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Psicologia para América Latina

versão On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  n.6 México maio 2006

 

PSICOLOGÍA JURÍDICA Y CRIMINALIDAD

 

Ações educacionais no combate à violência: contribuições da psicanálise e da teoria crítica

 

 

Nanci Fonseca Gomes

Universidade Metodista de São Paulo, Brasil

 

 


RESUMO

Visando discutir a possibilidade de criar processos educacionais que intercedam na realidade e busquem combater a violência e a desumanização na sociedade, este ensaio tem como objetivo refletir se há possibilidade de realizar ações educacionais, orientadas pela psicologia, que possibilite promover a conscientização do indivíduo dentro do contexto de trabalho, e questiona se ao promover um processo reflexivo no indivíduo, se esta reflexão pode se estender para outros âmbitos da sua vida, passando ele a adotar condutas sociais menos violentas. Este Trabalho tem como referência a Psicanálise e Teoria Crítica, em especial Adorno e Horkheimer, e está baseado em dissertação de mestrado Ações Educacionais e Conscientização no Trabalho – Limites e possibilidades encontradas numa experiência com servidores públicos de Nanci Fonseca Gomes. São Paulo, USP, 2001.

Palavras-chave: Violência, Ações educacionais, Psicanálise, Teoria crítica, Desumanização.


ABSTRACT

Aiming to discuss the possibility of creating educational processes which could interfere in reality, as well as seek to fight against violence and dehumanization in society, this essay has as goal to present thoughts on the possibility of accomplishing educational actions, oriented by psychology as a science, that may promote an individual awareness within the work environment. It also questions whether this reflexive process for the individual appears only for the work issues or if it extends itself to other areas of life, allowing such individual to behave in less violent social ways in general. The present work uses as reference the Psychoanalysis and the Critical Theory, especially Adorno and Horkheimer, and it’s based on the master’s dissertation “Educational Actions and awareness at work – Limits and possibilities found during an experience with public workers by Nanci Fonseca Gomes. São Paulo, USP, 2001.

Keywords: Violence, Educational actions, Psychoanalysis, Critical theory, Dehumanization.


RESUMEN

Pretendiendo discutir la posibilidad de crear procesos educacionales que interfieran en la realidad y busquen combater a la violencia y a la inhumanidad en la sociedad, la presente composición tiene como meta reflexionar sobre si hay la posibilidad de realizarse acciones educacionales, orientadas por la psicología, que posibiliten promover el despertar de la consciencia del sujeto en su ambiente de trabajo. Cuestiona también si al promover un proceso reflexivo al sujeto, esta reflexión se puede extender a otras áreas de su vida, permitiéndole una conducta social menos violenta. Este trabajo tiene como referencia la psicoanálisis y la teoría crítica, especialmente Adorno y Horkheimer, y está basado en la dissertación de mestrado “Acciones Educacionales y Consciencia en el trabajo – Límites y posibilidades halladas durante una experiencia con trabajadores públicos”, de Nanci Fonseca Gomes. São Paulo, USP, 2001.

Palabras clave: Violencia, Acciones educacionales, Psicoanálisis, Teoria crítica, Inhumanidad.


 

 

A realidade social nos atormenta cotidianamente e subsidiados por nosso saber podemos procurar compreender os mecanismos dessa realidade violenta, no entanto, muitos de nós psicólogos, psicanalistas, educadores, somado a tantos outros estudiosos de diversas áreas, questionamos se podemos ir além, perguntamos se é possível utilizarmos desse saber para atuar junto aos indivíduos contribuindo para uma sociedade menos violenta. Nos cobramos uma ação efetiva que possibilite sujeitos mais cônscios dos processos dos quais são produtos e produtores, e que de certa forma possa desvelar sujeitos mais conscientes, tendo condutas menos violentas, ou no mínimo, que resistam aos processos de barbárie.

Como vários outros psicólogos e educadores realizamos trabalhos de formação em instituições com funcionários públicos. Nos perguntamos sobre a real abrangência e os possíveis resultados efetivos dessas ações educacionais nas condutas e atitudes dos funcionários enquanto trabalhadores e enquanto cidadãos, nos questionamos sobre qual a consistência e durabilidade que há nessas intervenções. Realizamos programas que visam o desenvolvimento profissional e pessoal através das relações dos funcionários com o trabalho que realizam, bem como com as relações que estabelecem ao trabalhar, e com a instituição e a cultura institucional na qual estão inseridos. Esses programas têm buscado possibilitar ao funcionário uma reflexão do seu cotidiano, bem como analisar as implicações da realidade social nas atitudes individuais no trabalho e nas outras esferas em que atua. Propõe demonstrar que as atitudes dos indivíduos não são ações isoladas e autônomas, mas se situam dentro de um contexto social, e são determinadas pela realidade a que estão circunscritas, que eles, trabalhadores, sustentam e reproduzem. Diante destas intenções coube questionar se de fato parte delas é possível de ser atingida e quais são as limitações apontadas pela psicanálise e a teoria crítica. Buscamos dialogar com Freud e com os pensadores da Escola de Frankfurt, especificamente Theodor Adorno e Max Horkheimer, bem como com autores pautados nessas teorias e em seus estudos das questões socioculturais brasileiras, em especial Jurandir Freire Costa e José Leon Crochík.

Queremos visualizar os limites dos processos e programas de formação e desenvolvimento de indivíduos e grupos que propõem a reflexão e a análise das relações sociais, bem como a compreensão de como esses indivíduos as constituem na atualidade. Questionamos se tais Programas de Formação podem, de alguma forma em suas ações educacionais, ultrapassar a proposta de ação disciplinar, ir além da mera ação pedagógica, mas tenha como foco o próprio sujeito e sua subjetividade, e, ainda, se pode haver uma transposição dessas reflexões para suas ações nos diversos âmbitos de suas vidas, mudando condutas nos grupos e na sociedade em geral, já que esses indivíduos são mediados socialmente e compõem as redes das relações sociais.

Apesar de constatarmos limitações nos programas de formação é fundamental apresentar a premissa básica deste estudo: consideramos a possibilidade de mudança no indivíduo e, conseqüentemente, nas relações que o constituem.

Utilizando o conceito da psicanálise, consideramos o sujeito como um ser determinado pelo inconsciente, composto por aspectos próprios e singulares e pelo atravessamento cultural e da sociedade. Em relação ao termo indivíduo, a teoria crítica enfoca como a realidade social atual, com o seu funcionamento econômico determinado pelos bens de consumo e pela indústria cultural, aliena o indivíduo e o distancia cada vez mais de suas possibilidades, já que a constituição da subjetividade não se esgota na sociedade e na cultura, mas depende delas. (Crochík, 1992, p.14). Na teoria crítica há a preocupação com a apropriação subjetiva da cultura: há algo na nossa cultura que é propício ao fascismo, que nega as potencialidades humanas.

Horkheimer & Adorno (1973), ao se referirem ao conceito de indivíduo, afirmam que só é indivíduo aquele que consegue se diferenciar do outro, quando consegue estabelecer para si mesmo a autopreservação, enfim, aquele que tenha uma autoconsciência. Porém mesmo essa autoconsciência da singularidade do eu, que não basta para fazer, por si só, um indivíduo, é uma autoconsciência social... (1978,p.52).

A complementaridade desses dois termos: sujeito e indivíduo, é importante para estudar a subjetividade, pois sendo a cultura responsável pela individuação, cabe-nos refletir quais as condições concretas da vida que dificultam ao indivíduo constituir-se, bem como analisar como elas repercutem na subjetividade desse sujeito, expressas em suas pulsões, representações e fantasias. Os aspectos subjetivos da realidade social estão presentes em reações individuais, expressas em ações, posturas, atitudes e valores.

Crochík (1997) considera que a identidade individual se dá pela composição de diversos elementos e que há a possibilidade de mudança dessa identidade. Ele justifica:

a identidade individual é dada por elementos visíveis e invisíveis, constantes e imprevisíveis, sociais e individuais, manifestos e ocultos, universais e particulares, permanentes e em mutação. (...) Não considerar a possibilidade de mudança, ou aquilo que lhe é oculto, por sua vez, é julgar que o indivíduo seja incapaz de ser outra coisa, além daquilo que se espera dele. (p. 57).

Aproveitando os apontamentos de Crochík (1997), procuramos não negar as características duradouras do indivíduo, não necessariamente imutáveis. Referimo-nos também à importância de ser considerada na sua constituição a imprevisibilidade, que aponta para a diferenciação individual.

Ao pontuarmos na constituição do sujeito o inconsciente e a cultura vimos que a sociedade atual tem impossibilitado a sua autonomia, assujeitando-o, deixando-o cada vez mais distante da possibilidade do encontro consigo mesmo e de seus desejos legítimos.

O indivíduo se apropria da cultura e, de acordo com Crochík (1999), é necessário procurar nos indivíduos as marcas da sociedade, o que é introjetado da sociedade nele e o que o constitui (p. 76). Precisamos compreender alguns aspectos da relação do indivíduo com a sociedade, não é possível chegar a um individuo puro, em sua singularidade só há sentido na relação com o contexto.

Conforme enfatizam Horkheimer & Adorno (1947/1986), no nosso contexto não existe possibilidade de liberdade e autonomia para os homens, enquanto um só ser humano, em qualquer lugar no planeta, estiver privado de condições de subsistência. Esses autores argumentam que a sociedade nega o indivíduo em nome do universal, que a liberdade na sociedade depende exclusivamente do pensamento esclarecedor, que pretende ir em sentido oposto ao que tem ido a sociedade.

No limite do possível, sabemos o quanto a tarefa de qualquer alteração dessa realidade é árdua e complexa, porém, vislumbramos que há a possibilidade de atuação junto ao indivíduo, através da psicanálise e da educação. Nossa experiência aponta que é fundamental a utilização de metodologias que facilitem a visualização por parte do individuo de suas atuações, dos lugares subjetivos que ocupa e dos papéis que desempenha. Para contribuir nesse processo temos utilizado metodologias que potencializam os acontecimentos e que possibilitem, aos que a vivenciam, visualizarem e problematizarem as contradições que vivem e perpetuam. Como trabalhamos em grupo, além de ações pedagógicas, utilizamos do sociopsicodrama que tem nos auxiliado em programas realizados com trabalhadores na instituição pública.

De acordo com Adorno (1962/1998), mesmo o crítico que se propõe avaliar a cultura está totalmente imerso nos valores culturais, pois a sociedade que na sua existência nega o humano, não pode ter plena consciência de si mesma e, assim, de todos os que a compõem. Sem a ingenuidade de supor que algum conhecimento e algum saber possam por si mesmos livrar o homem desse destino, atuamos com um saber, que também está sujeito a ficar entrelaçado pelas malhas do tecido social. Mesmo assim, a partir da experiência e da crítica, buscamos refletir as possíveis formas e os processos que possam influir nesse sujeito, na sua subjetividade, em suas ações e na postura de resistência a essa violência.

Na nossa sociedade, em seu funcionamento econômico, a dominação aliena o homem com relação aos objetos. Mas o mais grave: aliena-o na sua relação consigo mesmo. São seres genéricos, conforme apontam os autores, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força. (1986, p. 47).

Freud (1930) indica que, para se constituir a civilização, é condição primordial o sacrifício humano, tanto em relação à vivência de sua sexualidade quanto à de sua agressividade. É na civilização que o sujeito terá suas pulsões agressivas mantidas sob controle e encontrará possibilidades de deslocar as condições de satisfação dessas pulsões, através da sublimação, aspecto primordial do desenvolvimento cultural. É através da sublimação que se tornam possíveis atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas. (1975,p. 103).

Cabe lembrar, no entanto, que esse aspeto não é universal. Freud (1930) destaca a sublimação como um aspecto fundamental da civilização, porém ressalva que nem todos os homens são capazes de sublimar: esse método não seria acessível a todos, pois pressupõe dotes e disposições especiais. (1975, p. 87).

Sublimar as pulsões, deslocando a energia pulsional para direções socialmente aceitáveis e culturalmente criadoras, produzindo uma realização cultural mais elevada, é exigência primordial da cultura. Porém ela não tem oferecido formas de compensar tais renúncias, possibilitando direcionar as pulsões a outros objetivos: eles voltam expressos contra a própria sociedade que impõe tais abdicações sem oferecer alternativas.

Nessa direção, Pellegrino (1983)1 traz algumas considerações acerca da volta do recalcado em forma de conduta delinqüente e anti-social devido à ruptura com o pacto social, em virtude da sociopatia grave – como é o caso brasileiro. (p.6). No entanto ao utilizarmos termo adotado por Pellegrino – sociopatia – podemos incorrer no risco de compreender a sociedade à luz das categorias psicológicas. Freud (1930/1875), ao estudar a civilização, comenta que ao transportarmos os conceitos da psicanálise para a sociedade temos que ter cuidados, pois só podemos fazer analogias, e pode ser perigoso retirar os conceitos de onde se originaram e aplicá-los na civilização.(p.146).

Pellegrino refere-se à análise freudiana do complexo de Édipo e faz uma relação desse complexo com a passagem do ser humano da natureza para a cultura. Diz que essa passagem se dá com a aceitação da Lei primordial, ou seja, com a aceitação de que o Édipo proíbe o incesto, mas permite todas as outras escolhas que não sejam incestuosas, a lei passa a existir para estruturar e estabelecer regras ao desejo e fazer com que ele passe ao intercâmbio social. (p.5).

No processo civilizatório, segundo o autor, pode haver, numa sociedade capitalista, muita violência e intensidade da repressão, não só em função das necessidades do próprio processo civilizatório, mas também em função da injustiça social, que só dá para ser mantida pela força. Sendo assim, os indivíduos passam por renúncias pulsionais muito além do suportável, para justificar e manter essa realidade desigual.

Pellegrino acrescenta:

A criança tem que receber do Édipo as ferramentas essenciais que lhe permitam construir-se como sujeito humano. Com isto, ela ama e respeita o pacto que fez; nesta medida, fica preparada para identificar-se com os ideais e valores da cultura a qual pertence. (p.05).

Esse pacto é uma via de mão dupla, no qual o sujeito se priva da realização de suas pulsões, mas tem a garantia de outros direitos, como o de ter a segurança na sociedade, que o protege da natureza e das próprias pulsões. Pellegrino complementa afirmando que os indivíduos que vivem na mais absoluta miséria, com um trabalho que não oferece condições dignas de sobrevivência, ou que, no dia-a-dia, se deparam e convivem com as atrocidades da delinqüência do capitalismo selvagem, com a perversão da injustiça que pune alguns e acoberta outros, são levados a romper com o pacto social, vindo à tona tudo o que ficou reprimido no nível inconsciente, explicando-se, assim, o grande surto de violência e de delinqüência expressas, em especial na realidade brasileira. (p.06).

Esses argumentos só reforçam a idéia de que há uma conseqüência constitutiva no indivíduo na sua relação com a sociedade, e que o homem só atinge sua existência própria, como indivíduo, numa sociedade justa e humana. (Horkheimer & Adorno, 1973/1978, p.54).

O indivíduo está imerso numa sociedade que se estrutura criando necessidades e oferecendo o produto para supri-las, prendendo-o em suas amarras e transformando-o, cada vez mais, num ser aprisionado, longe de ser autônomo, pois ele vive e se organiza no âmbito da necessidade e apenas ilusoriamente relaciona-se consigo mesmo e com os outros seres. Suas propostas, seus interesses e perspectivas estruturam-se sobre a busca de suprir as necessidades, aparentemente suas e legítimas.

Observando os dados da violência na atualidade, a falta de autoconsciência e de identificação com os outros, podemos concluir que estamos numa sociedade que, além de injusta, está funcionando sem leis e normas eficazes que regulem essas relações e protejam-nas da barbárie, da violência.

Em geral, não visualizamos na atualidade indivíduos atuando em prol da coletividade, mas seres que pervertem, que burlam, que violentam, enquanto reagem contra a perversão e a violência.

Os indivíduos, em geral, não são agentes das próprias conquistas sociais, suas ações não consideram os interesses públicos, mas sim os interesses particulares, não necessariamente legítimos. Resta acreditar que consumir objetos de desejo é o mesmo que satisfazer desejo. (Costa, 1999, p.03). Os sujeitos estão expropriados da capacidade de julgar e de se responsabilizar pelos compromissos, por escolhas e privações.

Quando o indivíduo está adaptado ao sistema, sem ter formas, espaços e esferas de mediação, que são instâncias, instituições e grupos que o preparam para visualizar e criticar esse sistema, seu Ego se fragiliza, favorecendo a formação de personalidade conhecida como narcisista. (Crochík, 1992, p. 14).

Costa (1984), que em um dos seus textos se propõe fazer uma análise do narcisismo, demonstra que uma sociedade pode funcionar como estímulo patogênico, não porque reproduza e fixe traços, mas porque os universaliza e impõe aos indivíduos a utilização de estratégias que excedem os meios de que dispõem para apropriarem-se destes traços, e isto os leva à psicopatologia. (p. 149).

Costa diz:

A imagem freudiana do bebê saciado, gozando da plenitude narcísica e indiferente ao mundo, não se adequa ao narcisismo de hoje. O narcisismo com o qual convivemos é o narcisismo do “órgão lesado”, do corpo privado de prazer. (p. 181).

Costa expõe que o ideal de consumo impele o indivíduo a ser como ditam as normas, e essas normas ideais são criadas para não serem atingidas, mas para mantê-lo sempre insaciado, instigá-lo ao consumo. O prazer do corpo do consumo é inatingível. Isto gera a volta do indivíduo para si mesmo, buscando superar este estado de eterna insatisfação em que é mantido, e assim surge a preocupação narcísica.

A observação dos comportamentos dos indivíduos e das características sociais atuais nos leva não só a confirmar esses apontamentos como também demonstra o atravessamento da realidade social e os aspectos culturais na formação e expressão do sujeito narcísico.

Na nossa sociedade é cada vez mais freqüente encontrar indivíduos insatisfeitos, sem um ideal que oriente suas vidas, com um sentimento de impotência e fragilidade, buscando nos objetos e nos ideais externos, geralmente propagados pela mídia, o preenchimento deste vazio e constatando na busca a impossibilidade dessa completude.

Costa (1993) denuncia: Falta credibilidade aos atores. A idéia de justiça é a base da lei, é a garantia da cidadania. (p. 06).

Viver a justiça, se aperceber de que há um terceiro que faz a mediação das relações com o mesmo peso, que age de forma imparcial, é o que tranqüiliza e reforça o papel de cidadão, pois há a possibilidade de se contar e ter a quem recorrer nos momentos em que se sente desprotegido e ameaçado pela força do coletivo.

Freud (1930), ao falar sobre a constituição da civilização, diz que só é possível a vida em comunidade quando se substitui o poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade. Afirma o autor:

A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. (...) O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos - exceto os incapazes de ingressar numa comunidade - contribuíram com um sacrifício de suas pulsões, que não deixa ninguém - novamente com a mesma exceção - à mercê da força bruta. (1975,p. 101).

Freud pontua que um dos principais atributos da cultura é a regulação das relações sociais e se pergunta porque é tão difícil para o homem ser feliz. Aponta três fontes de sofrimento do homem:

o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. (p. 93).

Com isto Freud conclui que a própria civilização é em boa parte responsável por esta infelicidade e que a liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização.(p. 102).

Freud constata como estão inadequadas as regras para ajustar os relacionamentos humanos. Isso se confirma na atualidade. Costa (1991) fala das conseqüências aos indivíduos e à sociedade quando esta regulação está falha. Ele diz:

Em 1988 fiz um texto, “Narcisismo em Tempos Sombrios”, onde discutia a falência dos ideais (...) uma sociedade organizada tem fronteiras morais que, se não são completamente claras, elas tornam-se insuficientes para impedir comportamentos que atropelam os direitos dos outros (...) é uma cultura próxima à cultura do pânico. E em termos de pânico é cada um por si só. A instituição é um processo simbólico que define um quadro normativo a partir do qual as pessoas agem. Quando não há mais crença nesse cerne referencial (...) a instituição perde o sentido. (p.04-05).

Na cultura, a lei serve como mediadora e são os valores éticos que a sustentam. Para sustentar a cultura, é necessário haver um reconhecimento da lei: a cultura do narcisismo entorpece, alimenta a fantasia de plenitude do indivíduo e da desnecessária garantia da lei universal.

Costa (1988) acrescenta:

... é a cultura onde a experiência de impotência/desamparo é levada a um ponto tal que torna conflitante e extremamente difícil a prática da solidariedade social. (p.165).

Podemos considerar que os teóricos citados (Freud, Horkheimer e Adorno, Crochík e Costa), mesmo que de formas diferenciadas, mostram que é a própria cultura  com seu funcionamento, inadequação das leis que regulam as relações e a experiência do desamparo, dentre outros aspectos , que acaba por negar a possibilidade do sujeito se identificar com um modelo ideal, representado por ela, visando o bem coletivo. Até porque todo ideal que envolva a noção do coletivo só pode ser mantido se é fortalecido pelo indivíduo. Nenhum ideal coletivo resiste se não considera o indivíduo, se o faz voltar-se para si mesmo numa postura narcísica na busca da autoconservação.

Costa (1988) reforça a importância do ideal do ego na constituição do sujeito com a possibilidade de investir em outros objetos que não visem apenas a satisfação narcísica. Coloca o ideal do ego atuando diferentemente do ego, pois este aponta para o presente, o ideal aponta para o futuro e disputa com o ego a representatividade do sujeito, a possibilidade que o sujeito tem de vir a ser. O ideal visa também, como o ego, sintetizar as representações do sujeito que unificam ou totalizam a imagem que o sujeito tem de si, do que ele pensa que é sua essência.(p. 160).

Costa (1988), citando Bleichmar, mostra que só é possível o adiamento do prazer narcísico para visar um prazer ideal se o ego aceita transformar-se: é quando ele admite o outro e a existência de um modelo ideal. É a porta para a alteridade, e o mover não apenas por interesses privados, mas por considerar, em seus atos, os interesses públicos.

Crochík (1999) relata o que ocorre na constituição do sujeito na nossa cultura, na qual não há uma substancial diferenciação entre ego e ideal do ego, e o sujeito não investe na modificação do que gera o sofrimento. Ele pontua que uma cultura que abandona o indivíduo é a responsável por ele desenvolver uma racionalidade que busca somente a autoconservação. Os indivíduos encaram os outros como inimigos em potencial, e acentua-se o narcisismo que justifica a hostilização. As relações que estabelecem, o trabalho que realizam não ultrapassam a possibilidade de buscar e manter a autoconservação e não há neles um significado e reconhecimento individual.

Seguindo o pensamento de Crochík, percebemos que há pontos em comum aos já citados por Costa, quando ele se refere ao narcisismo. Para Crochík (1999), o narcisismo é uma oposição à cultura, e coloca, baseado em Freud, que a contraposição ao narcisismo é o ideal do ego. O que Crochík acrescenta a essa idéia é o fato de explicar que, quando o indivíduo se reconhece nos bens coletivos e se vincula com o ideal representado pela cultura, ocorre uma introjeção de valores que fortalecem a consciência e sua diferenciação, e ele não se submete, assim, a qualquer outro ideário e nem abdica de sua própria consciência.

Baseando-nos ainda em Crochík (1999), concluímos que o indivíduo mantém o vínculo com essa sociedade irracional, pois, estando ele com o ego fragilizado, sem um ideário que fortaleça sua consciência, é mais um ser genérico, com comportamentos universalizados, não se diferenciando nem abdicando da própria consciência em prol de pequenos interesses de grupos, ou de líderes, ou daqueles propagados pela indústria cultural, tendendo, assim, à regressão. Ele reproduz e mantém os interesses da ideologia, da sociedade irracional , pois ela se sustenta em indivíduos indiferenciados, narcísicos, que precisam lutar pela autoconservação. Enfim, a sociedade totalitária leva à regressão de que ela necessita.

Costa (1988) pontua que hoje o conjunto de itens materiais e simbólicos maximiza a percepção da impotência do sujeito, que o ego reage, sendo forçado a ativar os automatismos de preservação, diante dessa angústia.

Complementando essas idéias, citamos novamente Costa (1988), que, ao referir-se à cultura brasileira, nomeia-a de cultura narcísica da violência, a qual é sustentada pela decadência social e pelo descrédito na justiça e na lei. Com isso, o necessário investimento libidinal num futuro é descartado, fortalecendo assim o conservadorismo do ego narcísico, sendo excluída a possibilidade de representações do ideal do ego. Os indivíduos passam a rejeitar qualquer proposta de mudança que não considere os interesses particulares. (p. 160).

Costa (1988) faz, ainda, uma definição da cultura brasileira com quatro atributos bastante alarmantes: cinismo, delinqüência, violência e narcisismo. Aponta que uma das características do comportamento dos sujeitos é o de não ter mais confiança nas relações. Eles não comprometem suas palavras, prometem e não cumprem. Há uma descrença muito grande no país, sentimento construído com o processo histórico, o que gera um cinismo e uma moralidade supérflua. As pessoas não ficam mais indignadas, e a única saída é engolir o outro para não ser engolido. Não há como se fazer acordos e balizar os relacionamentos sociais por valores e leis, até porque não há mais crença nas leis. Ele enfatiza, de uma forma muito instigante e reflexiva, que tanto um motorista que ultrapassa um farol vermelho, quanto um político que rouba os cofres públicos, como um pivete que assassina um caixa de banco, estão movidos pela falência dos bens simbólicos, do artefato da lei. Todos estão movidos pela crença de que vão sair impunes, ilesos.

Todos os indivíduos estão atravessados pela cultura e reproduzem os valores culturais, desde pequenos atos que pareçam insignificantes até atos com conseqüências mais mensuráveis. Enfim, esses valores abrangem a todos nos seus atos em todas as instâncias.

Voltando a nossa proposta inicial de refletir sobre a possibilidade de atuar junto aos indivíduos inseridos nas instituições enquanto trabalhadores, todas as constatações até aqui apresentadas muito contribuem para examinar alguns processos dentro das instituições. Podemos compreender a reprodução dos comportamentos instituídos nas organizações e refletidos da sociedade. Da mesma forma que o indivíduo perpetua os comportamentos constituídos socialmente e não se implica nos reflexos deles na sociedade, age da mesma forma dentro das organizações e instituições: repete os atos cinicamente, justificando ser legítimo por ser da maioria. E como o que é de todos não é de nenhum, estes atos passam a ser atitudes anônimas.

Costa (1988) busca trazer a reflexão da necessária implicação de cada indivíduo na realidade do contexto. Cada ato isolado está atravessado pela falência e o não-reconhecimento dos bens simbólicos coletivos. São as leis do “cada um por si”, a popular “lei de Gerson”. Leis fundamentadas na idéia de que se tem que levar vantagem em todas as situações, justificadas na certeza de que o correto é assim mesmo, que nada vai mudar, de que, se ele, indivíduo, estivesse no lugar do infrator, daquele que corrompe, cometeria o mesmo ato.

Qualquer possibilidade de mudança desse contexto necessariamente precisaria passar pelo indivíduo: ele necessitaria se reconhecer nele, e se responsabilizar por essa realidade exigiria um fortalecimento do indivíduo para obter um esforço de resistir a essa violência instalada, tantos em atos explicitamente violentos, quanto naqueles atos disfarçados em rotinas administrativas.

Crochík (1999), apoiado em Adorno (1956), afirma que a sociedade leva os indivíduos a se configurarem de acordo com o que ela necessita. (p.21). Sendo assim, a sociedade como está configurada hoje está servindo aos interesses e às necessidades dela, que privilegia a massa de seres regredidos e indiferenciados; ela mostra sua força não só na domesticação dos corpos, mas atua subjetivamente na constituição e no comportamento dos indivíduos que aqui estão.

Costa (1988) diz algo semelhante:

Estamos numa cultura cínica e violenta que justifica em cada momento histórico, os interesses particulares de grupos ou classes de legisladores concretos (...) só legisla quem tem força para fazer as leis e impor sanções. E como a força é propriedade de quem domina, o fundamento último da lei é a violência (...) ( p.168).

E ainda afirma:

O discurso cínico, refletidamente ou não, avaliza a prática social mais suja, calhorda e ensandecida que se possa imaginar. Por meio de exemplos e argumentos o que se diz ao homem comum é que ele só tem saída se vier a compactuar com a violência e a escroqueria. (p.170).

Pelo que escrevem Adorno (1962/1998) e Horkheimer & Adorno (1947/1986), podemos observar que eles explicitam que a sociedade administrada é um sistema que em seu funcionamento gera contradições. Nesses dois textos, eles refletem sobre os fatores que interferem na formação cultural e na possibilidade de aplicar o conhecimento para tornar explícito tal funcionamento. Demonstram que o funcionamento da sociedade está sustentado pelo princípio da dominação e do poder de uns sobre os outros, e que ela tem como um dos resultados a exclusão. Afirmam que a formação isolada e por si só não consegue revogar tal exclusão nem mesmo mudar a realidade constituída, mas deve buscar analisar a realidade atual e os aspectos de suas relações com a sociedade, devendo tornar claro e lúcido o singular para tornar lúcido o todo. Esses apontamentos vão dando a nós, profissionais que querem colocar o conhecimento a serviço da alteração da realidade, alguns indicadores e perspectivas.

Horkheimer & Adorno (1947/1986) reforçam a necessidade de o processo de formação buscar a autonomia, questionando as idéias e os apelos da ideologia, que servem para encobrir e justificar o processo de exclusão e manter o sistema, que tem impossibilitado a apropriação viva dos bens culturais.

Esses pensadores apontam com freqüência a necessidade de uma reflexão sobre conteúdos verdadeiros que estejam relacionados com as relações vividas pelo sujeito vivo, e não os coisificados e transformados em mercadorias: os conteúdos devem estar relacionados com o singular.

Adorno (1962/1998) afirma que a única saída é a autoreflexão crítica, que emprega o saber e o transforma em forma analítica da própria coisa, num processo dialético que mostra as contradições. Porém alerta que essa reflexão não tem o poder de alterar as contradições, tem o limite de apontá-las, relacionando o conhecimento da sociedade totalitária e a implicação do espírito nela. Isso ocorre pelo fato de também estarmos inseridos nessa realidade. O bom crítico, segundo Adorno, deveria estar e não estar inserido na sociedade, fazer sua análise como a de uma obra de arte, que não se esgota no sentido em si mesma, mas está sempre ligada ao real da vida. Assim, para poder expressá-la o crítico tem que se separar dela. É essa autonomia e essa separação que fazem com que ela não se esgote em si mesma, mas a transcendem dialeticamente apontando suas contradições.

Realizar trabalhos que visem a emancipação e a conscientização em instituições exige anteriormente compreender essas instâncias, não é possível isolá-las, pois nesse caso lhes atribuiríamos um valor absoluto, não conseguindo compreender de fato como funcionam. Para estudar essas instâncias e a forma como o indivíduo nelas se comporta, temos que as considerar como inseridas no contexto social e histórico e as compreender como produtos da sociedade.

Adorno (1971/1995), no texto “Educação após Auschwitz”, sinaliza que os aspectos da dinâmica geral social dominam todas as esferas do que é particular. Nesse funcionamento, tanto as instituições quanto os indivíduos são destituídos de suas identidades, repetem ou se comportam seguindo qualquer idéia que lhes pareça ter alguma credibilidade, pois não há neles reflexão nem autonomia, a consciência é mutilada e, sendo assim, propícia a violência.

Horkheimer & Adorno (1973) lembram-nos que a crença na independência radical do ser individual em relação ao todo nada mais é, por sua vez, do que uma aparência. (1978, p. 54).

A organização ou instituição em que o indivíduo trabalha está situada historicamente, é não apenas resultado da sociedade como também é instância de mediação para o indivíduo inserir-se na totalidade social. Para o psicólogo que se propõe interpretá-la nessa realidade, faz-se necessário trabalhar com as relações de determinada prática institucional. (Guirado, 1987, p. 72).

Guirado (1987) justifica que é necessário ao psicólogo, que visa ter como espaço de intervenção as instituições, encarar os sujeitos como constituídos e constitutivos da estrutura institucional. (p.70). A autora apresenta a possibilidade de a psicologia poder fazer com que o sujeito se aproprie e construa um conhecimento sobre si mesmo e se aproprie dele, enfocando as relações que imagina, percebe e representa nesse universo de representações e afetos.

Torna-se relevante compreender que os sujeitos, que na instituição estabelecem relações, ao mesmo tempo se constituem, adquirem valores, comportamentos e concepções de si mesmos, através das práticas no trabalho e do funcionamento da máquina que estão constituindo e em que estão inseridos. Enfim, o sujeito vive e processa as organizações para si. (Paulon & Pessin, 1991, p. 02).

Horkheimer & Adorno (1973/1978), como mencionamos, já pontuavam que as instâncias intermediárias é que propiciam ao sujeito sua inserção na totalidade social. Podemos supor que é aí que se dão as relações – que são mediadas e se dão entre os indivíduos enquanto representantes do capital, em papeis estabelecidos por essa sociedade.

Guirado (1987) afirma que as relações concretas se dão sempre nas e pelas instituições sociais. Com isso defende a necessidade de tentarmos articular o que é do universo singular, pontuado por Freud na sua clínica, e o universo das relações institucionais que o extrapolam. (p. 72).

Guirado continua sua explanação e, utilizando-se de conceitos de Guilhon, expõe que, nas relações nas instituições, os sujeitos tendem a reproduzir o instituído, porque reconhecem a ordem estabelecida como natural e autêntica, mas desconhecem o caráter instituído dessa ordem e a ideologia que legitima essa reprodução. (p. 73).

A intervenção psicológica, segundo Guirado, está na interpretação do discurso e do lugar do sujeito nas relações institucionais. Pontua que de um lado, há o discurso dos agentes que expressam representações da prática (...) e de outro, encontramos (...) cada ator (ou grupo de atores) sendo sempre “sujeito suporte” da ação e do discurso institucional. (p. 74).

Podemos dizer que as mudanças ou reflexões possíveis dentro das instituições onde os indivíduos atuam e se relacionam não têm como foco a estrutura, com propostas de mudanças e reformas administrativas, organizacionais e de funcionamento. Essas propostas estão sustentadas na concepção de organização como unidade singular e com funcionamento independente e estabelecido previamente. Uma das formas de intervenção é proporcionar ao indivíduo uma análise permanente de suas relações constituídas, ou seja, uma forma de atuação deve vir a ser com os sujeitos refletindo as relações vividas, propiciar a reflexão das relações estabelecidas constituintes e constitutivas.

Entretanto, é importante ressaltar que qualquer intervenção com os indivíduos nas instituições não pode estar desvinculada da sociedade. Os limites que encontramos na sociedade se apresentam na instituição todo o tempo. As relações que lá se estabelecem são também mediadas, estando claro que a possibilidade de alteração estará sempre esbarrando nos limites que o funcionamento social e político dessa sociedade apresenta.

Adorno (1971/1995a) descreve que o indivíduo está com sua consciência coisificada, estabelece com a técnica uma relação como sendo algo em si mesmo. Esse meio tecnológico, burocrático e de fetichização produz nele a incapacidade de se vincular com os outros, ficando indiferente ao que acontece com as outras pessoas, conseqüência da ordem social que produz e reproduz a frieza. Portanto, as relações que se estabelecem dentro das organizações são produtos da sociedade e estão de certa forma mutiladas, e para se tentar produzir uma clareza acerca desse modo constitutivo exige-se a implementação, praticamente inviável, de um deslocamento no sentido contrário ao movimento da sociedade.

No serviço público no Brasil, ouvimos e constatamos o quanto estamos diante de muitos sujeitos absorvidos e contaminados pelo sistema, exalando os odores da violência institucional e social. Fatos noticiados a todo o momento mostram funcionários de diversas instâncias e instituições envolvidos em esquemas de corrupção, desvios de verbas e falcatruas. Ou, ainda, funcionários que são responsabilizados pelo mau funcionamento do Estado e de seus serviços. Funcionários engessados e reproduzindo um discurso cristalizado, reconhecendo-se como vítimas e alienados desse poderio, mantendo um esquema de troca de favores, com o pensamento de que é melhor usar os recursos viciados da máquina e da sociedade para levar certas vantagens num esquema sem saída.

No que nos é possível intervir, propomos investigar a institucionalidade introjetada e constituinte desse sujeito, constituidor do contexto, considerando que o indivíduo está mediado pela instituição e que esta é produto da sociedade. Analisar e intervir nas relações que se dão nas instituições é estar em contato com a dialética social e com aspectos simbólicos e subjetivos da dinâmica que propicia e reproduz normas de convivência, bem como compreender as práticas que são legitimadas pelos sujeitos.

Intervir no contexto de instituições de trabalho através de ações educacionais orientadas pela psicologia apresenta possibilidades e limitações.

Costa (1984) fala de educação utilizando os conhecimentos psíquicos para prevenir neuroses, e é categórico ao dizer que (...) educação psicológica não produz saúde mental mas reproduz, tão somente, a ordem social, (p. 63). E continua: (...) ela produz representações do mundo visando obter o consenso em torno dos interesses sociais hegemônicos de uma dada sociedade. (p.72).

Porém, em entrevistas concedidas à revista Isto É (1993) e ao Conselho Regional de Psicologia – CRP (1991), Costa fala que, apesar da dificuldade e das transformações exigirem muito trabalho, a educação reitera a possibilidade de mudança. Costa defende a necessidade de esforço dirigido à saúde e à educação, num grande investimento, para tornar a vida mais digna e assim alimentar o valor moral, e cita o esforço de enfatizar a moral do trabalho, da ética e da implicação de cada um.

Adorno (1971/1995a) indica o pensamento não pragmatizado como uma possibilidade de ação, enfatiza a importância do esclarecimento para produzir um clima intelectual, cultural e social que propicie uma reflexão que tire os indivíduos da obscuridade, esclarecendo, tornando mais conscientes os motivos e os mecanismos que levam a atos de barbárie.

Segundo Adorno, o que cabe à educação, já que ela tem relativa autonomia e deve estar consciente de suas limitações, é se voltar ao sujeito, ao subjetivo, para fortalecer sua resistência à violência (relembramos a afirmação do autor de que não pode haver sujeitos livres e autônomos numa sociedade que não é livre).

Podemos citar que Adorno e Horkheimer, apesar de sempre apontarem os limites das ações educacionais, em diversos momentos de suas obras assinalam que precisamos contribuir na desbarbarização dos indivíduos e da sociedade. Porque Adorno dedica vários estudos abordando a educação e os educadores, entendemos que ele via aí, alguma alternativa de atuação. Reproduzimos suas próprias palavras:

Se existe algo que pode ajudar contra a frieza como condição da desgraça, então trata-se do conhecimento dos próprios pressupostos desta, bem como da tentativa de trabalhar previamente no plano individual contra esses pressupostos. (1971/1995 a, p.135).

Adorno alerta, entretanto, que a educação, e todo o pensamento, devem passar por um processo de autocrítica e refletir sobre seu próprio funcionamento para não cair num pragmatismo e perder a relação com a verdade. A liberdade e o esclarecimento pela educação podem se tornar uma farsa se não considerarem que obedecem à forças sociais, e que podem ir em sentido contrário à emancipação e à conscientização.

Ao continuar apontando possibilidades, Costa em seus escritos, enquanto psicanalista, se mostra reticente em relação à educação, pois a coloca como produto para a adaptação social; por outro lado, busca, principalmente em artigos em jornais e em entrevistas, nos sensibilizar para encontrarmos formas, através de nosso âmbito de vida, enquanto atores sociais. Procura mobilizar e contribuir para a desalienação de seus leitores, instigando a se implicarem na realidade e responsabilizarem-se pela sua permanência ou alteração. Sob enfoque diferente de Adorno, em uma de suas entrevistas Costa diz:

É necessário um esforço maciço dirigido à educação e à saúde. Em suma, só com um grande investimento é possível tornar a vida da população mais digna e assim alimentar o valor moral das pessoas.(1992, p.5)

Um processo educacional que se diga emancipador e que busque a conscientização, tem que contar com a contribuição da psicologia – desde que esteja preocupada com a implicação da realidade social na subjetividade dos indivíduos e em promover o espaço para a reflexão desse cotidiano e de todos as questões subjetivas implicadas nessa relação.

Crochík (1992) nos orienta afirmando que os critérios estabelecidos pela constituição da realidade devem servir como parâmetros para revermos constantemente a teoria psicológica e a ética e afirma que estes critérios devem ser tomados na contraposição, entre aquilo que ela poderia ser para proporcionar uma vida humana digna de ser vivida.(p.12)

Não há como prever e estabelecer os resultados desse tipo de intervenção educacional orientada pela prática psicológica. Esse processo é dinâmico e produto particular de cada indivíduo, a partir das experiências de vida que teve na sociedade e da forma como foi produto desse contexto. O espaço de ação de uma educação emancipadora, com intervenção nos fenômenos psíquicos, movimenta-se entre três pontos: a intenção das ações educacionais, a possibilidade de cada indivíduo e as aberturas nas contradições da sociedade.

Não podemos dizer que programas educacionais com propostas emancipadoras são em vão, no entanto os pressupostos objetivos do funcionamento da sociedade – sociais e políticos – como pontua Adorno (1971/1995 a), responsáveis pela engrenagem social, não podem ser alterados por esses recursos, os limites se apresentam pois as organizações e instituições pertencem a uma sociedade administrada, suas estrutura e seus funcionamentos se mantêm atrelado e dependente desse esquema.

Mediante tais limitações aprendemos a valorizar pequenos atos, ou pequenas descobertas como um enorme avanço. Programas que visam a resistência à violência são de grande importância, além da possibilidade de sua ação multiplicadora.

Lembramos a forma como começamos esse ensaio afirmando que temos e mantemos a premissa básica da possibilidade de mudança do indivíduo e assim as relações que eles constituem. Confirmamos que um processo esclarecedor tem que ir contra o movimento do funcionamento social, pois esse tem negado o humano. Contribuindo para o fortalecimento da subjetividade, mesmo que pequena, comparando à força da engrenagem social de auto sustentação e de perversão que leva à violência e à adaptação em todos os âmbitos.

Se há limite, há possibilidade, podemos contribuir na produção de um clima propício para reflexão e tornar cada vez menos possível os horrores da barbárie, e cooperar para que a subjetividade do sujeito seja considerada nas ações educacionais buscando uma auto-reflexão crítica.

Para finalizar dois apontamentos de Adorno (1971/1995d), que reforçam o nosso movimento em utilizarmos nosso saber em ações práticas esclarecedoras. O primeiro ele está pontuando sobre os fatores inconscientes, e relembra que o esclarecimento intelectual não consegue aí interceder. No entanto ele diz:

(...) um esclarecimento um pouco insuficiente e apenas parcialmente eficiente ainda é melhor que nenhum.(p.114).

E por último, ressaltamos outra fala de Adorno no mesmo texto:

Mas se a barbárie, a terrível sombra sobre a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural, então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A desbarbarização da humanidade é pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades.(p.117).

 

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NOTAS

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