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Psicologia para América Latina

On-line version ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.5 México Feb. 2006

 

NIÑOS Y JOVENES DEL SIGLO XXI

 

O estudo da exploração sexual de crianças e adolescentes por meio de documentos de domínio público

 

 

Sônia M. Gomes Sousa

Universidade Católica de Goiás (Brasil)

 

 


RESUMEN

La explotación sexual en términos comerciales de los niños y de los adolescentes es un fenómeno que ocurre mundialmente y tiene movilizado diversos sectores de la sociedad de varios países con la clara intención de intentar la búsqueda de posibles soluciones para el combate al carácter cruel de esa forma de explotación humana. Fue realizada en 1993, en el parlamento brasileño, una Comisión Parlamentar de Investigación (CPI) orientada en sentido de investigar el problema de la explotación sexual de los niños y adolescentes. El presente artículo demuestra el trayecto metodológico emprendido en el análisis de las declaraciones de los deponentes de la CPI. Las anotaciones taquigráficas entendidas como documentación del dominio público, además de ser la expresión de la “ideas circulantes” concernientes la explotación de los niños y de los adolescentes, también permiten desvelar la tensión dialéctica de la constitución de la subjetividad.

Palabras clave: Psicología Social, Metodología, Teoría Socio-Histórica.


RESUMO

A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é um fenômeno que ocorre em esfera mundial e que tem mobilizado diversos setores da sociedade de vários países no sentido de se discutir encaminhamentos para combater essa cruel forma de exploração humana. No Brasil foi realizada em 1993 a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar o fenômeno. Este artigo apresenta o percurso metodológico empreendido na análise dos discursos dos depoentes da CPI. As notas taquigráficas compreendidas como documentos de domínio público, além de serem expressão das “idéias circulantes” sobre a exploração sexual contra crianças e adolescentes também permitem desvelar a tensão dialética da constituição da subjetividade.

Palavras-chave: Psicologia Social, Metodologia, Teoria Sócio-Histórica.


ABSTRACT

The commercial sexual exploitation of children and adolescents is a phenomenon that occurs in a world-wide sphere and has mobilized diverse sectors of the society of some countries in the direction of if arguing directions to fight this cruel form of human being exploitation. In Brazil, the Legislative Inquiring Committee (CPI), which was carried through in 1993, was designated to investigate this phenomenon. This article presents the undertaken methodological passage in the analysis of the deponents` speeches of the CPI. The notes, understood as documents of public domain, besides being the expression of the "circulating ideas" on the sexual exploration against children and adolescents also allow revealing the dialectic tension of the subjectivity constitution.

Keywords: Social Psychology, Methodology, Social-Historical theory.


 

 

Introdução

A infância pobre brasileira ganhou notoriedade social e acadêmica a partir dos anos 80,1 sendo que nessa década o tema de destaque foi o “menino de rua”. Uma série de eventos e situações – como, por exemplo, a instituição do Ano Internacional da Criança em 1979, a criação do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), em 1985, a realização de Encontros Nacionais de Meninos e Meninas de Rua, em 1986 e 1989, a criação do Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA) em 1988, publicações sobre o tema e a entrada em cena de novos atores: “as organizações intergovernamentais (Unicef, OMS, Unesco, ONU), internacionais (várias agências que financiam projetos) e as ONGs nacionais” (Rosemberg, 1995, p. 236) – trouxe a infância pobre para o centro da discussão nacional. Contudo, no processo de discussão, a infância foi-se fragmentando em temas como meninos(as) de rua, extermínio, narcotráfico, adoção internacional, venda de órgãos, tráfico de crianças, violências sexuais e físicas, turismo sexual, gravidez na adolescência e “prostituição infantil e juvenil” (PIJ)2, que passaram a freqüentar cotidianamente a imprensa e saltaram também para as pesquisas acadêmicas e não-acadêmicas.

A realização do Ano Internacional da Criança em 1979 e o processo de abertura política vivido pelo Brasil nos anos 80 certamente colaboraram para que segmentos da sociedade – profissionais e leigos – retomassem a discussão sobre a infância brasileira. Essa discussão inicialmente foi desencadeada pela “descoberta” de crianças e adolescentes institucionalizados e um pouco depois, em meados da década de 1980, do fenômeno denominado “meninos de rua”. Na década de 1980, algumas pesquisas começaram a chamar a atenção para o fato de que a população de rua não era constituída apenas de crianças e adolescentes do sexo masculino e sim de ambos os sexos e que era necessário levar em consideração essa especificidade do sexo feminino. A partir daí, ao se investigar o mundo do “menor de rua” começa-se a demarcar a existência das “meninas de rua”.

Essas pesquisa caracterizam as “meninas de rua” de uma forma ampla, tanto as que convivem com a família, as que vivem em bandos na rua, perambulando, as que estão à espera de cliente na zona ou nas calçadas, quanto as que participam de programas oficiais ou alternativos ou estão recolhidas em instituições fechadas. Afirmam ainda que a inserção da “menina” na rua é gradual e que ela sai de casa por desejar liberdade, por sofrer violências e/ou por auto-punição.

A temática da PIJ surge, pois, do estudo dos grupos de crianças/adolescentes institucionalizados e/ou da/na rua e gradativamente vai ganhando um espaço de investigação próprio.

No início da década de 1990, no Brasil, o tema que mais se destacou no cenário das denúncias contra as situações de exploração a que eram submetidas às crianças e adolescentes das camadas populares e que foi objeto da pressão exercida por diferentes entidades/instituições nacionais e internacionais foi a PIJ. Esse quadro culminou, na criação em 1993, da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara Federal. No período de 27 de maio de 1993 a 9 de junho de 1994, a CPI ouviu, em depoimentos públicos ou secretos, centenas de pessoas (crianças, adolescentes e adultos), fez diligências por vários estados brasileiros, mobilizou a opinião pública e, por fim, apresentou, em 9 de junho de 1994, à Câmara dos Deputados e à sociedade de uma forma geral seu relatório final. Participaram como depoentes homens e mulheres das mais diversas formações e convicções políticas, acadêmicas e religiosas representantes de entidades que atuam na área da infância/adolescência.

A pesquisa – Prostituição infantil e juvenil: uma análise psicossocial do discurso de depoentes da CPI – (SOUSA, 2001) objetivou apreender os significados de PIJ contidos nos depoimentos documentados nas notas taquigráficas3 registradas durante as audiências públicas na Câmara Federal destinada a “apurar responsabilidades pela exploração e prostituição infanto-juvenil”.

Neste artigo busca-se apresentar o percurso metodológico empreendido – a partir da perspectiva da teoria sócio-histórica de Vygotsky – no sentido de compreender criticamente os discursos dos depoentes convocados a depor pela CPI.

 

Os documentos de domínio público

Esses discursos (2.348 páginas de notas taquigráficas) são vistos aqui como uma passagem que dá acesso às concepções de infância, adolescência, sexualidade, família, sociedade, prostituição que perpassam a discussão sobre a PIJ no cenário contemporâneo brasileiro e vão mostrando significados que legitimam políticas públicas, políticas de identidade e de afetividade com relação à infância e adolescência de/na rua e pobres de uma forma geral.

As notas taquigráficas que registram os depoimentos prestados à CPI – como também revistas, jornais, arquivos, diários oficiais e anúncios de publicidade – são considerados documentos de domínio público. Para Spink (1999), investigar os diversos tipos de documentos de domínio público justifica-se porque eles “são produtos em tempo e componentes significativos do cotidiano; complementam e competem com a narrativa e a memória” (Spink, 1999, p. 126, grifos do autor).

Spink (1999) enfatiza ainda que o fato de os documentos de domínio público – enquanto registro – serem públicos, produz uma intersubjetividade coletiva. Com relação à CPI que foi pesquisada, pode-se exemplificar a repercussão social que essa temática teve no Brasil com a ampla cobertura promovida pela imprensa, escrita, falada e televisionada, dos depoimentos prestados à CPI. Ou seja, o que as notas taquigráficas registram é um produto da interação social. São determinadas pelos significados dominantes e pelos interesses e relações de poder em jogo personalizadas nas instituições, mas são também determinantes deles.

 

O método de estudo: a teoria Sócio-Histórica de Vigotski

A concepção de significado adotada fundamenta-se nas reflexões teóricas de Lev Seminovitch Vygotsky (1896-1934), psicólogo russo conhecido por seu esforço em superar os reducionismos teóricos da Psicologia da época, baseados em dicotomias como objetividade–subjetividade, homem–sociedade e significado–materialidade. Com essa preocupação, Vygotsky desenvolveu intensas pesquisas e sistematizou reflexões sobre significado, formação de conceitos e linguagem como atividade mediadora do homem (1987, 1996 e 1998).

Vygotsky não apenas compreende a palavra como resultado do processo sócio-histórico da humanidade, como enfatiza sua indissociabilidade do significado: “Uma palavra sem significado é um som vazio, que não mais faz parte da fala humana” (Vygotsky, 1987, p. 4). Mas não há uma relação direta entre a palavra e o significado, pois a palavra adquire seu sentido no contexto em que surge. A palavra possui, para ele, duas zonas diferentes de transformação: uma zona mais estável e precisa que ele chama de significado e outra mais dinâmica que é o sentido.

O significado, para Vygotsky, não é estático, é um processo vivo, dinâmico, que está em movimento que traduz e reflete a realidade social – sócio-historicamente constituída. Essas transformações sócio-históricas são incorporadas aos significados estabelecidos produzindo dialeticamente novos significados. Assim, “não é simplesmente o conteúdo de uma palavra que se altera, mas o modo pelo qual a realidade é generalizada e refletida em uma palavra” (Vygotsky, 1987, p. 105).

Já o sentido é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta na consciência humana. Por isso, é um fenômeno complexo, móvel e variável, ou seja, modifica-se de acordo com as situações e a mente que o utiliza, sendo quase ilimitado.

Em síntese, significado e sentido são dimensões diferentes da linguagem. O significado é formado pelos sistemas de significação construídos ao longo da história social e cultural; é mais formal e institucional, mas não fixo. Ou seja, o significado é a expressão cristalizada e dicionarizada das palavras; sua mudança, embora permanente, só ocorre de forma lenta e gradual. Já o sentido é formado pela experiência pessoal e social de cada indivíduo, é extremamente dinâmico e se refaz constantemente em cada ato discursivo.

Para Vygotsky, o estudo do significado possibilita o desvelamento e a compreensão da realidade, porque ele se situa na transição do pensamento para a palavra. É, ao mesmo tempo, um fenômeno do pensamento – pois, como conceito e generalização, é uma palavra com significado – e um fenômeno da fala, porque é através das palavras que o pensamento passa a existir.

Assim, justifica-se o propósito e a validade de analisar o discurso da CPI não como algo em si, mas como um discurso que só pode ser compreendido dentro de um contexto social mais amplo, composto por contextos mais específicos que vão explicar as diferenças de sentido. Ou seja, busca-se explicar os significados mais duráveis e as diferenças de sentido desse discurso.

Também é importante compreender esse discurso como algo que não termina quando se encerram os depoimentos à CPI, porque os significados e sentidos, que são dinâmicos, seguem sendo influenciados uns pelos outros; e os novos sentidos gerados pelas situações específicas podem por sua vez criar novos significados. Um bom exemplo desse movimento é a incorporação que os membros da CPI fazem do termo prostituída utilizado por alguns representantes de ONGs em substituição ao termo, até então de prostituta para se referir a crianças/adolescente que se encontram na prostituição.

A este estudo não interessaram os motivos pessoais, subjetivos, mas buscou-se apreender o subtexto presente no discurso coletivo. O sujeito dos depoimentos – sujeito-representante – é coletivo: embora individual no ato do depoimento, cada depoente foi convidado como representante de alguma entidade, nacional ou internacional, para falar sobre o fenômeno denominado PIJ. Portanto, a análise do subtexto enfatizou os motivos políticos e sociais contidos nesses depoimentos.

Na pesquisa, o depoente foi considerado como sujeito-representante, ou seja, alguém que elabora os próprios significados sobre a PIJ, porém eles surgem carregados de marcas das “idéias circulantes” da instituição determinada que representa. Assim, os depoimentos foram vistos por meio da tensão dialética da constituição da subjetividade (indivíduo e sociedade), uma vez que são discursos contraditórios, complexos e adequados para a análise psicossocial que foi empreendida.

 

Procedimentos metodológicos

As premissas da metodologia foram inspiradas nas concepções teóricas apresentadas anteriormente. Buscou-se construir um procedimento metodológico capaz de analisar o discurso dos depoentes (a linguagem, a palavra) como um processo e não como um objeto, pois a palavra é vista aqui como dinâmica e composta de uma multiplicidade de significados que variam sócio-historicamente dependendo do contexto em que é utilizada (Vygotsky, 1998).

Tentou-se realizar uma análise explicativa e não descritiva, por se compreender que a análise explicativa possibilita a revelação das dimensões dinâmicas ou causais, reais, em oposição à enumeração das características externas de um processo (Vygotsky, 1998).

E por último, não se perdeu de vista a compreensão de que a relação do sujeito-pesquisador com o material empírico – as notas taquigráficas – é dialética, pois ao lidar com as informações que os discursos apresentam ele constrói indicadores (Rey, 1999) que são categorias produzidas no processo de construção do conhecimento e que constituem ferramentas fundamentais para a definição de novas zonas de sentido para o problema estudado. Essas zonas de sentido modificam-se em todo o processo de teorização que o sujeito-pesquisador empreende na construção das reflexões sobre a temática pesquisada.

Baseados nesses pressupostos, bem como nas orientações oferecidas por pesquisas do Núcleo de Estudos Psicossociais da Exclusão/Inclusão (NEXIN) para a análise do subtexto e na análise de conteúdo (Bardin, 1977) os procedimentos metodológicos foram realizados em três fases inspiradas na sugestão de Thompson (2000): A) analítico-organizativa; B) interpretativa e C) interpretação da interpretação.

A) Fase analítico-organizativa

Nessa fase, foram identificados os núcleos estáveis de significados e as variações de sentidos em relação ao tema da pesquisa. Ela foi realizada em dois momentos:

1. Seleção dos depoimentos

Após a leitura de todos os textos que compõem as notas taquigráficas da CPI4 – são 2.348 páginas divididas em quatro volumes: Volume I (672 páginas); Volume II (672 páginas); Volume III (672 páginas) e Volume IV (332 páginas) – foram selecionados os depoimentos dos 102 depoentes que participaram da CPI na condição de convocados/colaboradores e que portanto, eram sujeitos privilegiados, fazendo denúncias e/ou discutindo a PIJ.5

Excluíram-se da análise:

a. os convocados para depor, acusados de fazer parte do esquema da PIJ ou das adoções internacionais ilegais, pois o conteúdo de seus depoimentos não continha qualquer discussão sobre o tema da PIJ. Os acusados concentravam-se em defender-se das acusações e os membros da CPI transformavam-se em inquisidores, preocupados em provar, por meio de dados sobre os rendimentos dos acusados (quebra do sigilo bancário etc.), seu enriquecimento ilícito;

b. os convocados para depor, acusados de fazer parte do esquema da PIJ ou das adoções internacionais ilegais, pois o conteúdo de seus depoimentos não continha qualquer discussão sobre o tema da PIJ. Os acusados concentravam-se em defender-se das acusações e os membros da CPI transformavam-se em inquisidores, preocupados em provar, por meio de dados sobre os rendimentos dos acusados (quebra do sigilo bancário etc.), seu enriquecimento ilícito;

c. as crianças e adolescentes, pois, por serem "menores" de idade, o sigilo de seus depoimentos é garantido por lei.

Foram também excluídos na análise das notas os trechos que continham as intervenções de argüição ou de esclarecimento dos deputados membros da CPI que não foram selecionados como sujeitos da pesquisa, porque ocupavam uma posição de “investigadores”, buscando informações e que freqüentemente demonstravam mais interesse pelas questões políticas implicadas na CPI do que propriamente pela discussão da PIJ no Brasil.

2. Sistematização das informações

A sistematização das informações contidas nas notas taquigráficas foi realizada em sete etapas, conforme se segue:

Primeira etapa

Construção de um quadro para a organização e o conhecimento do conjunto dos 102 depoimentos: número do depoente; volume e página em que se encontra o seu depoimento; data do depoimento; local do depoimento, entidade ou instituição que ele representava e o nome do depoente.

Segunda etapa

Realização de leituras “flutuantes” (Bardin, 1977) com o objetivo de tomar contato com os depoimentos através das impressões e orientações que o texto possibilitasse.

Terceira etapa

Construção de um formulário para cada depoimento, objetivando traçar o perfil dos 102 depoentes e dos depoimentos prestados à CPI. Para a organização desses dados, criou-se um banco de dados, utilizando-se o programa estatístico EPIINFO (Deaw et alli. 1996).

Quarta etapa

Leitura dirigida dos 102 depoimentos para o preenchimento dos formulários. Após a leitura, esta etapa dividiu-se em dois momentos:

- inventário dos núcleos temáticos mais freqüentes no discurso sobre a PIJ: concepção de infância, significado de sofrimento, concepção de família pobre, sexualidade infantil, prostituição (modelo adulto, definição, características, causas, conseqüências, cliente, críticas, quem ganha com a PIJ), políticas públicas de combate à PIJ e aspectos gerais: estatísticas, principais argumentos e tipo de discurso e

- escolha dos 41 depoimentos para a análise qualitativa.

Foram excluídos os depoimentos (ao todo 61):

a. que versavam única ou quase exclusivamente sobre outras temáticas que não a PIJ, como por exemplo a adoção internacional ou o narcotráfico, e não continham reflexões sobre a PIJ;

b. excessivamente formais, nos quais os depoentes mostravam-se muito presos ao seu papel profissional, estando ali apenas para cumprir uma exigência legal e

c. que abordavam unicamente a prostituição masculina ou feminina adulta.

Quinta etapa

Leitura e seleção de todos os trechos dos 41 depoimentos selecionados correspondentes aos núcleos temáticos estabelecidos a partir de várias regras de enumeração: presença, intensidade, ausência, insólito. Utilizou-se o seguinte procedimento: no próprio texto da CPI, foram destacados com marca-texto todos os trechos relevantes (núcleos temáticos dos discursos) de cada depoimento. Depois, esses trechos foram xerocopiados e, com eles, construiu-se uma ficha para cada depoente. A seguir, o conteúdo de todas as fichas (núcleos temáticos) foi digitado e armazenado no computador.

Sexta etapa

Organização, por depoente, dos dados de identificação e dos respectivos conteúdos (núcleos temáticos) do discurso trazidos por ele. Sétima etapa

Seleção de todos os discursos dos depoentes sobre um determinado núcleo temático. Por exemplo, o que todos os depoentes selecionados falaram sobre as causas da prostituição infantil e juvenil.

B) Fase interpretativa

Nessa fase, buscou-se o não-explícito do discurso dos depoentes e realizou-se a análise comparativa por núcleo.

A partir dos núcleos temáticos, foram rastreados os discursos comuns, as contradições, o insólito. Como a análise não se ateve unicamente ao conteúdo explícito, buscando igualmente o subtexto, não explícito, também houve a necessidade de analisar-se a retórica, a forma, a estrutura lingüística e identificar o interlocutor, nem sempre explícito. Para tanto, a atenção voltou-se para os lugares sociais de onde os depoentes falavam para ver o que havia de específico nas concepções apresentadas.

Essa fase de processamento dos depoimentos foi utilizada como um roteiro para melhor compreensão do processo analítico que seria empreendido a seguir.

C) A “interpretação da interpretação”

Essa fase corresponde ao que propõe Thompson (2000): “uma interpretação de uma interpretação, (...) re-interpretando um campo pré-interpretado” (p. 359). Ou seja, o pesquisador, ao interpretar os dados de um determinado campo, não está interpretando um campo neutro, mas um campo que expressa significados sócio-historicamente constituídos, dos quais ele – o pesquisador – fará mais uma interpretação. No entanto, essa interpretação deve-se distinguir das interpretações “ingênuas”, pois trata-se de uma investigação científica.

Nessa etapa foram levantadas hipóteses sobre as motivações ideológicas, moralistas e excludentes que marcam os discursos dos depoentes da CPI. Essas hipóteses foram mediadas pela teoria marxista de ideologia, revisitada por Thompson (2000) que afirma que os significados não são ingênuos e que respondem pela luta pelo poder. Para ele, a ideologia refere-se “às maneiras como o sentido (significado) serve, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações de poder que são sistematicamente assimétricas [isto é] relações de dominação” (p.16).

Para a realização dessa fase, foram cotejados os estudos sobre prostituição infantil e juvenil, sexualidade infantil, concepções de infância e sexualidade, sobre as relações de poder entre as idades etc. e os discursos dos depoentes da CPI.

A análise foi mediada também pelas reflexões críticas provocadas pela revisão bibliográfica; pelos estudos produzidos pelo NEXIN sobre a dialética exclusão–inclusão, especialmente sobre a função dos significados como legitimadores da inclusão perversa.

Para essa interpretação, a partir das categorias selecionadas na quarta etapa da primeira fase (sistematização das informações), foram construídos os textos da pesquisa e em cada um deles foi feito o exercício final, analítico e interpretativo do subtexto ético-político.

 

Conclusão

Desenvolver uma visão crítica dos discursos que são aceitos como competentes implica necessariamente interrogar-se sobre as repercussões sociais desses discursos, bem como sobre que interesses eles estão legitimando. Essa atitude talvez possibilite a quebra das fronteiras – artificiais – entre áreas de conhecimento da Psicologia, como a que se estabeleceu entre a Psicologia Social e a Psicologia do Desenvolvimento no estudo da infância e da adolescência.

Enfim, esta pesquisa pretende dar a conhecer os significados presentes nos discursos de depoentes da CPI sobre a PIJ e assenta-se na opção política pela busca de conhecimentos e teorias emancipadoras e humanizadoras da infância e adolescência, que sejam sensíveis aos anseios, necessidades, dificuldades e desejos das crianças e adolescentes situadas sócio-historicamente. Só assim será possível provocar rachaduras na muralha de conhecimentos monolíticos, fossilizados e ideológicos sobre a infância e adolescência e abrir novas perspectivas de se estudar os fenômenos psicossociais referentes a infância e adolescência e intervir nas políticas públicas para a infância e a adolescência brasileira.

O exercício teórico–metodológico empreendido nesta pesquisa – interpretação da interpretação – na busca do subtexto revelou que os depoimentos expressam pontos de vista diversos, refletindo posições políticas contrárias de grupos, instituições e indivíduos no cenário nacional. Eis as principais:

• As ONGs, em regra, colocam-se na defesa dos direitos das crianças e adolescentes pobres, procuram denunciar as situações de abuso e exploração sexual, defendem a criação de espaços sociais para cuidar e zelar da infância e adolescência e criticam a inexistência de políticas públicas para a infância e adolescência brasileiras. No entanto, seu discurso defende mais o atendimento das necessidades da crianças/adolescente na rua ou em instituições do que o combate às causas dessa situação, a luta pelo fim da exclusão social ou da perversa inclusão das crianças/adolescentes pobres.

• O representante do UNICEF atribui, de forma bastante veemente, a responsabilidade pela existência da PIJ ao perfil da cultura brasileira, que é cúmplice da exploração e até incentiva essa prática. Dessa forma, a PIJ é vista como expressão do “atraso” e das “carências” culturais da sociedade brasileira em face do mundo rico e civilizado.

• No discurso da mídia, prevaleceu o esforço no sentido de comprovar com fatos e fotos a existência inequívoca da PIJ e também o de reafirmar a importância da mídia no cenário nacional tanto para denunciar quanto para ‘resolver’ problemas como esse.

• A participação das instituições universitárias mostrou-se bastante reduzida e tímida – talvez a associação implícita da PIJ unicamente com fatores econômicos explique isso. De certo modo, o emprego de uma linguagem especializada, geralmente do jargão psicanalítico, dificulta a compreensão e assimilação do discurso dessas instituições pelos membros da CPI. Talvez caiba aqui uma reflexão com relação aos saberes existentes na Psicologia, que tem sido historicamente associada às necessidades das camadas médias e altas da população e que nem sempre tem se colocado de forma crítica e científica na busca de explicações e soluções para os problemas que atingem a população pobre de uma forma geral. Assim, apesar de a CPI ter convidado/convocado alguns especilaistas para depor – psicólogos, sociólogos, assistentes sociais, educadores, juízes, delegados – o discurso científico, que teoricamente esses profissionais representariam não teve grande expressão, favorecendo-se assim que prevalecesse, para explicar os múltiplos aspectos da PIJ, o discurso moral-religioso – representado pelos diferentes depoentes vinculados direta ou indiretamente a instituições religiosas.

• Os discursos das instituições vinculadas as instituições religiosas – por trabalharem diretamente com as crianças/adolescentes que estão na prostituição – apresentam-se com acentuada marca de denúncia e com ênfase no conhecimento direto/empírico da realidade da PIJ. Embora defendam os direitos das crianças e adolescentes, associam a PIJ à degradação familiar.

• O representante da igreja católica questionou a necessidade de se tirar mais uma “fotografia de uma situação tão evidente” e questionou a moral vigente que propicia o surgimento da PIJ. Também criticou a criação de mais uma CPI e afirmou que o papel do poder legislativo não é o de “fotografar” a realidade, mas o de votar leis e destinar verbas que de fato modifiquem a situação de vida dos pobres brasileiros, entre eles as crianças e os adolescentes.

• Os representantes do poder legislativo tiveram o discurso marcado pelas realizações de CPIs estaduais ou municipais e constroem sua argumentação com as informações obtidas nessas CPIs – números, nomes e datas – comprovando a existência da PIJ. Absorvem o discurso das ONGs e defendem também o uso da denominação prostituída para caracterizar que as crianças/adolescentes foram obrigadas a se “jogarem” nessa vida.

• Os discursos dos representantes dos conselhos são ambigüos. Se, por um lado, apontavam vários fatores como causadores da PIJ – subemprego, baixa auto-estima, uso de drogas, o abuso sexual intrafamiliar e o êxodo rural – por outro culpabilizavam sobremaneira as famílias que são “desestruturadas”. Alguns desses depoentes chegam a defender o trabalho infantil como estratégia pedagógica da disciplinarização dos corpos e mentes infantis.

• Os discursos dos representantes da polícia civil e federal também culpabilizavam as famílias e sentem uma certa frustração com o desempenho no combate à PIJ, pois, segundo eles, realizam ações punitivas tentando desbaratar as redes de aliciamento e prostituição, mas depois de um certo tempo “tudo volta ao normal”.

•Os representantes do governo ou negam ou superestimam as cifras que pretendem diagnosticar a PIJ no Brasil. E, para os representantes do poder judiciário, a PIJ se dá principalmente naquelas regiões de “fronteira” onde o poder do Estado não se efetiva.

É importante assinalar que a CPI não discutiu a infância/adolescência de um modo que abarcasse diferentes classes sociais, ou seja todas as crianças/adolescentes do Brasil. Tratou tão somente da infância/adolescência pobre e, por isso, no subtexto dos depoimentos constatou-se em maior ou menor intensidade um movimento que acusa, estigmatiza e tenta moralizar – principalmente pela sexualidade regulada e pelo trabalho – a infância/adolescência pobre brasileira.

 

Referências

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Notas

1Isso não significa que ela não tenha sido objeto de discussão política em outros momentos históricos. Irene Rizzini no livro O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil (1997), apresenta as reflexões sobre a infância pobre brasileira na transição da Monarquia para a República (passagem do século XIX para o XX), quando o interesse pela infância estava associado à idéia de que ela constitui um valioso patrimônio de uma nação.
2O fato de utilizar neste estudo a denominação PIJ – portanto, caracterizar como prostitutas crianças e adolescentes – não significa que esteja de acordo com o emprego desse termo. Foi inevitável usá-lo, tendo em vista a ausência de um termo mais adequado e também seu largo uso, tanto na CPI quanto na literatura pesquisada.
3Prostituição infantil e juvenil: uma análise psicossocial do discurso de depoentes da CPI
4Embora algumas páginas das notas taquigráficas estejam ilegíveis, é irrefutável a importância desse documento, que aqui é visto não como a “verdade”, mas como uma versão e que certamente expressa o pensamento de parcelas significativas da sociedade brasileira sobre a PIJ.
5Segundo Moraes (2000), “ninguém pode escusar-se de comparecer à comissão parlamentar de inquérito para depor” (p. 371), pois as CPIs possuem os mesmos poderes instrutórios que os magistrados, durante a instrução processual penal.

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