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Psicologia para América Latina

versão On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  n.16 México jun. 2009

 

PROCESO SALUD-ENFERMEDAD Y BIENESTAR SOCIAL

 

O sofrimento psicológico dos profissionais de saúde na atenção ao paciente de câncer

 

 

Lucia Cecilia da Silva*

Universidade Estadual de Maringá

 

 


RESUMO

Tomando as significações do câncer em nossa cultura como intimamente relacionadas ao sofrimento, dor e morte, levantamos alguns pontos de reflexão acerca do sofrimento psicológico que a atenção aos pacientes de câncer pode suscitar nos profissionais de saúde. Para isso, realizamos uma revisão da literatura especializada, privilegiando as publicações brasileiras, que tratam em especial da relação dos profissionais de saúde com doentes graves e com a morte. De modo geral, podemos afirmar que os sentimentos despertados nos médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais que atuam em Oncologia, são semelhantes aos dos pacientes e familiares afetados pelo câncer, tais como a negação, a raiva, a culpa, o pensamento mágico e sintomas depressivos. Sentem também a impotência imposta pelos limites dos recursos pessoais e científicos. Tais dificuldades comumente os levam ao isolamento, fazendo-os sofrer em silêncio. Dessa forma, o sofrimento fica mal delineado, nem sempre é levado com a devida consideração e, tampouco, os profissionais são estimulados a buscar formas de elaborá-lo.

Palavras-chave: Sofrimento psicológico; Profissionais de saúde; Câncer; Morte.


ABSTRACT

In focusing on the meanings of cancer in our society as closely related to suffering, pain and death, some reflections were made regarding the psychological suffering that the attention to cancer patients may cause in health professionals. For this purpose, a review of specialized literature was conducted, privileging Brazilian publications, which particularly deal with the relationship among health professionals, the cancer sick and death. In general, the feelings in doctors, nurses, psychologists, social assistants and other professionals involved with Oncology were observed to be similar to those of the patients and relatives affected by the disease, for example, denial, anger, guilt, magical thoughts, and symptoms of depression. They also feel an incapacity imposed by the limitation of personal and physical resources. These difficulties usually lead to isolation, and to a silent suffering. Thus, suffering is roughly acknowledged, hardly given due concern and even less are professionals motivated to seek ways of dealing with it.

Keywords: Psychological suffering; Health professionals; Cancer; Death.


 

 

Introdução

O número de casos de câncer tem se elevado nos últimos anos, principalmente nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Entre as causas deste incremento estão o aumento da expectativa de vida da população, a padronização de hábitos e estilo de vida que predispõem à doença e o desenvolvimento técnico-científico na área da Oncologia, que ampliou as possibilidades diagnósticas.

Mas, apesar dos avanços no diagnóstico e no tratamento, a mortalidade em decorrência desta doença ainda é preocupante e os significados atribuídos ao câncer ainda são os mesmos do tempo em que a cura era mais rara. Além disso, muitas vezes, a doença traça um curso longo e seu tratamento pode interferir de forma dramática na qualidade de vida de seus portadores. Assim, cada vez mais, os profissionais de saúde se vêem envolvidos com esta doença assumindo importante papel na rede de relações interpessoais que ela desencadeia. E constatando que os profissionais estão expostos às experiências de sofrimento dos pacientes e familiares, uma questão se impôs à minha reflexão: terá também os profissionais de saúde seu quinhão de sofrimento quando atendem os pacientes oncológicos? Como lidam com isso?

A literatura especializada a respeito do atendimento aos pacientes tem nos salientado de forma eloqüente que o câncer, em nossa cultura, está associado a aspectos negativos, ameaçadores e temidos como a dor, o sofrimento, a mutilação, a destruição e a morte. As atitudes, imagens e significados acerca do câncer têm recebido merecida atenção de estudiosos em várias áreas do conhecimento. Alguns desses estudos afirmam que os sentimentos e as imagens ligadas ao câncer são similares na população em geral e na população de alguma forma implicada no contexto da doença, como os doentes, os familiares e os profissionais de saúde envolvidos no diagnóstico e no tratamento. Bleger (1978), ao pesquisar o impacto psicológico do câncer nos profissionais concluiu que a doença evocava imagens ligadas à morte acompanhadas de fantasias de terror, dor, dependência, deterioração física e psíquica, ainda que os profissionais detivessem conhecimento dos avanços e progressos da área.

Diante dessas constatações, nos propusemos a realizar uma revisão bibliográfica, com ênfase nas publicações brasileiras da última década, que nos fornecesse dados para uma reflexão acerca dos sentimentos que o câncer e o contato com pacientes oncológicos despertam nos profissionais e como esses profissionais lidam com algo que repercute tão profundamente no imaginário e no psicológico individual e coletivo. Neste artigo, temos o propósito de apresentar os aspectos mais relevantes que encontramos nas fontes consultadas e de compartilhar nossas primeiras impressões com aqueles que se interessam pelo tema.

 

Doença terrível

Mesmo sendo uma doença em que muitas vezes o tratamento apresenta resultados favoráveis e apesar de existirem outras doenças graves potencialmente fatais, o câncer é um dos mais importantes símbolos de morte da nossa contemporaneidade. Nesta simbologia, a morte está impregnada de terríveis ameaças que estão ausentes ou se apresentam com menos intensidade em outras doenças. As representações de dor insuportável, de mutilações desfigurantes e de ameaça de morte estão sempre presentes e não se extirpam com o tumor, pois há sempre o fantasma da metástase e da recorrência. A história do câncer é tão cheia de medo e vergonha que faz o imaginário recuar a receios ancestrais, persistindo temores e expectativas que resistem aos avanços técnico-científicos. Sendo assim, o câncer ainda é um segredo difícil de ser partilhado, detectado, narrado e ouvido (Doró, et al., 2004; Sant´Anna, 2000).

Imbaut-Huart (1985) afirma que o câncer “é aquele mal que não se pode olhar de frente”; é o arquétipo da nossa impotência no controle da doença e da morte. Este autor entende que cada época investe numa doença a sua angústia diante da fragilidade da condição humana, procurando por todos os meios negá-la, ocultá-la, afastá-la do seu horizonte.

Segundo estudo de Kowalski e Souza (2002) desde o início do século XX, sociólogos e antropólogos contribuíram para demonstrar que a doença, a saúde e a morte não são somente ocorrências orgânicas, naturais e objetivas, mas adquirem significados relacionados com as características de cada sociedade. Assim a doença é uma realidade construída e o doente é um personagem social. Conforme Helman (1994), na nossa sociedade o câncer é uma metáfora do mal, visto como portador de poderes malignos, que atua de forma descontrolada e destrutiva contra o corpo humano e a sociedade. Afirma o autor que as metáforas dos problemas de saúde, particularmente no que se refere às condições graves como o câncer, trazem consigo uma série de associações simbólicas, que podem afetar profundamente a maneira como as vítimas percebem a sua doença e o comportamento de outras pessoas em relação às mesmas.

Kato (1983) ao estudar o impacto da doença oncológica em crianças e seus familiares, conclui que os adultos representam a doença como grave e fatal e a cura, por sua vez, é entendida como um fenômeno milagroso e não como uma decorrência da aplicação dos conhecimentos na área de saúde. A autora ainda observou que há uma tendência de os adultos desenvolverem um processo marcado por variados graus de desinvestimentos afetivos, características do luto antecipatório, quando se vêem lidando com alguém portador da doença.

Caparelli (2002) assevera que os sentimentos despertados nos médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais de saúde, são semelhantes aos dos pacientes e familiares. Em sua pesquisa sobre a vivência de médicos diante do diagnóstico do câncer infantil, observou que o médico convive com a negação, a raiva, a culpa, o pensamento mágico e sintomas depressivos. Sente-se impotente diante dos limitados recursos pessoais e científicos e dificuldades para identificar e lidar com seus próprios sentimentos.

De todas as doenças que tratam, o câncer é a única a quem os cirurgiões designaram especificamente de “o inimigo” (Nulland, 1995). Neste sentido a equipe de saúde luta contra a morte e esta luta vai se tornando incessante à medida que a equipe adquire mais conhecimentos e que a tecnologia se sofistica. Mas, quando a morte sobrevém, o sentimento é de que a medicina fracassa e com o fracasso vem a impotência, a depressão, a negação e a evasão (Santos, 1983).

 

Peculiaridades do trabalho dos profissionais de saúde

Além da importante influência que o substrato simbólico da doença oncológica imprime nos sentimentos dos profissionais da especialidade, certas peculiaridades da natureza do trabalho na área de saúde também são fatores relevantes a serem considerados.

Labate e Cassorla (1999) consideram que o profissional de saúde defronta-se no seu cotidiano com situações que mobilizam o emocional, por vezes de uma forma bastante intensa. Isso não só dificulta seu trabalho, como o confunde diante dos aspectos técnicos, acarretando-lhe um grau considerável de sofrimento pessoal. Afirmam que podem ocorrer processos de identificações patológicas com o sofrimento do paciente ou com sua doença, tornando o trabalho do profissional de saúde “insalubre” do ponto de vista psicológico. Os profissionais se defendem de sua impotência e fragilidade através de fantasias de onipotência. E, quando essas defesas falham, a “descompensação”, por vezes vista como vergonhosa, costuma ser atribuída a outros fatores. Assim, a situação fica mascarada, o sofrimento não é levado em conta e tampouco providências são tomadas no sentido de encontrar mecanismos que proporcionem a salubridade no trabalho.

Martins (1991) tece interessantes considerações sobre as características do trabalho do médico que, conforme atesta nossa experiência, pode ser extensiva a outros profissionais como os envolvidos com a enfermagem, o atendimento psicológico, a assistência social e com a reabilitação física. Afirma o autor que há, nesse tipo de trabalho, componentes específicos que podem se converter em fatores de risco para a saúde mental do profissional. De forma sucinta, esses fatores são:

a) o contato íntimo e frequente com a dor e o sofrimento;

b) o contato íntimo e frequente com a perspectiva da morte e com o morrer;

c) o lidar com a intimidade corporal e emocional;

d) o lidar com pacientes difíceis – queixosos, rebeldes e não aderentes ao tratamento, agressivos, hostis, reivindicadores, autodestrutivos, cronicamente deprimidos;

e) o lidar com as incertezas e limitações do conhecimento científico que se contrapõem às demandas e expectativas dos pacientes que desejam certezas e garantias.

Em relação a esta última característica, Santos (2003) argumenta que na relação com o câncer, o profissional vê-se invadido por sentimentos ambivalentes, uma vez que a formação profissional visa à cura e muitas vezes os casos que atendem não possuem esta perspectiva. Sem a perspectiva do curar, o que é muito freqüente em oncologia, resta-lhe a difícil tarefa de cuidar. Mas, contrariado em suas expectativas, o profissional recorre ao pensamento mágico em busca de soluções impossíveis, levando-o a uma atividade frenética e muitas vezes irracional.

Oliveira (2002) considera que os profissionais que lidam com pacientes graves, ao perceberem que estão lidando com seres humanos como eles, parecem experimentar uma vivência de extrema angústia. É difícil defrontar-se com pacientes adultos utilizando-se de fraldas, imobilizados, conectados a aparelhos, chorando, às vezes inconscientes, além de outras situações constrangedoras. O profissional se vê diante da precariedade da existência humana. Aproximar-se do paciente que está morrendo, lembra-o de que ele também é mortal.

Uma característica importante na atenção ao paciente oncológico é a possibilidade de um envolvimento emocional mais estreito do profissional com o paciente e seus familiares, tendo em vista que, geralmente, o tratamento é longo, sendo as hospitalizações e retornos bastante freqüentes. Assim, o contato com a fragilidade humana e com as expressões psicológicas de desamparo, medo, desespero, pânico, depressão, agressividade e tantas outras que estão associadas ao fenômeno do adoecer são experiências vividas constantemente no cotidiano profissional (Kato, 1986; Martins, 1991; Torrano-Masetti, Oliveira e Santos, 2000; Vivone, 2004).

Ferreira (1996), ao identificar as emoções presentes nos enfermeiros que trabalham com pacientes oncológicos, revela que no cotidiano destes profissionais também se apresentam os sentimentos gratificantes como ver o paciente recuperar-se, ter contato com ele, ajudá-lo a conhecer a doença e orientá-lo. Contudo, a autora enfatiza os fatores difíceis como conviver com o sofrimento do doente, suas inúmeras internações, a impotência diante da doença, a revolta pela sua morte.

Popim e Boemer (2005) verificaram que enfermeiros percebem o câncer como um estrangulador dos horizontes de possibilidades na vida do doente, reconhecendo-o, por isso, como alguém que requer uma relação mais estreita, na qual a convivência é maior, as trocas mais intensas. É uma relação que gera vínculos afetivos, na qual a morte implica na ruptura do vínculo gerado, revelando um processo doloroso pelo qual o profissional passará.

Da mesma forma, Franco (2003) salienta que os profissionais de saúde, especialmente aqueles da área hospitalar, reconhecem que existem pacientes especiais com os quais estabelecem uma relação diferenciada e singular. A morte desses pacientes pode provocar o luto, caracterizado por sintomas psicológicos e somáticos que causam sofrimento e dor. Esses sintomas compreendem manifestações afetivas tais como culpa, ansiedade, depressão; manifestações comportamentais como fadiga e choro; com atitudes voltadas a si e ao contexto como auto-reprovação, baixa auto-estima e desamparo; lentidão do pensamento e da concentração; perda de apetite; distúrbio do sono; queixas somáticas como dores, náuseas, nó na garganta, palpitações, e sensação de estômago vazio; mudanças na ingestão e suscetibilidade a doenças (Bromberg, 2000). Tais constatações se coadunam com as de outros estudiosos que ressaltam os sentimentos de pesar, frustração, derrota e tristeza, pelos quais passa os profissionais de saúde quando assistem pacientes em iminência de morrer (Françoso, 1996; Dóro et. al. 2004; Spíndola e Macedo, 1994; Kovács, 1996).

O que estes estudos nos levaram a concluir é que estando constantemente diante da fragilidade e vulnerabilidade humanas, os profissionais de saúde que atuam na atenção ao paciente oncológico estão expostos com mais freqüência e mais intensidade diante de sua própria fragilidade e vulnerabilidade enquanto seres existentes. É no contato com o outro que o “eu” se constrói, se diferencia e se reconhece, e saber da dor do outro, da finitude do outro é saber da própria dor, da própria finitude. E nesta identificação humana com o doente, o profissional se reconhece como um ser aberto ao sofrimento porque também se reconhece frágil e vulnerável, passível de todas as possibilidades que a vida apresenta, sendo a morte a possibilidade mais certa.

 

Tentando domar o medo da morte

O saber-se mortal é um conhecimento que apresenta uma irredutível dimensão afetiva, sendo o medo a resposta psicológica mais comum diante da morte e do morrer, ao qual estão relacionados os outros medos que temos durante a vida (Kovács, 1992).

A própria escolha profissional parece estar relacionada de algum modo a um interesse inconsciente de estar lidando com o medo da morte ou, até, como expressão de defesa contra-fóbica. Acerca do exercício da medicina, Martins (1991) aponta que a escolha envolve um grande conjunto de variáveis que vão desde as características biopsicossociais da população assistida, do mercado de trabalho e do ambiente sociopolítico-cultural que permeia as relações da sociedade com as instituições médicas, passando pelas motivações inconscientes. Destaca, entretanto, que uma parte da motivação para a escolha da carreira médica é freqüentemente o desejo de proteger a si mesmo e as pessoas da família do sofrimento e da morte.

Meleiro (2001) observou em sua pesquisa com médicos que quando o profissional é indagado sobre o porquê da escolha da profissão, o que mais aparece são referências a possibilidade de ajudar, tratar, curar, salvar, ser útil e estar próximo das pessoas. Mas subjacentes a esses motivos manifestos, a pesquisadora encontrou que as principais razões estão relacionadas a necessidade de reparação, negação da dependência, a procura de onipotência e a defesa contra a doença, o sofrimento e a morte, levando a pessoa a buscar o que tanto teme.

Torres et al (1998) relatando os resultados da pesquisa que realizaram com o objetivo de identificar as possíveis diferenças de atitudes entre universitários das áreas de saúde, psicologia e teologia, referem que os estudantes de Medicina revelaram uma forte inquietação em relação a deixar “trabalhos inacabados”. As autoras situaram o grupo de Enfermagem entre os mais defensivos perante a morte e o morrer, sobressaindo-se no uso da sublimação e da depressão culposa e paralisante enquanto recursos de defesa psicológica, levando a supor que a necessidade de reparação estaria entre os principais motivos na opção pela profissão. Tal resultado ratifica o entendimento de Françoso (1996) segundo o qual o atendimento que o enfermeiro realiza junto à criança com câncer, principalmente quando ele quer transcender a atenção técnica, muitas vezes, visa atender às suas próprias necessidades psicológicas.

Também é interessante notar que na pesquisa que Torres et al (1998), os estudantes de Biologia não exacerbaram na utilização de mecanismos de defesa e na expressão da inquietação em relação aos aspectos da morte e do morrer e foi o grupo que mais se manifestou a favor da eutanásia, parecendo demonstrar uma atitude mais intelectualizada em relação a morte. Já, os estudantes de Terapia Ocupacional, Fisioterapia e Nutrição apresentaram resultados semelhantes aos apresentados pelo grupo da Enfermagem. Os aspirantes a psicólogos demonstraram-se menos defensivos, porém foram os que mais expressaram sua inquietação perante o tema, revelando certa ambigüidade no confronto com a morte. Se, por um lado, evidenciaram mais lucidez emocional, por outro demonstraram o que as autoras denominaram de recusa consciente em lidar com a questão.

Em outro trabalho, Torres e Guedes (1987) avaliam que nas terapias psicológicas, os problemas relacionados com a morte, como por exemplo, a ansiedade, quase sempre, é considerada sintoma e não aspecto de uma inquietação metafísica que pode transcender a neurose. Isso sugere que o psicólogo, na sua atuação profissional, se utiliza da negação como mecanismo de defesa que pode manifestar-se na exacerbação da interpretação, no silêncio e na omissão de relatos sobre suas reações emocionais, quando da morte de um paciente. Tanto assim que, segundo as autoras, são escassos os trabalhos publicados que abordam diretamente as reações emocionais dos terapeutas, inclusive em relação a pacientes suicidas.

Kovács (1998), também intrigada com uma possível relação entre a preocupação com a morte e a escolha da profissão de psicólogo, realizou pesquisas que alinham a busca do autoconhecimento, a compreensão do comportamento humano e a necessidade de ajudar o outro como motivos de escolha da profissão. Comenta que foi aplicada nesses estudantes uma escala para medir o medo da morte, e estes obtiveram escores significativamente mais altos que os estudantes de Medicina. Este medo mais intenso, pondera a pesquisadora, pode ter sido manifestado mais abertamente pelo fato de os estudantes de psicologia estarem mais em contato com seus conflitos e angústias. Em todo caso, pode-se perceber que há uma relação entre a necessidade de autoconhecimento e a busca de compreensão de sentimentos e angústias mais profundas.

Partindo para o exercício de suas funções, os profissionais de saúde e os da oncologia em especial, se verão adentrar num contexto de elevada toxidade psicológica (Martins, 1991).Para suportarem isso, os profissionais acionam defesas que podem ser incorporadas ao seu caráter, encastelando-se para dar conta de sua própria fragilidade e vulnerabilidade. A esse respeito, Valle (1997), Labate e Cassorla (1999) observam que frequentemente as percepções das fraquezas e vulnerabilidades destoam das expectativas de ser forte e onipotente que os profissionais de saúde têm em relação a si mesmos. Ao perceberem isso, sentem-se envergonhados e erguem barreiras em torno de si isolando-se com sua fragilidade e deixando de expressar suas inquietações. Esslinger (2004) assinala que embora a morte seja presença constante no cotidiano hospitalar, há um “conluio em torno do silencio” que traz como principais conseqüências a solidão do paciente em seu processo de morrer, o isolamento da família e a solidão da equipe de saúde diante de seus próprios medos e angústias.

 

Algumas considerações

Realmente, é complicado ser frágil e vulnerável numa sociedade como a nossa que estimula e enfatiza o ser poderoso, forte e inatacável. E o fato de que a crescente incorporação tecnológica à medicina permite, por exemplo, a estabilização de muitas doenças terminais, como no caso de doentes que podem ser indefinidamente mantidos artificialmente em vida durante longos períodos, nos leva a esquecer da possibilidade sempre presente da morte. Por mais que façamos, a morte, como diz Schramn (2002), é um fato irrefutável perante nossos sentidos imediatos; todos os seres vivos, inclusive os humanos, morrem.Entretanto, a morte é muito mais que um fenômeno biológico, e como assevera o autor, não acreditamos nos nossos sentidos.

O fenômeno da morte institui um vazio interacional que dói e faz sofrer, pois mais que o término de um processo biológico, a morte é a destruição de um ser em relação. E quando se lida diariamente com algo que faz lembrar a natureza finita do ser, o confronto com a iminência do não-ser denuncia tudo o que somos de precário e provisório. É diante desta questão do não-ser que os profissionais de saúde se vêem constantemente e confrontar-se quase que ininterruptamente com um fenômeno tão fundamental na compreensão do ser do homem, é angustiante.

Os profissionais de saúde diante de condições que lhe teimam em atualizar a angústia, anseiam por tranqüilizar-se, lançando mão de mecanismos de defesa que vão desde a negação até o ativismo exagerado de suas funções técnicas, passando pelos comportamentos evasivos, onipotentes ou irados. Entretanto tudo aquilo que é para trazer tranqüilidade, não aplaca o sofrimento. Talvez, sejam por isso os escassos estudos sobre o sofrimento do profissional na atenção em oncologia.

Criar espaços de escuta em grupo nas instituições de formação e atuação desses profissionais pode ser uma alternativa para que o sofrimento seja compartilhado, acolhido e elaborado. Cuidar para que a formação dos profissionais de saúde contemplem estudos sobre a morte nas suas várias dimensões também contribui em preparar melhor o futuro profissional que, pelo dever do ofício, estará lidando constantemente com a angústia fundamental e inarredável da precariedade do existir humano.

Refletir sobre estes aspectos não é importante somente para o desenvolvimento de recursos que possam trabalhar em favor da saúde mental do profissional, mas contribui também para melhorar a atenção prestada ao paciente e seus familiares, pois não devemos nos esquecer que as representações e sentimentos a respeito de algo, orientam atitudes, ações e relações.

 

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*Docente do Departamento de Psicologia.  E-mail:luciacecilia@wne.com.br

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