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Psicologia para América Latina

versión On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  n.5 México feb. 2006

 

LA PSICOLOGÍA EN LA TRASFORMACIÓN EDUCATIVA

 

 

Oficina de criatividade na formação de jovens para ação comunitária

 

Christina Cupertino*

Universidade Paulista em São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A experiência aqui relatada trata da implantação de uma Oficina de Criatividade como atividade regular para formação de mediadores em um programa de atendimento a crianças da periferia de São Paulo. As Oficinas de Criatividade são uma forma específica de atuação situada na confluência das áreas da Psicologia e da Educação que vêm ocupando um espaço significativo, seja como prática, seja como alvo de estudos acadêmicos. Dirigida a 20 jovens mediadores e monitores de uma ONG da zona Norte de São Paulo, essa intervenção complementa estudos sobre o emprego de recursos expressivos, estendendo-o a jovens em processo de formação para uma área que se consolida a cada dia: a ação comunitária. As Oficinas propiciaram o aprimoramento do conhecimento de si e dos outros, a discussão das condições de vida e de trabalho, a sensibilização para a atenção ética à diversidade, e possibilidades de inserção social a partir da formação oferecida.

Palavras-chaves: Oficina de criatividade, Psicologia comunitária, Formação em serviço.


ABSTRACT

This research had as objective to investigate a Creativity Workshop offered as a regular activity in a training program for mediators of an attendance program directed to children of the suburbs of São Paulo. The Creativity Workshops are a specific form of intervention in the confluence of the areas of Psychology and Education that have been occupying a significant space as target of academic studies. Directed, in this inquiry, to 20 young mediators and monitors of a NGO of the North side of São Paulo, this intervention complements the study on different forms of using artistic resources, extending them to a segment of youngsters in a training program for communitarian action. The Workshops resulted in the improvement of self knowledge and knowledge of others, with discussions about the conditions of life and work of the adolescents, ethical attention to diversity, and possibilities of social insertion.

Keywords: Creativity workshops, Community psychology, In-service training.


 

 

Introdução

A experiência aqui relatada descreve e analisa uma exemplo de utilização de Oficinas de Criatividade: como atividade de formação e suporte psicológico para adolescentes de um programa de atendimento a crianças da periferia de São Paulo. Pretende complementar o estudo sobre as variadas formas de emprego dos recursos expressivos artísticos, característicos das oficinas de criatividade (Cupertino, 2000; 2001), estendendo-o a um segmento de jovens em processo de formação para a ação comunitária, uma área que se consolida a cada dia.

Há mais de dez anos venho conduzindo grupos de Oficina de Criatividade para vários segmentos da população, entre os quais adolescentes em situação de risco, e em todos os casos as Oficinas vêm se mostrando como um precioso recurso de formação e suporte psicológico.

Podemos definir a Oficina de Criatividade como uma forma específica e recente de atuação psicológica, situada na confluência das áreas da Psicologia e da Educação. Ou seja, ela tem ao mesmo tempo uma função formadora e de sensibilização. É um lugar propício à experimentação, cujos objetivos são promover a exploração de variadas formas de expressão; facilitar o autoconhecimento e o conhecimento e a aceitação do outro enquanto alguém diferente e, conseqüentemente, favorecer uma inserção social baseada na ética; ajudar a reconhecer o papel dos afetos na vida, nos processos de aprendizagem e nas práticas profissionais. É um trabalho, portanto, diferente de outras oficinas, uma vez que não desenvolve nenhuma habilidade específica, mas promove a apropriação da capacidade de transformação dos participantes com relação a eles mesmos e/ou aos ambientes nos quais estão inseridos.

Constituem-se como atendimentos grupais, orientados por um facilitador, e baseados no uso de recursos expressivos de natureza artística. A produção por meio desses recursos expressa e torna explícitos sentimentos, valores e preconceitos dos participantes, que podem assim ser discutidos e elaborados.

As Oficinas de Criatividade vêm ocupando um espaço significativo, seja como prática, seja como alvo de estudos acadêmicos (Cupertino, 2005), em contextos educacionais ou na área da prevenção, manutenção ou recuperação da Saúde. As oficinas são descritas como vivências promotoras da integração do indivíduo e da ressignificação da vida (Jordão, 1999), como espaço para novos modos de escuta para os problemas vividos (Carvalho, 2000) e para a facilitação da aquisição de conhecimento integrado ao autoconhecimento, em formas mais internalizadas de aprendizado (Bernardo, 2001). Entre seus efeitos estão a expansão da possibilidade de expressão de afetos e sentimentos por meio da produção, concomitante à descoberta de aspectos pessoais desconhecidos, tornados aparentes nas obras concluídas ou durante o processo de execução. Promovem trocas significativas geradas de modo mais espontâneo, em ambientes facilitadores e facilitam a constituição de territórios comuns compartilhados, associada à aceitação da diversidade manifesta em particularidades e diferenças individuais (Schmidt & Ostronoff, 1999).

Esses argumentos justificaram a escolha da Oficina de Criatividade para jovens voltados para a ação comunitária, como uma forma de intervenção junto a esse segmento com a intenção de propiciar o espaço e a ocasião para que descobrissem e explorassem suas possibilidades de desenvolvimento e capacidade de transformação.

 

Juventude, exclusão e inclusão

Segundo Calligaris (2000), “a adolescência se constituiu como objeto autônomo de perplexidade, reflexão e pesquisa” a partir de 1904. Hoje em dia é impossível falar de uma única adolescência, diante da pluralidade de adolescentes que vemos diante de nós cotidianamente (Novaes, 2003). São inúmeras as formas de entender a juventude, e ainda existe a noção de uma passagem problemática da infância para a adolescência, ou crise. No entanto, a visão da adolescência é cada vez menos permeada pela consideração de que ela faz parte de um ciclo de vida igual para todos. Parece firmado o consenso de que os conceitos de adolescência e juventude são construídos histórica e culturalmente (Novaes, 2002), e há que se considerar a diversidade dos contextos sociais, econômicos, culturais para definir qualquer um dos dois segmentos (Martins, 2002).

O cenário e o status da juventude contemporânea integram três diferentes aspectos: a dissolução da família como célula fundamental da organização social, a falência das instituições e a definição da juventude como segmento social com características próprias. A juventude passou a ser encarada como um segmento constituído por interlocutores hábeis para a tomada de decisões, que tem voz ativa e que deve ser endereçado em sua condição de autonomia.

Os jovens, por sua vez, organizam-se em movimentos específicos, que variam de acordo com as particularidades de cada contexto: “…só no século atual registraram-se alguns movimentos com propostas propriamente juvenis, à medida que estabeleciam limites de adscrição/diferenciação entre suas opções e as dos adultos.” (Arce, 1999, p. 75). Exemplos desses modos de articulação são a beat generation dos anos 50 e, depois disso, os punks ingleses e as gangues de negros e hispânicos americanos que, mais recentemente, assumiram uma vertente mais pacífica com o movimento hip-hop. Todos eles criam fronteiras ao mesmo tempo em que oferecem estrutura e pertencimento no lugar antes ocupado pelas principais instituições de sustentação da sociedade.

A abrangência e a força de todas as circunstâncias que levam à exclusão fizeram com que Duschatzky e Corea (2002) forjassem um contundente conceito, mais explícito e mais duro: o de “expulsão social”, que denuncia uma produção que engloba o estado de quem está expulso e o processo que possibilitou a expulsão. Por essa perspectiva, os jovens habitantes das periferias das grandes cidades não são alvo apenas de uma carência de bens materiais ou culturais, ou de condições objetivas de vida, mas de possibilidades de afiliação e de horizontes existenciais, presentes ou futuros.

A exclusão de uma parte significativa da população jovem brasileira pode ser constatada e discutida a partir de variados ângulos, isolados ou combinados: a classe social, a condição econômica, a relação escola/trabalho (ou seja, quando e como se constitui a necessidade de trabalhar). São também fatores de exclusão/inclusão a raça e o gênero e, mais recentemente, o local de moradia. Mais recente ainda é uma outra condição, que já atinge parte da juventude, definida pelo fato de ter participado de programas sociais, o que passa a designá-los como uma população diferenciada, alterando a relação entre inclusão e exclusão (Novaes, 2003).

Pesquisa realizada com meninos e meninas brasileiros entre 15 e 18 anos mostrou que a construção da identidade cultural ainda se constitui nos espaços da família, da escola, da rua, e da comunidade onde vivem, entre outros lugares constantemente atravessados por questões ligadas à pobreza, à violência e ao trabalho (Guareschi e Bruschi, 2003).

A constatação da situação crítica da qual jovens e adolescentes são alvo, mais o afeto a eles dirigido baseiam a criação e o funcionamento de programas sociais voltados à educação e à socialização. De acordo com Abramo (2003), essa oferta deriva de uma concepção moderna através da qual é função do jovem preparar-se para o futuro, “e seu espaço “natural” são as instituições formadoras, em espaços protegidos, disciplinados, […] e não o “mundo solto” e conflituoso da rua, do público, de contatos e referências não controláveis” (p. 221).

No Brasil são vários os projetos que visam oferecer oportunidades de acesso para crianças e jovens ao ensino e educação, à cultura, à arte, ao exercício de cidadania, ao esporte e lazer e ao mercado de trabalho. Eles incluem atividades esportivas, culturais e de lazer, oficinas de arte e cultura, atividades que envolvem a preparação para o trabalho e outras. Procura-se desenvolver capacidades físicas e cognitivas, noções de valores de solidariedade, convivência em grupo, cidadania e participação social. Entretanto, não existe neles um espaço sistemático para o suporte psicológico e afetivo que pode ser oferecido pela Oficina de Criatividade.

 

A Oficina na Gol de Letra

Com base nas constatações acima foi planejada a Oficina de Criatividade oferecida como parte da formação regular aos mediadores e monitores da Fundação Gol de Letra: uma atividade voltada para a criatividade de quem pode mobilizar seus melhores recursos para criar um vida melhor. Ela foi feita em 16 encontros quinzenais, distribuídos ao longo de um ano, com dois grupos de dez adolescentes, mediadores e monitores encarregados de conduzir, junto com educadores, as atividades rotineiras da Fundação, organização não governamental fundada em 1998 pelos jogadores de futebol Raí e Leonardo, ambos com expressivas carreiras no futebol brasileiro e internacional.

Os temas trabalhados foram escolhidos primeiro a partir do contrato feito com a coordenação, e depois com base no funcionamento dos grupos. Foram planejadas atividades usando recursos expressivos variados, como colagem, desenho e pintura, fotografia, músicas, poesias, textos literários, feitos ou não por eles.

“Não existe nada pior que alguém querendo fazer o bem, especialmente o bem aos outros. O mesmo se aplica aos que ‘pensam bem’, com sua irresistível tendência a pensar por e no lugar dos outros. Encouraçados em suas certezas, eles não têm espaço para dúvidas. E é claro que não apreendem a complexidade da vida. A coisa em si não teria tanta importância se esses donos da verdade, intitulando-se detentores legítimos da palavra, não decretassem o que a sociedade ou o indivíduo ‘devem ser’.” (Maffesoli, 2004, p. 11). É dessa premissa que parto para analisar o que aconteceu nessa oficina, a partir de categorias derivadas dos objetivos definidos para a sua implantação e seus desdobramentos.

A Oficina de Criatividade foi oferecida a dois grupos diferentes, de manhã e à tarde, que tiveram desenvolvimento diferenciado em vários momentos. A formação dos grupos variou bastante, principalmente na segunda fase do atendimento quando, já próximos do desligamento de suas funções na Fundação, alguns jovens passaram a procurar emprego fora dela. Pessoas saíram, pessoas mudaram de função e outras, novas, entraram. Os grupos sofreram alterações obedecendo ao vaivém habitual da instituição, que escapava a qualquer pretensão de controle. A freqüência dos mediadores e monitores foi constante, e vários deles manifestaram seu desagrado quando, por alguma razão, faltaram e perderam alguma atividade.

 

A Oficina como suporte psicológico

O suporte psicológico para conflitos e descobertas ocasionados pelo trabalho na Fundação, ou pela vida de forma geral, teve lugar central nesse atendimento, e em torno dele circularam todos os outros. Foi possível estabelecer progressivamente um clima de confiança e a conseqüente abertura para diferentes assuntos, a partir de uma relação inicial de estranhamento. Os mediadores e monitores não estavam confortáveis no início, em parte por terem, como disseram, uma imagem ameaçadora de psicólogos em geral. Aos poucos, e devido a algumas fortes lideranças, o clima de confiança se consolidou.

Algumas atividades serviram para desencadear conversas bastante profundas sobre experiências vividas pelos meninos e meninas do grupo, que cresceram e vivem em ambientes nos quais predomina a violência, seja em suas próprias casas, seja na comunidade. Falamos sobre seus medos, relacionados à perda dos entes queridos e à insegurança quanto ao futuro, concretizada principalmente como falta de emprego. Foram relatadas, de forma emocionada e emocionante, situações de desrespeito, desqualificação, agressão física e psicológica das quais eles são protagonistas, alvos ou espectadores, desde pequenos, e pudemos refletir juntos sobre a forma como isso os afeta.

Esses meninos e meninas são certamente sobreviventes do circuito da violência. Convivem cotidianamente com ela. Perderam pessoas queridas em função dela. Alguns têm pais (e mães também, entenda-se) extremamente violentos, ou irmãos, ou familiares com os quais convivem no mesmo quintal. Vivem na proximidade de criminosos, às vezes assassinos que cumprem pena, mas que eles consideram pessoas “muito legais”. Já foram ameaçados por familiares com armas como facas, assim como já ameaçaram, o que nunca diminuiu o apreço e o amor que sentem por essas pessoas, que consideram a referência mais importante que têm na vida. Figueiredo (1998) traduz essa situação ao diferenciar a violência instrumental (“aparentemente explicável“, como a que se usa para roubar), da paradoxal (por exemplo, matar uma vítima indefesa), afirmando que a ocorrência freqüente de ambas acaba por conduzir a uma condição que torna a violência invisível para os que com ela convivem no dia a dia.

Além dessas formas de violência, mais radicais, o modelo de adulto/educador que os mediadores tinham introjetado era o de uma pessoa que agride para conseguir o que quer, que educa pela dominação, que subjuga e domestica o educando. Assim agia a maioria dos adultos que os cercava, e aqueles que cuidaram de sua educação até sua passagem pela Gol de Letra: pais e familiares, principalmente, e profissionais de educação das escolas que freqüentaram, com honrosas exceções. E é desnecessário fazer menção ao estereótipo negativo e por vezes caricato de figuras de autoridade como policiais e legisladores.

O contraponto para essa condição é o contato com experiências onde a negociação e a troca podem ser vividas: "A violência se aprende, como se aprende a praticar e orientar-se para a paz." (Soares, 2004). O aprofundamento da discussão sobre as experiências vividas, possível em nossos encontros pela ausência de julgamentos, permitiu a troca de opiniões, a convivência de pontos de vista diversos. Trabalhamos com as agressões das quais os participantes dos grupos eram alvo ou que presenciavam, elaborando com eles como se sentem as pessoas que delas são vítimas. A discussão das formas mais evidentes de agressão que utilizavam no grupo, que eram a ironia e a desqualificação, propiciou vários momentos de reflexão, e abriu caminho para conversarmos sobre atitudes mais adequadas para aqueles que têm a tarefa de educar ou cuidar de alguém.

Se a agressividade e a violência ocuparam espaço significativo como preocupação subjacente às possibilidades de futuro dos jovens, no convívio durante a Oficina a predominância foi das trocas afetivas, alicerçando essas mesmas perspectivas. Houve espaço para produções relacionadas a vários temas, como o papel desempenhado pela Gol de Letra na vida deles, por exemplo. Se no início a relação com a Fundação aparecia como situação transitória para o que desejavam fazer futuramente, no final, quando estavam mais perto de deixá-la, seu papel foi percebido como fundamental.

Ficou clara a pressão à qual alguns se sentiam submetidos (independentemente dessa pressão acontecer de fato ou não), por se considerarem depositários das esperanças de ascensão de suas famílias, muitas vezes desestruturadas. Assumir a posição de tábua de salvação era, para alguns, um fator paralisante e de estreitamento das possibilidades de exploração de alternativas, uma vez que “ser bem sucedido” é uma afirmação que paira em suas vidas como pano de fundo vago e indefinido, como objetivo último de qualquer opção. Ao mesmo tempo, essa preocupação demonstra como esses jovens, ao chegarem à Gol de Letra, já mostram uma diferenciação com relação aos demais da comunidade, e até dos que fazem parte de suas famílias. Eles já se apresentam estruturados para compreender que precisam combater as condições adversas, que não são poucas, confirmando o que diz Soares (2004): “… no Brasil, uma cultura jovem já plantou e colheu no solo que, espontaneamente, sua história mesma sedimentou. Já há um modelo de jovem alternativo, em pleno funcionamento nos bairros pobres, nas vilas, favelas e periferias.” (p. 153)

Os jovens se apropriaram com desenvoltura, a cada encontro, do espaço físico (e existencial) oferecido a eles, assumindo seus lugares para a realização das atividades, em subgrupos, conversando à vontade. Essa foi, para eles, uma característica positiva da Oficina, na qual seriedade, profundidade e compromisso não estavam obrigatoriamente associados à formalidade. O ambiente na Oficina era descontraído e isso, ao invés de prejudicar o desempenho nas atividades, o facilitava, deixando-os à vontade e livres para expressar o que quisessem, pois sabiam que sua produção seria aceita e discutida, mas não criticada. Esse é um dos princípios fundamentais da Oficina: a descontração deve ser encorajada, porque é uma condição facilitadora para a expressão, seja criativa, seja afetiva, na medida em que cria um contexto de confiança e troca.

Como espaço para o desenvolvimento da sociabilidade e dos laços afetivos, a Oficina atingiu o objetivo de proporcionar as condições para que os participantes estreitassem as relações entre eles, conhecendo melhor tanto os colegas quanto os efeitos que suas próprias ações e comportamentos têm sobre os demais. Aconteceram momentos de genuína solidariedade e apoio diante do que aparecia, como a descoberta de competências, carências e fragilidades dos companheiros, até então desconhecidas.

 

A Oficina como complemento da formação

Esse item refere-se à condição que caracteriza esse trabalho como o lugar para o aprimoramento das relações interpessoais e reflexão sobre outros elementos que compõem a formação, nesse caso os outros “cursos” voltados para a ação social. Com relação a ele, a Oficina atingiu o objetivo já discutido de permitir que os participantes estreitassem as relações entre eles, facilitando o contato no cotidiano. Esse foi um aspecto reconhecido por todos: que é importante terem um momento para entrar em contato e conhecer melhor os colegas, coisa que no dia a dia não é possível, pois estão ocupados com seus afazeres. Nesse sentido, o uso de recursos artísticos para expressão desempenhou uma função vital. Nos trabalhos produzidos pudemos ver, condensadas, características e processos que só através dos trabalhos mesmos se tornam evidentes, uma vez que transcendem a possibilidade de expressá-los pela fala racional, logicamente organizada. A produção também traduziu, plasticamente e de modo bastante visível, a diversidade, manifesta na variedade de opções de vida retratadas pelos participantes, constituindo-se num exercício de atenção e respeito às diferenças.

Os encontros foram ocasiões para que eles discutissem e incorporassem elementos aprendidos em outras atividades, num movimento de aprofundamento da reflexão proposta em outros contextos da formação. Ao mesmo tempo a Oficina, como lugar de descontração, na qual o aprendizado acontece sem a (sem dúvida necessária) avaliação da formação tradicional, permitiu que valores e preconceitos fossem questionados e, muitas vezes, revistos. Nesse sentido eu mesma, por encarnar “o diferente” deles em praticamente tudo, abria um campo de debate, porque o simples fato de eu estar lá e conversar com eles apresentava perspectivas sobre as quais nunca pensaram, apenas porque meus pontos de vista eram, naturalmente, outros.

Nos últimos encontros o assunto do desligamento de muitos deles da Fundação assumiu posição de destaque, desencadeando sentimentos ambivalentes. Todos eles manifestavam a um só tempo reconhecimento pelos benefícios que puderam obter, e que sabiam identificar com clareza, e a esperada manifestação de depreciação do lugar que estavam a ponto de deixar (ou que estava a ponto de deixá-los), que não deu a eles “o devido valor”. Foi possível identificar a existência de três grupos com posições distintas quanto a esses sentimentos.

Um grupo, mais maduro, conseguiu identificar as portas que foram abertas e pretendia utilizar o que foi aprendido para encaminhar a vida futura. Os participantes desse grupo se identificavam com alguma área de atividade que desenvolveram na Fundação e pretendiam dar continuidade a ela. Os jovens sabiam das dificuldades que eventualmente teriam que enfrentar, mas estavam dispostos a aproveitar as oportunidades que foram oferecidas.

Outro grupo sentia-se parcialmente qualificado, mas não se identificava com as áreas que puderam desenvolver. Nesse grupo estavam os que enumeravam as opções futuras de forma aleatória, “atirando a esmo”. Eram principalmente esses os que reconheciam o que receberam da Gol de Letra, mas que, em outras ocasiões, tratavam sua permanência na Fundação quase que como um emprego mal remunerado, que não permitiu que investissem em alguma coisa que pudessem usar agora. Era como se a indefinição de cada um pudesse ser atribuída a alguma coisa externa (a Fundação), que ainda não tinha oferecido condições suficientes para que pudessem resolver o que fazer; como se, inconscientemente, estivessem pedindo mais tempo, que não fossem desligados agora, porque ainda não sabiam o que fazer.

Os demais mostraram dificuldade em pensar no futuro, por uma visão muito negativa que tinham de si mesmos. Esses jovens consideravam-se como pessoas “que não servem para nada”, identificando poucas possibilidades de desenvolvimento quando estivessem por sua própria conta. Esse foi um ponto que identifiquei como crucial, pois para alguns desses meninos e meninas, existia um abismo entre a vida de todo dia e o que foi desvelado pela Fundação como possibilidade. Entre o mundo vislumbrado nas atividades de formação e a existência cotidiana não parecia haver, para alguns, ponte possível, interna ou externa. Eram a minoria, justamente os que mais preocupavam, pela união das precárias condições externas – familiares e sociais – em que viviam e pela percepção que tinham de possuir escassos recursos pessoais.

 

“Não adianta querer ser, tem que ter prá trocar”

Dizem os rappers Racionais MCs: Não adianta querer, tem que ser, tem que dar, o mundo é diferente da ponte prá cá. Não adianta querer ser, tem que ter prá trocar, o mundo é diferente da ponte prá cá.

Esse “Tem que ser, tem que dar, não adianta querer ser, tem que ter prá trocar” fala da condição de oposição e convite à transposição que vivemos em programas sociais que pretendem oferecer as alternativas para que os adolescentes façam a passagem para um mundo que não é o deles.

Martins (2000) identifica essa cisão entre mundos como constitutiva das sociedades “em desenvolvimento”, divididas entre o tradicionalismo – entendido como manifestação anômala – e a modernidade, que deve superá-lo. Segundo ele, a modernidade é constituída pelo ritmo desigual do desenvolvimento, por um lado, do avanço tecnológico e do acúmulo de riqueza, e por outro, do crescimento da miséria “dos que têm fome e sede de justiça, de trabalho, de sonho e de alegria.” (p. 20). A desigualdade é dela elemento constitutivo, e tem impacto na experiência dos excluídos (Auyero, 2001).

“A modernidade anuncia o possível, embora não o realize.” (Martins, op. cit., p.20). Por um lado, oferece os elementos da realização pessoal, tornando-os visíveis para todos, enquanto falha em oferecer os recursos para que todos a eles tenham acesso. Fazer a passagem é atribuição de cada sujeito isolado. Remetendo essas afirmações à prática psicológica tradicional, Bock (2003) denuncia a falta de compromisso social da categoria, que tem como pressuposto para o sucesso de suas práticas a crença na capacidade e responsabilidade do indivíduo de promover seu próprio desenvolvimento. O psicólogo, nesse sentido, vê a si mesmo como mero coadjuvante desse processo, por considerar inapropriado assumir a necessidade de intervenções mais diretas que visem, ao contrário da correção e da cura, a prevenção e a promoção da qualidade de vida das pessoas.

A Oficina de Criatividade oferecida na Fundação Gol de Letra mostrou outras possibilidades de relação entre e com os “clientes”, e também de exercício da profissão de psicólogo, no sentido de que nela foi possível promover a inserção dos adolescentes em uma rede de apoio e de troca, onde a figura do psicólogo pode ser também incluído, e na qual os significados das experiências puderam ser compartilhados, os problemas e as soluções divididos, e cada participante não precisava buscar as saídas sozinho. Ao propiciar o suporte para que os meninos e meninas da Gol de Letra pudessem se apropriar de suas possibilidades a Oficina cumpriu a função, descrita por Jordão (1999), de “devolver ao indivíduo esse caráter de inserção, de produção, de sonho, de recuperação de sua alma.” (p.331).

 

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Endereço para correspondência
Endereço para correspondência
E-mail: christina.cupertino@terra.com.br

 

 

* Doutora em psicologia pela PUC-SP, pesquisadora e supervisora de estágio na Universidade Paulista em São Paulo.

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