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Psicologia para América Latina

On-line version ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.29 México Dec. 2017

 

Caminho para a América Latina

 

Camino hacia América Latina

 

The road to Latin America

 

 

Ronie Alexsandro Teles da SilveiraI, 22

IUniversidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)

 

 


RESUMO

O artigo propõe uma discussão acerca dos desafios para a constituição de um pensamento pertinente à América Latina. Embora exista um comportamento predominante ligado à desconsideração de nossas especificidades, somente um pensamento que as levem em conta pode mostrar-se ajustado ao que temos sido. Por meio do exemplo de uma análise psicanalítica existente, o artigo evidencia parte das dificuldades envolvidas no desenvolvimento de um pensamento próprio e, mais especificamente, de uma psicologia ajustada à realidade latino americana.

Palavras-Chave: América Latina; Psicología; Psicanálise; Pensamento Ajustado


RESUMEN

El artículo propone una discusión sobre los desafíos para la constitución de un pensamiento pertinente a América Latina. Aunque existe un comportamiento predominante ligado a la desconsideración de nuestras especificidades, sólo un pensamiento que las tenga en cuenta puede mostrarse ajustado a lo que hemos sido. A través del ejemplo de un análisis psicoanalítico existente, el artículo evidencia parte de las dificultades involucradas en el desarrollo de un pensamiento propio y, más específicamente, de una psicología ajustada a la realidad latinoamericana.

Palabras clave: América Latina; Psicología; Psicoanálisis; Pensamiento Ajustado


ABSTRACT

The article proposes a discussion about the challenges for the constitution of a thought pertinent to Latin America. Although there is a predominant behavior linked to the disregard of our specificities, only a thought that takes them into account can be adjusted to what we have been. Through the example of a existing psychoanalytic analysis, the article highlights part of the difficulties involved in the development of one's own thinking and, more specifically, of a psychology adjusted to Latin American reality.

Keywords: Latin America; Psychology; Psychoanalysis; Adjusted Thinking


 

 

Introdução

São muitas as dificuldades que se apresentam quando se tenta definir o que viria a ser um pensamento latino americano ajustado às nossas condições. Essas dificuldades, embora variadas, são o resultado de uma única e mesma forma de desilusão colonial. Por sua vez, essa desilusão decorre de haver reconhecido a incapacidade do pensamento de matriz europeia em fornecer uma visão unitária e útil da América Latina. Trata-se de admitir que só um conhecimento latino americano de si e por si pode se mostrar ajustado ao que temos sido. Por ajustado entendo que essa maneira de pensar deve ser pertinente - e não necessariamente coincidente - com o estado de coisas que tem nos caracterizado.

Quando se tenta pensar o que temos sido, a despeito das diferentes perspectivas disciplinares, se revela que o processo colonial produziu uma situação na qual os valores de matriz europeia tem exercido uma energia substantiva sobre o ambiente latino americano. Porém, essa energia em quase nenhuma situação concreta conseguiu gerar um corpo plenamente unificado sob a hegemonia dos parâmetros metropolitanos. Ou seja, há uma espécie de resquício dissonante presente nas tentativas de implantação de valores europeus na América Latina – algo que pode ser ilustrado por uma roupa que não se ajusta ao corpo (Silveira, 2017a). Nisso consiste a desilusão colonial: a constatação de que os valores europeus não obtiveram na América Latina o sucesso civilizatório que obtiveram na sua condição de origem. Daí também que o pensamento de matriz europeia nos pareça sempre de um modelo ou de um tamanho inadequado.

A desilusão colonial diz respeito, assim, ao fato de se reconhecer que não temos tido interesse ou sucesso em nos tornarmos plenamente europeus. Claro que o desejo de chegarmos a sociedades igualitárias e desenvolvidas sempre é uma possibilidade que não pode ser eliminada do horizonte de um ponto de vista estritamente lógico. A desilusão a que me refiro envolve haver restringido o amplo universo de possibilidades lógicas para aquilo que efetivamente temos sido historicamente capazes de realizar em termos de sociabilidade nos últimos 500 anos.

Assim, embora o ideal civilizatório europeu seja viável enquanto uma possibilidade lógica, o contexto histórico imediato indica que há limitações óbvias com relação à sua implantação prática. Por contexto histórico imediato refiro-me àquilo que temos realizado - e não ao que temos desejado ser. Parece-me desnecessário enfatizar que o que temos sido não constitui uma natureza e, portanto, uma situação definitiva a que estaríamos condenados, mas apenas certo estado de coisas mais ou menos duradouro.

A diferença dessas duas perspectivas – a lógica e a histórica - é que na segunda focamos o olhar sobre uma dimensão temporal específica: nosso presente e nosso passado mais próximo. Esse ponto de vista assume que nossas possibilidades futuras encontram-se limitadas, mas não determinadas, por algumas características do que temos sido. Aquilo que poderemos ser está ligado àquilo que temos sido, pois é a partir desse último que tomamos impulso em direção ao futuro. Assim como ninguém salta a partir do vácuo, mas toma impulso em alguma situação em que se encontra, parece razoável considerar a função desse sistema inicial de valores que funciona como trampolim com respeito a tudo o que poderemos ser.

Esse sistema é aquilo que fornece a base existencial a partir da qual repudiamos ou assimilamos os valores predominantes no ambiente internacional. Assim, mesmo quando adotamos arranjos institucionais oriundos da matriz europeia, o fazemos a partir de um conjunto de disposições básicas. Essas disposições estabelecem parâmetros a partir dos quais as assimilações ou recusas se tornam possíveis. Elas certamente não determinam o conteúdo dessas assimilações, mas balizam os limites de como essas últimas podem se tornar efetivas. De certo modo, essas disposições funcionam como condições de possibilidade.

Ao levar essas condições em consideração, não parece razoável esperar – por exemplo - que a transposição da democracia para a América Latina resulte em práticas sociais idênticas àquelas existentes na Europa ou na América do Norte. Não ter tal expectativa faz sentido justamente quando levamos em consideração esse efeito de distorção produzido pelas condições culturais atuantes por aqui. Embora pareça muito sensato incluí-lo em nossa maneira habitual de pensar, na prática esse efeito tem sido sumariamente ignorado por analistas e por governos que insistem em lidar com parâmetros sociais, econômicos, morais etc., supondo que as condições latino americanas são idênticas àquelas que produziram a civilização europeia. A língua franca econômica acerca de produtos internos brutos ou superávits em balanças comerciais são outra ilustração dessa desconsideração pelo contexto presente em nossos telejornais diários. Isso na medida em que se age supondo-se a validade da sua aplicação indiscriminada à América Latina.

Nesse espírito pouco afeito às diferenças, não é raro que se defenda que basta copiar um dispositivo institucional europeu para que se gerem os mesmos resultados na América Latina. O sistema de cópias institucionais internacionais – no sentido da cultura europeia para a América Latina - possui uma história tão extensa quanto infrutífera. Essa preferência por deixar de lado nossas condições certamente está ligada ao fenômeno histórico da colonização e é provável que seja um elemento residual de um complexo de inferioridade arraigado. Em uma medida que é difícil precisar, o espelho com que nos olhamos parece ser ainda o do velho colonizador europeu.

Embora o remédio seja amargo, como o são todas as decepções, ainda assim me parece salutar adotar aqui uma boa dose daquela desilusão colonial. Ela permite acercar-se mais de perto ao que tem sido a América Latina e, dessa maneira, propiciar uma avaliação mais pertinente ou ajustada a nosso respeito. Seu sabor amargo se destaca no nosso paladar quando notamos que isso implica no abandono do sonho de sermos europeus.

Mais espantoso é notar que essa disposição para desconsiderar ou minorar nossas próprias disposições – ou nossas capacidades efetivamente existentes – permanece atuando mesmo em casos em que o que se pretende é torná-las explícitas. Com isso quero dizer que essa indisposição para tomar pé a partir de nossas condições se apresenta com frequência mesmo no interior de algumas de nossas pretensões intelectualmente honestas para nos entendermos plenamente.

Ao perceber essa situação, temos de reconhecer que o colonizador obteve mais sucesso do que poderia parecer inicialmente. Isso porque, se parece evidente que ele fracassou do ponto de vista prático, ao transpor plenamente o mundo europeu para a América Latina, não se nota o mesmo insucesso do ponto de vista teórico – em função de nossa perseverança em seguir utilizando os seus velhos critérios de avaliação.

Talvez isso tenha colaborado para consolidar uma noção fantasmática acerca da América Latina. Afinal, se mesmo quando pretendemos nos compreender adotamos uma perspectiva inicial que desconsidera o que somos, é porque aquilo que somos já se constitui como alguma desconsideração por nós mesmos – em benefício do colonizador. Assim, o que somos parece ser também, em alguma medida, uma recusa acerca de como somos, uma forma de não ser.

Isso gera uma situação que é, para dizer pouco, singular: quando procuramos nos conhecer, assumimos como ponto de partida uma ignorância parcial acerca do que somos. Então, ao nos conhecermos a partir dessa perspectiva, terminamos por nos ignorar parcialmente. Ou ainda: o conhecimento que tentamos obter de nós, adotando esse ponto de vista, é aquele que se produz da perspectiva da matriz europeia a nosso respeito – justamente porque nos foca de uma perspectiva alheia. Essa pretensão de autoconhecimento gestada em uma situação de ignorância parcial parece-me o nó górdio de nossa capacidade (ou não) de produzirmos um pensamento ajustado ao que temos sido.

Como um ponto de estrangulamento, é natural que dependa dele tudo o que se pode seguir em termos de possibilidade de um conhecimento adequado de nós mesmos. Assim, parece obrigatório saber, antes de qualquer outra coisa, se essa situação de nos enredarmos permanentemente em um conhecimento inadequado acerca de nós mesmos, em função da distorção causada pela ótica do colonizador, é algo que pode ser afastado do caminho ou não.

Por isso, me parece que o que compete a qualquer interessado em verificar a possibilidade de um pensamento latino americano ajustado a nossas condições é verificar se o efeito de distorção do ponto de vista europeu é um componente inevitável ou se ele pode ser removido através de algum procedimento de depuração. Nesse último caso, o que se obteria seria uma libertação ou uma descolonização em função do abandono dos critérios europeus de análise e crítica que tem caracterizado o pensamento da América Latina.

O ponto de vista obtido seria aquele que nos permitiria chegar a um conhecimento sobre nós, produzido de um ponto de vista adequado a nós – ou ajustado a nossas próprias circunstâncias culturais. Em função da adequação interna desse conhecimento às nossas peculiaridades, podemos denominá-lo de autoconhecimento ajustado. Enfatizo, também aqui, que isso não diz respeito à recuperação de uma natureza latino americana não histórica, mas a algo mais modesto: a uma adequação entre o que sabemos de nós e o que temos sido.

Creio que essa questão não é meramente teórica, na medida em que ela demanda não a descrição de um suposto processo de catarse libertadora ou de um método que poderia nos afastar do ponto de vista europeu em nosso benefício. Trata-se, na verdade, de uma questão prática, na medida em que ela solicita a demonstração de nossa capacidade para gerar um autoconhecimento por nossa conta ou uma compreensão do que somos segundo o que somos.

O leitor deve estar se perguntando se essa demonstração prática não é uma tautologia em função dos termos que utilizo – afinal se trata de produzir uma compreensão de nós segundo o que temos sido. É verdade que se trata mesmo de uma tautologia. Porém, seu mérito é que ela visa a substituir outra tautologia. Afinal, o ponto de vista convencional, que em geral temos adotado para nos compreendermos, é europeu. Note que, ao contrário do que parece, quando esse ponto de vista se aplica aos seus autores europeus ele não resulta em uma apreciação isenta. Ele redunda em um conhecimento sobre os europeus produzido da perspectiva europeia, portanto em uma tautologia europeia. Para nós, trata-se simplesmente de saber se podemos substituir uma tautologia europeia por outra – uma que seja latino americana.

Não é uma dificuldade aqui contornar o procedimento tautológico porque, nesse caso, ele já é a regra do jogo. Trata-se somente de saber se estamos capacitados para produzir uma tautologia sobre nós mesmos que é diversa da tautologia que o europeu produziu de si e que, pela força inercial dos dispositivos coloniais, tem sido a nossa. Por isso, insisto em que se trata de uma questão prática, porque ela deságua em nossa capacidade ou não de gerar uma autocompreensão alternativa de acordo com o que somos.

Tentei essa autocompreensão com relação ao Brasil em outra parte (Silveira, 2016) e pretendo aqui ensaiar algo um pouco mais modesto. Como vimos, há uma reincidência quase compulsiva em retomarmos a perspectiva europeia, mesmo em ocasiões em que parecemos honestamente procurar um autoconhecimento ajustado de nós mesmos.

Nesse texto, tento verificar o que ocorre em uma situação em que, mesmo tentando gerar uma autocompreensão ajustada, produzimos um juízo inadequado, justamente em função da nossa compulsão por readotar o velho olho europeu. O meu objetivo aqui é tornar evidente o mecanismo dessa reincidência, através de um caso particular, de tal forma que o leitor possa perceber não só a operação desse mecanismo subterrâneo, mas também as dificuldades envolvidas no seu desejável abandono.

Como esse objetivo envolve tratar da América Latina na sua totalidade, não posso me estender em casos particulares referentes a cada região ou país – o que tornaria esse texto inviável em função do seu tamanho. Assim, tomarei como exemplo uma única tentativa de autoconhecimento que me parece não só honesta, mas dotada de um relativo sucesso dentro daquilo que ela se propos. Essa tentativa de autocompreensão latino americana diz respeito à análise de Galligaris (1992) sobre o Brasil. Embora o autor seja um italiano, isso em nada compromete sua análise ou o uso que pretendo fazer dela aqui. A nacionalidade do analista é absolutamente irrelevante nesse caso. Ao contrário, não o são nem seu ponto de vista nem os mecanismos de que lança mão para produzir uma compreensão da América Latina.

O meu objetivo, portanto, é analisar um caso particular em que se ensaia uma tentativa de produzir um conhecimento ajustado sobre a América Latina. Com isso, viso identificar a maneira sutil como nos reacomodamos à maneira europeia de pensar mesmo no interior de tentativas de nos compreendermos plenamente. Através desse exemplo, pretendo ressaltar as dificuldades existentes no caminho para um conhecimento adequado da América Latina e mesmo algumas das rupturas que ele demanda.

 

Sujeitos e indivíduos

As limitações que indicarei abaixo não são definitivamente comprometedoras com relação ao conteúdo da autocompreensão da América Latina apresentada por Galligaris (1992). Os defeitos que indicarei dizem respeito à adoção de uma perspectiva que, embora simpática ao que temos sido, não é adequada para tratar das condições latino americanas. Dessa maneira, esses defeitos ilustram as dificuldades existentes no ajuste entre essas condições e um conhecimento ajustado ao que temos sido. Não tenho interesse em exercer uma crítica exaustiva acerca da análise de Galligaris, mas tomá-la como um exemplo ilustrativo das dificuldades ligadas a um pensamento latino americano ajustado. Apenas nesse sentido ocupo-me com ela.

Embora trivial, é verdade que em função da colonização e da influência exercida ao longo do tempo, alguns dos valores e dispositivos europeus moldaram a América Latina. As instituições democráticas são um exemplo disso. Porém, como explicitei antes, aqueles valores raramente foram capazes de demonstrar a eficácia que demonstraram nas condições europeias originais em que foram aplicados. Quando transpostos, eles perderam sua capacidade de dar uma forma uniforme à América Latina. Podemos falar, então, de um processo de ambientação sofrido por aqueles dispositivos democráticos.

Em outra ocasião, denominei essa apropriação específica de instrumentalização funcional (Silveira, 2017b) enfatizando o significado cultural dessa adaptação. Como se poderá notar, essa diferença em termos de intencionalidade dos valores e dispositivos - entre sua situação europeia e latino americana - redunda em uma diferença gritante ao final.

A análise de Galligaris (1992) chama a atenção para alguns dos resultados de nossa colonização incompleta. Assim, ele se refere à ausência de subjetivação no ambiente brasileiro. Essa carência de subjetividade se expressa como uma indisposição geral para se adotar qualquer tipo de afiliação. Ela assume a forma de "um sujeito psicológico maciço, cuidadoso da sua convicção de liberdade e autonomia. Um sujeito às vezes impermeável à indicação de uma determinação simbólica que o ultrapasse." (p. 107).

Para evitar equívocos de terminologia, considere que um sujeito impermeável não é um sujeito propriamente falando, mas um indivíduo. Afinal, se ele não se subordina a nada que possa lhe parecer definitivamente superior ou que o ultrapasse, é porque assumiu uma ojeriza universal ao processo de sujeição. Dessa maneira, reservo o termo sujeito para os indivíduos europeizados, aqueles que efetivamente se sujeitaram a esferas simbólicas transcendentes ou superioras. Já o termo indivíduo designa aqui uma pessoa sem subjetividade e, portanto, avessa à afiliação.

Essa indisposição para fazer reverência a algo superior impede que no interior do indivíduo se estabeleça uma distinção entre dois níveis hierárquicos. Nesse caso, temos um indivíduo que é psicologicamente plano, na medida em que suas relações simbólicas se estabelecem em um ambiente sem profundidade, ao contrário da situação que caracteriza o sujeito. Na verdade, somente a profundidade pode propiciar a condição requerida para o estabelecimento da subjetividade, na medida em que ela permite que se diferencie a instância que sujeita (acima) e a que é sujeita (abaixo). Sem profundidade não há como a instância superiora apropriar-se do controle das dimensões que necessitam ser subordinadas e impor a elas um controle unificado. Na ausência de profundidade, o sujeito não pode estender uma ação de domínio consequente sobre si mesmo, em função da ausência do ambiente psicológico hierarquizado. Nota-se, assim, como o sujeito é alguém que exerce uma ação de monitoramento, na proporção em que se descolou de si e pode, desse ponto de vista superior, colocar-se sobre si. Também se nota, por contraposição, o efeito contrário produzido pelo caráter plano do indivíduo.

Não me parece inviável universalizar a toda a América Latina essa indisposição do indivíduo para a reverência. Como mera ilustração dessa falta de sujeição, na impossibilidade já referida de me deter em cada circunstância particular de cada particularidade nacional, cito o perfil do mexicano traçado por Octávio Paz (1959). A solidão do mexicano é uma forma específica de individualidade. Também seria essa mesma indisposição com relação à sujeição que produziria uma adaptação distorcida do dispositivo democrático na América Latina (Lagos, 2000) – para mencionar outro exemplo geral já referido.

Sem o reconhecimento prático do valor superior da lei, não há sujeição nem respeito pelos ritos democráticos. A democracia é justamente aquele tipo de arranjo político em que todos se encontram equidistantes com relação a uma mesma lei ou em que essa é universalmente reconhecida como dotada de autoridade válida por si. Para termos democracia plena é necessário haver subordinação integral, isto é, reconhecimento de algo que nos escapa e que está acima de nós – assim como a subjetividade o requer. Trata-se de um requisito psicológico em que o dispositivo político pode ou não, a depender da situação, deitar raízes.

De qualquer modo, parece-me perfeitamente aceitável a tese da inexistência da sujeição quando tratamos dos indivíduos latino americanos em geral. A ausência de subjetividade plena é o indício desse estado de coisas (Sousa, 1999; Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2005).

Uma das limitações perceptíveis na análise de Galligaris (1992) é o caráter pouco representativo de algumas das figuras que ele opta por destacar. Em sua análise ele se concentra nas figuras do colonizador e do colono. O primeiro seria o proprietário das novas terras descobertas que foi obrigado a cortar os elos de pertencimento com sua localidade natal e emigrar para a América, visando construir um novo mundo a partir de si mesmo. O segundo seria o imigrante posterior, aquele que só poderia obter a terra subordinando-se às prerrogativas já obtidas pelo colonizador em função de uma chegada anterior.

Observe que no caso do Brasil, que é o objeto da análise de Galligaris (1992), a relação entre colonizador e colono só se estabeleceu efetivamente após 1850. É desse ano a promulgação da lei nº 601, conhecida como Lei de Terras. Antes dessa lei era permitida a qualquer um a posse de uma parcela de terra devoluta. Na verdade, o Estado não exercia um efetivo domínio das terras, já que nem as dimensões do próprio território nacional estavam devidamente estabelecidas. Tratava-se, antes de 1850, de uma condição permanentemente mutável, na medida em que o território se ampliava constantemente (Oliveira Lima, 2000).

Com efeito, as repetidas expansões territoriais geralmente foram motivadas por mero interesse de iniciativas individuais, sem qualquer tipo de planejamento ou ação colonizadora por parte do Estado brasileiro. Um dos exemplos mais característicos dessa situação de expansão contínua sem a presença da intencionalidade do Estado é a ocupação da região de Cuiabá (Buarque de Holanda, 1994) levada a cabo pelos paulistas em busca de ouro. Sem a delimitação precisa do território e com a possibilidade dele ser ocupado por qualquer um, sem nenhum tipo de concessão estatal explícita, não faz sentido falar em propriedade de terras por parte do Estado ou mesmo de terras devolutas. O que há é um território legalmente indeterminado em que qualquer um pode ser proprietário.

Existia um processo de concessão estatal de terras desde o período colonial, porém altamente assistemático e ineficaz. Não era raro que ocorressem concessões legais sobrepondo as mesmas parcelas de terra. Além disso, a demarcação era sempre imprecisa e muito propícia a dar origem a desavenças resolvidas por meios não legais (Filho e Fontes, 2009; Síntese Social, 1960). Na prática, o território era incerto e livre, devendo o interessado remover eventuais obstáculos ao uso da terra por conta própria.

Algum constrangimento real só se torna considerável no momento em que o Estado brasileiro proibiu a mera posse das terras. Foi essa proibição que o tornou efetivamente o proprietário. A partir de 1850, a propriedade passou a se tornar legítima apenas através da compra de um lote de terras pelo cidadão diante do Estado. Essa alteração na legislação ocorreu em função da falência iminente do sistema escravagista e da consequente necessidade do uso de mão de obra livre.

O que se acreditava que iria garantir o uso de mão de obra livre seria a proletarização. Essa condição requeria a criação de um obstáculo no que diz respeito à posse dos meios de produção - nesse caso, a terra. De fato, com fartas terras disponíveis, a mera importação de mão de obra livre não garantiria oferta de força de trabalho, já que essa última tenderia naturalmente a se ocupar em processos produtivos próprios. A expropriação prévia constitui-se como um passo necessário na efetivação do uso assalariado de mão de obra livre (Martins, 1981; Guimarães, 1964; De Janvry, 1981).

Portanto, as figuras de colonizador e colono, mesmo se consideradas na sua função estritamente simbólica, só passam a ser significativas na história brasileira a partir de 1850. Além disso, há importantes restrições territoriais para essa função já que o fluxo migratório europeu se restringiu às regiões sul e sudeste do país.

Observe também que o colonizador e o colono são duas figuras simbólicas europeias. Não há, na análise de Calligaris (1992), funções simbólicas para os indígenas americanos ou para os negros africanos extraditados à força para o trabalho escravo. Se for verdade que o colono teme a possibilidade da escravidão, em função de não deter a propriedade da terra e encontrar-se desvalido, o que dizer dos indígenas ou africanos – esses últimos já chegados na condição escrava? Não parece fazer sentido supor que a ameaça da escravidão exerceu um efeito simbólico superior à escravidão efetiva.

Essa restrição dos papéis simbólicos só se justifica quando consideramos que a perspectiva de análise adotada por Calligaris (1992) é europeia. Afinal, é somente para esta que o risco da escravidão é significativo, mas não para o próprio escravo – para o qual a escravidão já é uma forma de vida concreta, com a qual ele tem de lidar cotidianamente. Assim, é eloquente que em um capítulo intitulado "Escravo", Calligaris trate não da situação estabelecida da escravidão, mas justamente da ameaça que paira sobre o colono europeu. Isso contraria claramente o reconhecimento de que "A marca da escravidão na história brasileira é profunda e deixou vestígios em nós" (Slavutzky, 1999, p. 143). Marcas que certamente deveriam ser objeto de atenção por parte da psicanálise, área em que se desenrola a análise de Calligaris.

Essa preocupação acerca do temor da escravidão, historicamente tardia e tipicamente europeia, é ilustrada pela narrativa de Davatz (s. d.), citada por Calligaris (1992). Tratam-se das memórias de um suíço que emigrou para o Brasil para trabalhar no sistema de parceria nas lavouras de café da fazenda Ibicaba do Senador Vergueiro. Após retornar para a Europa em função de uma revolta de colonos ocorrida em Ibicaba, Davatz redigiu um relato sobre a situação dos imigrantes europeus que vieram trabalhar em São Paulo. Davatz refere-se à preocupação de que, em função do crescente endividamento dos colonos, "Nada impede que amanhã os filhos dos colonos imigrados da Europa sejam tratados como os pretos, nem mais nem menos." (p. 120) e também que "os colonos, em certos lugares, se veem em maior dificuldade para se libertarem do que os próprios escravos pretos." (p. 122). Ou seja, da perspectiva europeia, a ameaça mais assustadora era ser reduzido à condição servil. Trata-se, portanto, de uma preocupação tipicamente europeia só levada em consideração em função da condição europeia de Davatz. Condição distinta da maioria efetivamente escravizada da população brasileira da época, mas que nem por isso entra no foco da análise de Calligaris.

Espero ter evidenciado duas limitações, que considero secundárias, mas significativas, da perspectiva analítica de Calligaris (1992). Por um lado, as funções de colonizador e colono que ele prioriza só se tornaram parcialmente significativas após 1850. Muito tardiamente, portanto. Por outro lado, as figuras simbólicas de que ele lança mão dizem respeito prioritariamente ao temor da escravidão por parte do imigrante europeu, mas nada dizem sobre a experiência existencial da escravidão então existente e predominante.

 

O gozo imediato

Passo a considerar o aspecto que me parece mais revelador da perspectiva analítica de Galligaris (1992): o fato de ela inviabilizar a adoção de um ponto de vista ajustado à condição latino americana. Refiro-me à sua impossibilidade de pensar adequadamente o gozo imediato.

Obviamente não estou supondo que esse autor tenha se proposto a gerar uma compreensão do gozo de um ponto de vista latino americano e não tenha atingido esse objetivo. Ele declaradamente não possui essa pretensão e seria injusto imputar-lhe isso. Basta atentar para o subtítulo do livro: "notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil" para perceber que se trata de uma tentativa prudente de se aproximar de uma realidade com as devidas precauções que a distância cultural impõe. A questão é que, ainda com toda prudência que se tome, trata-se de um ponto de vista que inviabiliza um conhecimento ajustado da América Latina.

A questão não se resolve pela declaração prudente de que a América Latina está sendo analisada por um olhar europeu. Se isso fosse suficiente, bastaria dar um desconto relativo ao ponto de vista alienígena para se chegar a um resultado final aceitável. Nesse caso, é como se o débito do ponto de vista europeu preservasse algo de válido mesmo que produzido sob uma perspectiva inadequada. Com isso, quero dizer simplesmente que não há como anular o efeito de distorção produzido pela perspectiva europeia.

Galligaris (1992) identifica o que considera ser a base da pedagogia europeia no "gosto pelo esforço" ou no valor positivo da interdição: "o gozo do corpo materno é impossível e o gozo que te é permitido é relativo ao exercício dos teus esforços (vãos) para atingi-lo. E a excelência de uma vida é relativa à nobreza dos esforços" (p. 47). Desse modo, a vida civilizada europeia torna-se um exercício de assumir as interdições como limites contra os quais se luta sem chance de sucesso definitivo. O que se conquista, de fato, nesse processo é a capacidade de superar pelo esforço as limitações assumidas no início e construir uma vida dentro das fronteiras que se impuseram sobre o sujeito. É justamente a assunção dessas limitações que requerem as disposições subjetivas. Aquelas só podem ser devidamente assimiladas no interior dessas últimas.

A essa noção da pedagogia europeia se oporia uma psicologia latino americana em função de nossas disposições individualistas, logo planas. Como vimos acima, tratam-se das características de uma psicologia do indivíduo - que se indispõe contra toda limitação, no sentido de se recusar a vivenciá-las interiormente. Ou seja, o indivíduo não adia a realização do desejo para um futuro provável, não assume como suas as imposições externas e os impedimentos de toda ordem. Ele não os interioriza e nem reconhece limites externos definitivos. Tampouco ele assume a condição de um desejante limitado por forças superiores a si.

Quando Calligaris (1992) trata do indivíduo, adota um tom relativamente simpático, mas que revela uma incompreensão de fundo diante de uma possibilidade de ser que, de seu ponto de vista, não parece fazer sentido: "tudo acontece como se o único motor da ação humana pudesse ser o apetite de um gozo direto da coisa" (p. 60). No mesmo sentido, um pouco adiante, ele deixa evidente o desconforto com a figura do indivíduo ao afirmar que "como se reconhecer um fiozinho de filiação pudesse privar-nos de algum gozo" (p. 74). É essa possibilidade de viver o gozo imediato sem interdições que lhe parece difícil de compreender e mesmo reconhecer a existência. De fato, essas afirmações parecem supor que as limitações são necessárias e que o indivíduo é um absurdo, um impossível que existe.

Mas quais seriam as dificuldades vinculadas a uma vida baseada no gozo imediato? As dificuldades estão ligadas ao modo como esse gozo é compreendido pela análise psicanalítica de Calligaris (1992). O seu ponto de vista é o de que a tentativa de fundar uma vida significativa baseada no gozo imediato termina em uma espécie de corrida fatigante que não conduz a lugar nenhum que não seja o esgotamento do indivíduo. Trata-se de um movimento que só leva ao vazio. Assim, a possibilidade de uma vida baseada na individualidade é a própria impossibilidade do nada. A passagem que melhor ilustra essa noção é a seguinte:

Qual seria um sujeito que estendesse indefinidamente esta voracidade de leitão? Se significantes paternos transitassem diariamente pelo seu corpo como amanteigados na boca de um boxer, como conseguiria se apoiar firme num deles e qual? O remédio evidentemente seria escolher como valor nacional a voracidade mesma. (1992, p. 35).

Assim, o gozo imediato levaria sempre à falta de condições de se obter apoio "firme" em função da voracidade que ele sempre implica. Como o gozo imediato conduz a uma nova necessidade assim que é satisfeito, ele deságua em uma espécie de regressão contínua em que nada é preservado. Não se pode encontrar a satisfação plena do desejo nessas condições. Trata-se de uma espécie de roda desejante que gira para sempre voltar à situação inicial de carência de onde ela partiu. Assim, a vida baseada no gozo imediato é uma vida fadada ao nada, à carência de um desejo inesgotável, à falta de um ponto de apoio sólido onde se possa ancorar. Ou seja, uma vida à deriva e sem um sentido possível.

Essa crítica de Calligaris (1992) à lógica interna do gozo imediato reverbera uma outra bem mais antiga. Refiro-me às afirmações de Santo Agostinho (1996, p. 381) no combate ao politeísmo romano. Para ele, o problema com o politeísmo é que a diversidade de deuses não fornece um suporte decididamente sólido para a frágil vida humana. Assim, ter vários deuses equivale a adotar uma forma de felicidade "brilhante como o vidro e como ele frágil" de tal forma que "vive-se no terrível receio de que de repente se estilhace".

Aqui, como em Calligaris (1992) o problema está ligado à fragilidade do que é objeto do desejo imediato, de uma felicidade que, por ser inconstante, pode conduzir à infelicidade e ao que é volátil. Em ambos os casos, o ponto de vista determinante do qual se parte é a demanda por uma felicidade sólida, por um ponto de apoio "firme", por algo substantivo e que não se esgote na imediatez – seja o gozo imediato ou os pequenos deuses do politeísmo antigo.

Não se trata, como a análise de Calligaris (1992) certamente deu a entender antes, de que o gozo imediato seja autocontraditório e termine colapsando em função de seu próprio peso. Na verdade, a questão é que, diante da necessidade por um ponto de apoio definitivamente sólido, o gozo pareça frágil. A avaliação negativa com relação ao gozo imediato, de Agostinho (1996) e Calligaris, está baseada no fato de que ambas as perspectivas tomam pé em exigências temporais muito específicas. De fato, ambas partem do pressuposto de que é necessária uma base de apoio constante para a vida humana, de que necessitamos de algo que seja durável e não se quebre com a facilidade do vidro. Algo que seria durável o suficiente para nos retirar do reino da voracidade que teima em fazer o desejo renascer sempre, esvaziando-se a si mesmo. Enfim, seria necessária uma âncora diante da volatilidade do tempo.

Observe como a crítica, em ambos os casos, parte do pressuposto de que essa demanda existencial por apoio é universal e de que a inconstância e a imediatez constituem um problema para a natureza humana. Não se trata, portanto, de verificar que o gozo imediato leva a um impasse de acordo com seus próprios termos, como é sugerido. Na verdade, o que se trata de constatar é que o gozo imediato leva a uma condição de vida que é inaceitável de um ponto de vista que assumiu a necessidade de um apoio "firme", de uma felicidade inquebrável. Somente para essa perspectiva é que o gozo imediato é problemático, na exata medida em que ele se choca com aquela necessidade.

Porém, podemos compreender o gozo imediato de outro ponto de vista que lhe seja mais afeito e que não parta de pressupostos estranhos a ele. Assim, considerando-se que ele seja, de fato, um componente da psicologia individualista, como sugere Calligaris (1992), talvez o gozo imediato possa ser melhor compreendido da perspectiva de sua própria imediatez. Isso certamente se aproximaria mais de um conhecimento ajustado à psicologia latino americana. Ou seja, podemos verificar o significado do gozo imediato do ponto de vista da própria imediatez, sem projetar sobre ele aquela demanda por firmeza e durabilidade que lhe são estranhas.

Quando analisamos o gozo imediato de um ponto de vista temporal extenso, aquele que caracteriza a voracidade, sobrepomos ao seu conteúdo uma condição temporal que lhe é originalmente estranha. Com o perdão da trivialidade, o que é próprio do gozo imediato é que ele é imediato. Sua aparente fragilidade surge apenas quando ele é compreendido contra o pano de fundo temporal de uma duração longa. É esse gesto comparativo que obscurece, de saída, o próprio conteúdo do gozo imediato.

Com efeito, o que é imediato não pode ser devidamente compreendido pelo olhar lançado da eternidade ou de um tempo longo – que é aquela temporalidade requerida pelo apoio "firme" de Calligaris (1992). Se a felicidade parece ser de vidro e o gozo expressa fragilidade é porque ele é considerado de uma temporalidade alongada que não é originalmente a sua. Ou seja, por meio de um golpe de força ele é submetido a uma necessidade que não lhe é própria e se interpõe uma temporalidade que não é a sua. Dessa forma, ele é submetido a uma condição analítica projetada sobre ele.

A operação que se realiza dessa forma, com respeito ao gozo imediato, é uma mera análise exterior – aquela que nada possui em comum com o que analisa. Por meio dela se tenta subordinar um objeto a critérios de avaliação que lhe são estranhos e nada dizem acerca de sua condição de existência específica. A conclusão de que o gozo conduz à voracidade e, portanto, a sua própria falta de sentido consiste somente na constatação de que ele não supre uma demanda prévia já estipulada desde o início - por eternidade ou por um apoio "firme". Ou seja, tudo se resume a verificar que o gozo imediato não é compatível com o pressuposto do valor superior da durabilidade. Observe como se trata de um círculo (vicioso), porque significa somente que um objeto não corresponde aos conceitos que são utilizados para compreendê-lo. Isso tanto pode querer dizer que esse objeto é inadequado como pode significar que ele não é verdadeiramente compreendido. Nesse caso, o conhecimento é caracterizado por uma recusa das especificidades do objeto.

A dificuldade que emerge para esse tipo de crítica externa gira em torno de saber se essa demanda por eternidade ou por apoio firme é superiora, em qualquer sentido, à condição própria e imediata do gozo. Prefiro não me ocupar com ela aqui e me basta ter indicado o caráter exterior da crítica de Calligaris (1992) e, lateralmente, a do próprio Agostinho (1996).

O que me interessa destacar é que a constatação de uma crítica externa permite uma melhor aproximação com relação ao sentido adequado da experiência do gozo imediato e do que deve ser levado em consideração por uma psicologia da individualidade. Isto é, a crítica externa ilustra as dificuldades implicadas em qualquer tentativa de conhecimento ajustado da América Latina. Observe o resvalo para a perspectiva europeia, caracterizada por uma temporalidade alongada, que ressurgiu quando Calligaris (1992) tentou obter uma compreensão da psicologia lda individualidade.

A perspectiva de compreensão mais adequada do gozo imediato implica adotar o ponto de vista da própria imediatez. Nesse caso, não se nota nenhuma voracidade nem curto circuito de significado. O gozo imediato coloca-se temporalmente dentro de um instante e somente nessa condição ele se define como uma experiência existencial específica. Assim, qualquer consideração temporal para além do instante não leva em consideração o caráter instantâneo do próprio gozo. A procura pelo gozo imediato não conduz a um beco sem saída, mas a uma renovação permanente, de instante a instante. Não há uma regressão ao vazio e sim uma renovação constante em que cada experiência de gozo reafirma a potência do indivíduo, sua completude, seu sentimento de ser pleno junto a si mesmo, imediatamente. O vazio não surge do próprio gozo imediato, ele emerge da temporalidade alongada e da eternidade – introduzida como mecanismo que visa promover uma interpretação externa. Só contra essa última é que a imediatez torna-se problemática.

De seu próprio ponto de vista, a procura pelo gozo imediato conduz somente ao gozo que é presente e não a outros tantos instantes anteriores ou posteriores a ele. O que é próprio da imediatez é que ela é uma experiência que não ocorre no tempo. Assim, a experiência do gozo não implica comparações entre um instante e outro instante, na medida em que isso requer justamente uma alienação com relação ao presente imediato e a adoção de um ponto de vista exterior. O gozo imediato não pode, portanto, ser objeto de uma avaliação fundada na temporalidade, porque essa exigiria uma subordinação ao tempo. Isto é, essa avaliação exige a negação da imediatez do gozo ou a destruição de seu objeto. Com isso aquela análise externa revela o que ela é: uma negação do gozo.

Uma avaliação temporal do gozo imediato será sempre, por definição, uma tentativa de subordinação injustificada a um ponto de vista inadequado. Uma análise temporal do que não se encontra originalmente disposto no tempo só pode gerar negações e falseamentos.

Afirmar que o gozo imediato inviabiliza uma sociedade organizada sob o império da lei (Calligaris, 1992) é apenas uma espécie de avaliação unilateral ou uma tentativa de apreender uma forma de vida sob critérios que lhe são estranhos. Claro que se pode avaliar as consequências sociais do gozo imediato, desde que esteja evidente que se trata de uma avaliação que desconsidera o que é específico daquilo que se avalia – e que pode, em função disso, ter seu valor colocado sob suspeita. Parece mais legítimo avaliar algo de um ponto de vista que leve em consideração os aspectos que lhe são próprios – ou que lhe tem sido próprios - e que possa, assim, estabelecer com ele algum tipo de conexão.

Não há como contornar o fato de que a tentativa de subordinar a experiência do gozo imediato ao critério da temporalidade seja um gesto de força. Nesse sentido, ele apenas revela incompreensão e uma disposição para a subordinação unilateral que reafirma as velhas disposições coloniais com as quais temos tentado compreender a América Latina de uma perspectiva europeia. Com isso quero dizer que o complexo colonial não é mais um problema da nossa relação com as nações colonizadoras. Ele é um problema na nossa relação com o que temos sido e da maneira como orientamos nosso pensamento.

A possibilidade de uma avaliação mais pertinente da América Latina passa por uma compreensão de sua maneira de estar sendo. A repetição do esquema lógico de subordinar um corpo estranho a uma roupa inadequada conduz sempre à constatação de que essa não se ajusta àquele. Ou seja, isso sempre conduz à indicação daquilo que falta à América Latina – sempre de uma perspectiva europeia, evidentemente.

 

Conclusão

Seguindo a lógica da carência, Calligaris (1992) refere-se à superação da condição latino americana, porque dessa perspectiva se trata simplesmente de promover uma negação do que temos sido em função dos pressupostos assumidos. Essa superação, diz respeito a que se "devolva ao sujeito um verdadeiro estatuto simbólico" (1992, p. 114) já que se supõe que ele deveria tê-lo. Isso significa que dado que há um indivíduo que não se subjetiva dentro das expectativas psicanalíticas, ele passa a ser compreendido como um sujeito incompleto – tendo em vista o roteiro subjetivante que, se presume, também deveria ser o nosso.

A epígrafe de Freud, usada por Calligaris (1992) ilustra essa atitude com clareza: "podemos esperar que, um dia, alguém se aventure a se empenhar na elaboração de uma patologia das comunidades culturais...". Estando o indivíduo fora do roteiro subjetivante da psicanálise, Calligaris o toma como dotado de uma condição que deve ser superada. Porém, a própria constatação dessa condição se operou com base na projeção de uma temporalidade que lhe é estranha. A essa altura, a simpatia do analista nada pode fazer pelo indivíduo, já devidamente recoberto por aquela projeção temporal do modo de pensar da velha Europa.

Uma tentativa de compreensão simpática não poderia mesmo conduzir o analista a suspeitar do esquema explicativo de que ele lança mão. Ao fim, em função de seus pressupostos, aquela tentativa só propicia a catalogação de formas excepcionais ou excêntricas de seres humanos a serem superadas em benefício do sujeito. Entre esses dois polos que estabelecem uma zona de tensão – o indivíduo, de um lado, e a psicanálise, de outro - Calligaris (1992) opta pela última. Isso porque a simpatia não permite chegar além do umbral em que se entrevê outra realidade – que lhe parece inadequada. Ela não conduz a um passo adiante, para dentro da América Latina.

Aqui chegamos ao ponto em que podemos reconhecer como a interferência do ponto de vista europeu interdita o acesso a um conhecimento latino americano ajustado à América Latina. Mesmo as precauções do analista, expressas na adoção de um "medíocre racionalismo" (Calligaris, 1992, p. 125), podem conduzir a um ponto de vista ajustado à realidade analisada. Não se trata, obviamente, de uma limitação pessoal do próprio analista, mas de uma questão estrutural contra a qual ele dificilmente pode lutar em função de ter se proposto uma análise psicanalítica. Para se chegar à América Latina é necessário sair antes da velha Europa e do tempo histórico em que ela habita.

A noção freudiana de uma "patologia das comunidades culturais" expressa muito bem o alcance restrito da análise de Calligaris (1992) sobre o Brasil – e sobre a América Latina - e ilustra o mecanismo que me parece importante explicitar aqui. A psicanálise é uma abordagem que foi desenvolvida tendo como parâmetros os processos europeus de civilização. Em função disso, sua pretensa universalidade deveria ser encarada com extrema cautela. Mesmo no interior do próprio contexto europeu é discutível sua amplitude explicativa.

Hacking (2000) chamou a atenção para a conexão existente entre a psicanálise e seu contexto social. A disponibilidade de tempo livre requeridos pelo processo terapêutico psicanalítico é incompatível com o padrão de vida de operários da época de sua criação – por exemplo. Ao contrário, ela é compatível com o modo de vida da burguesia vienense. Daí se segue as diferenças de abordagem entre a psicanálise e a hipnose de Binet. Essa última foi desenvolvida na mesma época e se mostrava mais eficaz na resolução rápida de problemas dos operários, obviamente sem tempo livre para se dedicar ao processo terapêutico psicanalítico.

O fato da psicanálise estar ligada a um contexto social específico não significa que ela é dependente desse contexto. Porém, isso certamente significa que ela emerge de um contexto para o qual ela representa uma resposta viável. Ou seja, que há uma relação de ajuste entre o contexto cultural e social e a própria necessidade desse tipo de abordagem explicativa. Não parece pertinente a tentativa de ampliar a validade da psicanálise a contextos culturais com os quais ela não possui essa relação de ajuste. Imagino ter se tornado claro sua inaptidão para compreender adequadamente o significado do gozo imediato em função da especificidade psicológica que esse último implica. Afinal, trata-se de considerar que a individualidade esteja "excluída do universo de significação psicanalítico" (Pastori, s. d., p. 8) com o qual ela claramente não possui pertinência.

A questão volta-se para o ponto de vista inicialmente assumido pela psicanálise. Afinal, os psicanalistas estão "acostumados a lidar com os fragmentos e deles escutar uma forma narrativa" (Pereira, 2005, p. 52. grifo meu). Ou seja, nela se trata de compreender tudo o que é dito sob uma narrativa unificada ou tomar como válida "uma posição discursiva ordenada pela suposição de um pai único" (Chnaiderman, 2005, p. 72). E é justamente essa ordenação sob a forma de uma narrativa que, vimos antes, projeta-se como temporalidade alongada ou como eternidade exclusiva sobre a individualidade.

Parece-me que a leitura de Calligaris (1992) com relação ao Brasil e a América Latina é um caso particular de um tipo de análise que resvala justamente nas suas pretensões de universalidade. Porém, mais importante que esse caso particular é observar como tais pretensões fazem parte da prática intelectual de perspectiva europeia exercida sobre a América Latina. Nesse sentido, qualquer outra tentativa baseada nos mesmos pressupostos, redundaria em um resultado semelhante de inadequação.

Saliento que essa reivindicação em benefício de uma compreensão latino americana da América Latina não toma impulso em um princípio de que constituímos um mundo à parte que, em função de sua especificidade, demanda um aparato conceitual diferente do europeu. Porém, como o presente caso ilustra, uma análise mais cuidadosa da maneira como nos constituímos tem chegado a isso. Há uma grande diferença entre reivindicar essa especificidade como ponto de partida ou como uma conclusão.

Como acabamos de perceber, uma consideração latino americana ajustada à América Latina demanda o rompimento com o ponto de vista europeu. Para que se possa chegar a uma autêntica compreensão de si latino-americana é necessário saltar para fora da perspectiva europeia. Não há como subtrair o efeito europeu de distorção para se chegar à América Latina. Uma psicologia latino americana ajustada a nossas condições deve ser conduzida através de um caminho próprio, que não passa por aquele conhecido atalho pela floresta europeia.

 

 

Referências

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22 Doutor em Psicologia. Professor Associado da Universidade Federal do Sul da Bahia, Brasil. Email: roniefilosofia@gmail.com

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