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Psicologia para América Latina

versión On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.spe México nov. 2017

 

Protagonismo epistêmico dos povos indígenas: o papel da etnopsicología

 

 

Bairrão, J. F. M. H.I

ILaboratório de Etnopsicologia, Departamento de Psicologia, Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

As ameaças à sobrevivência dos povos indígenas são um desafio cuja complexidade e gravidade interditam a omissão da Psicologia. Porém, intervenções psicológicas podem, inadvertidamente, em vez de remédio se transformarem em veneno. É o que acontece quando não há diálogo com as etnoteorias psicológicas nativas. Neste caso o indígena é destituído da sua compreensão de si e do mundo que habita e deste modo destruído no âmago do seu ser. Um enfoque etnopsicológico previne e interdita esse risco, na medida em que possibilita aceder não apenas a um registro dos fatos, mas também a uma recuperação de antídotos nativos contra essa ameaça. Um exame etnopsicologicamente embasado dos desafios atuais que o compromisso da Psicologia para com os povos originários envolve, evidencia que eles não se restringem ao extermínio físico e ao esbulho dos territórios (espaço) dessas populações, mas também as ameaçam no tempo, visando suprimir o seu passado e inviabilizar o seu futuro. Para se contrapor a isso é preciso prestar atenção ao cunho performativo dos enunciados psicológicos sobre os povos indígenas e assegurar não apenas a preservação dos remanescentes, da sua memória e do seu devir, como também a dos seus mortos e a dos seus mundos.

Palavras-chave: Etnopsicologia; Povos Indígenas; Psicologia e Política


ABSTRACT

The threats to the survival of the indigenous peoples are a challenge whose complexity and gravity interdict the omission of Psychology. However, psychological interventions may inadvertently, rather than remedy, turn into poison. It happens when there is no dialogue with the native psychological ethnotheories. In this case, indigenous peoples are deprived of their understanding of themselves and of the world they inhabit and they are destroyed in the core of their being. An ethnopsychological approach prevents and avoids this risk, as it allows access not only to a record of the facts, but also to a recovery of native antidotes against this threat. An ethnopsychological approach to the current challenges that the commitment of Psychology relative to the native peoples implies, evidences that they are not restricted to the physical extermination and the looting of the territories (space) of these populations, but also threaten them in time, aiming to suppress their Past and make their future unfeasible. In order to counteract this, it is necessary to pay attention to the performative nature of the psychological statements about indigenous peoples and to ensure not only the preservation of the remnants, their memory and their becoming, but also that of their dead ones and of their worlds.

Key-words: Ethnopsychology; Indigenous Peoples; Psychology and Politics.


 

 

Introdução

Interessa a toda a humanidade preservar a antropodiversidade, não apenas por uma exigência ética e por uma questão de justica, mas também porque povos históricamente derrotados por técnicas de guerra e de exploração do homem pelo homem mais agressivas e deletérias podem, não obstante, de uma perspectiva de paz e numa escala temporal de longo prazo, consubstanciarem valores e materializarem soluções para a sobrevivência da humanidade e do bioma mais generosas e justas. No caso de muitos povos originários das Américas essas qualidades ainda se fazem acompanhar de uma abertura para formas de relacionamento com o natural não reificantes e de respeito e convivência não apenas entre humanos, mas também interespécies.

Por isso, a redução a pobres dos povos originários é uma variante da estratégia de etnocídio. Desde há pouco mais de meio milênio que a expropriação das terras e a extinção das formas de vida tradicionais dos povos originários têm como efeitos concomitantes a extinção física de largos contingentes populacionais ou a sua redução a uma pobreza dependente dos estados nacionais que se sobrepuseram aos territórios e alinhamentos étnicos nativos.

Não poderia, portanto, uma psicologia comprometida com esses povos alinhar-se a estratégias conceituais empenhadas no seu depauperamento, mediante a sua redução a uma categoria homogênea e amorfa de despossuídos. O mesmo desafio que se enfrenta no campo da ação social, com igual ou maior exigência, ou pelo menos idêntica dificuldade, tem de se fazer no campo da produção científica propriamente dita.

É importante levar em conta que o impacto dos termos e dos conceitos não depende apenas do seu conteúdo técnico, do qual muitas vezes se tenta excluir a sua carga histórica e os resíduos dos seus usos pelo senso comum. Tarefa inglória, essa memória inconsciente, somada à forma do seu emprego e à sua disposição discursiva, atropela os movimentos sociais e particularmente os estilos e materialidades enunciativas de nossos parceiros e interlocutores sociais (neste caso, os povos originários).

É necessário não apenas traduzir o que eles dizem para o nosso vocabulário técnico-científico, mas, principalmente, compreender o modo como o dizem e nos seus próprios termos, sob pena de reduzi-los a nós e a uma condição de subalternidade.

É para isso que serve a etnopsicologia, para construir colaborativamente um entendimento do psicológico que faca ouvir nas nossas academias e publicações as suas vozes, sob pena de, no ato mesmo de produzirmos ou relatarmos conhecimento unilateralmente sobre os povos originários, reproduzimos o nosso mundo por sobre o deles. Em todas as sociedades há definições e regras que definem as suas categorias possíveis de agentes e, portanto, específicas etnopsicologias (White & Kirkpatrick, 1985).

O campo do psicológico é a consideração do sujeito, independentemente das suas configurações étnico-culturais (Bairrão, 2006) e a psicologia, fundamentada numa abordagem crítica etnopsicológica, pela profusão de temporalidades que intrapsíquica e interculturalmente é levada a admitir, é a disciplina que permite retomar e subverter as escalas temporais de alguns eventos, cuja desconsideração, sob pena de submissão a regras de uma gramática etnocêntrica e colonizadora, possibilita apontar para um novo ciclo civilizacional, que integre e confira protagonismo aos povos originários.

 

O Papel da Etnopsicología

Sustentada em bases etnopsicológicas, a pesquisa psicológica com os povos originários pode ultrapassar o patamar do meramente descritivo e não privar as forças sociais da eficácia de diagnósticos e análises precisos, mas para isso é imprescindível que a psicologia esteja à altura do desafio ameríndio.

Quer dizer, não reduzir a ilusão nem escamotear as cosmologias nativas, que procedem admitindo protagonismo do negativo, do morto e da espiritualidade (Tiveron & Bairrão, 2017). A sua tradução como lendas e mitologias é um modo de não levar o ameríndio a sério e de perpetrar mais uma vez a redução a cinzas dos seus mundos.

Uma psicologia efetivamente transformadora e progressista deve recuar as suas intervenções ao plano mesmo das coisas e do acontecido, não ficando apenas no patamar do seu significado histórico e psíquico; pois um conteúdo progressista pode ser um disfarce para uma prática social conservadora, que lastima mas reafirma a celebração de vitórias dos dominadores sobre os dominados. O argumento histórico, ao deslocar para o passado o pretenso evento que se reitera discursivamente, "protege-o" de uma contestação atual.

Também o apego ao discurso do ressentimento e das dicotomias entre "bons" e "maus", "derrotados" e "vitoriosos", e mesmo " opressores" e "oprimidos" arrisca-se a replicar e fixar uma estrutura de poder atual e performativamente contribuir para manter o status quo, embora aparentemente pareça contestá-lo. O pensamento e as ações reativas (e ressentidas) podem levar à destituição de senhores, mas historicamente tendem a reinstalar substitutos mais ou menos equivalentes no seu lugar, caso não se façam acompanhar de uma radicalidade que interdite a preservação de uma posição de subalternidade para aqueles que supostamente favorecem.

Ora, esta exigência de protagonismo social e político, ficará incompleta, se não se fizer acompanhar de um reconhecimento e validação dos modos de produção de conhecimento e de afirmação de realidades desses povos. De outra forma, ainda que eventualmente posições de poder sejam ocupadas por pessoas oriundas dessas etnias, elas apenas o exercerão submetidas e assimiladas por saberes coloniais. Nestas condições o alcance político transformador pretendido o mais das vezes, entre as intenções e a sua efetiva consumação, tende a resultar no efeito contrário.

Portanto, não basta adotar uma conduta científica supostamente objetiva e rigorosa, se esta se traduzir numa impermeabilidade aos pontos de vista das etnoteorias do outro, pois o efeito geral dessa conduta é um apagamento do interlocutor na sua qualidade de sujeito política e epistemicamente ativo. Uma orientação etnopsicológica, por obrigatoriamente requerer um diálogo e contraste com a perspectiva do outro (Lutz, 1985), previne estes descaminhos.

Além de uma forma de manipulação política, a sua desconsideração também pode ser vista como uma espécie de grosseria e imprecisão teórico-metodológica. Ora, em ciência a falta de rigor teórico e metodológico, independentemente das supostas intenções progressistas pretendidas, redunda numa práxis conservadora ou reacionária e a sofisticação analítica sem práxis objetiva apenas replica descrições que se satisfazem com meras denúncias.

Transformar o mundo pressupõe reconhecer diferentes perspectivas e estabelecer paralelos, não apenas nem principalmente entre diferentes sistemas de pensamento produzidos por mentes poderosas em séculos passados, mas pricipalmente levar em conta aqueles anónima e coletivamente produzidos por diferentes povos e comunidades.

Explicitá-los é o papel da etnopsicologia, pelo que se faz necessário apresentar alguns balizadores conceituais requeridos por etnopsicologias ameríndias. Nomeadamente, o cunho performativo dos discursos em geral e dos enunciados psicológicos em particular e a inclusão do negativo, da ausência e da morte (Bairrão, 2016a), no ofício psicológico.

 

Linguagens científicas e etnocídio epistêmico

Habitualmente tolera-se a diversidade cultural, desde que sem riscos para a nossa suposta realidade, a que embasa nossos conceitos e ciência (o tipo particular de crença privilegiada que adotamos). Para isso reduzem-se os enunciados dos povos originários a mitologia e outros conceitos da nossa cultura. Quer dizer, assume-se uma natureza universal comum e aceita-se a alteridade apenas no plano das representações. O que diferenciaria a humanidade seriam sistemas de crenças, ou culturas, e não perspectivas de vida e de realidade realmente distintas.

Este enfoque, que a grosso modo corresponde ao chamado multiculturalismo, de per si não se constitui lá em uma grande garantia contra o epistemicidio e o etnocidio, pois no fundo não leva a sério os ditos do Outro. A radicalização de uma perspectiva etnopsicológica, que de forma alguma implica em o pesquisador abdicar dos seus pontos de vista, mas em também levar a sério os alheios e dialogar com eles, possibilita um dos maiores benefícios que se pode esperar de uma escuta psicológica, seja na esfera individual, seja no plano social.

Não temos como abrir mão de nossas cabeças mas podemos abri-las para ouvir outras vozes e apreender outras linguagens. Há uma carga de memória que uma língua acarreta ao mundo do outro e que, quando se disciplina teoricamente, em termos exatos, reduz a comunicação entre mundos a comparação de ideias. Para enfrentar essa dificuldade é necessário o conhecimento mútuo e diálogo horizontal com mundos nativos e proceder a cotejamento e cocriações de conceitos. Ao prestar atenção e dar crédito ao que é falado, também se institui e se assegura a realidade e existência do Outro que fala. O reconhecimento dos povos indígenas e do seu protagonismo consuma-se na vida social e certamente pela prática psicológica, mediante a concomitância desses dois processos.

No ato de ouvir o psicólogo faz essas duas coisas: presta atenção ao que se fala e reconhece aquele a quem ouve. Quando quem se ouve é outra etnia, desprovido do instrumental etnopsicológico, o psicólogo arrisca-se a não fazer nenhuma das duas. Ao prender-se aos dados de entrevistas e das suas observaçoes sem levar em conta outros modos de comunicação previstos na realidade dos nativos e ainda por cima ao traduzir esses dados em categorias científicas previamente dadas, provenientes do seu universo, arrisca-se a não cumprir ambas.

Por isso não há escuta verdadeira nem etnopsicologia válida sem uma identificação prévia dos modos de comunicação dos povos nativos. Atrelando-se às palavras, conceitos e teorias da sua disciplina, o psicólogo performa e reproduz assujeitamento e dominação, supremacia e subalternidades.

Esta é uma acusação clássica à psicologia. Diz o óbvio, mas não é nada óbvia, pois o óbvio aqui serve o mais das vezes de disfarce para a falta de consequência relativamente à radicalidade com que o problema teria de se propor, no campo mesmo da matéria e não no da representação subjetiva do profissional e da escolha dos seus instrumentos conceituais.

Relativamente aos povos originários, sempre nos deveríamos perguntar que papel efetivo se confere aos outros povos e pessoas: partícipes de uma fantasia redentora cujo controle e conhecimento temos nós ou o nosso partido? Imposição de uma utopia abstrata prévia e antecipadamente exigida a interlocutores que, desse modo, se veem despojados não apenas de suas terras, vidas e mundos, mas também de suas palavras e de soluções embasadas nos seus construtos civilizacionais? Não é isso que muitas vezes se faz quando se reduz o outro, no caso o indígena, a categorias sociológicas que nos são familiares e nas quais ele vai assumir uma posição de um peão numa engrenagem da História concebida por nós?

Penso que se deveria partir de uma radicalização ética, não no sentido do ativismo político paternalista e que visa a tutela, mas do reconhecimento do protagonismo social e epistêmico de nossos interlocutores. Ética, no caso, implica centrar-se na ação e não em doutrinas, numa atenção aos efeitos das doutrinas ou à sua falta de resultados, e num reconhecimento do Outro também nos seus próprios termos, o que obriga a uma suspensão dos nossos, ainda que provisória.

Os discursos sobre os povos originários são em si mesmos não apenas uma pretensão de produção de conhecimento, como também uma forma de ação política. O sentido real dessa ação nem sempre é transparente aos seus atores cientistas.

Não se pretende com isto atacar a ciência que produzimos, mas o seu uso catequético e doutrinário como propaganda e imposição do nosso mundo, reduzindo-a a um sistema de significados que professamos.

O ponto nevrálgico é que o outro nos traz não apenas culturas, mas um modo distinto de se situar no mundo. Se não nos abrirmos ao outro com uma efetiva radicalidade epistêmica e desprendimento de préconcepções ontológicas, não temos nada de melhor a fazer do que tentar converter ou doutrinar religiosa, política ou cientificamente os nossos interlocutores; ou tentar mantê-los isolados em redomas, tentando impedir processos de colonização reversa e de ressignificação que ameacem as nossas certezas e interpretações sistemáticas de realidade.

Portanto, não basta adotar uma teoria "progressista" disponível no nosso repertório de sistemas psicológicos e aplicá-la aos dados desses povos. O nome disso é bem sabido e denunciado quando se o aplica aos outros: colonização e assimilação, no caso na forma de um etnocídio epistêmico.

 

O morto e o tempo

Ao reduzir o estudo do psicológico ao âmbito do presente e da subjetividade, subrepticiamente, por mais progressista que se pretenda, a nossa psicologia protege e exclui do debate o futuro, o passado e tudo aquilo que se excluiu de alguma positividade.

Deste modo, sanciona o genocídio e recusa-se a reparar o já sucedido, restando ao psicólogo o ofício de curar feridas irreversíveis e de endossar a suposta objetividade e perpetuidade do estado de coisas atual.

Contrapor-se a isso requer repor em causa o já sucedido, levar em conta o negativo (o não ser) e, portanto, repor em circulação tudo aquilo que lato senso é ou está morto.

Independentemente de se supor isso possível ou impossível, e com base na necessidade já apontada de suspender a imposição de critérios de realidade aos discursos e aos mundos dos outros, é necessário fazê-lo por três razões:

1. Porque não se pode deixar o estado de coisas no ponto de etnocídio pura e simplesmente em que o encontramos. Anuir com essa representação do dado é perpetuar e performar continuamente, aqui e agora, um crime de lesa humanidade, mesmo que o sentido desse ato se manifeste na consciência de maneira invertida, na forma de lamúrias e de aparente solidariedade.

2. Porque a morte e o negativo sempre estiveram aí e só não se lhe deu ouvidos por incapacidade de dar crédito ao silêncio, o que abordagens e estratégias psicológicas contemporâneas, somadas a contribuições de outras culturas, permitem ultrapassar (Bairrão, 2012).

3. Porque, ao contrário do que se possa pretender e fazer crer, há diferentes modos de articulação da temporalidade e, longe de inerte, o passado, próximo, longínquo ou traumático (este sempre atual), sempre esteve em devir, sendo aliás a sua transformação a via régia para a mudança do futuro (Botella & Botella, 2002)

Estamos familiarizados com diferentes registros de memória, um mais cognitivo, outro social e até um terceiro corporal e mimético (Connerton, 1989), mas temos dificuldade em lidar com o que se manteve à margem da positividade e da história, o que escapa a todas as formas de memória, o que não foi representado, nem recalcado, nem experimentado, não obstante acontecido. Mas ainda que sem registro, o sucedido não deixa de ser impactante. É preciso dar o devido peso ao tempo selvagem da não memória.

O sem significado e não representado, só por isso, não deixou de ter acontecido. É o caso do genocídio na ausência de registros. o trauma não ficou no passado, é atemporal, sempre presente, assombra o futuro e sangra ainda agora, mesmo que não manche a memória.

O apagamento, supressão, ou mera ausência de memória do extermínio dos povos originários se perpetua, por exemplo, na forma de alucinações negativas (não percepção do existente (Bairrão, 2016b). Também relativamente aos indivíduos vivos e na raiz de parcela substancial do seu sofrimento se encontra a desconsideração dos seus mortos e do seu tempo próprio.

A aceitação do que não se positiva como dado, a concessão de cidadania psicológica à morte pode servir de apoio para afinarmos instrumentos na direção de uma recuperação do morto, do passado e a reconstituição política e efetiva de uma realidade ameríndia, repactuando uma humanidade comum. Isto é, precisamos admitir que o morto só por ser morto não é inerte e é isso que tentam nos mostrar e fazer crer muitas das concepções de relevância etnopsicológica crioulas (caboclas) e nativas.

A linguagem tanto é veículo da memória como vestígio do morto. É possível dar ouvidos a ambos. A habilidade para repor em circulação o morto, que nos é proporcionada e ensinada por etnopsicologias ameríndias, é um recurso poderoso, se não imprescindível, para fomentar um necessário processo de reindigenização de nossas Américas, o qual por sua vez não apenas é uma questão de justiça, como também nos encaminha na direção de um possível consenso civilizacional emancipador de toda a humanidade. Pois é urgente conhecer e comunicar-se com realidades e mundos que, quiçá, possam aportar soluções ou apontar saídas para o beco de barbárie a que fomos induzidos. E talvez em alguma medida, em vez de nas nossas fantasias utópicas, elas se possam encontrar e estejam aí à mão, nos modos de vida tradicionais e sabedorias dos povos originários (Viveiros de Castro, 2012).

 

Conclusão

O desafio social e político mais perduradouro, antigo e atual das Américas, é também o mais decisivo para o seu futuro e quiçá para toda a humanidade: os povos originários do nosso continente. O seu enfrentamento requer o exercício de uma Psicologia em diálogo intercultural, que é a etnopsicologia.

Mediante o seu exercício, podemos passar da denúncia de que no ato mesmo de produzirmos conhecimento unilateralmente sobre os povos originários se reproduz o nosso mundo por sobre o deles.

O impacto dos termos e dos conceitos não depende apenas do seu conteúdo técnico: é impossível excluir a sua carga histórica e os resíduos dos seus usos pelo senso comum. Há uma memória inconsciente associada ao seu uso que atropela os movimentos sociais e os estilos e materialidades enunciativas dos povos originários.

Os discursos sobre os povos originários são em si mesmos uma forma de ação política. O sentido real dessa ação nem sempre é transparente aos seus atores cientistas. Não é ético o ativismo político paternalista que visa a tutela, mas sim o reconhecimento do protagonismo social e epistêmico de nossos interlocutores.

Portanto, não basta adotar uma teoria "progressista" disponível no nosso repertório de sistemas psicológicos e aplicá-la aos dados desses povos. O nome disso é bem sabido: colonização e assimilação, no caso na forma de um etnocídio epistêmico. Este etnocídio articula-se muitas vezes a uma espécie de retórica carpideira lamentativa do genocídio e do epistemicidio, que na realidade os performa discursivamente.

Para combatê-la e contestá-la, é preciso não reduzir o estudo do psicológico ao tempo presente, uma vez que isso protege e exclui do debate tudo o que se priva de alguma positividade. Deste modo sanciona-se o genocídio, cabendo à Psicologia endossar a suposta objetividade e perpetuidade do estado de coisas atual.

Contrapor-se a isso requer pôr em causa o já sucedido, levar em conta o negativo (o não ser) e repor em circulação tudo aquilo que lato senso é ou está morto:

 

Referências

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