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Psicologia para América Latina

On-line version ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.29 México Dec. 2017

 

Perspectivas psicanalíticas e antropológicas a respeito das violências na "Cracolândia" em São Paulo, Brasil

 

 

Raonna Caroline Ronchi MartinsI; Thiago Godoi CalilII; Rubens de Camargo Ferreira AdornoIII

IPsicóloga e psicanalista. Doutoranda em Psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IP/USP. Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise Política do IP/USP. São Paulo, Brasil. raonnacrm@gmail.com
IIPsícólogo. Doutorando e mestre pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – FSP/USP. São Paulo, Brazil. calil.thiago@usp.br
IIISociólogo. Professor Associado III na Universidade de São Paulo na Faculdade de Saúde Pública. Professor Livre Docente desde 1997. São Paulo, Brasil. radorno@usp.br

 

 


RESUMO

A partir de estudos na área das drogas e da experiência durante trabalho de campo realizado desde 2004 em uma região que se configurou como uma cena de uso público de crack nos últimos 25 anos, a 'cracolândia', no centro da cidade de São Paulo, Brasil. A presença cada vez maior de pessoas usando crack e ocupando as vias públicas apresentou mudanças nas condições de vida da população local, marcada por um excesso de violências físicas e simbólicas. Por meio da inserção etnográfica e dispositivos de escuta com referencial psicanalítico, visamos explicitar esta questão contemporânea com relação as violências exercidas, principalmente por parte do Estado, aos espaços ocupados tanto por pessoas que usam drogas, como de frequência da população em situação de rua.

Palavras-chave: Antropologia, Psicanalise, abuso de drogas, cena pública, direitos humanos, violência.


RESUMEN

A partir de estudios en el área de las drogas y de la experiencia durante trabajo de campo realizado desde 2004 en una región que se configuró como una escena de uso público de crack en los últimos 25 años, la 'cracolândia', en el centro de la ciudad de São Paulo, Brasil. La presencia cada vez mayor de personas usando crack y ocupando las vías públicas presentó cambios en las condiciones de vida de la población local, marcada por un exceso de violencias físicas y simbólicas. Por medio de la inserción etnográfica y dispositivos de escucha con referencial psicoanalítico, pretendemos explicitar esta cuestión contemporánea con relación a las violencias ejercidas, principalmente por parte del Estado, a los espacios ocupados tanto por personas que usan drogas, como de frecuencia de la población en situación de calle.

Palabras-clave: Antropología, Psicoanalítica, abuso de drogas, escena pública, derechos humanos, violencia.


ABSTRACT

From studies in the theme of drugs and the experience during field work carried out since 2004 in a region that has been configured as a public scene of use of crack in the last 25 years, the 'cracolândia', in the center of São Paulo, Brazil. The increasing presence of people using crack and occupying the public spaces presented changes in the living conditions of the local population, marked by an excess of physical and symbolic violence. Through ethnographic insertion and listening devices with a psychoanalytical framework, we aim to make explicit this contemporary issue in relation to the violence practiced, mainly by the State, to the spaces occupied by people who use drugs, as well as the frequency of people living on the streets.

Key-words: Anthropology, Psychoanalytic, drug abuse, public scene, human rights, violence.


 

 

Introdução

O interesse pelo tema deste trabalho surgiu a partir de estudos na área das drogas e da experiência durante trabalho de campo realizado desde 2004 em uma região central da cidade de São Paulo, Brasil. Acompanhamos mudanças e intervenções significativas nessa região há cerca de duas décadas, quando se iniciou uma cena pública de uso do crack. Essa região desde os anos de 1940 abrigava circuitos de prostituição confinada e de negociações entre polícia e venda de drogas, desde a cocaína, as anfetaminas e os barbitúricos.

Nesses últimos 20 anos a concentração de pessoas que usam crack aumentou, tornando esse território conhecido como "Cracolândia", por referência a esse uso público. A presença cada vez maior de pessoas usando crack e ocupando as vias públicas apresentou mudanças nas condições de vida da população local, marcada por um excesso de violências físicas e simbólicas. Estas questões nos levaram à realização deste texto que por meio da inserção etnográfica e dispositivos de escuta com referencial psicanalítico, visa explicitar esta questão contemporânea com relação as violências exercidas, principalmente por parte do Estado, aos espaços ocupados tanto por pessoas que usam drogas, como de frequência da população em situação de rua. Queremos destacar as insistentes violações de direitos às pessoas que ocupam este espaço.

Além do aspecto específico do uso de crack em cena pública, esse espaço revela características comuns às outras cidades globais contemporâneas no que diz respeito as tramas entre os ilegalismos e o legal (Ruggiero and South, 1997), e no caso brasileiro os trabalhos da socióloga Vera Telles (2007) e sociólogo Gabriel Feltran (2010). Também destacamos o texto de Veena Das (2008), "O estado y sus márgenes: etnografias comparadas". No presente texto apontamos esse espaço de negociação e de atuação do Estado e suas margens.

A escolha pela contribuição etnográfica possibilitou amplo contato com a cultura local, extravasando o simples acompanhamento dos movimentos de personagens do cotidiano, mas também sendo capaz de tornar aparentes especificidades locais invisíveis como uma questão da antropologia urbana (Magnani, 1996). Pesquisas etnográficas em ambiente urbano se iniciaram com os estudos da Escola de Chicago, no final do século XIX e início do século XX nos Estados Unidos, ampliando o olhar para o contexto urbano em uma cidade que apresentava um acelerado crescimento econômico e alavancando intenso crescimento, ou seja, um olhar para a realidade próxima aos antropólogos, porém sem deixar para trás sua preocupação inicial fundante, a diversidade cultural (Magnani, 1996). No caso de São Paulo temos registro de uma produção na antropologia urbana desde meados da década de 1930, já influenciada pela Escola de Chicago (Mendoza, 2005).

Referimos o olhar etnográfico na perspectiva apontada por Raikhel and Garriott (2013) como uma experiência vivida, e também todo o material produzido pela experiência, como "... as relações, conhecimentos, tecnologias e afetos, e os impactos recursivos da subjetividade" (Raikhel and Garriott, 2013).

O olhar etnográfico foi um recurso utilizado para construir outra perspectiva em relação ao tom alarmista com que a mídia no Brasil passou a focalizar os espaços públicos de uso do crack, que a partir da cidade de São Paulo se irradiou pelas grandes, médias e pequenas cidades do país nos últimos 20 anos, criando um polo de tensão entre políticas públicas higienistas – termo que passou a frequentar o debate público para referir às medidas repressivas em relação aos usuários de crack – e a perspectiva dos direitos humanos. Essas perspectivas que expressam diferentes visões também em relação ao campo de uso das drogas consideradas ilícitas passaram a colocar em confronto duas perspectivas de política de atenção ao uso público de drogas ilícitas: a prática da repressão policial e desocupação forçada dos territórios e a internação ou encarceramento dos usuários em contraposição a uma perspectiva de cuidado baseada na chamada "redução de danos" e respeito aos direitos humanos. Segundo (Adorno et al, 2013) fica evidente a necessidade de:

Fundamentar pesquisas que buscassem reconhecer nos vínculos, dinâmicas e nos modos pelos quais processos macrossociais, políticos, econômicos se fazem presentes no cotidiano dos setores populares, e dessa forma alargar e complexificar a análise e a compreensão que toma aspecto central e problemático o uso de drogas (p.11).

Nesse texto temos como proposta aproximar a visão etnográfica e o olhar psicanalítico no sentido em que o dispositivo da escuta está presente nesses dois métodos. Uma escuta que possa produzir efeitos políticos se sustenta a partir de como o sujeito se coloca no território e permite ser afetado por ele. Para que a escuta tenha desdobramentos políticos, acreditamos ser necessário considerar os efeitos imaginários que uma sociedade produz sobre sua própria população. No caso deste trabalho é interessante interrogar os efeitos imaginários de pessoas que fazem uso de drogas e que se encontram em situação de vulnerabilidade.

Mesmo com a ênfase dada à Psicanálise como teoria e técnica de tratamento, Freud em seu percurso faz uso recorrente da análise de fenômenos coletivos para compreender processos individuais, ao passo que afirma em sua obra que a psicologia individual é, ao mesmo tempo, social. Segundo Freud na leitura de Miriam Debieux Rosa (2016):

A escuta psicanalítica é, desde Freud, transgressora em relação aos fundamentos da organização social, que para se efetivar, implica um rompimento do laço que evita o confronto entre o conhecimento da situação social e saber do outro como um sujeito desejante. Dessa escuta, principalmente quando o sujeito se revela como tal, o psicanalista não sai isento – seu posicionamento ético e político é necessário. A dimensão ético política fica em primeiro com base nessa constatação (Rosa, 2016 p.50).

Portanto, a contribuição de referencial psicanalítico pode ajudar, na articulação com outros saberes, a respeito de referências fundamentais de organização psíquica que elucidam sobre o imaginário dos grupos sociais, que atribuem lugares específicos aos sujeitos. O imaginário social é, segundo Castorialis (1988), o conjunto de significações, normas e lógicas (dinheiro, sexo, mulher, criança, homem) que marcam o lugar que os indivíduos ocupam na sociedade. Destacamos, junto com Rosa (2000) que somente a partir de uma certa concepção de lei, paternidade, sexualidade, por exemplo, que alguns são considerados excluídos como sujeitos humanos sem direito de acesso à escuta, à palavra, à cidadania. Outro dispositivo presente nesse método é análise das ilusões contemporâneas, referidas ao contexto de organização atual, dominado pelo discurso neoliberalista (Rosa, 2004)

Dessa forma, gostaríamos de apontar como a psicanálise e a antropologia podem contribuir em temas como a guerra, paz, mal-estar e transformação social. Para refletir sobre o processo de violações de direitos neste espaço, consideramos importante destacar as políticas de drogas atuais, que com caráter proibicionista, disparam mecanismos de opressão, coerção e violência.

 

O Proibicionismo

A política proibicionista é uma estratégia de controle do consumo e do comércio de substâncias psicoativas bastante recente, e tem como objetivo proibir a existência de algumas substâncias que alteram a consciência e o comportamento. Aproximadamente há um século não havia criminalização ou controle sobre o uso destas substâncias, seja de uso médico ou não. O jornalista Júlio Delmanto, em sua dissertação de mestrado em História Social, discute as origens e o histórico desta prática, bem como os efeitos desta política na vida das pessoas. Mais especificamente, nosso enfoque sobre o proibicionismo será sobre suas consequências sociais e políticas.

O cientista social Eduardo Viana Vargas explica que esta política coincide com a "partilha moral entre drogas de uso ilícito e drogas de uso livre, tolerado ou controlado" (Vargas, 2008 citado por Delmanto, 2013 p.64). Esta duplicidade moral em relação ao universo das drogas coloca em xeque sua legitimidade, já que sua determinação justificada pela garantia e proteção à saúde pública encobre interesses econômicos e políticos.

No Brasil, a política proibicionista se fortalece nos anos 1970, quando o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, declara mundialmente uma 'Guerra às Drogas' (Araújo, 2013). Atualmente, o marco legal no Brasil é a Lei de Drogas 11.343/06 de 200632, que em relação à lei anterior, aumentou a pena mínima por tráfico de drogas de 3 para 5 anos, um fator significativo no aumento do número de encarceramentos no país.

A advogada Luciana Boiteux, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aponta que:

De forma progressiva, mas especialmente a partir de 2006, com a Lei de Drogas brasileira que, como já visto, aumentou a pena mínima de tal delito (art. 33), foi identificado um endurecimento marcante e intencional da resposta penal ao comércio de drogas, o que foi considerado um dos principais fatores para o aumento da população carcerária no país nos últimos anos (Boiteux, Pádua, 2012 p. 10).

Boiteux e Pádua (2012) enfatizam que esta política reforça o abismo entre a figura do usuário e do traficante, fazendo com que pequenos traficantes sejam selecionados pelo sistema para encarceramento:

Esse fator explica o aumento no contingente carcerário, pois as pessoas condenadas por tráfico passaram a ficar mais tempo presas, além da hipótese de que muitos usuários possam estar sendo condenados por tráfico pela nova lei, diante da falta de critérios claros de diferenciação entre tais condutas (Boiteux, Pádua, 2012 p. 13).

Segundo Gomes e Adorno (2011), grande parte da população presente na "Cracolândia" já passou pelo sistema prisional. É uma população que faz uso de crack e que também realiza um pequeno comércio em torno da dinâmica do uso. Neste cenário, é difícil distinguir a figura do usuário e do traficante, pois a população em situação de rua cada vez mais desqualificada pelo atual mercado de trabalho passa a viver e sobreviver destas economias paralelas.

O que queremos destacar é a política de encarceramento em massa vigente no Brasil que passou a visar principalmente os usuários em situação de rua e as camadas mais pobres da população a partir da Lei de Drogas 11.343 de 2006, que estabelece uma distinção abstrata entre traficantes e usuários, distinção que na prática passou a ser aplicada como uma forma de discriminação social: pobres e negros são tomados como suspeitos e traficantes.

Entre 2005 e 2012, houve um aumento de 420,31% (Ministério da Justiça) de encarceramentos relacionados ao delito de tráfico de drogas no Brasil, sendo que a população carcerária total cresceu aproximadamente 61% - um reflexo significativo da Lei de Drogas de 2006 e o encarceramento por tráfico de drogas.

Sendo assim, proibicionismo é uma política que reflete de maneira rasa sobre o uso de drogas em determinado espaço, e quando associado às políticas sociais e de saúde oferecidas, aponta "uma relação de falhas e excessos" filiadas a ideia única de abstinência (Adorno et al, 2013). Boiteux (2006) afirma que:

"diante de tudo o que já foi estudado no campo da política criminal de drogas, não se tem dúvida de que o modelo proibicionista não se mostra apropriado para proteger a saúde pública, e ainda causa outros impactos negativos na sociedade" (p. 06).

Desta forma, Delmanto sintetiza o proibicionismo como uma "ordem cínica, que zomba de si e convive bem com o explicitamento de suas contradições e inadequações" (Delmanto, 2013).

 

A várzea dos direitos: rua, bares e carroças

As ações repressivas e de 'qualificação urbana' realizadas nesse território chegaram a derrubar quarteirões inteiros, perseguir e prender usuários com abordagens policiais constantes nesse espaço da cidade. Órgãos do sistema jurídico voltados à defesa de populações vulneráveis passaram a ser acionados por grupos e movimentos sociais muitas vezes impedindo a continuidade das práticas de intervenções repressivas por determinados períodos, porém as intervenções visando a "limpeza" da área alinhadas com projetos de recuperação urbana vem servindo para a especulação imobiliária. O constante confronto e depreciação do espaço e dos que vivem nele são instrumentos eficazes para esse processo.

A gestão municipal eleita em 2013 e que governou a cidade até 2016, desenvolveu um programa baseado na perspectiva da redução de Danos, com base em um olhar compreensivo para o uso de drogas e as populações em situação de rua. O programa passou a focar suas ações no acolhimento dessa população e o acesso a moradia em hotéis populares conveniados ao programa, e também a oferta de trabalho e renda.

Partia do princípio de não interferir no uso do crack em si, como propõem os programas feitos a partir de uma perspectiva médico-psiquiátrica de internação e abstinência, mas de oferecer alternativas à vida na rua e à exposição aos territórios de uso. A partir da implantação desse programa passamos a dar continuidade a um registro etnográfico e escuta nesse território. Segundo a antropóloga Claudia Fonseca e Andrea Cardarello, no texto: direitos dos mais e menos humanos, "a noção de direitos humanos em sua forma abstrata e descontextualizada pouco significa. Como esta noção é traduzida na prática – e suas consequências particulares – depende de relações de poder forjadas em contextos históricos específicos e expressas em categorias semânticas precisas. (Fonseca e Cardarello, 1999 p.83).

Consideramos junto com as autoras Fonseca e Cardarello (1999) que certas categorias são eleitas como alvo merecedor de campanhas de direitos humanos. Ao atentar para a maneira como uma categoria é priorizada em detrimento de outras, desvendamos lutas simbólicas e critérios particulares que determinam – na reivindicação de direitos – quem é mais, e quem é menos, humano.

A partir da escuta e daquilo que foi possível registrar na prática, problematizamos a compreensão dos diretos humanos a partir oferta de trabalho, renda e moradia acessíveis por este programa municipal que se chamou Programa "De Braços Abertos", quando um interlocutor nos diz: "muito bacana o acesso a todos estes direitos, mas se para ter essas coisas for necessário eu perder o meu direito de ficar aqui na rua eu não quero. Muito obrigado! "

Endossamos todo o esforço e a perspectiva de estratégia desse programa, concordamos com os efeitos inéditos e subversivos presentes nessa tentativa. Contudo, compreendendo que o que nos faz avançar parte de elaboração de aspectos estruturalmente contraditórios, esta fala amplifica as possibilidades de inserção no espaço e agenciamento individual em relação às políticas oferecidas. Também se caracteriza pelo fato de que apesar de a prefeitura como Estado propor o essencial acesso a uma primeira etapa de política de moradia (Housing First )33, as ações repressivas voltadas às pessoas que fazem uso drogas consideradas ilegais continuavam a existir nesse território. A implantação de um programa de acolhida ao lado das ações repressivas dava suporte a uma leitura mais ampla da ação do Estado e os usuários de rua continuavam vítimas de maior repressão policial no combate ao tráfico. Situações como esta nos colocaram atentos à questão da garantia e violação dos direitos neste território.

O espaço, além do uso em cena pública do crack, possui dezenas de bares, pensões, habitações coletivas e etc. O impacto das políticas higienistas se faz também em relação a todos os ocupantes do bairro, inclusive os comerciantes da área. Dois meses após a inauguração do programa Braços Abertos, a situação a seguir chamou bastante a atenção.

Em 13 de março de 2014 a Prefeitura de São Paulo com apoio da polícia municipal realizou uma ação e lacrou três bares na Rua Dino Bueno34. Nesta época o fluxo (concentração de pessoas em torno do comércio e uso de crack) estava concentrado nesta rua, em frente aos bares. Neste dia, um dos comerciantes responsável por dois dos bares, Seu Matias, deu depoimento para a imprensa: "É absurdo! Fecharam sem aviso prévio, por causa de um documento só e não deram nenhum prazo para a regularização da situação". Em conversa conosco acrescentou "é uma falta de respeito vir e fechar o bar assim de um cidadão sem avisar, de um dia para outro, sem dar tempo para a pessoa se organizar. Isso é um absurdo! "

Os motivos divulgados para o fechamento dos bares foi um possível envolvimento com o tráfico de drogas, documentação irregular e barulho exacerbado. A prefeitura divulgou que desde 2012 ocorria um processo fiscal para regularização destes imóveis, e que até o momento não havia acontecido. Em conversa com Seu Matias após três meses com os bares fechados, ele explica:

Isso não bate por escrito! Meu bar nunca teve ocorrência de apreensão de droga. Aqui tem música e cachaça no meio da boca, se vendem droga por aqui não é da minha conta, deve acontecer, mas não é o meu bar que está vendendo! Alegaram também a questão do barulho, muita música e gente dançando. Onde tem pinga e música a turma vai dançar mesmo. Estava tendo muita zueira aqui na cracolândia, e eu tenho culpa da cracolândia? Eu não! Eu não tenho que falar nada da cracolândia. Trabalho aqui há 15 anos e as pessoas me conhecem! (Diário de campo, 17/06/2014).

A proprietária de um outro bar que permaneceu aberto na Rua Dino Bueno disse que não fecharam os bares por causa da música, senão teriam fechado o bar dela também. Outra proprietária de um outro estabelecimento argumenta: "como que eles fecham os bares e usam os imóveis para os hotéis nas mesmas condições, tudo precário, irregular e também sem alvará? " Comenta que um dos hotéis com 30 quartos é um perigo, muito precário e pode pegar fogo a qualquer momento. Nos bastidores comentava-se que os donos dos hotéis não queriam fazer parceria com o município para integrar o programa pois o valor era muito baixo. Como em uma negociação forçada, a estratégia foi que se não aceitassem lacrariam os hotéis por irregularidade. Sendo assim, os hotéis que ofereciam uma contrapartida entraram no campo das negociações, já o fechamento dos bares parece ter sido uma estratégia para geograficamente mudar o 'fluxo' de lugar, para um local onde fosse possível conter, observar e controlar. Dali o 'fluxo' deslocou e se fixou em frente ao ônibus da GCM35, onde permaneceu até maio de 2015.

Na semana do dia 10 de junho de 2014, 97 dias depois do fechamento dos bares, começaram os rumores sobre uma possível reabertura. Os comerciantes dos estabelecimentos mostravam-se ansiosos e indignados pela "falta de respeito" com a população, inclusive eles, os comerciantes. Se queixavam do fechamento repentino, e do prejuízo que tiveram com mercadorias e produtos. Seu Matias, baiano de 64 anos, está na cracolândia há 15 e é responsável por dois estabelecimentos comerciais. Explicou em uma conversa conosco:

Aconteceu em uma segunda-feira, em um dia normal. Chegaram umas 9:40 e quando era 10:15 já estava fechando tudo! Não apresentaram uma justificativa por escrito. O motivo que diziam na hora era ordem da prefeitura fechar. Eu acho que não podiam vim e fechar, tinham que notificar, e não lacrar com as mercadorias de estragar tudo dentro. Perdi 9 a 10 mil reais em mercadoria! Nem pude me planejar! Fiquei sabendo na hora, chegaram e meteram bloco. Vieram 2 fiscais da prefeitura com mais uns 30 guardas da Guarda Civil Metropolitana. Pô, parece que estavam pegando bandido! Chegaram com um documento que dizia que tinha ordem da prefeitura para lacrar, sem um motivo escrito. Os Imóveis são alugados, os dois dá 2.300 reais. Tem que pagar água, Luz, gás, IPTU. Pago aluguel, tem empresa aberta, tem tudo. Tive que vender umas coisas para pagar as contas. Perdi mercadorias como carne, leite, pão, bebida pois a geladeira desligou e estragou tudo.

Foram 90 dias brigando, se nós não chamamos o prefeito aqui pra mandar abrir, os engenheiros e fiscal não faziam nada. A gente trouxe ele (prefeito) até aqui, explicou a realidade e ele deu a solução de em 10 dias ele mesmo mandava abrir. E foi o que aconteceu. Agora abriu, mas tive que tirar as máquinas de música e só pode funcionar das 6:00 as 22:00. Não pode ter mais música. Impuseram isso. Não pode ter porque atrapalha a nova base da polícia (Largo Coração de Jesus). A música atrapalha o rádio de comunicação. Isso não estava em nenhum documento, mas foi dito pelos policiais.

Agora tem os custos para abrir o bar também. Limpeza, pintura, extintor e etc. Tudo isso é dinheiro, tinta é dinheiro, extintor, tudo! Nada é de graça.

Quando fecharam me senti um trabalhador derrotado, porque acho que tinham que mandar o fiscal notificar e no prazo de pelo menos 30 dias a fazer isso, regularizar. Isso seria o certo, e não chegar 9:40 da manhã e lacrar. Isso é um absurdo para um brasileiro. (Diário de campo, 17/06/2014).

A responsável pelo outro bar, a jovem Laura, também esteve na rua neste dia e ao nos encontrar começa a contar a situação:

Eu mostrei para o prefeito, fiz ele vir até aqui! Ele (Fernando Haddad) estava passando na rua e eu mostrei minha situação para ele, vendendo marmita para levantar um dinheiro. Ele deu atenção e ficou de voltar. Voltou no dia seguinte e me procurou, eu tinha saído para o hospital. Na sexta-feira veio de novo para procurar seu Matias e o Roney, o proprietário dos imóveis. Depois marcaram uma reunião com o tenente William e decidiram que iam dar autorização para abrir os bares. Então estamos abrindo, mas não pode trabalhar, porque antes tem que vir um engenheiro, dar um laudo para aprovar... vamos ver quantos dias mais a gente vai ter que esperar. Chegaram já fechando, deram 5 minutos para sair do bar. Não teve aviso prévio. Perdi toda a mercadoria e também já estou com o nome sujo. Estou com 11 mil de cheque voltando. Tudo em cima de 90 dias do bar fechado. Eu estava morando em uma quitinete e não tive mais condição de pagar a minha moradia e tive que sair! Estou morando de favor em um balcão com meus 4 filhos. Para sobreviver estou vendendo marmita e entregando aqui e acolá para poder tentar levantar. Depois que fechou o bar minha vida parece que desmoronou... Cheque voltando, conta chegando, estacionamento do carro atrasado. Se eu for por em conta já chega perto de 40 mil de prejuízo em 90 e poucos dias (Diário de campo, 17/06/2014).

O dono dos imóveis apareceu enquanto conversávamos com Laura. Ele chama Laura e eles conversam por alguns minutos em frente ao bar. Estávamos dentro do bar, enquanto algumas pessoas o limpavam. Tudo estava bastante sujo. O tempo todo Laura segura um bebê pequeno no colo. O proprietário nos chama para conversar. Ele pede para não publicarmos a material na época pois explica que tinha medo de ter problemas com a prefeitura e que fechassem os bares novamente. Como proprietário de imóveis na região, sua percepção diz bastante coisa em poucas palavras, que sintetizam a característica desse espaço no tocante a efetivação de direitos:

No momento divulgar isso é arriscado, pode prejudicar o que conquistamos nos acordos até agora. Aqui é diferente de toda a cidade. Em outros lugares é de um jeito, aqui é diferente, aqui é a cracolândia! Aqui, quanto mais direito você quer, menos direito você tem. (Diário de campo, 17/06/2014).

Ambos os comerciantes relataram que seus respectivos bares reabriram devido a conversas e negociações que desenvolveram diretamente com o prefeito. A sucessão dos fatos deste episódio apresenta interrogações quanto aos procedimentos legais do já tradicional fechamento de comércios na região da Luz. Parece inadequado fechar um estabelecimento sem motivo justificado e sem uma notificação prévia. Muito menos reabrir um estabelecimento a partir de conversas individuais com o prefeito. Os sentimentos de medo do proprietário ilustram claramente como o poder público e a figura da polícia assumem posições coercitivas no território. O proprietário parece se conformar com acordos negociados com a prefeitura pautados mais pelo controle e pelo medo, do que pela legislação vigente. Além do prejuízo aos comerciantes, esta situação soa como um abuso explícito sobre a dinâmica local de mercado, consumo e entretenimento.

Esta situação põe a nu uma arbitrariedade na execução da lei capaz de legitimar violações dos direitos dos cidadãos pelo abuso do poder. Porém, acontece de forma velada, em um terreno que não está diretamente ligado à polêmica e de grande visibilidade temática do crack, ou seja, acontece nos 'bastidores', sem a possibilidade de grande repercussão midiática.

Negociações como o episódio dos bares nos coloca a seguinte questão: Que estado de direito atua na cracolândia? Será que aqueles que falam (negociam) diretamente com o prefeito tem privilégios perante os que não falam?

Em relação ao tráfico de drogas, a segurança pública alegou que cessaria as abordagens coletivas na rua e iniciaria um estudo e observação através de câmeras espalhadas pelo território e no ônibus cedido pelo o programa 'Crack é preciso vencer' do Governo Federal. A partir desta vigilância ostensiva efetuariam apreensões pontuais no combate ao tráfico. Em encontro público de avaliação após aproximadamente 3 meses de funcionamento do programa, em abril de 2014, argumentamos sobre a dificuldade de diferenciar traficantes e consumidores em um contexto como a "Cracolândia", e que o confinamento territorial e a filmagem 24 horas por dia é a representação explícita do poder, sendo assim, uma extrema violação de direitos.

O argumento da coordenadora de saúde mental foi que as câmeras tinham a função de evitar que a polícia exerça excessos e tenha má conduta, visando assim a "garantia de direitos".

Resgatando um pouco do histórico, percebemos que, por um lado, a vida das pessoas é constantemente atravessada pela proibição do 'ir e vir' imposta pelas incursões policiais, além da desfiguração da paisagem, dos terrenos ociosos, da vigilância de inúmeras câmeras de observação e pela rotineira repressão policial. Por outro, é também crivado pelo recente acesso à moradia, trabalho, renda e cultura, e surpreendentemente também pelo aceitável uso público de crack justamente em frente às unidades da polícia.

Ao longo dos anos, a estratégia da segurança pública de evitar a fixação da população em situação de rua usuária de crack em determinado espaço fazendo-os circular ininterruptamente parece avançar para práticas de contenção controlada. O que antes pareciam tentativas sistemáticas de expulsar as pessoas, agora podemos pensar em estratégias de controle do cotidiano. Em 29 de abril de 2015, ocorreu também o polêmico episódio das carroças descrito a seguir.

A partir do esforço do prefeito em acabar com a "feira livre de crack", durante o mês de abril diversas vezes durante trabalho de campo ouvimos rumores de que haveria uma ação para a retirada dos 'barracos' que começavam a se estruturar dentro do fluxo. O argumento era de que estes 'barracos', que não passavam de carroças aglomeradas com lonas esticadas para cobertura, eram responsáveis pela comercialização e distribuição do crack, ou seja, davam suporte à organização do tráfico.

O poder público anunciava que estava negociando com as lideranças 'locais' conhecidos como 'disciplinas', que estão diretamente envolvidos no tráfico, e em 29 de abril, em uma quarta-feira de fato aconteceu a intervenção. Pela manhã tudo ocorreu bem. O 'fluxo' e também as carroças deixaram o bulevar e movimentaram-se em direção à Rua Dino Bueno.

Os contrastes e opostos da intervenção tomaram corpo no período da tarde, quando acontecimentos extremamente violentos, inclusive o disparo de dois tiros de arma de fogo e pessoas gravemente feridas se misturavam com os dados divulgados pelo Programa Braços Abertos sobre o cadastramento de aproximadamente 80 novos beneficiários. A partir deste dia o ambiente ficou tenso, mas não vamos nos ater a estes acontecimentos36,

mas sim aos relatos que foram aparecendo gradativamente na rua nos dias seguintes.

Muitas pessoas, especificamente carroceiros, começaram a se queixar de que a prefeitura estava recolhendo suas carroças. Em matéria de jornal publicada pelo jornal Estadão37 , a prefeitura informa que "estão fazendo o trabalho de reorganização do espaço público e apreendendo as barracas e carrinhos de grande porte, onde as pessoas podem transportar drogas e armas". Ficou a preocupação, estariam tendo o cuidado de diferenciar as carroças utilizadas para o tráfico e as que são utilizadas para a prática da coleta e venda de material reciclável?

Na prática, nos dias seguintes não se viu mais carroças na "Cracolândia". Todas foram levadas pela GCM e pelo trabalho de zeladoria urbana. A justificativa da apreensão informada pela Guarda Civil Metropolitana foi que as carroças estavam envolvidas na organização do tráfico de drogas. As carroças se foram, mas os carroceiros permaneceram ali e o contato conosco e outras equipes que atuam no território foi essencial para a escuta desta demanda e criar pontes com o núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A Defensoria se organizou e realizou uma ação no território no dia 26 de maio, quando coletou 33 relatos dos carroceiros sobre apreensão de suas carroças. Segundo entrevista com o advogado e defensor público Raul Nin Ferreira:

"Quem apreende objetos em circunstâncias como esta é a polícia sob determinação judicial. Então, se de fato as pessoas tivessem utilizando as carroças para cometer o tráfico de drogas essas pessoas seriam presas e processadas, e suas carroças seriam apreendidas dentro de um processo criminal determinado por um juiz criminal. Isso é um direito que está dentro da constituição federal, que no artigo 5º diz que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

A prefeitura tem alguns poderes de intervenção na esfera de liberdade do indivíduo como a apreensão de bens. Por exemplo, a vigilância sanitária ao lacrar um restaurante ou estabelecimento por violação de normas sanitárias. Porém, esta interferência na esfera do particular demanda algumas formalidades. É necessário lavrar um auto de infração com informações do ato, onde o proprietário recebe uma via como um comprovante do ocorrido, que inclusive informa as possibilidades de o mesmo recorrer à esta determinação.

No caso dos carroceiros, se a prefeitura tivesse o poder de apreender estes bens pelo cometimento de um ato ilícito, a prefeitura deveria deixar um comprovante com a pessoa que teve a carroça apreendida. Deveria informar para onde foram levadas as carroças, sob qual alegação... enfim, uma série de requisitos para que as pessoas tenham a oportunidade de questionar aquele ato administrativo de apreensão de carroças. Isso não foi feito. A prefeitura simplesmente apreendeu e não forneceu qualquer satisfação. Uma ação absolutamente ilegal e inconstitucional".

Conhecemos carroceiros que certamente não estavam envolvidos com o tráfico e dependem da carroça para suas atividades cotidianas e sustento. A voz baixa e o olhar distante de alguns deles tornaram visíveis que estavam abatidos. Na ação da Defensoria Pública um deles se disponibilizou a dar seu depoimento, e posteriormente, quando conversamos a sós ele relatou:

A carroça é a minha casa, meu trabalho, onde eu organizo as minhas coisas. Não tenho muitas coisas, mas são as minhas coisas. Eu me organizo na minha bagunça. Agora não tenho nada... sinto até um desgosto. Tenho que ficar pedindo dinheiro, cigarro e outras coisas para os outros... vocês sabem que eu gosto de me virar sozinho. Eu estava com cinco caixinhas de som aí do pessoal para consertar. Levaram tudo junto e agora estou devendo as caixinhas. O pessoal está pesando na minha já. Nem sei por onde começar. É como se eu estivesse nu e com as mãos e os pés amarrados. (Diário de campo, 26 de maio 2015).

Realmente os carroceiros apresentavam-se sem perspectivas e assistindo suas possibilidades de sobrevivência serem arrancadas do seu cotidiano. Foi a partir de um mapeamento proposto pelo Projeto Oficinas38 foi possível mobilizar os atores do território. Desse movimento surge o coletivo 'Sem Ternos', uma articulação de rede que visa ações conjuntas no território. Trata-se de um grupo que formula e executa ações de forma conjunta e horizontal e, principalmente, nos erros e atropelos, dedica-se a um espaço em que seja possível alterar a realidade. Essa é uma das táticas para determinados contextos neste momento político, que está sempre a mudar com um dinamismo incompreensível. Essa tática, possibilitou a articulação de rede aproximando trabalhadores e suas respectivas atuações, mas também na proposição de intervenções concretas no território39 .

Considerando a escuta dos sujeitos como condição sine qua non que sustenta essa práxis. Com esta parceria os defensores públicos produziram um relatório e enviaram uma notificação à prefeitura solicitando a restituição dos bens ou indenização das carroças. Segundo nota publicada no site da Defensoria Pública, o núcleo de Direitos Humanos considera que "a apreensão administrativa das carroças e objetos pessoais destas pessoas é ilegal e inconstitucional, e fere o direito de posse e propriedade". "É de rigor que se faça não apenas a devolução dos bens, objetos pessoais e instrumentos de trabalho, como também se apure as circunstâncias em que as apreensões ocorreram, que podem caracterizar, inclusive, o crime de abuso de autoridade"40 .

Com esta parceria com após quase 2 meses, a prefeitura respondeu a Defensoria Pública informando que os depoentes poderiam ir ao pátio na Avenida Cruzeiro do Sul e retirar as carroças. Mediamos e viabilizamos esta restituição junto aos carroceiros.

Após o ocorrido, o 'fluxo' permaneceu concentrado na rua Dino Bueno, que nas semanas seguintes passou por 3 intervenções diárias da GCM e limpeza/zeladoria urbana. Após a limpeza, quando a Segurança Pública enfim permitia o retorno das pessoas para a Rua Dino Bueno, a única passagem era atravessar um corredor de oficiais da GCM. A orientação era que fiscalizem "objetos que não podem entrar no fluxo", como guarda-chuvas, pedaços de madeira e outros objetos que poderiam facilitar a montagem de barracos.

Uma revista arbitrária generalizada em via pública. Fomos vítimas também de algumas delas, e em várias ocasiões esta revista invasiva e coercitiva se transformou em conflito e agressões culminando em tiros de arma de fogo, bombas de gás e muitas pessoas feridas.

Um dos autores, Thiago Calil, teve a testa atingida por estilhaços de uma bomba que explodiu no meio do 'fluxo'. Por um lado, era perceptível um avanço na oferta de direitos e alternativas interessantes de políticas públicas na "Cracolândia", por outro, nos sentíamos inseguros, frágeis e também sujeito às constantes agressões.

Mais uma intervenção criminalizadora que viola direitos humanos na cracolândia. Segundo Guia de Saúde e Direitos Humanos (HHR)41:

Ao redor do mundo, a criminalização da posse e uso de drogas "cria mais danos que os danos que buscam prevenir". Legislação de drogas repressivas e políticas que desproporcionalmente punem pessoas que fazem uso de drogas e traficantes. Políticas que perpetuam o estigma, formas de uso menos seguras, e consequências de saúde e sociais negativas – não apenas para aqueles que fazem uso de drogas, mas para toda a comunidade no entorno. (HHR, 2015).

 

 

Desenho realizado em oficinas por pessoas da "Cracolândia" ministradas pelo Projeto Oficinas, CEDECA Interlagos. O desenho foi publicado em fanzine e distribuído pelas pessoas do fluxo e da comunidade

Situações cotidianas como estas podem diluir a preocupação e oferta de direitos proporcionada por programa inovadores, como foi o programa 'De Braços Abertos'. Em um território onde o que é legal ou ilegal é negociado a todo instante existe uma abertura para possíveis violações de direitos silenciosas para determinados atores sociais. Nesse sentido, como que essas contradições reverberam no cotidiano das pessoas?

Políticas de drogas proibicionistas são baseadas em intervenções repressivas que criminalizam e encarceram grande parte da população, e se isentam de relações construtivas e cidadãs. Segundo a psicóloga Mônica Gorgulho (2011):

Quando se proíbe, simplesmente, cria-se uma população obediente. Mas quando a questão é colocada com diálogo e debate, as motivações que criaram tais regras e restrições ficam claras e uma população crítica é criada. Não é isso que queremos? Porém temos feito uma escolha, descarada e escandalosa, por uma população obediente (p. 28).

Na questão dos direitos humanos, o território parece uma várzea em todos os sentidos. Tanto pela informalidade de parâmetros que podem justificar violações, como pela dificuldade de a luta pela garantia dos direitos caminhar neste terreno encharcado de interesses.

 

 

A guisa de conclusão

Apresentamos neste texto diferentes cenas e diferentes populações que são marcadas por uma violência vinda do social. Em diferentes posições (carroceiros, comerciantes, usuários de drogas, pessoas em situação de rua) são pessoas lidas a partir de uma necessidade imediata, que claramente têm sua importância, mas com isso perguntamos se não estamos reduzindo as pessoas às suas necessidades. Do que essas pessoas querem falar? Sabemos do seu cotidiano, do que desejam conversar? Damos lugar para que isso apareça?

Faz tempo que essas pessoas estão dizendo coisas e não são escutadas. Faz tempo também que as instituições ganharam muito descrédito naquilo que se propõe a fazer e que assumem muito rapidamente que essas pessoas não têm o que dizer, que estão acomodadas e que por isso não procuram ajuda. Será que elas não estão cansadas de sentir que "nada adianta"?

No campo dos direitos humanos e na escuta necessária para os humanos e seus respectivos direitos, nos perguntamos como algumas marcas construídas socialmente tem impactos significativos na vida de um sujeito. "Me tratam como bandido" como apontou Seu Matias.

Na medida em que vamos recolhendo os efeitos das diferentes marcas impostas aos sujeitos, questionamos também a ordem discursiva com as quais elas vão se estabelecendo. Aquilo que o sujeito viveu enquanto manifestação de ódio do outro, não pode ser escutado de forma neutra. O profissional que escuta esse caráter de manifestação precisa considerar a mobilização necessária de enfrentamento a esse discurso. Precisa considerar que a política que será construída com seus pares vai partir do estranhamento e da não aceitação desse discurso, que insiste em se proliferar e que não podemos aqui fingir não escutar. É nesse momento que podemos escutar a violência sofrida e a partir disso entender que um direito humano não se valida sem essa estratégia, sem a escuta.

Não sabemos mesmo o que é melhor para o outro. Diante da cena violenta em que esses sujeitos estão, assumirmos que compreendemos o que outro vive, além de se configurar como uma ilusão, pode se configurar como mais uma violência bastante significativa. As pessoas falam disso aos ventos. E não é necessário que preencham tantos protocolos para endereçar a um profissional uma palavra, e para que esse possa dar condições ao sujeito para que ele se reconheça para além das marcas destinadas pela sua posição "marginal".

Desse modo, quando nos deparamos com sujeitos que se encontram numa posição "desacreditada", temos a oportunidade de fazer, por meio do trajeto junto com ele, outra significação da instituição.

Construir pontes que costuram os caminhos numa função articuladora, que provoca a intersetorialidade entre os serviços bem como a mobilização e formação de uma rede que seja capaz de estimular e construir ações numa perspectiva de garantir direitos, talvez não da forma tradicional como usualmente compreendemos.

É urgente, sobretudo no contexto de instabilidade em que vivemos, enquanto trabalhadoras e trabalhadores do âmbito das políticas públicas de saúde, assistência social e direitos humanos, estabelecer aquilo que nos é comum e ressaltarmos a potência de uma certa práxis que só se dá a partir disso que é comum.

Endo (2005) enfatiza que o agir solidariamente, importar-se com o outro, modificar com a própria ação, palavra ou presença algo na vida de alguém que pede auxílio humano, pode parecer uma ação despropositada e, ao mesmo tempo, é a única possibilidade de suscitar o prazer e a esperança que o gesto solidário põe novamente em circulação. É verdade que onde se destaca o imperativo da própria sobrevivência - neste caso assumindo a sobrevivência no espaço da chamada "Cracolândia", continuar sendo um morador de rua com os usos e consumos do espaço da rua, inclusive as drogas ilegais - tudo conspira para que os sujeitos se encastelem e renunciem a qualquer possibilidade de serem afetados por outros. O esforço para se religar aos outros implica também o imperativo do direito e do dever de cuidar de si mesmo de modo urgente e sem distração quando a vida está ameaçada de forma intensa e cotidiana.

Assim, endossamos que a coletividade promovida pela atuação do grupo 'Sem-Ternos' no seio de situações extremas, como relatado na situação de apreensão das carroças na "Cracolândia", constitui-se como possibilidade de ver restituído, ainda que fugazmente, um projeto identificatório, um futuro para além da preservação do organismo, e uma moral que possa ir além do desejo de poder soberano e terrorífico (Endo, 2005). O companheirismo se mostra como um lugar possível onde histórias são preservadas e onde a singularidade pode ser exercida.

Uma parte dos cidadãos da metrópole paulistana, ainda que não vivam declaradamente um cenário de guerra, estabelecem pactos e acordos entre o Estado e grande parte da sociedade, determinando quem são os inimigos a serem combatidos e eliminados e desejando a expulsão de parte da população para fora dos muros da cidade, expondo seus corpos a mandos e desmandos.

Comparece também o desejo de apaziguamento absoluto, fundado sobre fantasias de homogeneidades que são traduzidas pelo grande investimento em muros mais altos, construção de blindagens, seguranças pessoais e exemplos inesgotáveis que indicam que a cidade deixou de ser pacífica e segura para quem quer que seja.

A única convivência possível é entre os iguais e a ação mais prudente é o enclausuramento e a oclusão da cidade como lugar de convívio e partilha. O estrangeiro, o diferente, o que não sabe reproduzir os códigos precários de sociabilidade, perturbam essa suposta harmonia. Aquilo que Primo Levi (1900, citado por Endo, 2005) nomeou como necessidade de comunicabilidade não é somente a necessidade de reencontrar o familiar (a própria língua, os familiares, notícias de seu lugar de origem), mas também a urgência de ser reconhecido em sua diferença e não ser eliminado e maltratado por isso.

Assim, comparece uma violência para com o corpo que só atinge seu pleno êxito quando se alcança a dessubjetivação do sujeito, privando-o dos lugares onde ele se constitui. A experiência a que o corpo está sujeito é, nesse caso, uma experiência impossível, traumática, irrepresentável, em que a linguagem fracassa por muitas vezes.

Seguimos com o autor na compreensão sobre o contexto da cidade em que as instituições públicas de justiça e segurança, ao desconhecerem a necessidade desse lugar subjetivo — mas público —, deixam o cidadão por sua conta e risco. Os poderes públicos se ausentam como interlocutores, obrigando os atingidos a recolherem a própria dor na esfera do íntimo e do privado. Essa varredura se processa de modo tanto mais eficaz quanto mais se dessubjetiva os lugares, a medida em que as ruas vão sendo esvaziadas pelo medo, os rostos conhecidos vão sumindo, a circulação no lugar passa a ser explícita ou implicitamente controlada, e seguimos testemunhando a degradação e a ruína dos lugares onde antes se convivia, se trabalhava, se amava e se existia. A cidade de São Paulo, assim como a "Cracolândia", são áreas permissivas ao arbítrio, abusos de várias ordens e intrusões. Áreas cinzentas onde os que nela habitam, ou os que a constituem são potencialmente elimináveis, matáveis. As áreas demarcadas como zonas violentáveis são, em primeira e última instância, o corpo dos que habitam a cidade, sendo alguns corpos mais violentáveis do que outros. Nessa conta, estão implicados o isolamento, o apoio à ação policial dura e à permissividade ao desrespeito dos direitos civis. Estamos lidando, portanto, com uma população assustada, por vezes em pânico, que, frequentemente, não vê outra forma de combater a violência a não ser violentamente, indicando um futuro catastrófico e potencialmente inviável para uma cidade.

Conviver com o traumático não deixa de ser uma forma de perpetuar as condições excessivas que possibilitam o trauma, de instaurar condições subjetivas de sua reprodutibilidade, repetindo o que traumatiza e produz sofrimento. A não admissão do sofrimento gerado pelas violências, a total ausência do reconhecimento público desses traumatismos, é o que faz com que São Paulo, e mais especificamente a região da "Cracolândia" estejam submetidas às intenções de explícito poder por parte do Estado, colhendo as consequências e os efeitos das violências que gera e permite.

 

Referências

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32 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm
33 Estratégia de cuidado com oferta de moradia em primeiro lugar, reconhecida em diversos países, como França, Japão e Canadá. Em Vancouver, no Canadá esta estratégia compõe a rede de cuidado há mais de 20 anos. https://www.phs.ca/index.php/housing/
34 Rua onde encontra-se a concentração de pessoas que usam crack.
35 Guarda Civil Metropolitana da cidade de São Paulo.
36 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1622665-operacao-na-regiao-da-cracolandia-tem-tumulto-e-corre-corre-dois-sao-feridos.shtml
37 http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,acao-na-cracolandia-termina-em-confronto-dois-sao-feridos,1678369
38 Parceria do CEDECA INTERLAGOS em com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC).
39 Vale lembrar que as ações executadas por esse coletivo estão alinhadas com os conceitos de articulação, rede, território e cuidado compartilhado, a partir dos princípios do SUS, SUAS e da Redução de danos.
40 http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaConsulta.aspx?idItem=59474&idPagina=1
41 Health and Human Rights Resource Guide: http://hhrguide.org/2014/03/12/how-is-harm-reduction-a-human-rights-issue/

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