas. É importante ser falado aqui na unidade" (Zona III, alto risco).

Nessa situação, sugere-se investir tanto em campanhas educativas sobre o beber feminino nos diferentes meios de comunicação, escolas e centros de saúde, bem como na educação permanente aos profissionais do Sistema Único de Saúde, de maneira especial a equipe Unidade de Saúde da Família. Vale referir que a educação permanente em saúde do Sistema Único de Saúde é uma estratégia para a construção de novas práticas e de conhecimentos em saúde com base nas necessidades sociais, não só qualificando os serviços, mas tornando o profissional mais seguro de si. Logo, trata-se de estimular o desenvolvimento da consciência desses profissionais sobre seu contexto de atuação e sua responsabilidade no processo permanente de aprendizagem.

A Unidade de Saúde da Família é um nível de atenção importante, pois os profissionais de saúde têm contato com um grande número de pessoas, que não são exatamente usuários de nível especializado, mas um nível de atenção estratégico para as práticas preventivas e, prontamente, para um trabalho também educativo e preventivo sobre os prejuízos e estigmatização das usuárias de álcool e outras substâncias, facilitando o acesso de uma abordagem apropriada para esse universo feminino em torno das etapas da vida, ou seja, simplesmente ser mulher (Babor & Higgins-Biddle, 2010; Silva et al., 2019).

 

Considerações finais

A questão do consumo abusivo de álcool pelas mulheres pesquisadas foi analisada sob a óptica da Teoria das Representações Sociais, pelo fato de que as representações compõem os sistemas de interpretação social, possibilitando aos indivíduos formularem uma compreensão sobre a experiência vivida e orientando suas práticas sociais. As mulheres Marias estudadas, quando falam do uso álcool, mobilizam um conjunto de representações fundamentais para a compreensão das maneiras de beber, do uso considerado abusivo de álcool e de seus efeitos diante da vida e da saúde.

Nessa linha de pensamentos, observou-se que os motivos que levaram essas mulheres ao uso abusivo do álcool estiveram relacionados à busca do prazer, sendo este o dado mais representativo. Os discursos dessas mulheres deixaram claro que a sociedade, com seus valores e normas, rege o comportamento do sujeito em relação ao uso de álcool. É notório que a crença de que a bebida alcoólica não é droga contribui para o estímulo e incentivo do consumo dessa substância e foi o discurso das participantes. Elas se sentiram festivas e consumiram bebidas alcoólicas em público junto com familiares e amigas.

O uso do álcool pelas mulheres, por se tratar de uma droga lícita e aceitável socialmente, é utilizado perante a própria família em várias situações comemorativas, sendo visto como um comportamento normal. Assim, a sociedade incentiva o uso do álcool como algo que promove o bem-estar e a interação social. Vale salientar que o consumo de bebidas alcoólicas funciona como um reflexo de um costume da sociedade, introduzido passivamente no sujeito ao longo do tempo, aspecto que pode influenciar na instauração do abuso ou da dependência, que se estabelece sorrateiramente.

Nessa perspectiva, as representações sociais são constituídas e compartilhadas pelas pessoas na sociedade, a partir da educação, das atitudes, das crenças e dos mitos presentes no imaginário social dos próprios indivíduos.

A postura adotada por essas mulheres, independentemente das classificações das zonas de risco, grita por ajuda e orientação, além de favorecer a realização de abordagem educativa e preventiva sobre o tema nas unidades de saúde, e pode também corroborar a consecução da integralidade no atendimento à saúde. As consequências do uso abusivo e a dependência categorizada como problema ou doença não deve, em circunstância alguma, isentar a sua relação direta com os fatores sociais, culturais e históricos. Dessa forma, afasta-se do conceito unilateral de patológico para o entendimento de uma síndrome multifacetada, ou seja, cuidar como substância de uso prejudicial, na medida em que causa dependência. Logo, o consumo abusivo de bebidas alcoólicas pode gerar danos físicos, psicológicos, morais e sociais. É fundamental destacar que o presente trabalho tem limitações com relação às interpretações genéricas, considerando o tamanho da amostra e o desenho do estudo. Reconhece-se que a aproximação com o objeto de estudo é parcial e inacabada, embora de grande utilidade, dada a complexidade do tema escolhido e de toda a cultura na qual se insere. Não há prova nos fenômenos sociais do campo da saúde: nada é dado, tudo é construído, inconcluso e superável.

Esta pesquisa favoreceu a reflexão sobre o planejamento e execução nas ações integrais à saúde da mulher voltada ao beber feminino, possibilitando um novo olhar de cuidado sobre essas mulheres. Essas ações devem não somente olhar o consumo abusivo feito por elas, mas também avaliar o contexto de vida e motivações para o abuso e manutenção desse consumo.

Nessa direção, estudos prospectivos e longitudinais nas Unidades de Saúde da Família, quando se organizam com foco nas necessidades da população, podem ou tendem a ser mais eficientes, no sentido de apresentar maior capacidade de escutar e atender às necessidades em saúde, que, perante a população feminina atendida, são imprescindíveis para avaliar a efetividade do cuidado saudável, cuja meta é reduzir os problemas decorrentes do uso abusivo de bebidas alcoólicas.

 

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Recebido em: 24/8/2019
Aceito em: 23/11/2021

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