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Psicologia para América Latina

versión On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.22 México ago. 2011

 

REPORTE DE CASOS Y EXPERIENCIAS

 

O "feio e o belo": reflexões sobre os efeitos de uma ideologia do corpo

 

 

Sheila Ferreira Miranda1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, Brasil

 

 


RESUMO

Este ensaio discute os efeitos do imperativo da beleza sobre o contexto identitário de afro-descendentes brasileiros. A partir das significações atribuídas no cotidiano às intervenções no corpo e cabelo e às diversas contribuições da mídia, defendemos que a reiteração do discurso estético hegemônico é, sobretudo, uma questão de cunho político, que apresenta como efeito imediato a produção de um ideal estético eurocêntrico às custas da abjeção do corpo negro. Entretanto, este processo, denominado ideologia do corpo, tem em suas raízes a fissura necessária à própria contestação: a necessidade de uma reiteração contínua demarca a fragilidade do imperativo da beleza, indicando possibilidades de espaços de insubordinação e rearticulação de um domínio identitário até então invisibilizado. Assim, o domínio dos salões étnicos, insurge como um espaço no qual a beleza afro-descendente pode ser reinscrita, constituindo o alicerce para que estes corpos, até então abjetos, possam emergir como uma nova construção do belo.

Palavras-chave: abjeção; afro-descendentes; corporeidade; estética; identidades.


ABSTRACT

This paper discusses the effects of the imperative of beauty upon the identity context of African descendants in Brazil. From the series of significance in daily life attached to hairstyling and body interventions, and to various contributions by the media, we argue that the reiteration of the hegemonic aesthetic discourse is mostly a matter of political nature, which has as immediate effect the establishment of a Eurocentric aesthetic ideal through the abjection of the black body. However, such process, referred to as ideology of the body, has in its roots the flaw required for its very contestation: the need for a constant reiteration delimits the fragility of the imperative of beauty, implying possibilities of insubordination and rearticulation of an identity domain hitherto made invisible . Thus, the domain of ethnic halls rises up as a locus in which Africandescendent beauty can be reinscribed, laying foundation so that such bodies, hitherto abject, may emerge as a new construction of beauty.

Key-words: abjection, African descendants, corporeity, aesthetics, identities.


RESUMEN

Este ensayo analiza los efectos del imperativo de la belleza en el contexto de identidad de los afro-descendientes en Brasil. A partir de los significados cotidianos atribuidos a cambios en el cuerpo y el cabello y las diferentes contribuciones de los medios de comunicación, nosotros sostenemos que la reiteración del discurso estético hegemónico es en gran medida, una cuestión de naturaleza política, que tiene el efecto inmediato de producir un ideal estético eurocéntrico, a expensas de la abyección del cuerpo negro. Sin embargo, este proceso, llamado de la ideología del cuerpo, tiene en sus raíces la fisura necesaria para la propia oposición: la necesidad de una continua repetición del imperativo demarca la fragilidad de la belleza, lo que indica las posibles áreas de insubordinación y re-articulación de un campo de identidad hasta ahora invisible. Así, el campo de los salones de etnia, emerge como un espacio donde la belleza de ascendencia africana se puede restablecer, y es la base para que esos cuerpos, hasta entonces abyectos, puedan emerger como una nueva construcción de la belleza.

Palabras-clave: abyección, afro-descendientes, corporeidad, estética, identidades.


 

 

E tomaram a feiúra nas mãos,
cobriram-se com ela como se
fosse um manto e saíram pelo
mundo. Cada um lidando com
ela do seu jeito.
Toni Morrison

Afinal de contas, o que é a beleza? Um atributo, uma construção histórica, ou uma norma? E que tipo de significações são atribuídas às intervenções no corpo e cabelo do afro-descendente2 brasileiro?

Gomes (2002), já no início de sua tese sobre a construção das identidades de afro-descendentes a partir das diferentes expressões inscritas no corpo e cabelo, afirma que a identidade se constrói nas múltiplas relações com o outro, trocas, conflitos e diálogos. Dessa maneira, conclui que a intervenção no corpo não é uma questão puramente estética, mas amplia-se ao âmbito identitário.

Nesta perspectiva, a autora discorre sobre os efeitos do racismo na trajetória identitária do afrodescendente em relação ao próprio corpo, reafirmados através da negação e/ou encobrimento das próprias características raciais. Essa adesão a um "padrão de beleza", leva o afro-descendente à busca de um "ideal identitário" que se converte no repúdio à própria cor e por conseqüência, a uma recusa do próprio corpo – processo que a autora denomina ideologia do corpo.

Segundo Gomes (2002), a beleza representa uma construção histórica do humano, e por isso, sua associação a determinadas características de classe, idade ou raça é um tema que acompanha ao longo dos tempos, a construção de nossa sensibilidade, que se altera de acordo com a cultura vigente.

Percebo que a questão do corpo e cabelo, de suas diferentes expressões e atribuções, configura um ponto de partida pertinente para uma reflexão acerca do significado político dos diversos pontos que transversalizam o conflito identitário do afrodescendente na atualidade. Um destes "pontos" diz respeito às diversas nuances do sistema de classificação racial brasileiro, quer seja, por meio da mídia, que cultua uma estética eurocêntrica e classificatória, quer seja por meio dos significados atribuídos aos penteados e cortes de cabelo, que por vezes, tentam camuflar os traços de pertencimento raciais deslegitimados pelos discursos da hegemonia.

Assim, penso que a questão estética do afro-descendente é, sobretudo, uma questão política, uma vez que as interpretações sobre o belo ou o feio são expressões do discurso que podem reiterar leis de verdade ou configurar estratégias de resistência (Foucault, 1979).

O estabelecimento de um "parâmetro" de beleza tem um preço no nosso sistema cultural: ao mesmo tempo em que configura uma estratégia de poder que atua na produção de discursos qualificados como verdadeiros e portanto, socialmente "aceitos" por indivíduos sujeitados (Foucault,1979); produz também um campo de seres abjetos, inintelígíveis, isto é, aqueles indivíduos que não são considerados sujeitos, mas que são essenciais para a sua constituição (Butler, 1999).

Dessa maneira, o discurso de que a beleza é um atributo de pessoas que apresentem cabelos lisos, corpo magro, nariz afinado e tom de pele clara, impõe e materializa "a beleza" nos corpos de indivíduos com características físicas típicas do europeu, produzindo, portanto, um imperativo de normatividade do belo que desconsidera os demais. Nesse processo, o domínio da beleza é localizado, circunscrito e produz "os sujeitos belos" como regra estética.

Acredito que o discurso da mídia tem um peso essencial nesta questão, tanto por reiterar a norma da beleza, quanto por apresentar aos seus espectadores os subsídios tecnológicos que alteram e camuflam as características físicas consideradas feias: o investimento de marketing feito sobre os cremes alisantes de cabelo e clareadores da pele são exemplos claros da naturalização de um parâmetro estético com características evidentes.

Mas entendo que esse discurso também pode ser analisado pelas próprias omissões, como por exemplo, a escassez no Brasil, de atrizes nas novelas com traços fenotípicos que enfatizem a afrodescendência. Quando estas mulheres alcançam um papel de destaque no elenco, elas já passaram por "transformações estéticas" consideráveis: e a primeira delas, costuma ser o alisamento ou megahair (feito, é claro, com cabelos lisos ou no máximo ondulados) nos cabelos. Assim, tornar-se uma atriz afro-descendente em evidência também tem um preço: a sujeição às regras estéticas impostas pela mídia e pela cultura vigente, de forma que a mulher "preta", para ser reconhecida na televisão, "deve embranquecer" de alguma forma, deve rejeitar o próprio corpo em virtude da ascensão social.

Ocorre então, a produção de um sujeito da beleza às custas da existência de seres abjetos, cujo padrão estético torna-se inominável e rejeitado. Para Judith Butler (1999, p. 155-156, grigos da autora), "(...) o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, 'dentro' do sujeito, como seu próprio fundante repúdio".

Assim, a constituição de um imperativo de beleza que necessariamente englobe pessoas com traços fenotípicos europeus - os sujeitos belos - é organizada a partir da exclusão dos afro-descendentes – considerados feios. A norma da beleza é reiterada pelos meios de comunicação, de forma que o discurso do embranquecimento foi naturalizado pela ideologia do corpo – embranqueças e serás reconhecido.

Mas a imposição de uma norma de beleza também pode ser analisada como um efeito produtivo das relações de poder. Em acordo com Foucault (1979), os efeitos do poder circulam por toda uma rede de relações sociais, da qual nada ou ninguém pode escapar. Estes efeitos são transformadores, produzindo enunciados que organizam realidades, de forma que o exercício do poder atua na constituição de efeitos de verdade no interior dos discursos.

A meu ver, um destes efeitos de verdade se concretiza no enunciado normativo sobre a beleza, que tem como conseqüências a naturalização do discurso das desigualdades, de modo que os dispositivos de inclusão e exclusão presentes na sociedade atual são cada vez mais interiorizados pelos sujeitos.

Cria-se uma verdade sobre "a beleza" materializada no padrão normativo vigente. Penso que esse efeito tem um duplo caráter produtivo: ele inclui - num domínio de sujeitos (Foucault, 1988) – os indivíduos com traços fenotípicos europeus e exclui – num domínio de seres abjetos (Butler, 1999) – os indivíduos com traços fenotípicos afro-descendentes.

As conseqüências identitárias desta ideologia do corpo podem ser visualizadas, tanto na complexidade da relação subjetiva de rejeição/aceitação do afrodescendente para com o próprio corpo, como na materialização do sistema de desigualdades de oportunidades, presente em nossa sociedade.

Toni Morrison (2003), eu sua premiada obra literária O olho mais azul, retrata estas relações de forma intensa e realista. Na exposição inicial sobre a família Breedlove, descreve em poucas palavras a configuração do sistema racial de desigualdades dos Estados Unidos na década de quarenta:

'Moravam ali por serem pobres e negros, e ali permaneciam porque se achavam feios. Embora sua pobreza fosse tradicional e embrutecedora, não era exclusiva' (...) A gente olhava para eles e ficava se perguntando por que eram tão feios; olhava com atenção e não conseguia encontrar a fonte. 'Depois percebia que ela vinha da convicção, da convicção deles'. Era como se algum 'misterioso patrão onisciente' tivesse dado a cada um deles uma capa de feiúra para usar e eles a tivessem aceitado sem fazer perguntas (p. 42-43, grifos meus).

Esse trecho descritivo me não soa como um texto completamente fictício, pelo contrário, acredito que possa nos guiar a pensar nas relações raciais na conjuntura brasileira. E, embora a configuração histórica do racismo norte-americano apresente diferenciações que devem ser pertinentemente demarcadas, tanto o contexto de pobreza quanto os elementos que apontam para a produção identitária destes indivíduos, podem servir de alicerce para a elaboração de reflexões e questionamentos sobre os processos de subjetivação dos afrodescendentes brasileiros.

O misterioso "patrão onisciente" citado por Morrisson, pode ser pensado como uma forma de materialização do padrão de beleza vigente, que constrange e sujeita os corpos através da performatividade (Butler, 1999), transformando o discurso em verdade, "a beleza" em uma norma e produzindo indivíduos fixados, presos a identidades determinadas. Esse processo de subjetivação cria identidades essenciais que são persistentemente reiteradas pela mídia e reconhecidas por eles mesmos (os afrodescendentes) e pelos demais, constituindo o "domínio da abjeção" (Butler, 1999), no qual imperativo de "ser belo", tornou-se um desejo de muitos indivíduos, cujas características físicas não atendem ao padrão de normas imposto pela sociedade atual.

Esse desejo e essa insatisfação podem ser ilustrados por algumas falas de sujeitos entrevistados por Gomes (2002), durante sua pesquisa etnográfica nos salões "étnicos" de Belo Horizonte:

Mas 'existe um insatisfação com o visual da gente pelo padrão estético que já nos foi colocado assim, culturalmente'.

Eu sempre ia no salão aos sábados e quando chovia...Nossa Senhora! 'Minha aparência era outra, no caminho, o meu cabelo já inchava. Nossa Senhora!' Não dava, já chegava no serviço, diferente, minha aparência era outra (...) Então eu fui vendo as pessoas do meu contato e 'eu fiz alongamento. E eu notei isso no cabelo, eu tô sempre arrumada depois que eu passei a fazer alongamento' (...) (p. 209, grifos da autora).

Acredito que a simples leitura destes comentários acerca da própria estética, dispense qualquer explicação teórica sobre a complexidade da relação rejeição/aceitação do afrodescendente, no que diz respeito ao seu processo de construção subjetiva.

Entretanto, as tensões nas relações de forças são permanentes e o mesmo processo que constrange e sujeita os corpos carrega em sua origem o cerne da contestação do próprio sistema de desigualdades. Assim, uma questão que me parece pertinente é a necessidade de reiteração da mídia e dos meios de comunicação em geral. Porque o padrão europeu de beleza precisa ser sempre reiterado, se este já nos parece uma norma estabelecida na sociedade e interiorizada, tanto pelos sujeitos, quanto pelos seres abjetos?

Butler (1999, p.154) questiona a materialização do ideais da hegemonia trazendo a noção de performatividade3. Para a autora, a performatividade diz respeito a uma "(...) prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia." O que significa que as incontáveis repetições da norma são necessárias para que ela seja "materializada e estabelecida" no âmbito social.

Isto porque a necessidade de uma reiteração das normas questiona a estabilidade destas relações, de maneira que esse processo de materialização nunca é completamente efetivado (Butler, 1999), necessitando, portanto, de uma reiteração que persistentemente constrange os corpos, demarcando os espaços de poder e as práticas necessárias para a regulação do discurso e dos seus efeitos nestas relações.

E essa reiteração contínua demarca a fragilidade do imperativo da beleza, denunciando a existência de outros corpos, corpos com características ameaçadoras, corpos que não carregam as marcas do ideal hegemônico, corpos que não seguem os ditames da ideologia do corpo: corpos abjetos. E um destes corpos é o corpo do afro-descendente.

A produção da ideologia do corpo tem em suas raízes a fissura necessária à própria contestação: essa pode ser evidentemente analisada a partir da formação dos salões "étnicos", enquanto espaços de contestação, elaboração e rearticulação de um domínio identitário até então invisível, o domínio no qual a beleza afrodescendente é valorizada.

Gomes (2002), faz uma leitura dos salões "étnicos" também como espaços de contestação e "afirmação da identidade negra". Entendo que essa "afirmação" pode ser vista como elemento potencialmente positivo na re-elaboração de um processo identitário e político, que visa uma reconstrução subjetiva indispensável na abertura de possibilidades da objetivação do discurso de uma beleza com traços estéticos próprios de afro-descendentes.

Assim, "embora os discursos políticos que mobilizam as categorias de identidade tendam a cultivar identificações a serviço de um objetivo político, pode ocorrer que a persistência da desidentificação seja igualmente crucial para a rearticulação da contestação democrática" (Butler, 1999, p. 156).

E neste caso específico, acredito que rearticulação identitária ocorra através da desidentificação com a ideologia do corpo e uma contestação democrática a partir de uma re-construção identitária vivida nos salões "étnicos" pode ser o alicerce para que estes corpos até então, abjetos, comecem a emergir como uma "nova" construção do belo.

 

Referencias bibliográficas

Butler, J. (1999). "Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo". Em: Louro, G. (Org). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. (pp. 153-172). Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Ferreira, R. F. (2000). Afrodescendente: identidade em construção. São Paulo: EDUC; Rio de Janeiro: Pallas.         [ Links ]

Foucault, M. (1979). "Verdade e poder". Em: Microfísica do poder (pp. 1-14). Rio de Janeiro: Edições Graal.         [ Links ]

Gilroy, P. (2001). O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora 34/Universidade Cândido Mendes.         [ Links ]

Gomes, N. L. (2002). Corpo e cabelo como ícones de constituição da beleza e da identidade negra nos salões étnicos de Belo Horizonte. Tese de Doutorado em Antropologia Social. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.         [ Links ]

Morrison, T. (2003). O olho mais azul. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Prins, B. & Meijer, I. C. (2002). "Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler". Revista de Estudos Feministas. Florianópolis (10) 1, 155-167.         [ Links ]

 

 

1 Psicóloga, Mestre em Psicologia (UFSJ), Doutoranda em Psicologia Social (PUC/SP) e membro do NEPIM – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Identidade-Metamorfose. Atualmente, docente na área de Psicologia Social e Institucional pela UNIPAC/Barbacena e bolsista de produtividade pela FUNADESP – Fundação Nacional do Desenvolvimento Superior das Universidades Particulares - pesquisando relações raciais e docência universitária. Email: sheilaze@gmail.com
2 Utilizo aqui o termo afro-descendente para designar o segmento de pessoas consideradas tanto negras quanto mestiças, como em Ferreira (2000). A hifenização dos termos afrodescendente e afro-descendência é utilizada para evidenciar os vínculos destes sujeitos tanto com a herança cultural africana, quanto com a herança cultural do país de origem, demarcando esta zona de tensão: um processo identitário híbrido, caracterizado por uma "dupla pertença" (Gilroy, 2001) e carregado de contradições em relação aos vínculos culturais.
3 Embora no texto consultado, Butler (1999), refira-se especificamente à performatividade para iluminar suas reflexões sobre a questão do gênero, vale ressaltar que, em entrevista recente, a autora admite que "(...) o abjeto não se restringe a sexo e heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante" (Prins e Meijer, 2002, p. 161)