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Psicologia para América Latina

versão On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  n.6 México maio 2006

 

ALTERACIONES PSICOLÓGICAS Y PROPUESTAS PSICOTERAPÉUTICAS

 

Assistência e ensino na instituição psiquiátrica: interfaces de uma experiência plural1

 

 

Ademir Pacelli Ferreira; Ana Maya Szuchmacher

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

 

 


RESUMO

Propõe-se com este estudo analisar elementos da experiência docente assistencial em instituição psiquiátrica. Parte-se do caso clínico como construção plural, interdisciplinar. A terapêutica caracteriza-se como projeto conjunto da equipe que convoca o sujeito a participar e a comprometer-se com as possibilidades de novos desdobramentos para o seu destino. Entende-se a elaboração do projeto terapêutico como elo unificador das diversas ações e dos diferentes saberes clínicos. Através da análise da singularidade do que surge como produção do sujeito; dizeres, ações, atitudes e demandas, visa-se refletir sobre as funções da internação, da continuidade da assistência psiquiátrica externa e do ensino da clínica, confrontando a ótica do isolamento com a perspectiva da reforma psiquiátrica. Demonstra-se, finalmente, que a construção do caso clínico enriquece a práxis em saúde mental ao contribuir com a reflexão teórica e com a construção de dispositivos assistenciais da reforma, beneficiando ainda o ensino e a formação profissional.

Palavras-chave: Internação, Acolhimento, Caso clinico, Reforma psiquiátrica.


ABSTRACT

The docent-assistential experience is approached here in its practical plurality in the psychiatric institution. At first, a synthetical review of clinical case methodology and concepts are presented, following the case construction and analysis to support its importance to the therapeutic plans direction. Finally, attention is called to the relevance of the elaboration of the case and the internation exit moment for the sucess of external treatment continuity, also its contribution for reforms project and the professional preparation.

Keywords: Clinical case, Plurallity, Construction, Internation, Psychiatryc reform.


RESUMEN

La experiencia docente assistencial es abordado en suya pluralidad práctica en la institución psiquiatrica. De inicio se presenta una revisión sucinta de la concepción y de la metologia del caso clinico. En seguida pasa-se a la construcción y análisis del caso, donde se afirma suya importancia en la dirección del plan terapeutico. Finalmente, llama-se la atención para la relevancia de la elaboración del momento de la salida de la internación para el suceso de la continuidad del tratamiento externo, acrescentando su importancia en la formación professional y en el ensino.

Palabras clave: Caso clinico, Pluralidad, Construcción, Internación, Reforma psiquiatrica.


 

 

Introdução

Visamos demonstrar aqui a construção do caso e do plano terapêutico na internação e na continuidade do atendimento ao paciente psicótico como modalidade de ensino e pesquisa, numa perspectiva que entendemos como sendo de uma clínica plural. Nesta perspectiva, apresentaremos um caso cuja construção será abordada em sua pluralidade prática a partir da internação, vinculação inicial e criação de condições de sua continuidade terapêutica no HD, onde ressaltamos a importância da delimitação da direção do plano terapêutico.

O primeiro esboço de um programa terapêutico deve ser previsto no próprio momento da internação, onde a soberania da clínica deve ser obedecida para evitar os diagnósticos apressados e as intervenções inadequadas. Outro aspecto que entendemos como de grande importância para o projeto terapêutico da clínica institucional é a elaboração do momento da saída da internação, sem a qual, o sucesso da continuidade do tratamento externo tem poucas chances.

Partimos da ênfase na prática interdisciplinar, já que a internação é uma modalidade assistencial cuja função pode ser dividida em social e terapêutica (ZENONI, 2000). Ao envolver vários profissionais com diferentes funções, além de outros internos, cria-se um invólucro coletivo, onde as condições de interlocução devem ser mantidas como um princípio ético, para favorecer a superação das controvérsias e disputas interprofissionais. Neste campo de experiências extremas ninguém possui a resposta, até porque esta só pode ser construída na experiência terapêutica plural. Deve-se privilegiar as contribuições da coletividade em circulação para que se mantenha a interlocução.

A questão do ensino ou da transmissão envolve a própria idéia da construção do caso clínico, onde além de elementos do quadro psicopatológico e da organização da história clínica, constitui-se um esforço de transformar em saber uma experiência cujo fim é o outro, o destinatário, que poderá ou não acolhê-lo e tornar-se testemunha desta aventura. Nesta experiência, o drama do paciente poderá desdobrar-se em novos sentidos, revelando ainda elementos contra-transferenciais que poderão ganhar visibilidade no circuito da comunicação-narrativa (cf. Hoppe, 2000). Trata-se, portanto, de uma via metodológica fundamental na elaboração da teoria em clínica.

A casuística médica confunde-se com o próprio nascimento da clínica médica (Ferreira, 2002b), que gerou o conhecimento da semiologia, das síndromes, do diagnóstico diferencial, da evolução e do tratamento das doenças. Os casos demonstram como o organismo porta, desenvolve e manifesta a doença, além das formas e recursos que o médico dispõe para intervir neste organismo ao visar o combate da doença.

Para Freud, o caso clínico ganhou importância fundamental para a elaboração de seu método terapêutico e de sua teoria ou metapsicologia, ultrapassando, assim, o método tradicional da medicina. A construção da psicanálise se funda na articulação estreita entre experiência e saber, entre clínica e teoria. Como afirma Fedida, citado por D’Agord (2000:12), (...) na psicanálise, o caso é uma teoria em gérmen, uma capacidade de transformação metapsicológica. Portanto, ele é inerente a uma atividade de construção.

 

A Internação: recolhimento e acolhimento versus reclusão e segregação

Na internação de um paciente, no seu prontuário, logo após os dados de identificação, o tópico que se segue é o motivo de sua internação. São várias as razões que podem justificar uma internação, tanto subjetivas quanto objetivas. Na perspectiva da segregação do doente mental, dispensa-se maiores justificativas para a sua reclusão, já que bastava a constatação da desrazão do louco (delírios, alucinações, comportamentos bizarros, desvarios), para levá-lo ao hospício. Para se contrapor ao modelo da internação automática, a perspectiva da Reforma deve estabelecer critérios para que alguém seja internado e contrapor a máxima - lugar de louco é no hospício - marcada profundamente no imaginário social.

Desde o primeiro contato com o paciente, e o estudo de caso surge como possibilidade de indicar a direção do tratamento, onde os elementos clínicos que justificaram a internação possam ser traduzidos e transformados com a assumpção da história do sujeito e que se possa criar um espaço de acolhida, de fala e de ação que favoreçam a produção de sentidos e de singularidades. O plano terapêutico envolve também a discussão das condições de saída e de manutenção do tratamento externo. O que demanda um trabalho de equipe, onde o arranjo dos elementos que permitirão a sua interpretação e construção2 surge das múltiplas implicações e de efeitos transferenciais elaborados em trocas e supervisões. Nesta clínica privilegiamos o acompanhamento do sujeito psicótico em suas possibilidades de arranjo, como aponta Zenoni (2000) sobre a segunda clínica de Lacan, ao invés de basear-se na falta, na negatividade, acompanham-se as soluções positivas e invenções do sujeito.

Se a construção do psicanalista é feita através da experiência analítica, da qual é testemunho individual, na internação, vários agentes participam desta experiência, inclusive várias categorias, cada uma com seus referenciais éticos, técnicos e teóricos. Trata-se de uma transferência de trabalho (Lacan, Apud Figueiredo, 2004), o que, segundo esta autora, opõe-se aos efeitos narcísicos imaginários, seja em relação à confusão de papéis (modelo igualitário), seja na fixação de papéis (modelo hierárquico).

Diferentemente do ensino clássico, a descrição, a nomeação e a diferenciação dos sintomas, não devem ser reduzidos ao mero exercício acadêmico com fins de demonstração no ensino, como em uma clínica das espécies (cf. Figueiredo, 1999). Não se trata, portanto, como afirma Stevens (1996:24), de uma falta de ser, mas de uma forma de ser. O diagnóstico é visado, nesta perspectiva, como esforço de localizar o pathos no sujeito (cf.Figueiredo, 2004).

A clínica médica inclinou-se sobre o doente ao pé do leito. Esta posição ou inclinação - o doente estendido no leito e o médico que se aproxima para colher e identificar a enfermidade que o acometeu e oferecer o alívio para o seu sofrimento – ao seguir um método minucioso e sistemático de descrição e organização das observações, produziu um importante saber sobre as doenças (Foucault, 1977).

O propósito de nosso caso é abordar uma experiência que ilustra o cotidiano do esforço de uma prática interprofissional, onde há que se superar os embates, disputas e impasses para que seja possível sustentar a discussão e afirmar o programa terapêutico. A manutenção da discussão de equipe só é possível se os lugares, as funções, os atos e as propostas de intervenção puderem ser avaliados, questionados e discutidos.

 

A Outra Face da Vila: O Hospital-Dia como espaço de reconstruções singulares 3

A instituição onde atuamos funciona em uma vila. Quando o Hospital-Dia (HD) foi criado, apesar de ser utilizado uma casa da vila, a sua porta de acesso foi aberta para fora. Numa oficina onde cada um foi convidado a escrever e falar sobre a função deste e sobre as suas experiências no HD, um freqüentador o caracterizou como a varanda da casa. Ele vinha do nordeste onde tinha sido criado numa casa com varanda e redes. Lugar intermediário, entre o interno e o externo, a varanda oferece a alma o descanso e a preparação para a circulação. Neste sentido, acreditamos que sua definição ou apreensão deste espaço vivido foi muito adequada.

O HD pode remontar à experiência de George Bell na Escócia em 1949, com seu serviço Open Door. A reforma da psiquiatria americana da década de Sessenta ampliou bastante o seu uso. Trata-se de um dispositivo de cuidado externo e ao mesmo tempo ligado ao hospital psiquiátrico. Caracteriza-se como um espaço intermediário entre a internação e a vida externa, que busca promover a reinserção sócio-afetiva, a criação de laços sociais, a autonomia e a conquista da cidadania dos sujeitos que sofrem de psicose (Ferreira, 2002a). No caso da instituição em causa, o principal objetivo de sua criação surgiu com a demanda de atendimento da própria clientela da Unidade Assistencial, que ao sair da internação necessitava de maiores suportes através de uma modalidade de cuidado externo e intensivo.

Os recursos terapêuticos e o dispositivo do HD são articulados com o sistema assistencial mais amplo, que se compõe de um conjunto de atividades fixas e da criatividade para inventar outras, tanto no espaço interno quanto externo, ou seja, no campo urbano circundante. O trabalho é realizado por uma equipe interdisciplinar que além de intervenções mais técnicas, participam ativamente do dia a dia da experiência. Neste sentido, cria-se um ambiente de convivência que ultrapassa os lugares técnicos e funcionais.

Propomos seguir alguns passos da construção muito singular de uma pessoa que encontrou neste dispositivo a sustentação de suas possibilidades de manter laços e um circuito de deslocamento, isto é, de ir e vir diariamente. Neste sentido, suas atividades delirantes e alucinatórias não a impedem de se manter em atividade, seja as do lar e ou as oferecidas pelo HD. Este núcleo é freqüentado por uma média de trinta e cinco pessoas adultas, homens e mulheres, com faixa etária variada e em sua maioria com o diagnóstico de esquizofrenia. O acesso se dá através de uma entrevista de triagem onde é avaliada a importância deste dispositivo para o paciente e a partir daí o seu projeto terapêutico é elaborado.

Retomando os objetivos iniciais, de ter o caso clínico como unidade de análise, vamos abordar o acompanhamento de uma pessoa que a partir de uma internação e da mediação de sua saída, encontrou na oferta do HD uma possibilidade de estabelecer elos de ligação para a sua excêntrica existência.

 

Um Percurso Singular: os poderes da luz interior

Entendemos a escolha desta história que tentaremos reconstruir de forma muito incompleta neste momento, como paradigmática para refletir sobre as formas de sustentar a singularidade de uma existência psicótica. Além disso, sabemos que buscamos sempre saber o que poderemos derivar daí para pensar o que sustenta a própria subjetividade humana. Neste sentido, podemos ver nos esforços originais da psiquiatria – medicina da alma – uma resposta consoante com o espírito da modernidade, ou seja, a partir do estudo das doenças mentais poder ilustrar nossa mente e o meio circundante.

Dani, como nomearemos esta freqüentadora4 relativamente recente da psiquiatria, apesar de história longa de alteração psicótica de sua vida, tem atualmente 44 anos, é brasileira, negra, casada e mãe de dois filhos. Seu pai, 78 anos, é aposentado por invalidez pela psiquiatria, com história de tratamento irregular. E sua mãe, 72 anos, é do lar e, segundo o marido de Dani, tem problemas de saúde dos nervos e não faz tratamento.

Dani nos surpreende muito com sua excentricidade; sua forma de se vestir, seus jeitos e trejeitos, seus gestos finos, sua voz quase sussurrada e sua forma cuidadosa de se relacionar com os outros. Pode demonstrar momentos de irritabilidade, mas o tempo todo procura ser gentil e oferecer a sua gentileza aos outros. Ela tem poderes especiais por ter Nossa Senhora dentro dela, o que a faculta falar línguas e curar os outros. Suas mãos possuem poderes de cura, e ela gosta de nos tocar com seus dedos tão finos.

A maneira como chegou à instituição foi também bastante especial. Há dois anos ela compareceu ao ambulatório do Hospital Geral com a solicitação de que fosse feito um exame de DNA. Argumentava que era para provar para o seu marido quem ela era. Afirmava que seus filhos também teriam que realizar o mesmo exame. É como se ela pedisse a genética que vinculasse a sua família, desagregada em suas representações e na vida real. Dizia ela, eu não sei se bicho pode ter filhos, eu sei que a Gio (filha) nasceu de mim, fiz preventivo, mas não tenho certeza. Apesar de ter ido sozinha ao hospital, dizia não saber voltar para casa, neste sentido foi encaminhada para a unidade de psiquiatria como caso social.

A justificativa social para o seu encaminhamento para a unidade de psiquiatria foi acrescida da informação de que não havia nenhum familiar presente, seus familiares não poderiam buscá-la e leva-la para casa e dizia que não sabia voltar para casa. Não era difícil entender que o seu pedido era delirante, mas ela não parecia em crise, como neste hospital há uma certa noção da possibilidade de atendimento externo, mesmo com a presença do delírio, a justificativa para o encaminhamento foi estabelecida como da ordem do social e não devido ao quadro delirante, o que seria mais comumente utilizado anteriormente.

Portanto, ela foi internada por falta da presença de familiares e seu marido só compareceu no dia seguinte. O plantonista que a atendeu avaliou que, mesmo sem motivos emergenciais, a paciente se beneficiaria da internação, na medida que a equipe poderia observar melhor o caso e viabilizar o retorno ao tratamento anterior, que havia sido abandonado. Isto é, foi visto que ela já teria vindo ao ambulatório desta instituição e não tinha mantido o tratamento. Nesta avaliação inicial ela dizia que havia pessoas que a vigiavam por câmaras na luz. Eles querem me deixar nervosa, agressiva. Eu não sou.Tornava-se emotiva e chorava ao dizer isso. Ainda foi observado neste contato que ela apresentava pensamentos de conteúdo persecutório e atitude de escuta alucinatória.

A partir de seu prontuário anterior foi constatado que o seu primeiro contato com esta instituição ocorreu em 1995, por indicação de um amigo da família, onde permaneceu internada durante dois meses. Após a internação foi proposto o acompanhamento ambulatorial, mas este foi abandonado. Se durante a internação não foi possível o estabelecimento do dispositivo de intermediação, essa continuidade não se sustenta. Além disso, o atendimento ambulatorial tem pouco sucesso nestes pacientes mais isolados.

Dani informou que estudou até a quarta série primária e que tinha uma vida normal. Teria trabalhado como auxiliar de serviços gerais por mais de quatro anos, mas com algumas interrupções.

Possui documentação completa e guarda estes documentos com cuidado, relatando que seu marido, que é biscateiro, seria dono de uma empresa e quer pegar seus documentos para fraudá-los, no intuito de ‘sujar’ o seu nome (Sic).

Segundo o casal, eles se uniram consensualmente em 1980 e após dez anos residindo juntos decidiram se casar.

A história patológica de Dani teria começado em 1994, quando apresentou alterações de comportamento, isolamento, clinofilia e perda do apetite. Segundo informações anteriores, apresentava semblante triste, idéias de suicídio e comunicação limitada por gestos, o que dificultava o entendimento com a família.

Retornando à internação de dois anos atrás, ela permaneceu durante uma semana e depois obteve licença médica de fim de semana, mas não retornou no dia previsto, recebendo alta por abandono. Três dias depois, Dani reaparece no serviço e é internada. Agora seus delírios se apresentavam de forma mais franca, dizia ter um demônio dentro dela. Também se referia a uma visão de luz ou de Nossa Senhora. Apresentava alentecimento do pensamento, psicomotricidade inibida, atitude desconfiada e discurso de caráter persecutório.

Após esta rápida reinternação foi lhe oferecido um acompanhamento ambulatorial, que é feito com sessões semanais ou quinzenais, porém, ela não respondeu a esta modalidade de oferta, diante disto, foi encaminhada ao HD. Respondeu muito bem a esta modalidade diária de cuidados. Durante a sua internação desenvolveu um amor especial por um professor de enfermagem. Amor sublime e idealizado, compondo um casal imaginário. Acredita que este também a ama. Às vezes ela comprava presentes curiosos para ele, por exemplo, uma chave de fenda, que seria para ela ajuda-lo a consertar o carro.

Seu programa terapêutico inclui a indicação do neuroléptico regular, mas não mantêm esta regularidade, apesar de não se opor a aceita-los quando é lembrada. Alguns freqüentadores tomam a medicação no HD por falta de acompanhamento e autonomia em casa. Apesar das agressões físicas não aparecerem com freqüência, ela teve um atrito com o marido, onde quebrou o seu celular e este o joga em sua cabeça. Depois deste golpe afirma ter visto uma luz e que algo entrou em seu corpo.

Outro delírio persistente é o de que ela é feita de metal. Mostra a maçaneta para comparar com o seu corpo. Do metal ela afirma ser uma máquina, uma máquina extraplanetária. Apesar de vir regularmente, sua participação nas oficinas não envolve um engajamento real. Participa, de forma um pouco dispersa, de várias oficinas: convivência, café dançante, expressão simbólica, culinária e itinerante (atividades externas, centros culturais e outros). Além das oficinas, dispõe de atendimento individual semanalmente. É interessante observar que, apesar de se apresentar com um corpo com maneirismo e inibição psicomotora, ela dança muito bem e com ótimo ritmo. Quando tem festa, lanche coletivo, ela colabora com a elaboração dos pratos e mostra-se atenciosa com as pessoas, procurando servir a todos que chegam.

Depois de algum tempo deste acompanhamento, ela conseguiu organizar melhor a sua conduta e o seu funcionamento mental. Continua apresentando a glossolalia (mistura de neologismos, sons imitativos, que diz ser uma língua) e delírios como o de influência de Nossa Senhora dentro dela. É esta influência que lhe dá poderes de falar línguas e suas mãos podem curar doenças. É também muito prestativa.

Como já dissemos, sua freqüência ao HD é assídua e ela chega cedo na instituição. Gosta de entrar antes na enfermaria para conversar com as pessoas conhecidas (porteiro, técnicos e outros pacientes). Apesar de morar afastada do local, em uma comunidade pobre, afirmou que vinha caminhando de sua casa até ao HD, talvez por falta de dinheiro. Disse que levantava as cinco horas e antes de sair preparava o café da manhã para os filhos, um rapaz, do qual se orgulha, pois tem trabalho fixo numa empresa conhecida, e uma filha adolescente, com a qual se preocupa bastante. Apesar de idealizar seu relacionamento com esta e demonstrar que cuida dela, sua filha usa drogas e tem relacionamentos com pessoas que ela não aprova. Isto é, demonstra preocupações normais de uma mãe de filha adolescente, mais suscetível de se envolver com o tráfico e com maus elementos. Em entrevista familiar foi observado que a filha não demonstra respeito e tolerância para com ela, a considera louca.

Segundo os familiares, ela consegue manter algumas atividades domésticas. Sua relação com o marido é ambígua, sua fantasia amorosa pelo professor é mantida platonicamente como sendo o amor verdadeiro. Neste sentido, seu casamento com o marido é colocado em outro plano, como se não tivesse mais validade. Mas sua ambigüidade surge quando fala de possíveis amantes do marido e estas aparecem como rivais, e o seu ciúme acaba se expressando.

Como minha relação com o setor é no lugar de professor, como supervisor das estagiárias de psicologia, com quem ela sempre estabelece bom contato, ela me trata com reverência e uma certa cerimônia. Talvez pelo meu nome, geralmente as pessoas não observam meu traço indígena, mas ela não deixou passar, ao ser convidada por uma estagiária para ir até ao campus da universidade me visitar, ela comentou: vamos ver o índio? Para a surpresa da equipe, ela detectou um traço do longínquo antepassado que os outros não enxergaram. Geralmente dirige solicitações institucionais a mim; conseguir passe livre para o transporte – que demorou muito – computador para o HD e ultimamente quer que eu a ajude a criar um serviço de manicure, para que ela possa atender as pessoas da instituição. A partir de várias de suas falas, podemos entender que ela gostaria muito de ter uma função no hospital. Já justificou este desejo no sentido de estar próximo de seu amado. O fato de não ter dinheiro também a preocupa, pois são pobres e ela gostaria de ter melhores condições materiais.

Mais recentemente ela vem me solicitando que a ajude em sua tarefa de salvar o mundo, ela recebeu de Jesus a tarefa de salvar o mundo, mas é uma solicitação muito grande para ela, por isso quer que a ajude, pois é demais para ela sozinha, digo que realmente não pode dar conta de tanta coisa sozinha, por isso ela pode contar com este lugar onde pode dividir responsabilidades. Suponho que ela relaciona esta função de salvação atribuída pelo Cristo com a ajuda aos outros, a doação e o amor aos outros. Ao perguntar como está se cuidando, ela diz que está muito magrinha, tem uma força (curativa) dentro dela, mas seu corpo é frágil. O acesso desse outro que a visita parece ser feito através da experiência fantástica ou da visão. Indago se isso ocorre com ela dormindo ou acordada. Ela diz que não dorme, nunca dorme, apenas relaxa. Portanto, parece que são experiências que ocorrem neste estado que ela chama de relaxar. Visões, mensagens, sensações corporais, vivências fantásticas que são inseridas no registro da crença.

Apesar de ser a entidade carro chefe da psiquiatria, o conceito de esquizofrenia ultrapassa a idéia de uma doença. Dani é diagnosticada como esquizofrênica catatônica. Na tradição estrutural, a pessoa não tem esquizofrenia, ela é esquizofrênica (Ey, 1982). Não se trata, portanto de uma condição de crise, mas de uma forma de existência. Uma condição que Ey (idem) entende como resultante de um processo negativo, de dissociação, e de uma reconstrução do mundo numa perspectiva de um eu que perde a regência da realidade compartilhada, e o reconstrói subjetivamente.

Para Freud [1924] a diferenciação principal das condições psicóticas em relação às neuroses, é essa maneira de reconstruir a realidade que foi refutada a partir do desejo. A derrocada do eu é compensada por Dani através da potência a mais de que é dotada por Cristo e Nossa Senhora para curar os sofrimentos dos humanos e salvar o mundo. Isto, através de atos de doação. Suportada nesta perspectiva, ela é movida diariamente para sair de sua pobre situação material e afetiva que circundam a sua vida comum, e encontrar o espaço do HD, onde encontra possibilidades de fala e de exercício de suas ilusões delirantes, mas que são também incumbências do grande outro. Isto é, neste campo de circulação, de ação, de linguagem e sentidos, ela compartilha e mantêm suas exigências, campo este que é comum a todos nós e nos sustenta enquanto humanos.

Ao entender o percurso de Dani como singular não estou dizendo que haja aí uma grande criatividade, no dia a dia, suas demandas e produções podem parecer bem padronizadas, as estereotipias revelam certo empobrecimento, mas isto não impede que ela possa dar respostas criativas e soluções que permitem a sua sobrevivência no seu espaço de circulação muito próprio.

Portanto, é singular a maneira como ela consegue cerzir seus retalhos de eu e manter sua circulação no espaço urbano, onde ela pode imprimir seus traços próprios. Ao procurar o hospital geral para certificar para o marido que ela é ela, buscava também proteção para as suas experiências rechaçadas pelos familiares como coisa de maluquice.

Ao ser encaminhada para a psiquiatria, não criou nenhuma oposição. Já havia dito que não saberia voltar para a sua casa sozinha, ou seja, procurava abrigo, uma demanda que não é simples, ela buscava junto a medicina um acolhimento para seu ser ameaçado pela não existência, já que nem os laços geracionais estavam garantidos. Esta demanda foi cunhada de social, termo comum para a situação de indigência. É social, na medida em que ela se via pressionada e excluída do convívio social, pois suas produções não cabiam neste social, quanto mais tentava responder a este não cabimento, mais era excluída como maluca. Ao enfatizar o significante saúde mental a reforma psiquiátrica brasileira procurou contrapor-se ao estigma da negatividade do asilo. Trata-se de arranjo de forças, de uma tentativa de positivar um campo antes negativizado pela cultura manicomial e excludente (RINALDI, 2002).

 

Considerações Finais

Quando se compartilha a clínica intensiva, ela se torna bem mais leve para todos (Ferreira, 2005). Sobre o médico, muitas vezes recai a grande carga, seja da família, querendo resultados e explicações diagnósticas e terapêuticas, seja devido ao lugar que este ocupa no discurso do mestre - um lugar de saber e domínio sobre o outro.

O trabalho de elaboração desta passagem da internação para o tratamento e para a vida externa é, ao nosso ver, fundamental na continuidade do mesmo. Se não houver uma posição firme e de confiança dos terapeutas, a reinternação surge como resposta à demanda não transformada em comprometimento subjetivo. Para que o paciente possa se comprometer com seu tratamento, é necessário que encontre no outro receptividade e suporte. A saída da internação é um momento sensível e exige atenção do projeto da reforma psiquiátrica, pois dele depende boa parte de seu sucesso.

O vínculo criado na internação permitiu que esta paciente viesse ao HD. Havia ainda um certo efeito de tração que a fazia mover-se e produzir alguma mudança em sua vida, ela criou um amor especial por um membro da equipe, estar na instituição representava estar próximo de seu amor. Foi possível o surgimento do trabalho de Eros, ocorrendo aí um laço que vem permitindo a continuidade de seu atendimento externo. Se a sua erotomania é frustrante, nela este amor ideal tem mantido seu lugar de ideal e favorecido a criação de seus arranjos para o cotidiano. Há algum tempo ela vem reivindicando novas possibilidades de trabalho real, ainda ligados à instituição. Idealiza aquilo que está próximo ao hospital - o bairro, as escolas - neste sentido conseguiu vaga para a sua filha numa escola ao lado deste.

Este trabalho vem refletir um pouco de minha perspectiva nestas mais de duas décadas de instituição psiquiátrica, onde tenho tentado sustentar a articulação assistência, ensino e pesquisa, além do esforço de manter a interlocução interdisciplinar e de intervir sempre contra o corporativismo. A criação do outro (os enfermeiros, os psicólogos os médicos, etc) é investido do narcisismo das pequenas diferenças, que ao radicalizar-se, destrói as condições éticas e transforma a convivência em algo insuportável. Neste sentido, a práxis da clínica suportada na pluralidade (Ciaccia, 2005) investe de grande importância para ajudar a superar as tão freqüentes desavenças interprofissionais.

 

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Notas

1 Uma versão abreviada foi apresentada no ULAPSI – SP/Abr/2005.
2 Figueiredo define estes dois termos como se segue: “A construção é um arranjo dos elementos do discurso visando uma conduta; a interpretação é pontual visando um sentido.(...) A finalidade da construção deve ser justamente a de partilhar determinados elementos de cada caso em um trabalho conjunto, o que seria impossível na via da interpretação (FIGUEIREDO, 2004:78).
3 Uma primeira descrição deste caso foi Mostra de Extensão e na Semic/UERJ (2004) pelas bolsistas de extensão Eveline Emile Ribeiro e de pesquisa, Ana Maya Szuchmacher, ligadas aos projetos por mim coordenados.
4 Ao termo Usuária, utilizado pelo discurso da Reforma, preferimos este termo.

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