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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.4 São João del-Rei oct./dic. 2021

 

Estratégias de não apagamento: relação entre pesquisadora e pesquisadas e os tensionamentos do uso do TCLE - Termo de Consentimento Livre Esclarecido

 

Non-Erasure Strategies: Relationship between Researcher and Researched and the Tensions of the Use of the Informed Consent Form

 

Estrategias de no borrado: relación entre investigador e investigado y las tensiones del uso del formulario de consentimiento informado

 

 

Renata de Carvalho NardelliI; Ana Claudia Lima MonteiroII

IPsicóloga e mestra em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Pós-graduada pela Faculdade e Escola de Dança Angel Vianna em Terapia Através do Movimento: Corpo e Subjetivação. Trabalhou como pesquisadora-júnior vinculada à Fundação Biblioteca Nacional, engajada com temas relacionados a minorias sexuais. Cocriadora e integrante do coletivo entre-tempos, afirma, por fim, sua prática a partir da perspectiva transdisciplinar da clínica, na interlocução entre feminismo decolonial, terapias somáticas e na indissociável relação entre corpo, arte, clínica e política. E-mail: renatacnardelli@gmail.com
IIProfessora-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Estuda as relações entre corpo, subjetividade e afeto

 

 


RESUMO

Este artigo é um dos encaminhamentos possíveis para o trabalho realizado como conclusão de curso de mestrado em Psicologia na Universidade Federal Fluminense, que se pôs à investigação acerca do ser-estar mulher que se relaciona amorosa-afetivamente com mulheres, mais especificamente na realização de oficinas de experimentação sensório-afetiva. Aqui, preocupamo-nos em destacar as problemáticas da relação entre pesquisadora e pesquisadas, diante da necessidade do uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e seus desdobramentos a partir de uma prática-pesquisa que se faz com.

Palavras-chave: Corpo-sexualidade. Experimentação sensório-afetiva. Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). Mulheres que se relacionam com mulheres.


ABSTRACT

This article is one of the possible referrals for the work done as a conclusion of the Master's degree course in Psychology at the Fluminense Federal University. The same was true of the investigation of being a woman who is lovingly and affectionately related to women, specifically in conducting workshops of sensory-affective experimentation. Here, we are concerned with highlighting the problems of the relationship between researcher and researched, given the need to use the Free and Informed Consent Term and its consequences from a practice-research that is done with.

Keywords: Body-sexuality. Sensory-affective experimentation. Informed Consent Form (ICF). Women who are lovingly and affectionately related to women.


RESUMEN

Este artículo es una de las posibles formas de avanzar el trabajo realizado como conclusión del curso de Maestría en Psicología de la Universidad Federal Fluminense. Se centró en la investigación de ser una mujer que se relaciona de forma amorosa-afectiva con las mujeres, más concretamente en la realización de talleres de experimentación sensorial-afectiva. Aquí nos ocupamos de poner de manifiesto los problemas de la relación entre investigador e investigado, ante la necesidad de utilizar el Formulario de Consentimiento Informado (FCI) y sus desdoblamientos a partir de una investigación-práctica que se realiza con.

Palabras clave: Cuerpo-sexualidad. Experimentación sensorial-afectiva. Formulario de Consentimiento Informado (FCI). Mujeres en relaciones con mujeres.


 

 

Entre, no gerúndio

Fechemos os olhos. Vamos atentar ao caminho que o ar faz dentro de nós. Ao inspirar o ar pelo nariz, tentem perceber sua passagem através dos pelos das narinas, pela cavidade nasal, depois, passando pela faringe e continuando seu caminho pela laringe. De lá, passa para a traqueia e brônquios. São eles que levarão o ar até os pulmões.

Ao inspirarmos o ar, o diafragma e os músculos intercostais se contraem. O diafragma desce e as costelas sobem, fazendo com que haja aumento do volume da caixa torácica, impulsionando a entrada de ar nos pulmões.

Soltem lentamente o ar pela boca. Deixem a língua pousada na base inferior desta, com a ponta encostando nos dentes frontais. Percebam o esvaziar dos pulmões, a contração abdominal, o desinflar da região torácica. Qual sensação aparece com a passagem do ar pela cavidade bucal? Há maior produção de saliva? Os lábios vibram em contato com o ar?

Seguimos em atenção ao caminho que o ar faz ao percorrer todo nosso corpo: espaços se criam no alargar das costelas? Entre ombros e escápulas? Espaço entre as sobrancelhas? Percebamos os pontos de tensões desnecessárias. Façamos da respiração ferramenta para um novo arranjo do nosso corpo e seu ritmo aos poucos, cada um em seu tempo, podemos abrir os olhos novamente.

Após essa respiração, em estado de presença, fazemos o convite para que entrem! Bem vindes! Esse convite é para que sigam, junto conosco, no gerúndio, entrando, descobrindo e com-partilhando o percurso que se seguirá. O exercício se dá em concomitância, no reconhecimento dos espaços entre. Entre o inspirar e o expirar, entre a escrita, as leituras e as conversas no bar... entre tantos tempos que integram essa criação.

 

Introdução

Este artigo surge como proposta de partilha, de abertura e consequente encaminhamento de algumas questões inicialmente desenvolvidas em meu trabalho de dissertação,1 mais especificamente aquelas relacionadas aos acordos possíveis estabelecidos entre pesquisadora e pesquisadas diante da necessidade do uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Antes, faz-se importante contextualizar sobre o que se tratou tal trabalho. Para apresentá-lo, faz-se também necessário falar de nós, propositora-pesquisadora e orientadora-pesquisadora. E, nesse caminho, marcamos um lugar de fala, entendendo que ao fazer isso uma mistura entre o pessoal e o político se forja. E por que isso nos é caro? Porque consideramos que "[...] o 'pessoal é político', na medida em que compomos e somos compostas por nossas relações e afetos, e isso precisa ser compreendido numa teia de relações que compõem nossos corpos, nossas vidas e nossos afetos" (Monteiro & Nardelli, 2018, p. 106).

É importante também que façamos uma diferença inicial que irá permear toda a construção do texto. Em alguns momentos em que será usada a primeira pessoa do singular, é a experiência das oficinas que estará sendo apresentada como campo de estudo do mestrado de uma das autoras, a Renata, enquanto, em outros momentos, compusemos juntas as reflexões teóricas e o percurso de escrita da dissertação e deste texto. Nesses momentos, a escrita é composta como uma parceria.

Sobre a primeira autora supracitada: sou uma mulher branca, cis, lésbica, psicóloga, e tenho realizado um trabalho de prática-pesquisa com o Coletivo entre-tempos,2 que aposta nas relações entre corpo-sexualidade, arte e clínica. Entendemos que o corpo se constitui de um aspecto sensível e, por isso, acreditamos na potência transformadora da realização de práticas em grupo no formato de oficinas, em encontros cujo trabalho é colocar o corpo como ator nas/das relações. Intuímos os espaços dos grupos como terrenos férteis para um cuidado de si. Fazemos, portanto, destes, afirmação da coletivização das experiências, dos afetos e do cuidado, na desindividualização das inquietações. Acreditamos, por fim, que a revolução virá pelo corpo e que trabalhar a presença encarnada é um ato de resistência.

Sobre a segunda autora: sou uma mulher branca, cis, hétero, mãe e iniciando o processo de envelhecimento, experimentando os cinzas nos cabelos sem tinta. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, estudiosa dos afetos, da subjetividade e do corpo. Acredito no trabalho que compõe e articula tais conceitos e por isso aposto na parceria de construção deste trabalho, que transborda o texto e se instaura na vida das pessoas que conosco experimentaram esse percurso.

Gostaríamos de acrescentar que em algumas ocasiões esta escrita também aparecerá em itálico quando na reprodução de um relato. Além destas, ao final, nas referências bibliográficas, também teremos uma incomum apresentação: com todos os primeiros nomes e últimos sobrenomes por extenso. Contrariando, porventura, as normas exigidas pelas formatações gerais da revista, mas afirmando uma política de escrita: de fazer aparecer as mulheres que compõem diálogo com este trabalho.

Assim como nos lembra Luciana Franco (2016, p. 18): "Há algo aí que sempre se mistura, porque somos um, encarnado num corpo que produz uma certa escrita, num estilo sempre singular, mas que é poroso e só se faz com o outro. E longe de desfazer esse mal-entendido, o que queremos é evidenciá-lo tal como é, nessas misturas."

Há uma estratégia em fazê-la desse modo, uma vez que não poderia me furtar das parcerias estabelecidas ao longo desse processo, das misturas e do posicionamento ético e político de não me esconder atrás de um sujeito oculto, possibilitando tornar algumas experiências pessoais, agentes, na análise de questões pertencentes também a um contexto macropolítico e partilhado por e com muitas outras mulheres.

Tal qual já sentiam Marília Silveira e Josselem Conti (2016, p. 66), "mostrar do que somos feitas e em que contexto produzimos conhecimento falam de uma posição que é ética e política". Isto é, ética, pois estamos nos esforçando e, consequentemente, nos comprometendo a deixar em evidência o processo que se tem construído para elaboração deste trabalho, lançando mão de um modo de escrita e também de pesquisa que se faz em parceria e vizinhança, junto. Não podemos renunciar à aposta na força dos processos de produção de si e do mundo, caracterizando, desse modo, a dimensão política.

Sob esse viés, a escrita deste texto emerge como forma de dar visibilidade às questões relativas à feitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), instrumento utilizado para que possamos afirmar que aqueles que estiveram conosco na pesquisa estão de acordo com a divulgação daquilo que produzimos juntos. O argumento para a sua utilização é fazer com que os sujeitos estejam "esclarecidos" sobre os procedimentos e riscos de participar da pesquisa. Essa estratégia serve tanto para proteger os pesquisados de possíveis abusos do experimento quanto para proteger o pesquisador de futuros problemas causados pelo experimento. Toda essa proteção, porém, não dá conta dos efeitos que o próprio dispositivo causa naqueles que dele fazem parte (Despret, 2011a). Aqui podemos citar apenas a questão da autoridade do pesquisador, que faz com que o pesquisado se submeta ao experimento, na confiança da autoridade do experimentador e a questão do gênero interativo de Ian Hacking, citado pela autora, na qual os pesquisados fazem suas próprias inferências acerca do que é esperado acontecer no experimento. Desse modo, trazer a questão do TCLE é também pôr em cena os problemas relativos à construção do dispositivo de pesquisa e, mais que isso, entender como posicionamos aqueles que compõem a pesquisa conosco, uma vez que a garantia do sigilo é um ponto fundamental para uma pesquisa que garanta o anonimato do pesquisado. Aprofundaremos isso ao longo do texto.

 

Mulheres, mais que plural

Mulheres

Nós somos Mulheres de todas as cores

De várias idades, de muitos amores

Lembro de Dandara, mulher foda que eu sei

De Elza Soares, mulher fora da lei

Lembro Anastácia, valente e guerreira

De Chica da Silva, toda mulher brasileira

Crescendo oprimida pelo patriarcado, meu corpo

Minhas regras

Agora, mudou o quadro

Mulheres cabeças e muito equilibradas

Ninguém tá confusa, não te perguntei nada

São elas por elas

Escuta esse samba que eu vou te cantar

Eu não sei, porque tenho que ser a sua felicidade

Não sou sua projeção

Você é que se baste

Meu bem, amor assim quero longe de mim

Sou mulher, sou dona do meu corpo

E da minha vontade

Fui eu que descobri Poder e Liberdade

Sou tudo que um dia eu sonhei pra mim

(versão de Silvia Duffrayer, part. Doralyce).

Trago para compor este texto o trecho da música destacado apostando na relação de investimento que tive na elaboração de uma proposta de pesquisa que unisse tanto a possibilidade da realização de oficinas de experimentação sensório-afetiva3 quanto a temática em torno da vivência de ser-estar mulher que se relaciona amorosa-afetivamente com outras mulheres, possibilitando ser colocadas à luz as diferentes versões4 do que é experimentar isso.

Seguindo esse fio, a ideia era a criação de um grupo no qual fosse possível às mulheres com experiências homoafetivas o compartilhamento de narrativas e vivências que compusessem seus corpos e suas vidas. Para tanto, dialogamos com Luciana Franco (2016, p. 32):

Interessar-se pelas razões do outro, estar disponível à riqueza que tem a imprevisibilidade dos encontros, dar espaço aos silêncios, considerar os saberes como produções de um dispositivo, estabelecer uma aproximação pela diferença são algumas pistas preciosas [...] que servem ao que [nos] interessa: as pessoas como contadoras de histórias. (Grifo meu).

Nesse caso, as histórias apareceram tanto contadas, faladas, enunciadas em tons de voz diferentes, como nos gestos, experimentados em diferentes ritmos, nas composições de movimentos, no encontro dos corpos, no encontro dos corpos dessas mulheres com elas mesmas, com os objetos, comigo e com mais tudo aquilo que se abriu de possibilidade.

A escolha pela configuração de oficinas em grupo e como um espaço para colocarmos nossos corpos como atores deve-se à aposta de que se caracterizam como um dispositivo expressivo que evita ou impede as reiterações à individualidade e ao mentalismo, mas que, em vez disso, ascendem um corpo mais aberto, mais sensível às intensidades, ao plano das forças, para além do plano das formas, que compõem um corpo mais conectado às relações consigo mesmo, com o espaço e com os outros, e por isso concedem uma gestão mais coletiva da experiência.

Foram oito encontros no total, sempre às quintas-feiras, tendo duas horas de duração cada um. Tais oficinas foram realizadas na Universidade Federal Fluminense, no Gragoatá, Bloco N, Instituto de Psicologia.

Vivemos no primeiro encontro o momento de apresentações, primeiro contato entre nós, com a feitura e elaboração de um combinado em relação ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) - o qual aprofundaremos mais adiante. No segundo, saboreamos a textura, a cor, a temperatura, o gosto, a forma, o suco e o cheiro de uma uva, como se fossem as Madeleines de Proust, deixando que essa experiência ativasse nossas memórias afetivas. Passando da uva para outros objetos, vivenciamos a formação de uma grupalidade, todas conectadas por uma linha de lã laranja. Nesse dia, reverberações importantes apareceram sobre o lugar marcador que os nossos peitos têm: de gênero, marcador de violência, de fetiche, mas também de sensualidade e de tesão. No terceiro encontro, vivenciamos dar e receber colo. Experimentamos cuidar e acolher em nossos próprios corpos o corpo da outra. Sentimos, numa roda de toques, os sons que nossos corpos emanam quando percutidos. E também a energia, temperatura e textura das mãos umas das outras quando recebidas em nossas peles. Cuidamos da confiança. No quarto encontro, vivenciamos a minha qualificação - combinamos no primeiro encontro que elas me acompanhariam nesse processo. No quinto, experimentamos um tecido vermelho, cor de sangue, sua elasticidade na composição dos vértices de um triângulo, apenas eu e mais duas delas. No sexto, em semelhante composição, vivenciamos o pousar de objetos sobre o corpo e as sensações que disso apareciam. Experimentamos perceber outras dimensões do corpo, no contorno e criatividade em forma de desenho. No sétimo, ensaiava-se uma despedida, mas antes o verso. Experimentamos sentir e perceber as costas, região tão pouco tocada. E no último encontro, mas não menos importante, vivenciamos a circulação da literatura les-bi,5 propomo-nos a leitura de poemas, contos e/ou trechos de texto de mulheres autoras sapas-bi. Um lindo e emocionante fechamento se forjou nesse dia. Eu havia levado todos os materiais produzidos nos encontros anteriores para compor seu cenário. E no fim, um pôr do sol que parecia pintura nos proporcionou a conclusão de que desfrutaríamos da companhia uma das outras contemplando o céu, na orla.

Como podemos perceber a partir dessa breve recapitulação dos encontros, estes possibilitaram a emergência de questões bastantes interessantes e que trazem para este trabalho a potência e inquietações das relações com o tema corpo-sexualidade, mas, como havíamos salientado anteriormente, os convidamos para dedicarmo-nos com mais tento sobre a relação entre pesquisadora e pesquisadas, a partir das discussões que emergiram na feitura do TCLE.

 

Estratégias de resistência à visibilidade

Fiando/fitando o Termo

Estávamos, eu e Ana,6na sala do quarto andar, finalizando a orientação quando nos lembramos do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.7 Juntas, fomos preenchendo-o e incluindo item por item exigidos. Em determinado momento, deparamo-nos com a incongruência daquilo, uma vez que, ao mesmo tempo em que se propõe um documento de respaldo legal (e moral) para o pesquisador, posto que a concordância dos participantes é registrada, não abre possibilidade de contrapartida por parte destes. Intuíamos ser interessante, sobre esse aspecto, incluir como proposta de atividade a utilização dos Termos de Consentimento. Ou seja, pretendíamos para o primeiro encontro, além de uma atividade de "boas-vindas", a reserva de um momento para que houvesse uma apresentação incluindo, desse modo, as autorizações. Tornar-se-ia desnecessária a continuidade do preenchimento no entendimento de que ele formalizaria um "acordo ruim". Mas o mantivemos, pois o queríamos como modelo a ser reformulado. O preenchimento se fez, imprimi três cópias.

27 de setembro de 2018, primeiro dia de oficina. Como supracitado, este foi dedicado às apresentações, afinal era o dia que todas nos conheceríamos. Cada uma que chegava eu recepcionava com um abraço de boas-vindas. Perguntava se poderia abraçá-las e o fazia em seguida à resposta, em caso positivo, como o foi com todas.

Iniciei o encontro apresentando-me, comentando sobre minha trajetória desde a graduação em Psicologia até a chegada e ingresso no mestrado. Comentei sobre o fato de aquele grupo ser o campo de uma pesquisa. E, nesse viés, retirei as cópias do TCLE de uma sacola e as distribuí para que o lêssemos em duplas ou trios. Éramos sete, contando comigo. Completada a leitura, propus a continuidade das apresentações, para que cada uma ali dissesse um pouco sobre o que esperava daquele grupo, como se sentia naquele momento.

Ao término das apresentações, sugeri que fizéssemos uma respiração, pedi que se acomodassem, fechassem os olhos e procurassem se conectar com o caminho do ar durante a respiração. Depois de tomadas algumas respirações, indiquei que na expiração seguinte iríamos emitir o som da letra "A". inspira... aaaaa! Tomamos algumas respirações suaves de intervalo, pedi que se percebessem. Na sequência, a letra "E". inspira... eeeee! Mais algumas respirações de intervalo, pedi para que sentissem onde o corpo vibrava após cada uma das vogais. Na próxima, a letra "I", inspira... iiiii! Mais algumas respirações de intervalo, pedi que percebessem os ajustes que o corpo fazia para a emanação de cada uma das vogais, a diferença da abertura da boca em cada vogal e a altura do som de cada uma delas. Em seguida, letra "O", inspira... ooooo! Algumas respirações de intervalo para que pudessem ficar com a sensação do som das vogais e percebessem como era se ouvir e ouvir o encontro das vogais com as das outras presentes. E, então a última vogal, "U", inspira... uuuuuu! Por fim, pedi que fizéssemos uma última respiração do "A" até o "U". Inspira... Aaaaa Eeeeee Iiiiiii Ooooo Uuuuu! Ficamos um tempo em silêncio, sentindo o corpo e a vibração das vogais.

Ao final desta, propus que retornássemos ao TCLE e, agora com outro corpo, em sintonia umas com as outras, experimentássemos outra relação com ele: peguei a primeira página de uma das três cópias, desgrampeei das demais e a rasguei no meio, verticalmente. Uni uma das extremidades de cada metade, também verticalmente, criando uma fita comprida, com mais ou menos quatro dedos de largura. E ofereci que cada uma pegasse uma das folhas das cópias do Termo e fizesse o mesmo.

Finalizado esse processo, sugeri que fizéssemos a união das extremidades restantes, mas não configurando um círculo e, sim, uma fita de Moebius.8 Em seguida, distribuí tesouras e propus que fizéssemos o Caminhando,9 da Lygia Clark.10 Cada uma levou um tempo diferente na dedicação do corte da fita, umas escolheram experimentar faixas de corte bem finas, outras preferiram mais largas para não correrem o risco de arrebentar. A cada banda de papel que se abria após o corte, evidenciava-se uma brecha de possibilidade do que poderíamos incluir ao Termo - apesar de ainda parecer abstrato.

Estávamos encontrando-nos com o nosso emaranhado de papel - em alguma medida conosco -, umas tentavam achar o seu início e fim, outras brincavam de jogar o emaranhado em si. Uma delas percebeu que uma das bandas de fita do seu Caminhando arrebentou, mas acolheu esse acontecimento e colocou a ponta arrebentada misturada ao emaranhado.

Em seguida, foi sugerido, por parte de uma das participantes, que colocássemos todos juntos. Fizemo-lo. Estávamos em roda, deixamos todos juntos ao centro. E ficamos olhando para aquilo. Algumas permaneceram sentadas, outras quiseram se levantar para ver de cima o emaranhado. Em seguida, pedi para que tivéssemos o compromisso de pensar e construir um novo Termo até o final dos encontros. Elas consentiram e afirmaram querer construir isso juntas, animadas para os próximos encontros. Peguei o caderno sem capa11 e disse que esse seria um caderno semelhante ao que elas escolheram para si,12 só que coletivo. Ele estaria presente em todos os encontros, eu me responsabilizaria em levá-lo. A ideia é que pudéssemos deixar o registro de cada encontro, coletivamente, nele. Uma delas o pegou sugerindo que fizéssemos uma fita Moebius como capa. Todas concordaram e assim se fez.

O desafio colocado a partir dessa experiência foi a construção de um Termo, formulado e experienciado por todas e cada uma de nós durante os oito encontros nos quais nos comprometemos a estar. Essa aposta dá-nos a possibilidade de perceber, a partir ou em comparação ao modelo sugerido pelo Comitê de Ética, o que mais cabe nessa autorização.

Sob esse viés, na tentativa de não cair em um registro de polarização sobre o uso do TCLE e sua eficácia - ou seja, sentenciarmos o Termo como ruim ou bom - gostaria que nos alongássemos um pouco sobre isso. Para tanto, acredito ser interessante o diálogo com Vinciane Despret (2011b) e o que ela nos apresenta em Leitura etnopsicológica do segredo. Nesse texto, uma discussão acerca das práticas psicológicas, principalmente no que se refere ao segredo na psicoterapia, será elucidada. Nele "a autora resgata a ideia do segredo como algo que separa, segrega o que é público do que é privado" (p. 5). Será, portanto no jogo entre ambos que se colocará o uso do TCLE, entre o público e o privado.

A proteção do participante da pesquisa constitui a razão fundamental das Normas e Diretrizes Brasileiras que ordenam as pesquisas envolvendo seres humanos, incluindo as Resoluções n. 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).13 O uso do TCLE insere-se justamente como meio garantidor dessa proteção, sendo assinado após o/a participante da pesquisa e/ou seu/sua responsável legal estar suficientemente esclarecido/a de todos os possíveis benefícios, riscos e procedimentos que serão realizados e fornecidas todas as informações pertinentes à pesquisa.

Essa exigência é reforçada pela Plataforma Brasil, a base nacional e unificada de registros de pesquisas envolvendo seres humanos. Tal plataforma, acessada por meio digital, propicia à sociedade o acesso aos dados públicos de todas as pesquisas aprovadas, entretanto não se publica, tampouco se problematiza, as estratégias no uso do TCLE em pesquisas. O que quero dizer é que há outras dimensões que não só aquela de proteção e resguardo dos participantes; há, em contrapartida, preservação do pesquisador. O anonimato protege o pesquisador, na medida em que este não deve responder aos questionamentos daquele que ele pesquisa. "A ética da confidencialidade, a prática do segredo têm - principalmente - a intenção de proteger a autonomia do profissional, de prevenir a possibilidade de críticas externas, isto é, como escreve Peneff (2005), de manter os profanos à distância respeitosa." (Despret, 2011b, p. 17).

Nesse sentido, a "privacidade" e o anonimato geram o que Vinciane Despret (2011b) chama de "efeito sem nome". Nesse texto, a autora conta-nos também uma experiência que teve em um trabalho de pesquisa com refugiados. E no processo de entrevistas com um destes, o Sr. Jahija Smajié, ela se deu conta de que, no intuito de proteger e sob a fantasia de que o anonimato geraria confiança àqueles entrevistados a falarem sobre si, acabou reafirmando-os como "uma massa anônima marcada por uma identidade que eles não haviam escolhido e na qual eles não podiam se inventar" - refugiados (Despret, 2011b, p. 19). E ainda, "Em outros termos, é apagando o nome que se constrói a assimetria entre o profano e o expert, é apagando o nome que se constrói a postura particular daquele que deverá assumir o papel de pesquisado diante daquele que se define, no mesmo gesto, como expert." (p. 20).

A feitura de uma pesquisa levando em conta a literalidade das exigências e burocracias de tais plataformas por vezes a inviabilizam e/ou invisibilizam alguma dimensão sua. À vista disso, o meu compromisso era pensar uma atividade que incluísse essas nuances na tentativa de não fazer das mulheres participantes uma massa anônima que tinham (em comum) experiencias homoafetivas para contar, nem as expusesse frente às exigências e normas da Plataforma Brasil.

Sobre o esclarecimento de todos os possíveis procedimentos a serem realizados no meu trabalho, instaura-se uma problemática, uma vez que a organização das oficinas não se propõe a sequência de um script. Apesar de haver um mínimo planejamento prévio, estas são/foram pensadas a partir dos encontros com as participantes e suas demandas de cuidado. Ou seja, as "pesquisadas" tornam-se copesquisadoras. Inclusive isso foi combinado naquele primeiro dia de encontro, uma delas me indagou a respeito disso: de como seriam as oficinas e o que seria realizado nelas.

O apaziguamento dessa inquietação se dá, pois, na afirmação da própria "performance" com o TCLE, uma vez que ela visava tornar palpável as brechas e outras possibilidades para além do que está dado formalmente com o uso do Termo.

Esse tipo de prática-pesquisa que proponho tem a peculiaridade de não garantir um resultado, exatamente. Pelo menos, não do modo em que se dispôs, deixando em aberto o que seria trabalhado e quais questões emergiriam. Exercitei não criar uma lista de perguntas, levá-las ao campo e com elas obter as respostas. Ao contrário, apostei que o campo seria seu próprio fomentador de questões. Coloca-se, portanto, mais uma problemática.

Para esta, resguardei-me pela temática do grupo e o objetivo geral da proposição das oficinas: buscar fazer emergir as diferentes versões de ser-estar mulher que se relaciona com mulheres. Afirmativa presente no item 4 do preenchimento formal do TCLE.14

Precisei estar atenta e disponível para afetar-me com cada gesto, comentário e/ou qualquer acontecimento antes não considerado. Mesmo que seja imaginado um cenário possível para cada encontro em sua preparação, quando este acontece há uma dimensão afetiva da qual não se há controle, porquanto, lembrando o que Vinciane Despret (2011b, p. 56) afirma, "ter um corpo é aprender a ser afetado".

Sobre esse aspecto, Luciana Franco (2016) compartilha-nos seu encontro com o documentário de Eduardo Coutinho,15, Edifício Máster (2002). A partir deste, encanta-se com o método de Coutinho para a realização das entrevistas-conversas, em suas palavras: "Coutinho criou um jeito de fazer documentário que trazia o singular de cada entrevistado, que acolhia o extraordinário no cotidiano" (Franco, p. 30).

Há nesse modo de fazer que o cineasta exercita uma generosidade para com aqueles que chegam, mas também uma disponibilidade sua em deixar-se guiar, em alguma medida, por aquilo que é produzido no encontro. Luciana Franco (2016, pp. 30-31) também destaca essa dimensão:

E a fim de extrair dos encontros conversas (e não depoimentos ou entrevistas), Coutinho lança mão de algumas táticas, como ouvir as histórias sempre pela primeira vez. Não há ensaios. Em alguns projetos, sua equipe faz antes um trabalho de escuta e pesquisa, mas o momento da filmagem é seu primeiro contato com as pessoas. Assim, preserva certa imprevisibilidade dos encontros, deixando-se guiar pelas sutilezas dos afetos e extraindo deles o que há de mais fértil. É uma escuta que procura não antecipar um saber [...]. O entrevistado não é ingênuo e intui o que é esperado que ele responda - por isso é essencial fazer perguntas que não o tomem desse lugar, para que ele possa ter outras coisas interessantes a dizer.

Articulando esse método com o que proponho nas oficinas, encontro a partir desse diálogo o entendimento mais encarnado de que havia um exercício e cuidado da minha parte para disponibilizar-me, tal qual Coutinho, às primeiras vezes. Mesmo as encontrando semanalmente, era como se fossem várias primeiras vezes, todo encontro carregava consigo sua imprevisibilidade. Coube a mim, portanto, o posicionamento de não produzir apenas "ordens" a serem executadas, como nos momentos de guia, mas acolher o que as mulheres no e com o grupo me diziam e se diziam.

Retomando a questão do sigilo em uma pesquisa e qual seu lugar e uso - uma vez que este não é óbvio -, parece que esse grande modelador e regulador dos itens cabíveis a uma pesquisa só considera o sigiloso, segredo confessional. Entretanto, se nos aproximamos à provocativa que Vinciane Despret (2011b) coloca, realiza-se uma dobra.

A autora resgata os estudos de Henri Ellenberger para embasar suas considerações a respeito do caso Achille.16 Segundo o que ela nos conta sobre tal rapaz, em um dado momento, Achille passou a encontrar-se em estado de agitação furiosa, proferindo blasfêmias. O que diziam como "possessão diabólica". E ainda, comenta que a eclosão dos sintomas de Achille foram concomitantes ao retorno dele de uma curta viagem a negócios, seis meses antes da ida ao psiquiatra, Pierre Janet. Passadas diversas tentativas e enfoques de tratamento, Janet realizou um procedimento hipnótico em seu paciente, fazendo-o contar a história de sua doença: "Achille revela que durante esta viagem de negócios, ele havia sido infiel à sua esposa, havia em seguida tentado esquecer esse incidente, mas havia sido invadido pela culpa e pelo medo de ser condenado" (Despret, 2011b, p. 6). Acontece nesse episódio a revelação de um segredo.

Essa história é retomada por Henri Ellenberger em seus estudos sobre "segredos patogênicos".

A história, tal como ela é retomada por Henri Ellenberger (1995) em seu artigo sobre os segredos patogênicos, apresenta uma característica interessante: ela conta de fato a sucessão de duas histórias, colocando em cena dois mundos de pensamento diferentes. O primeiro desses mundos, que Ellenberger indica tratar-se de um grupo de indivíduos habitados pela superstição em uma província francesa longínqua, nos coloca em presença de seres invisíveis dotados de forças suficientes para fazer os humanos agirem, torná-los doentes de uma maneira que carrega sua assinatura. O segundo mundo será aquele no qual desemboca o percurso de Achille quando ele é recebido no hospital. (Despret, 2011b, p.6).

Passadas algumas conexões teóricas e mais ou menos três páginas dessa contextualização no artigo de Despret, verificamos que ela retoma atenção às conclusões de Ellenberger, que entendeu ser eficiente "tratar o segredo pelo segredo" (Despret, 2011b, p. 9).

Remetendo tal experiência à prática Psi, Vinciane coloca algumas questões:

Consideramos geralmente que o segredo profissional se constitui como uma garantia que protege o paciente, uma condição que, embora assegurada desde o início no contrato, atua no a posteriori da revelação. Inscrita no código da deontologia, ela se traduz em termos de "não divulgação". Falando mais simplesmente, tudo acontece em uma relação que poderíamos grosseiramente qualificar de causa e efeito: porque o paciente revela coisas secretas, o terapeuta se compromete a trabalhar no segredo. É uma tradução possível desse "tratar o segredo pelo segredo". Ora uma outra leitura se demonstra igualmente pertinente, a qual ao preço de uma pequena diferença, inverte essa relação de causa e efeito: é porque o dispositivo se constrói como um dispositivo (de) segredo que o paciente é conduzido a privilegiar a produção de segredos. O segredo torna-se, portanto, não mais uma característica supletiva do dispositivo, não mais uma garantia que protege o paciente, mas uma técnica particular que visa a construir um processo específico. (Despret, 2011b, p. 9).

Aqui, portanto, será evidenciada a dobra: uma vez que, sendo concebida essa última perspectiva, altera-se a relação com o segredo. Não mais será interessante saber do que se trata um segredo, de compreender sua essência, mas explorar o que ele provoca.

O segredo provoca o segredo. Nós reencontramos a proposição de Ellenberger, apenas modificada: o segredo fabrica o segredo. E é na análise daquilo que é fabricado que as coisas se tornam interessantes [...]. O segredo não faz outra coisa: ele fabrica seres interiores. O segredo, como dispositivo teórico e técnico, constrói uma forma particular de experiência de desordem. Ele engaja o paciente em viver e em traduzir sua perturbação enraizando-a no mais profundo de sua intimidade. (Despret, 2011b, p. 10).

Segundo Vinciane Despret (2011b, p. 12), a etimologia da palavra segredo é proveniente do termo secretus, "que é a forma no particípio passado de secernere: separar". Relacionando com o que propunha lá no início, separa o que é público do que é privado, em última instância. Separaria, por conseguinte, articulando à minha prática-pesquisa, as participantes de mim. Colocaria diametralmente afastadas as experiências ali vividas com o que se experiencia fora daquele dispositivo grupal, segregaria razão e emoção numa concepção aproximada da dicotomia entre mente e corpo. Aquilo que dissessem estaria dissonante do que experimentamos. O segredo colocaria uma barreira que muitas vezes é ultrapassada quando o "gravador é desligado", numa entrevista.

Sob esse viés, a aposta foi/é de uma pesquisa ética, cuja dinâmica foi/é fazer aparecer o bastidor.17 Uma pesquisa que se compromete com as participantes, na preocupação de não as invisibilizar, disponibilizando-se na efetuação de acordos e combinados sempre passíveis de revisão e recontratação.

E esse era o meu compromisso, fazer um trabalho COM as mulheres participantes, não sobre elas. Importante dizer isso, pois, exercitando essa parceria, COM elas, eu me colocava em problematização e tentava criar um deslocamento do lugar hierárquico como propositora e pesquisadora, as mulheres participantes eram as protagonistas.

 

Des(dobra)mentos

29 de novembro de 2019, último dia dos encontros. Nesse dia retomamos contato com o TCLE. Não o tendo realizado mais fluidamente ao longo dos oito dias de oficinas porque me colocava sempre a preocupação de só o fazê-lo tendo todas presentes. E esse quórum só existiu nos dois primeiros dias, por conta de intercorrências às participantes, além de duas anunciadas saídas, após alguns encontros. E tendo chegado o último, não podia me furtar em realizá-lo.

Para este último dia levei os materiais produzidos por elas, nos anteriores. Deixei-os compondo a organização da sala. Esse encontro guardava a mistura entre uma despedida e uma celebração. Despedida, pois encerraríamos a continuidade de encontros, e celebração, uma vez que me via extremamente feliz em ter podido construir tal espaço com elas.

Experimentamos o contato consigo, através de um acesso, escolha e reprodução de três movimentos cotidianos. Isto é, pedi-lhes que pensassem, conectassem-se com movimentos que se repetem no dia a dia; por exemplo, para aquelas de cabelos longos, a feitura de um coque ou rabo de cavalo. Escolheriam, portanto, três movimentos cotidianos e criariam uma espécie de coreografia, repetindo-os em sequência, experimentando alternâncias, diferentes velocidades, intensidades de força impressas na execução de cada gesto. Dedicamo-nos um tempo a essa pesquisa-prática, cada uma em um lugar diferente da sala. Eu também me pus a esse exercício. Repetíamos os movimentos e por vezes éramos contagiadas pelos gestos umas das outras. Estávamos naquele momento expondo em coreografia movimentos cotidianos que se assemelhavam em alguma nuance dos gestos, fosse na intensidade ou na região do corpo. Pedi-lhes que movêssemos, dentro do possível arranjo, com os gestos escolhidos, para que uma grande dança se forjasse. Passado um tempo, sugeri que fôssemos diminuindo a frequência dos movimentos, que nos despedíssemos daquelas repetições até chegarmos a uma pausa. Nesta, solicitei que percebessem a quais as sensações chegavam, como estavam as partes dos corpos que receberam estímulo das repetições em comparação com as demais.

Pedi que nos sentássemos. De frente para o centro. Antes, pegassem seus caderninhos e/ou os livros que continham escritas les-bi. Compartilharíamos naquele próximo momento nossas pesquisas por autoras les-bi - combinado no encontro anterior. Acomodaram-se. Folheavam páginas aleatoriamente, consultavam no celular páginas de blogs com os textos que gostariam de ler. A cada uma que encontrasse um trecho, texto ou poema e quisesse compartilhá-lo era pedido que anunciasse o nome da mulher-autora e em seguida o texto.

Concomitantemente à escuta que fazíamos dessas leituras, a orientação era para que atentássemos em algumas palavras (ou expressões) que nos tocassem por sua sonoridade, algum estranhamento etc. Estas seriam escritas em um quadro de folhas em branco, disposto em uma das paredes da sala. E assim se fez. Lemos mais de seis textos-trechos-poemas, uns mais longos, outros bem curtinhos, pequenas frases. Compúnhamos ali uma grande narrativa com palavras compartilhadas de mulheres les-bi para mulheres les-bi. Ressoava em eco a força de cada uma delas presentes.

Algum tempo depois dessas leituras, um breve silencio. Com ele distribuí calmamente algumas folhas de papel em branco, um para cada uma. Comporíamos uma escrita coletiva, cada uma com uma folha de papel em branco iniciaria sua escrita, passado um minuto trocaríamos em sentido horário, passando a folha para a seguinte, e assim repetiríamos até que completasse a sequência em que todas tivessem escrito na folha das demais.

Utilizamos como inspiração disparadora as palavras que agora coloriam o quadro de papel, na parede da sala. Mas era também para tentarmos incluir o como nos sentíamos naquele último dia de oficina, tendo compartilhado outros sete. E assim o fizemos, rodávamos as folhas de papel sempre para a seguinte do lado direito. Concluímos cinco rodadas. Ao final, cada uma leu o texto criado ali. Fizemos breves comentários sobre a composição de alguns, pois pareciam ter uma concordância, como se uma mesma pessoa o tivesse escrito.

Por fim, introduzo o assunto sobre o TCLE e a necessidade de estabelecermos um fechamento em relação a ele, dado que era o último dia. Peguei o caderno coletivo e o coloquei ao centro, intuía que este serviria como registro desse momento.

O entendimento nesse momento apareceu como um insight, o caderno coletivo funcionou justamente como um (o nosso) TCLE, ele abrigou em cada encontro aquilo que reverberava e, portanto, aparecia como tradução das brechas de tempo-espaço forjadas em cada dia de oficina. Para cada página, linhas desse acordo iam se firmando.

Comentei que ali poderíamos finalmente combinar quais acordos seriam feitos a respeito da identificação de cada uma delas. Salientei a importância de fazer existir um nome, que este não fosse representado apenas por uma letra (ex.: R.), mas que trouxesse consigo alguma dimensão do que esteve presente neste e com este grupo. Fazendo, nesse sentido, visível cada uma delas. Em contrapartida, resguardasse em cuidado suas participações.

Foram uma a uma escrevendo no caderno seus nomes: Meu-nome-é-lua, O-tesouro-da-tesoura, Suspiro (experiência inenarrável de uma caixa torácica que cabe amor), Bucecleta, Renata (eu). Suspiro comenta que seu nome teve sobrenome (risos), que eu poderia abreviá-lo para apenas o primeiro, durante a escrita.

A feitura das assinaturas se realizou como fechamento para concretização de um acordo, uma aliança de compromisso ético e uma maneira de dizer quem são essas mulheres. Assemelhando-se à assinatura do Sr. Jahija Smajié, entrevistado de Vinciane Despret (2011b, p. 19), quando pega sua caneta e rabisca na folha seu nome, identificando-se: "ele retomou minha caneta, observou minha página, e então nela escreveu seu nome: Jahija Smajié". Elas, por sua vez, construíram uma assinatura própria.

Minha assinatura também se fez presente, com meu nome. E o fiz na intenção de que se materializasse, de alguma maneira, outros lugares além daquele enquanto propositora, uma vez que não me propus distanciada, apenas como observadora, ao contrário, também me disponibilizei aos encontros deixando-me afetar por cada uma delas.

Jeanne Favret-Saada (2005, pp. 167-158) conta-nos experiência semelhante quando se aproximou dos rituais de feitiçaria no Bocage:

No começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu "participasse", o trabalho de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas se tentasse "observar", quer dizer, manter-me à distância, não acharia nada para "observar" [...] Nos encontros com os enfeitiçados e desenfeitiçadores, deixei-me afetar, sem procurar pesquisar, nem mesmo compreender e reter.

Este trabalho se tratou de uma mescla entre aquilo que parte de uma experiência pessoal, mas encontra ressonância em outros lugares, tomando outras dimensões, relacionando-se com o político. Então, corri o risco de me misturar, de enfeitiçar-me, tal qual Favret-Saada.

Portanto, minha assinatura apareceu como a de quem se sensibilizou. Sensibilidade essa que se comunica com o que Annemarie Mol (2008) propõe em seu texto The logic of care: health and the problem of patient choice. Ela nos diz, sobre a sua experiência no acompanhamento de pacientes com diabetes, que "examinando uma prática não é uma questão de recolher exemplos adequados, mas de aprender novas lições". E ainda, "um estudo de caso é de maior interesse quando se torna uma parte de uma trajetória". E complementa: "os estudos de caso aumentam a nossa sensibilidade" (posição 350 de 3501).

Ela utiliza a expressão "estudo de caso", mas para o trabalho que se apresentou seria correlato às impressões do diário de campo, ao que experienciamos nas oficinas e o que dali emergiu, trazendo a possibilidade de conexões e marcando a trajetória de criação e desenvolvimento desse projeto, mas também de nossos corpos por terem podido se encontrar e construir essas histórias que com-partilho.

Em consonância a esses aspectos, devo apresentar-lhes uma exceção: Beija-flor e Aya, ambas construíram seus nomes separadamente, apenas em contato comigo. Por isso seus nomes não estão no relato anterior.

Findadas as oficinas e em seguida o término do semestre, dei-me férias. Apenas retomando o contato com todo esse material no início deste ano de 2019, após o Carnaval e em concomitância ao retorno das orientações. E, justamente, nos encontros de orientação compartilhava minha inquietação em relação à não concretização do acordo dos nomes com Aya e Beija-flor e o consequente impasse que se colocava: as invisibilizaria caso não as citasse na dissertação.

Afirmava concluir ser importante e necessário que a escrita pudesse ser integral, deixasse aparecer os furos, os esquecimentos, mas também as presenças, as histórias e marcas que a compuseram, não omitindo suas considerações e experiências. Nesse sentido, me vi decidida a negociar com elas a elaboração de um nome, mesmo que posteriormente.

Receava o que poderia se produzir com isso, principalmente eticamente. Mas intuía que estaria colocando-a de lado se não fizesse o contato com elas. Mandei uma mensagem individualmente para cada uma, explicando que: "estou me reaproximando dos materiais das oficinas e começando a escrever sobre os encontros. A construção do Termo de Consentimento e a escolha de um nome, foi algo elaborado principalmente no último dia de encontros. Como não tivemos a oportunidade de concluí-lo, juntas, conversei com Ana, em orientação, e entendemos que seria cuidadoso - inclusive como afirmação de uma política de escrita - que você pudesse aparecer no texto. Então, com o compromisso de deixar você mais próxima desta pesquisa, eu entendi que seria bacana tentar esse contato para saber se você quer e como quer ser identificada no texto?!"

Essa foi a mensagem enviada. E essa foi a breve troca de mensagens, posterior:

AYA: - Gostaria de ser identificada no texto sim. Às vezes uso o pseudônimo Aya. [...].

EU: - O nome Aya pode ser usado, então?

AYA: - Pode sim!

O mesmo aconteceu com Beija-flor, afirmando ter gostado do período em que pôde participar dos encontros e que gostaria também de contribuir, na construção do nome, sugerindo (tal nome) por conta da música do Cazuza.

 

Considerações finais

Apostamos em um trabalho cujos tema e método colocavam em jogo as diferentes versões da experiência de relacionar-se homoafetivamente com mulheres. Recordamo-nos, a essa altura, de uma conferência na qual Chimamanda Adiche (2011) nos convida, em O perigo de uma história única, a repensar a maneira como tomamos certas histórias verdades únicas e absolutas.

Rememoramos, também, o que Gloria Anzaldúa (2000, p. 233) afirma e nos faz concluir que este projeto presentificou-se como uma aposta e uma provocação:

O perigo ao escrever é não fundir nossa experiência pessoal e visão do mundo com a realidade, com nossa vida interior, nossa história, nossa economia e nossa visão. O que nos valida como seres humanos, nos valida como escritoras. O que importa são as relações significativas, seja com nós mesmas ou com os outros. Devemos usar o que achamos importante para chegarmos à escrita. Nenhum assunto é muito trivial.

Afirmamos, então, a decisão de escrever ao lado de, e com, muitas mulheres, misturando as nossas experiências, na tentativa de ocupar a ciência e desestabilizar as verdades que têm se escrito e inscrito sobre nossos corpos para que possamos construir outras histórias, compondo um outro modo de contar, de ocupar e pertencer à história; para, em última análise, que aquelas que há muito foram invisíveis, pois o carinho entre mulheres não era reconhecido como afeto presente e construído por uma relação amorosa,18 possam existir.

Ora, com todos os processos com-partilhados aqui, o que quero mesmo é afirmar liberdade!

 

Referências

Adiche, Chimamada. (2011). O perigo de uma história única. Conferência. Recuperado em 15 julho, 2018, de https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_ single_story/transcript?language=pt.

Anzaldúa, Glória. (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas, 8(1), 229-236.         [ Links ]

Conti, Josselem., & Silveira, Marília. (2016). Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(1), 53-68.         [ Links ]

Coutinho, Eduardo. (2002). Edifício Máster. Direção de Eduardo Coutinho. Brasil, Videofilmes (110min).

Despret, Vinciane. (2011a). Os dispositivos experimentais. Fractal: Revista de Psicologia, 23(1), 43-58.         [ Links ]

Despret, Vinciane. (2011b). Leitura etnopsicológica do segredo. Fractal: Revista de Psicologia, 23(1), 5-28.         [ Links ]

Favret-Saada, Jeanne. (2005). Ser afetado (P. Siqueira, Trad.). Cadernos de campo, 13, 155-161.         [ Links ]

Franco, Luciana. (2016). Por uma política de narratividade, pensando a escrita no trabalho de pesquisa. Niterói: Eduff.         [ Links ]

Hannah, Gadsby. (2018). Nanette. Direção de Jon Olb e Madeleine Parry. Austrália: Netflix, 2018. (69 min).         [ Links ]

Mol, Anemarrie. (2008). The Logic of Care: Health and the Problem of Patient Choice. New York: Routledge.         [ Links ]

Monteiro, Ana Claudia., & Nardelli, Renata. (2018). O ensino das emoções cabe na sala de aula?. VII Congresso da Alfepsi, Rio de Janeiro, 3, 101-113.

 

 

Recebido em: 29/10/2019
Aceito em: 20/10/2021

 

 

1 Trabalho realizado sob orientação de Ana Claudia Monteiro, vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense na área de Psicologia, defendido em 4 de Setembro de 2019, cujo título é Diferentes versões de ser-estar mulher que se relaciona amorosa-afetivamente com mulheres: com-partilhando experiências.
2 Coletivo entre-tempos é composto só por mulheres. Somos: Gabrielle Chaves, Helena Brandão, Mariana Carvalho, Paula Fabrino e eu, Renata Nardelli. Ao todo cinco psicólogas. Unimo-nos desde março de 2016 para pensar e experimentar como tornar possível uma afinidade, um desejo comum: como criar espaços de promoção de outros modos de relação com o tempo, com nossos próprios corpos, conosco. E, em consequência, como com-partilhar dessa experiência. Desde então temos realizado periodicamente oficinas (com duas, três ou seis horas de duração) de experimentação sensório-afetiva. Para esses trabalhos, utilizamos como referência e inspiração, principalmente, os trabalhos de Lygia Clark e Angel Vianna. Contudo, transitamos conjuntamente por diferentes universos, como o da consciência corporal, da yoga, bioenergética, dos feminismos decoloniais, das pautas raciais e de outras minorias, além do mergulho no estofo teórico que acompanha essas práticas e aquelas advindas das nossas formações na graduação.
3 Experimentações Sensório-Afetivas é a expressão utilizada para nomear ao que se pretendem as oficinas. Isto é, a construção de um espaço de cuidado coletivo, em que os encontros tomam como inspiração para sua realização técnicas de respiração, algumas do teatro, influências dos trabalhos de alguns artistas como a Lygia Clark, além de poesias, músicas e tudo o que a criatividade permitir. São, portanto, encontros em que há a partilha dos afetos, o despertar das sensações e dos sentidos a partir do exercício de disponibilizar-se.
4 Utilizo aqui a expressão versões em diálogo com o que Vinciane Despret (2011a) nos narra em seu texto Os Dispositivos Experimentais.
5 Abreviação para lésbicas e bissexuais.
6 Ana Claudia Lima Monteiro, minha orientadora.
7 O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), resumidamente, é um documento básico de protocolo uma vez a pesquisa submetida ao comitê de ética.
8 Fita de moebiüs é definida como um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efetuar meia volta em uma delas. Ver imagem em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-45659225.
9 Obra tal qual a artista propunha, só se concretiza pela ação de cada pessoa. O desejo da artista, e o meu, é que cada uma possa experienciar a própria ação criadora.
10 Artista brasileira que se dedicou na pesquisa sobre os limites da pintura e da escultura à investigação sobre o corpo. "Lygia Clark (1920-1988) foi uma das fundadoras do Grupo Frente, marco histórico do movimento construtivo no Brasil. Depois, abandonando rótulos e escolas, passou a denominar-se 'não artista', radicalizando conceitos. Com o desenvolvimento de experiências sensoriais, ela estendeu os limites de compreensão da obra de arte, agregando-lhe contornos terapêuticos" (texto retirado do site Itaú Cultural, da curadoria da exposição Lygia Clark: uma retrospectiva). Recuperado em 11 julho, 2019, de https://www.itaucultural.org.br/lygia-clark-uma-retrospectiva-observe-interaja-participe-da-arte.
11 Confeccionei um caderno sem capa, apenas com um miolo de 24 folhas, costuradas à mão. A intenção da realização deste era que pudesse servir, para além de um objeto-lugar de registro, como canal de passagem para algum incômodo, memória, compartilhamento coletivo. Esteve, portanto, presente em todos os encontros. Ao final de cada vivência em um dia de oficina, algo era registrado nele, coletivamente.
12 Foram caderninhos costurados à mão e tinham capas de cartolinas coloridas, confeccionados por mim. A proposta era que estes as acompanhassem, servissem como uma espécie de diário, um objeto-lugar que elas pudessem acessar ao longo da semana às reverberações dos encontros, com desenhos, colagens, dobraduras, escritas-poema, como quisessem. Diferente do caderno sem capa, este elas poderiam levar consigo.
13 Para mais informações e detalhamento sobre a Resolução n. 466/2012, acessar o site do Ministério da Saúde no link http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html. Para informações sobre a resolução n. 510/2016, acessar o link http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf.
14 Item 4: Qual é o objetivo do estudo? O projeto busca fazer emergir as diferentes versões de ser-estar mulher que se relaciona com mulheres.
15 Eduardo Coutinho (1933-2014), cineasta e jornalista brasileiro, considerado por muitos um dos maiores documentaristas da história do cinema do Brasil. Tinha como marca realizar filmes que privilegiavam as histórias de pessoas comuns.
16 Nome dado ao paciente que em 1890 "se apresenta para consulta no Salpetrière. Ele foi enviado pelo médico da pequena cidade da província na qual ele vive e exerce a profissão de homem de negócios. Charcot o recebeu e o confiou rapidamente ao psiquiatra Pierre Janet" (Despret, 2011b, p. 6).
17 Parte que geralmente não costuma ser evidenciada aos espectadores, no caso do teatro. Uma parte não visível aos olhos dos espectadores, mas extremamente importante para o processo de realização de uma apresentação. Uma das definições possíveis encontradas no dicionário on-line Michaelis (Recuperado de http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=bastidor) para a palavra bastidor foi: "TEATEspaços próximos ao palco, incluindo os corredores, que não são vistos pelo público; caixa de palco, coxias: Nos bastidores, os atores se movimentavam nervosos".
18 Referência à fala irônica de Hannah Gadsby - mulher, branca, nascida na Tasmânia, lésbica e comediante há mais de 10 anos, protagonista do talk show Nanette, filmado e produzido pela Netflix - ao relatar sua experiência ao assumir-se lésbica em sua cidade natal.

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