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Psicologia para América Latina

versão On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  n.10 México jul. 2007

 

PERCEPCIÓN Y VÍNCULO CON EL LUGAR

 

Movimentos migratórios na metrópole de São Paulo no século XXI: um estudo qualitativo1

 

 

Eda Terezinha de Oliveira TassaraI; Elaine Pedreira RabinovichII

IUniversidade de São Paulo
IIUniversidade Católica do Salvador

 

 


RESUMO

Esta pesquisa visa caracterizar a(s) figura(s) do migrante brasileiro que teve a cidade de São Paulo como ponto de chegada. Apóia-se na análise de um sistema atitudinal e perceptivo denominado capacidade estratégica de incorporação, adaptação e satisfação. Foram realizadas entrevistas sobre histórias de vida de 110 migrantes em uma zona central do Município de São Paulo. Buscaram-se as expectativas dos movimentos de vinda, permanência e retorno. Três grupos focais foram realizados objetivando subsidiar o aprofundamento da análise. Os resultados indicaram a diferenciação em dois grupos de migrantes segundo o teor de satisfação a partir do que se sugere recomendações quanto à intervenção.

Palavras-chave: Migrantes, Brasileiros, São Paulo.


ABSTRACT

This research aims to characterize the figure(s) of the Brazilian migrant that had the city of São Paulo as his/ her arrival point. It is based on the analysis of an attitudinal and perceptive system called strategic capacity of incorporation, adaptation and satisfaction. Interviews were conducted with 110 migrants in the center area of São Paulo about their life history. Three focal groups were also conducted aiming to deepen analysis. Results indicate the differentiation of the migrants in two groups following their feeling or not feeling satisfaction about living in the city. Recommendations as to intervention are suggested.

Keywords: Migrants, Brazilian, São Paulo.


RESUMEN

Esta investigación pretende caracterizar la(s) figura(s) del migrante brasileño que tuvo la ciudad de Sao Paulo, Brasil, como punto de destino. Se apoya en el análisis de un sistema actitudicional y perceptivo llamado capacidad estratégica de incorporación, adaptación y satisfacción. Fueron realizadas entrevistas acerca de historias de vida de 110 migrantes del zona central del municipio de Sao Paulo. Se buscaron expectativas de los movimientos de llegada, permanencia y regreso. Fueron realizados tres grupos focales con el objetivo de dar subsidios para profundizar en el análisis. Los resultados indicaron la diferenciación en dos grupos de migrantes según el índice de satisfacción, a partir de lo cual se sugieren recomendaciones en relación a la intervención.

Palabras claves: Migrantes, Brasileños, São Paulo.


 

 

Movimentos migratórios na metrópole de São Paulo no século XXI: um estudo qulitativo

Ao longo do século XX, o exercício da ciência histórica configurou uma nova forma narrativa que, paulatinamente, foi legitimada pela crítica da cultura - a chamada história narrativa (Devoto, 2003). A história, sob tal configuração, apresentar-se-ia como uma ciência ideográfica, do espírito, enfocando os tempos curtos (Braudel, 1966), o tempo dos acontecimentos, aferrada a idéia de que o passado inscreve-se em desdobramentos temporais contidos na dinâmica ininterrupta da mudança histórica, de estreita relação entre passado e presente. Seu método privilegia a compreensão, ganhando, com isto, complexidade e riqueza de matizes.

Se os fluxos migratórios podem, inquestionavelmente, ser analisados como decorrentes da reordenação do sistema mundial de produção (Tassara & Damergian, 1996, Tassara, 2003), determinando correntes migratórias que se deslocam de forma pré-definida, isto não significa uma plena autonomia frente ao processo decisório que direciona as escolhas de migrantes, pois, estas são pré-configuradas pelo próprio sistema de produção e pelos símbolos que definem o pertencimento adequado dos sujeitos ao mundo referendado pela ordem política hegemônica (Agamben, 2003), configurando as forças psicossociais que os mobilizam. (Fernandes, 1969). Hoje, estas forças se espraiam pelo sistema-mundo (Wallerstein, 1993).

No estudo dos fenômenos migratórios contemporâneos, contudo, a história narrativa não pode deixar de buscar aportes na história analítica (Devoto, 2003), de longo tempo, a história do ritmo lento de Braudel (1966), indagando em enquadramentos cronológicos amplos e em espaços continentais, formulando explicações que atravessam espaços e cronologias. É em tal contexto, que a história narrativa deve buscar compreender a inserção e interação dos (i - e)migrantes na sociedade na qual se situam.

Serão aqui relatados os resultados de um estudo, realizado prevalentemente sob o enfoque da história narrativa, estudo este sobre migrantes brasileiros vindos, ao longo dos últimos anos do século XX e dos primeiros do século XXI, de diferentes partes do Brasil para a metrópole paulistana. 2

É conveniente lembrar que a cidade de São Paulo construiu-se através de três momentos migratórios distintos:

a) as migrações iniciais: aquelas que ocorreram ao longo dos primeiros séculos de "ocupação" do Brasil, constituindo-se de mandatários e funcionários da Coroa, representantes diplomáticos, missionários, comerciantes, a diáspora africana, populações indígenas, grupos de exilados ou punidos, e outras categorias, implicando direta ou indiretamente, a política de ocupação do território e construção do Estado brasileiro;

b) as migrações de massa: resultantes de ações de políticas públicas dirigidas especificamente à promoção e implementação de movimentos migratórios em ampla escala, principalmente de europeus, mas, também, de asiáticos, exercendo-se de forma continuada, ininterrupta, durante mais de um século e, em contraposição a estas,

c) as contemporâneas: migrações que podem se constituir em ampla escala, mas que não resultam de ações de políticas públicas dirigidas à sua promoção, embora possam decorrer, e decorram, de outras políticas públicas setoriais ou da ausência de políticas voltadas para o suprimento de deficiências regionais ou locais referentes ao desenvolvimento social, econômico e cultural, determinando decisões pessoais de deslocamento.

O Brasil, em seus três primeiros séculos (migrações iniciais), construiu uma sociedade que tinha pouca clareza de sua identidade cultural, face à diversidade de sua composição histórico-étnica e um Estado que era fraco, em decorrência dos comprometimentos de suas elites políticas com a colônia. A partir do século XIX, e constituindo-se plenamente no século XX, no entanto, o Brasil consolidou-se como uma sociedade plural, complexa, heterogênea, diversa social e etnicamente, "herdeira de muitos passados", como qualificara H. Arendt a América Latina (Arendt, 1981). Ao longo deste último século, as idéias de nacionalismo, o esporte e a cultura popular, as formas de sociabilidade nas novas áreas de expansão urbana transferem-se para a sociedade como um todo, cristalizando a idéia e a identidade de "brasileiro" - um povo diverso, definido tanto pelo seu nascimento nos territórios determinados pela geografia política do Brasil como pela sua opção em participar dessa sociedade, falando português, e inscrito na simbologia nacional brasileira, contextualizada prevalentemente pelas novas formas de sociabilidade urbana (Devoto, 2003).

Ao longo do tempo, a cidade de São Paulo construiu-se metrópole, estruturando-se sobre uma origem concernente as suas fundações e aos movimentos de pessoas que a configuraram e por ela foram se configurando e cuja identidade reflete-se sob forma de imagens - sua "alma". Tais fundações e movimentos, no entanto, só podem ser compreendidos em espaços com marcos bem mais vastos que os dos limites da cidade e do Brasil. O fato é que hoje, conforme Calligaris (2005), São Paulo se afirma no território nacional como metrópole, uma cidade que ocupa um lugar específico na mente do brasileiro - um aglomerado de casas e gente que se tornou cenário preferido dos sonhos que alimentam desejos de conquista e variedade. São Paulo tornou-se a autêntica metrópole nacional cristalizada, pois, além de uma grande cidade, é vista como conseqüência não prevista do esforço humano espontâneo, como um produto do caráter plástico da capacidade adaptativa do homem e, no dizer de Florestan Fernandes, "... dos anseios nacionais que orientam, no Brasil, essa capacidade na direção da conquista do futuro" (Fernandes, 1969). Hoje consiste na integração dos vários Brasis em uma sociedade de massas, de caráter nacional, inserida no mundo global, no qual o agente anônimo escreve sua história social. É assim que a metrópole se torna pólo de atração para o campo e a província, para os poucos conformados com seu destino, para os que sonham com mudanças e liberdade. É assim, também, que a metrópole se transforma em casa das frustrações e dos atalhos corruptos e/ou brutais de quem quer seu sonho realizado já, a qualquer custo.

Sonhos e devaneios necessitam encontrar-se com o mundo real para se concretizarem em conquistas e, para tornarem-se realidade, necessitam de repertório adequado que possibilite ao seu portador, vislumbrar condições, apoiar-se nelas e transformá-las em meios para atingir suas aspirações, para satisfazer seus devaneios no presente ou aproximá-los da realização-satisfação em futuro próximo. A este repertório denomina-se capacidade estratégica de inserção, incorporação, adaptação de seu possuidor na metrópole paulistana - um potencial criador de meios de satisfação de necessidades correspondentes ao ideal de imagem da vida e do comportamento urbano desejado, do pertencimento e da identidade considerados adequados ao mundo e à vida social, da cultura urbana e da urbanidade, do direito de participar e da cidadania (MOSER et al., 2005)

Tendo em vista esclarecer o que caracteriza a(s) figura(s) do migrante brasileiro que, contemporaneamente, tem a cidade de São Paulo como ponto de chegada, desenvolveu-se a presente pesquisa. A partir de uma análise das relações entre as diferentes regiões do tecido sócio-urbano de São Paulo (distribuídas em torno do dipolo centro-periferia de configurações paisagísticas definidas por seus paradigmas urbanísticos) e redes sociais (por meio das quais se imprime dinâmica à vida cotidiana dos personagens-migrantes sob forma de movimentos por eles e com eles produzidos nos sócio-ambientes), estruturou-se o método de investigação. Ou seja, um sistema de objetos e ações: a) interligando espaços e territórios sociais, culturais e geográficos, b) selecionando sujeitos e localidades, c) constituindo instrumentos e técnicas de levantamento de informações considerados heurísticos para produzir o esclarecimento desejado, d) desenvolvendo sistemas de análises de eventuais fatores caracterizando personagens-tipos-figuras. Em outras palavras, propiciando a compreensão do fenômeno tendo como referência o conceito, empiricamente verificado, do migrante brasileiro contemporâneo em São Paulo.

A referida compreensão apóia-se na análise de um sistema atitudinal e perceptivo, aqui denominado capacidade estratégica de incorporação, adaptação e satisfação dos migrantes na nova vivência urbana. Compreendemos capacidade estratégica como o potencial do sujeito em se colocar na direção do que considera desejável. Está relacionada, portanto, à sua capacidade de reinventar o cotidiano, a partir do seu próprio repertório e daquele adquirido a cada dia nas redes de relações e contatos, frente às ideologias do urbano, de forma correlacionada com a busca pessoal pela satisfação de sua aspiração. Esse sistema atitudinal, inscrito em contexto psicossocial, articula dimensões sociológicas, antropológicas e psicológicas, vindo a instrumentalizar a análise dos atributos de sujeitos migrantes concretos. Capacidade estratégica cumpre uma função operacional na investigação na medida em que permite a identificação de potencialidades positivas e negativas caracterizando os sujeitos pesquisados frente ao teor de sua incorporação e adaptação na cidade e de sua satisfação no que se refere aos motivos que o levaram a mudar de cidade.

Tal sistema perceptivo-atitudinal teria, por hipótese, influência sobre o maior ou menor sucesso na:

Incorporação - atributo que diz respeito à inserção econômica do migrante, por meio das relações de trabalho, estabelecidas na cidade, no plano formal ou informal, com emprego ou trabalho auto-empreendido (free lancer);

Adaptação - atributo referente às condições objetivas de conhecimento, localização e movimentação dentro do novo espaço geográfico, em função de suas necessidades (espacialização da identidade);

Satisfação - refere-se a "...um sentimento resultante da percepção de um balanço positivo entre o nível de expectativa, as realizações concretas do ator ou a antecipação dessas realizações." (Pastore, 1969, p. 13)

 

A cidade e a migração contemporâneas

A configuração sócio-urbana contemporânea se expressa a partir de uma transformação no cenário mundial no que se refere a um padrão tecnológico-informacional instaurado no processo capitalista, gerando um "novo protagonismo metropolitano". Pode-se então dizer de um novo sistema metropolitano que se caracteriza por articular reticularmente as metrópoles como cidades globais, ou seja, cada qual como um "ponto nodal" que desempenha as funções necessárias à manutenção da coesão da rede mundial (Meyer, Grostein & Biderman, 2004, p. 22).

A metrópole se torna atrativa para os objetivos capitalistas mediante atributos que assegurem "vantagens locacionais baseadas no seu bom funcionamento como máquina operacional e máquina social" (idem, p.23) e passa a definir-se como espaço de fluxos sejam eles de capital, de tecnologia, populacionais, etc.

Outro fator que demarca a transformação da cidade moderna para o caráter urbano contemporâneo se dá na mudança do processo industrial para o de serviços. Este fator fomenta a pulverização espacial da ocupação periférica ou da população situada nas "franjas urbanas" (Taschner, 2001) constituídas principalmente no momento industrial de São Paulo, fomentando novas centralidades. Esta idéia do que se considera central tem fundamentos políticos e ideológicos e coincidirá com o centro de poder.

Com a modificação da lógica que estrutura a metrópole contemporânea, o centro político da antiga vila comercial paulistana se torna anacrônico, mediante o deslocamento do ponto central da cidade que é transposto para outros espaços da cidade como centros financeiros empresariais.

Para tanto é preciso considerar que o processo de periferização na cidade de São Paulo, a lógica centro-periferia que se veicula nas literaturas urbanas, requer diferenciar tal especificação em suas referências geométrica e social. A primeira está articulada a um eixo diametral circunscrito no território da cidade, partindo do ponto de origem da constituição urbana da cidade, conforme apresentado anteriormente. Contudo, não é possível afirmar que o acesso à área central seja definidor da classe social ou do acesso ao modelo urbano disseminado globalmente e instituído localmente. Esta situação se expressa na fisionomia da cidade de forma a evidenciar uma miscigenação social das áreas da cidade, pois em um mesmo território convivem as diversas classes sociais e o centro urbano geométrico é continente para o que se denomina de periferia social.

Em síntese, nesta lógica é possível verificar que a estrutura morfológica da cidade se compõe de modo a conter, em uma proximidade espacial, os modos de vida "qualificado" e "precarizado", tanto no centro quanto na periferia geométrica.

 

Padrões de crescimento da população paulistana - centro x periferia

O movimento populacional que se configura na região Metropolitana de São Paulo obedece ao "padrão radiocêntrico de expansão da cidade", que gera um deslocamento da população das áreas mais centrais para regiões periféricas do município e para outros municípios.

Observa-se, segundo Jannuzzi e Jannuzzi (2002), "...um movimento de esvaziamento populacional absoluto em ritmo crescente no tempo e no espaço se processando a partir dos distritos mais centrais". Constitui-se em um processo no qual as taxas de crescimento demográfico vão se tornando menores e negativas na região central, propagando-se tal tendência para os distritos circundantes mais próximos, sendo que os distritos mais periféricos passam a crescer com taxas bem mais elevadas.

Estudo recente (Dias, 2004) do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-CEBRAP) ilustra de forma dramática o comportamento dessas tendências. Ancorado no conceito de "Fronteiras Urbanas", referido a regiões pobres, não necessariamente periféricas, com pouco acesso a serviços públicos e com grande crescimento demográfico, o estudo mostra que, para uma taxa de crescimento de 0,9% aa. entre 1991-2000 no município de São Paulo, as áreas de fronteiras urbanas da região metropolitana apresentaram um crescimento populacional de 6,3% aa.

As migrações tiveram grande importância no inchaço nessas áreas de fronteira: 2,1 milhão de pessoas passaram a nelas residir na década de 1990, sendo que 703 mil vieram de outros Estados brasileiros e, destas, 521 mil vieram do Nordeste.

 

Tendências do movimento populacional em São Paulo: 2000-2010

O arrefecimento do processo de evasão populacional dos distritos centrais seja como: resultado de iniciativas do poder público nas três esferas; re-acomodação contemporânea do padrão radial-centrífugo de expansão da metrópole e da população; conseqüência da pressão dos movimentos sociais de luta por moradia, com destacada atuação nas regiões centrais, ou ainda como resultado de condicionamentos de vetores do mercado imobiliário, nos leva a apontar para a necessidade de identificar empiricamente os pólos, os fluxos e as interações, entre esses espaços centrais em redefinição e as "fronteiras urbanas" em permanente e conflituoso processo de expansão.

Essas considerações sugerem ainda:

•A necessidade de interpretar a dinâmica migratória intra-municipal na escala metropolitana, entendendo-se as "fronteiras urbanas" como áreas de evidência e territórios privilegiados de observação e de conhecimento da dinâmica migratória da cidade de São Paulo;

•A importância demográfica econômica e cultural atribuída à migração nordestina, constitutiva de parcelas da malha física e sócio-ambiental do município, implica na estruturação de densas redes de sobrevivência e sociabilidade.

 

Método

A pesquisa se iniciou com uma primeira incursão no campo empírico por meio da realização de entrevistas com migrantes recém chegados a São Paulo, residentes tanto no centro quanto na periferia da cidade, compondo um quadro de informações sobre características de indivíduos migrantes, as interações entre os mesmos, entre regiões da cidade, as redes sociais de apoio e suas eventuais inter-relações.

Como primeiro resultado desta primeira sondagem, apareceu uma influência de redes sociais na distribuição espacial do migrante na cidade. Apreendeu-se, igualmente, sob forma de indícios, que o maior potencial de oportunidade de trabalho no centro da cidade em relação à periferia e os baixos custos de moradia na periferia em relação ao centro, seriam fatores alimentadores de um trânsito cotidiano de migrantes entre um e outro ponto espacial da cidade, resultando em um fluxo cotidiano em busca de trabalho e a de uma moradia acessível, própria ou alugada. A partir de tais informações empíricas, derivadas de uma ré-conceituação teórica, constitui-se o método da investigação propriamente dito.

Assim, o primeiro critério utilizado para a seleção de sujeitos a compor a pesquisa em profundidade, foi o da definição de um território para localizá-los. Com base em um estudo sócio-demográfico resultando na identificação dos processos migratórios como determinantes para a configuração da metrópole, adotou-se como critério de escolha dos sujeitos da pesquisa, estarem os mesmos no território de área central e que apresentasse adensamentos de migrantes, sendo escolhido o distrito de Santa Cecília.

A seleção de sujeitos a serem entrevistados efetuou-se com base em duas alternativas de abordagem: 1) entrevista direta com pessoas em trânsito ou em situações de aglomeração em moradias, locais de trabalho ou de estudo e de lazer no distrito Santa Cecília e adjacências, escolhidas aleatoriamente e 2) entrevistas com pessoas indicadas por outras (bola de neve).

Apresentam-se aqui os dados obtidos por meio da análise qualitativa que abrangeu um total de informações advindas da realização de 110 (cento e dez) entrevistas, com sujeitos-migrantes maiores de 16 anos, residentes há menos de seis anos tanto no Município de São Paulo quanto na sua Região Metropolitana, incluindo também migrantes chegados no instante da realização da entrevista, mas manifestando a intenção de permanecer em São Paulo.

A referida coleta de informações foi realizada na região central do Município de São Paulo, região administrativa de Santa Cecília. O período de realização da coleta de informações foi de outubro a novembro de 2004. A equipe mobilizada para a referida coleta envolveu doze pesquisadores. Na coleta das informações buscou-se distribuir os migrantes selecionados em função do uso que estes faziam do território em pauta, ou seja: pontos de chegada e saída, local de moradia, local de trabalho e/ou de estudo. Para a coleta de informações, foi utilizado um questionário guia, levantando informações sobre o movimento do migrante no território nacional, ponto de partida, local de nascimento e motivos determinantes da vinda; sobre características pessoais (sexo, idade); sobre o perfil do migrante (escolaridade, qualificação profissional e trabalho); foram também levantadas informações sobre fluxos de migrantes intra-urbanos (motivos de deslocamentos e distribuição espacial referentes ao local de destino, de trabalho e de moradia) neste território; foi ainda efetuado o levantamento de informações referentes às estimativas de formas e tempos de permanência e de redes de apoio e contato do migrante em São Paulo (existência e tipos de contatos, a quem recorreu quando chegou, com quem mora, etc); aprofundou-se também a investigação de características do perfil do migrante referentes aos motivos e expectativas mobilizadores de movimentos de vinda, permanência ou retorno.

Foram constituídos três grupos focais tendo como critério principal levantar informações que pudessem subsidiar o aprofundamento da análise dos dados obtidos das entrevistas, na direção da busca de elementos para a verificação do sistema de duas hipóteses já apresentado: 1) a localização no centro ou na periferia influencia os padrões de migrantes? 2) se as redes sociais são determinantes no processo de migração, elas influenciam os padrões de migrantes?

 

Análise das informações coletadas e geração dos dados qualitativos

O conteúdo das respostas às perguntas abertas foi objeto de análise tendo em vista chegar ao estabelecimento de classes semânticas organizadoras das informações sob forma de dimensões - categorias semânticas. Estas dimensões foram construídas por meio do método de derivação empírica de categoras de análise (Hutt & Hutt, 1974). Este método foi utilizado abstraindo-se das narrativas oferecidas pelos sujeitos pesquisados, informações sobre os motivos de vinda à cidade, sobre o que imaginavam aqui encontrar e o presumível alcance de suas metas.

Essa análise conduziu a sínteses consideradas pertinentes, cada uma delas representada por expressões e termos compatíveis com o significado da correspondente classe semântica. Assim tais classes semânticas compuseram as seguintes dimensões de análise: meios de mobilidade social, referências a vínculos afetivos, expectativas em relação ao ponto de partida e de chegada, imagens (positivas e negativas) da cidade e personagens representativos do falante.

Gerou-se então um sistema de análise com 38 dimensões e 364 itens, itens estes constituindo categorias mutuamente exclusivas de manifestação contidas em cada uma das dimensões e resultando em um grande conjunto de possibilidades lógicas de ocorrência de padrões de sujeitos-migrantes.

O significado das dimensões configuradas a partir das questões abertas, definiu-se conforme abaixo:

a. Meios de mobilidade social

Diz respeito à busca dos meios para ascender socialmente ou, pelo menos, meios para manter a condição social já existente. Expressam anseios de elevar o padrão de renda ou pelo menos manter o padrão alcançado. Os meios de ascensão social são buscados no campo do trabalho ou no campo cultural, incluindo acesso à educação formal superior. No que se refere ao trabalho, podem incluir busca de ocupações consideradas de melhor qualificação do que as que conseguiriam encontrar no local de origem. Foram identificadas 4 possibilidades-síntese e mutuamente exclusivas de processos de manifestação de meios de mobilidade:

a.1 Trabalho com maior renda - Quando o sujeito muda com a expectativa de encontrar trabalho que ofereça oportunidade de aumentar os ganhos, o que não conseguiria com a ocupação disponível no local de origem ou quando busca um outro tipo de ocupação considerada de melhor qualificação.

a.2 Trabalho para manter-se como está - Nesta possibilidade não há necessariamente expectativa de trabalho com melhor qualificação, mas qualquer alternativa de ocupação, desde que possa continuar mantendo a condição de renda alcançada no local de origem. Diz respeito principalmente aos sujeitos que migram em situações de secas quando dizem perder a condição de trabalhar e ganhar para a sobrevivência da família.

a.3 Evolução na carreira profissional - Diz respeito à busca de novas ocupações de trabalho consideradas de melhor qualificação e com possibilidade de maior renda. Diz respeito também a busca de aprimoramento profissional por meio da vida acadêmica ou da inserção em instituições/empresas que abram estas oportunidades.

a.4. Estudo superior - O sujeito considera o acesso ao grau superior em São Paulo como meio de ascensão sociocultural. Atribui melhor qualidade ao ensino superior em São Paulo, o que poderia vir a conferir um melhor status da pessoa, em comparação com as que estudam no local de origem do sujeito. Além da qualidade é relevante também à condição de acesso pelo menor custo.

b. Referência ao vinculo afetivo

Diz respeito à indicação de uma relação afetiva como fator que influenciou a decisão de vinda. A menção sobre a relação afetiva pode ter sido expressa diretamente, ou de forma indireta e estar implícita. Considera-se implícito o vínculo afetivo que não é referido como motivação imediata da vinda, mas que se revela ao longo da história contada. Esta dimensão apresentou cinco possibilidades mutuamente exclusivas:

b.1. Referência explicita sobre manter o vinculo afetivo: O sujeito menciona diretamente como motivo da mudança manter um vínculo afetivo já existente. Para tal, decide acompanhar um familiar ou vir ao encontro de alguém já instalado na cidade.

b.2. Referência explicita ao desejo de recuperação de um vinculo: Diferentemente da possibilidade anterior, atribui-se como motivo principal da vinda, recuperar o contato com pessoa afetivamente importante, alguém que se tenha afastado face à sua vinda para São Paulo.

b.3. Referência explicita sobre busca de vínculos afetivos: Diz respeito à busca de encontro com pessoas existentes, ou seja, que façam parte do grupo familiar ou pessoas desconhecidas que compõem o universo imaginário. Percebe-se, na forma de expressão do desejo deste encontro, a presença de um forte conteúdo afetivo. Por exemplo, conhecer o pai ou a irmã desconhecidos.

b.4. Referência explicita sobre conquistar vínculos afetivos: O motivo declarado da vinda é a conquista de um vinculo afetivo até então inexistente.

b.5 Referências implícitas: Refere-se a todas as categorias acima (b.1 a b.4) inferidas de falas do entrevistado, indicando um certo vazio subjetivo, parecendo indicar que o modelo de papel social e de identidade do sujeito falante, ainda não tenha sido alcançado - ser esposa, ter um companheiro, por exemplo.

c. Expectativa em relação ao eixo ponto de partida e ponto de chegada (São Paulo)

Refere-se à expectativa atinente à visão de futuro projetada pelo entrevistado. O futuro pode ser descrito como um tempo concebido como ideal, considerando-se a mudança como um marco importante que divide a vida em antes e depois da mudança, ou também como uma intenção mais pragmática de construção do cotidiano. Apresenta-se sob forma de três possibilidades mutuamente excludentes:

c.1. Ficar: quando o sujeito menciona o desejo de se estabelecer em São Paulo e não menciona o desejo de voltar para o local de origem. Demonstra ter construído já uma clara definição de suas pretensões.

c.2. Voltar: quando o sujeito menciona claramente o desejo de voltar para o seu lugar de origem.

c.3. Ir e vir: quando o sujeito vem para São Paulo em busca de uma renda em determinados períodos do ano ou, eventualmente, para suprir a ausência de trabalho no local de origem em períodos de intempéries climáticas ou econômicas.

c.4. Indefinido : quando o sujeito não definiu o que pretende fazer (ficar ou voltar) ou não explicita uma clara posição sobre esta questão.

c. 5. Nada consta: quando o sujeito não oferece informações a respeito desta dimensão.

d. Sonhos

São ideais que aparecem nos conteúdos das falas dos entrevistados, expressando representações de modelos referentes ao que seja viver bem e ser feliz: reconstrução da vida, casar e trabalhar, fazer a vida, crescer, viver a plenitude de um grande amor, poder montar o próprio negócio, ganhar dinheiro, etc. O conteúdo das falas implica em conotações sobre o que seja certo ou errado, constituindo um núcleo articulado de elementos que podem sugerir representações de urbanidade ou civilidade.

Entre os conteúdos expressos nos depoimentos, encontram-se sete diferentes tipos de sonhos, incluindo-se aí a categoria complementar "não sonho". São eles:

d.1. Reconstrução da vida: quando o sujeito considera São Paulo um espaço privilegiado para construir ou reconstruir um ideal de vida almejado. Pode-se mencionar uma combinação de elementos, percebidos como significativos para a (re)construção da vida; entre eles: oportunidades de trabalho, de estudo, conhecer pessoas diferentes, vivência cultural.

d.2. Casar e trabalhar ou não deixar os filhos passarem fome: o sujeito considera que, com a mudança para São Paulo, conseguirá mudar o seu destino, em contraposição ao destino que, como uma espécie de crônica anunciada, vaticina para os habitantes da cidade de origem: ausência ou limitação de perspectivas de trabalho, de ascensão social, de conhecer novas pessoas e constituir família, etc.

d.3. Tornar-se independente do ponto de vista não material: quando o sujeito percebe o afastamento da proteção do grupo familiar e do seu local de origem, como possibilidade de obter conquistas pessoais, vivendo novas experiências e enfrentando desafios em direção a uma maior autonomia,liberdade e desenvolvimento pessoal.

d.4. Tornar-se independente do ponto de vista material: quando o sujeito considera a capacidade pessoal de aferir renda como condição necessária para se tornar autônomo e independente da família. Está presente também a aspiração de poder ganhar o bastante para "mandar dinheiro para família" tendo em vista melhorar a condição material de vida da mesma.

d.5. Enriquecer para voltar: quando o sujeito considera São Paulo uma cidade promissora para a realização de seus projetos de elevação de padrão de renda, o que não é possível no local de origem. E que, quando confrontado com perspectivas de futuro, manifestando o desejo de voltar em uma nova condição econômica, vislumbrada como uma maior renda ou como um capital suficiente para investir em negócios no local de origem.

d. 6. Nada consta: quando não ha nenhuma menção sobre o tema.

e. Imagens da cidade

Ao contar sobre a experiência vivida ao vir para e viver em São Paulo, o sujeito se expressa descrevendo cenas que são imagens por ele construídas, de pessoas que aqui moram, do ritmo, do convívio, do cotidiano da cidade. Tem-se assim uma espécie de imaginário da cidade, conceituado por Lucrecia Ferrara como "...prática social de atribuir significados aos significados", ou seja , "prática social pela qual os significados passam a acumular imagens e significar mais." (Ferrara, 2003, p. 45).

As imagens narradas continham ao mesmo tempo, com maior ou menor intensidade aspectos positivos de uma cidade atraente, onde poderiam projetar seus sonhos, ir ao encontro do moderno, do novo, conhecer o mundo, aprender, encontrar o que buscavam, e outros, negativos: a cidade é vista como assustadora, perigosa, etc. Consideramos, portanto, duas polaridades de representações em duas dimensões: imagens positivas da cidade e imagens negativas da cidade.

As imagens podem ser compreendidas no contexto do imaginário social referindo-se a "...um conjunto de representações que, entremeadas e articuladas, correspondem sistematicamente e em linha ascendente, a desejos, expectativas, projetos, valores e hábitos". (Ferrara, idem, ibid.).

e. 1 Imagens positivas da cidade: e.1.1.Cidade do futuro - espírito de avanço: quando o sujeito atribui a São Paulo um caráter inovador, de progresso constante, onde se pode encontrar o que é considerado moderno, onde se pode acessar oportunidades (trabalhos diferentes, negócios e estudos) e desenvolver projetos pessoais, considerados como difíceis ou impossíveis de serem realizados no lugar de origem. e.1.2. Cidade que ensina: refere-se a uma percepção de que o lugar favorece a vivência de novas experiências e fornece o necessário ao enfrentamento de desafios que promovem o amadurecimento pessoal. O sujeito observa a multiplicidade de situações, de culturas, de estilos de vida, coexistentes na cidade. e.1.3. Cidade do trabalho: Nesta possibilidade, são vislumbradas oportunidades de trabalho em suas diferentes formas: negócio próprio, emprego, outras ocupações, bicos ou trabalhos temporários A oportunidade de trabalho assume o caráter mais relevante na construção de um imaginário sobre a cidade. e.1.4. Cidade boa de morar: O lugar é descrito como cidade bonita e que tem de tudo. O "tem de tudo" revela uma espécie de admiração pelo que tem de novo e diferente: "tudo que você imaginar, aqui tem"; como também admiração pelo caráter cosmopolita e multicultural, étnico, identificado pela produção cultural e os diferentes modos de vida e maneira de ser que a cidade comporta. e.1.5. Cidade da experiência e do trabalho: A experiência diz respeito, principalmente, à possibilidade de se encontrar em novas situações, novas pessoas, novos problemas considerados muito diferentes em relação ao local de origem. Entre as novas experiências aparece também como relevante às oportunidades de trabalho, formando assim uma espécie de síntese da forma de ver a cidade. Experiência e entre elas o trabalho são atributos intrinsecamente ligados às aspirações apresentadas em relação à decisão de mudar. e.1.6. Nada consta: Quando não há menção sobre o tema.

e.2 Imagens negativas da cidade: e.2.1. Caótica: Diz respeito à dificuldade do sujeito em se situar e se locomover em São Paulo atribuída principalmente a seu tamanho e tipo de trânsito. e.2.2. Cheia de problemas: Quando o sujeito indica um problema ou um conjunto deles como existente na cidade, seja de cunho social, ambiental ou econômico: desemprego, criança abandonada, lugar em que só trabalha, não tem lazer, entre outros. e.2.3 Não acolhedora: quando o sujeito atribui sentidos repulsivos ao que encontra na paisagem da cidade: a cidade é fria, cinzenta, e é vista como apresentando dificuldades para o convívio com as pessoas. e.2.4. Cidade da desilusão ou da falsa ilusão: quando o sujeito relaciona o insucesso em alcançar seus objetivos com uma imagem inadequada que possuía da cidade, antes de vir para São Paulo. Os termos ilusão e desilusão com a cidade aparecem com muita freqüência nas narrativas. Um dos depoimentos ilustra esta representação: "São Paulo é como a Itapemirim (empresa de ônibus);traz os iludidos e leva os desiludidos", e.2.5. Nada consta: quando não há menção sobre o tema.

f. Personagem

O termo personagem origina-se da palavra persona - que quer dizer imagem. Neste trabalho é a atribuição efetuada pelos pesquisadores, a partir de uma inferência baseada em um conjunto de informações oferecidas pelos sujeitos, sobre a sua forma urbana de ser. Estas informações podem se constituir em indicadores de identidades sociais e foram sintetizadas em quatro personagens-tipo também mutuamente exclusivos.

f.1. Trabalhador estóico: Diz respeito ao sujeito incansável, que enfrenta os problemas de viver na cidade de São Paulo, que não desiste apesar das dificuldades encontradas (principalmente em relação ao trabalho e a aquisição de bens). Acredita que foi, é, ou ainda será possível vencer, crescer, alcançar seus objetivos por meio de um trabalho intenso que demandará muito esforço e sacrifício.

f.2. Conquistador: É um personagem-tipo que expressa vontade de vir para vencer; vencer pode ter a conotação de adquirir bens materiais ou poder ter contato com a rica diversidade e vida cultural da metrópole. Ilustram este personagem, depoimentos como: conhecer novos mundos, ter contato com o que há de moderno; desenvolver projetos pessoais : "ser jogador de futebol", "abrir um negocio próprio", etc. O conhecido epíteto "fazer a América" parece adequar-se à maneira de ser deste personagem.

f.3. Acompanhante: É um personagem que não demonstra ter um desejo próprio, uma aspiração pessoal de mudança. O sujeito declara vir a São Paulo para acompanhar alguém.

f.4. Pacato: Este personagem foi inferido a partir de um conjunto articulado de informações fornecidas por alguns dos sujeitos que não revelam participar pessoalmente de decisões sobre o deslocamento, nem se expressam sobre suas motivações e aspirações. As informações contidas nas entrevistas apresentam-se lacônicas, com respostas curtas, evasivas, sem definições ou reflexões sobre o que lhe é solicitado. As decisões de vir, ficar ou não ficar parecem depender de terceiros (parentes, amigos ou empregadores).

 

Interpretação dos resultados

Uma leitura crítica dos resultados qualitativos derivados da análise quantitativa3 efetuada permite agrupar a grande maioria dos testemunhos em torno de um dipolo caracterizado em função do que indicam sobre a incorporação, adaptação e satisfação de seus narradores em sua nova existência paulistana.

Assim é que seria possível afirmar que tais grupos não se distinguem no que se refere à sua incorporação no mundo econômico da cidade - a grande maioria pertence aos mesmos baixos estratos sócio-econômicos, inscrevendo-se de forma precária no mundo do trabalho (trabalho informal e/ou esporádico e não qualificado).

Esta homogeneização não se reflete, contudo, em um correspondente isomorfismo frente às respectivas adaptações na vida metropolitana. Nesse aspecto, os estilos caracterizadores dos dois grupos de sujeitos distinguem-se sobremaneira, refletindo-se nas imagens formadas sobre a cidade, em seus aspectos positivos e negativos e sobre a nova vida. Assim, pode-se vislumbrar que aos dois estilos corresponderiam climas subjetivos opostos, representados por meio de um teor diferenciado de satisfação - os satisfeitos e os insatisfeitos com a condição de migrantes.

Aprofundando-se na análise dos atributos distintivos destes dois grupos, verifica-se que os mesmos se diferenciam em função da idade predominante de seus componentes (os mais felizes são percentualmente mais jovens) e em função da recorrência de seus sonhos (enquanto que para todos o sonho mais compartilhado seja o de re-construção de vida - em São Paulo ou no lugar de origem, os mais felizes referem-se menos a um desejo de retorno ao local de partida do que os insatisfeitos - para estes últimos, grande parte afirma ter já tomado a decisão de retornar) e dos personagens característicos neles prevalentes (entre os mais satisfeitos predominam os "conquistadores" e "estóicos", e, entre os mais insatisfeitos, os "pacatos").

Esse sistema de afirmações, empiricamente fundamentadas, aponta para a conclusão de uma baixa relevância de fatores incorporadores, portanto, econômicos, como diretamente determinadores dos graus de adaptação e satisfação. Esses dois últimos, além de se manifestarem de forma altamente inter-relacionada, parecem depender exclusivamente dos sonhos, das imagens, dos ideais, da compatibilidade entre os modelos identitários, conscientes ou não, que definem qualidades e níveis de aspiração, por sua vez determinantes do teor de adaptação / satisfação. (Tassara e Ardans, 2003)

Essa compatibilidade seria expressão da capacidade estratégica do migrante em conseguir retirar das condições materiais e não materiais a ele acessíveis, elementos para direcionar suas ações na busca de consecução de metas de desejabilidade - inserir-se de maneira a aproximar-se das antigas, novas e emergentes formas hegemônicas de sociabilidade urbana: ter casa, constituir família, enriquecer, consumir, divertir-se, participar... ou seja, situam-se nas esferas psicossociais de decisão, configurando-se na ordem simbólica, cujo foco central é "subir na vida" ou, outrora, "fazer a América".

Se o maior teor de satisfação parece concentrar-se nos mais jovens, o que se poderia explicar pela maior probabilidade de os mais jovens virem acompanhar seus familiares (redes) e/ou de terem se socializado já na era midiática, comprometida portanto com os modelos de sociabilidade urbana; e o maior teor de insatisfação parece situar-se entre os mais velhos (idade) e os mais recentes (tempo de chegada) em São Paulo, portanto, entre aqueles que tem alta probabilidade de não terem ainda se adaptado face ao tempo insuficiente para se familiarizarem, incorporarem-se e/ou inscreverem-se em redes; todos convergem para o compartilhar das metas que buscam - inserir-se na história social de acordo com o respeito ao paradigma da civilização ocidental contemporânea - comunicando-se à distância de forma presencial, uma vez que aspiram trocas e interações sociais desconhecidas e intensas, mas, não tem ainda acesso (total ou parcial) aos meios tecno-eletrónicos caracterizadores do substrato da globalização.

São órfãos do Estado brasileiro, ainda não constituído como welfare state, e dos meios técnicos que possibilitaram a globalização, da qual simbolicamente fazem parte. Esta constatação é fortalecida pela homogeneidade de seus discursos (Bourdieu, 1982) e pela sua sintonia com o paradigma primeiro-mundista.

No entanto, como brasileiros, situados, portanto, no hemisfério sul expressam o hibridismo cultural que, conforme Garcia Canclini (1989), caracterizaria a América Latina - ainda não entraram na modernidade mas já estão saindo dela, conquistando, impulsionados por forças psicossociais (Fernandes, 1969), suas metas individuais de inclusão / inserção / participação no Brasil global. São manifestações de uma alternativa de mundialização. (Tassara & Ardans, 2004).

 

Recomendações para intervenção

Considerando-se como meta de intervenção, a otimização das condições de inserção dos migrantes na metrópole paulistana; considerando ainda, os resultados do presente estudo referentes aos dois grandes grupos identificados de sujeitos, aqui denominados de satisfeitos e insatisfeitos; considerando-se, ainda, como aforismo, as palavras de participante de um grupo focal "Nós gostamos de aprender e transmitir o que aprendemos", vislumbram-se duas ordens de ações para fazer face às necessidades detectadas dos migrantes frente ao que buscam em São Paulo.

Em uma primeira ordem, dirigida prevalentemente aos sujeitos satisfeitos, operações voltadas para ações de aprimoramento de articulações entre pessoas, grupos e informações, visando-se preencher lacunas que inviabilizam o desenvolvimento de trocas e interações, materiais e não materiais, emuladoras de sucesso em empreendimentos já em implementação, ou, a serem implementados e/ou inventados. Ou seja, aprimorar, criar e manter redes de natureza variada, voltadas para otimizar a capacidade estratégica de articulação.

Ainda nesta ordem, operações voltadas para a implementação de ações educativas - instrucionais, estruturadas em torno do desenvolvimento de projetos pessoais, vistos e propostos como meios de ascensão sócio-econômico-cultural pelos seus idealizadores-executores. Ou seja, considerando o caráter pró-ativo dos sujeitos satisfeitos, a alta criatividade demonstrada por estes entrevistados, oferecer possibilidades formativas incluídas em uma escola de projetos de vida, centrados na operacionalização de meios de aprimoramento da vida na metrópole.

Em uma segunda ordem, dirigida aos sujeitos insatisfeitos, considerando sua aparente dificuldade estratégica em obter o que consideram sucesso de inserção, introduzir ações de promoção, de esclarecimento sobre buscas, aspirações, sonhos e outros elementos da esfera psicossocial, e, a partir de intervenções sobre esta problemática, buscar incrementar a proatividade destes sujeitos, ou, a sua capacidade estratégica de inserção. Uma vez obtido, minimamente, este incremento, estariam estes sujeitos aptos a serem inseridos nos grupos incluídos nas ações da primeira ordem.

Dessa forma, estariam sendo recuperados e/ou instalados elos sociais fundamentais para a produção e/ou manutenção de um equilíbrio aspirações-meios-concretizações, e, para gerar dinâmicas técnicas compatíveis com as exigências econômicas contemporâneas, levando os migrantes em pauta a aprenderem e poderem ensinar o que aprenderam, em um sistema de influências recíprocas ad infinitum.

 

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1 Pesquisa subvencionada peal FAPESP (02/00501-5) e pela Congregação das Irmãs missionárias de São Carlos Bartolomeu.. lapsi@usp.br
2A pesquisa foi coordenada por Eda Terezinha de Oliveira Tassara, Coordenadora do Laboratório de Psicologia Sócio-ambiental e Intervenção (LAPSI) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Coordenação adjunta Ms. Leila Aparecida Bonfim. Pesquisadores: Fabíola Marono Zerbini, Hélia M. Santa Bárbara Pereira, Kátia De Bonis, Omar Ardans, Ricardo Burg Mlynarz, Tarcísio Alves Fragoso, Vanessa Louise Batista, Waldemar Brandt Filho. Estagiárias em pesquisa: Ana Amélia Prevatto, Bruna Lima, Lúcia Dezan, Lílian Clementoni. Como parte integrante do projeto total, foram realizados um vídeo Trajetórias, sob a direção do Prof. Dr. Marcelo Tassara e um estudo quantitativo sob a supervisão do Prof. Dr. Júlio César R. Pereira.
3 A análise quantitativa de resultados foi desenvolvida conforme segue. Na formatação do sistema de análise dos dados (cf. Carvalho, 1972, Tassara, 1976), constituiu-se um espaço vetorial formado pelas trinta e oito dimensões investigativas, possibilitando o processamento de cálculo matemático analógico por agrupamento de tendências e o cálculo por aproximação do desenho. O Plano de Análise (A que se refere este número?) foi elaborado visando-se realizar uma análise de clusters para se identificar a existência de padrões. Considerando-se tratar de variáveis categóricas nominais, as categorias de resposta foram transformadas em variáveis dicotômicas para representar a presença/ausência de atributo. Estabeleceu-se assim uma ordem a partir da qual distâncias poderiam ser examinadas.

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