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Psicologia para América Latina

versión On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.35 México ene./jun. 2021

 

Racismo, trabalho e psicologia: provocações ético-políticas à luz da pandemia pela COVID-19

 

Racism, work and psychology: ethical-political provocations in the light of the pandemic by COVID-19

 

Racismo, trabajo y psicología: retos ético-políticos a la luz de la pandemia por la COVID-19

 

 

Miguel de Sousa Lacerda NetoI; Sergio Dias Guimarães JuniorII; Patricia Morales MonteagudoIII; João Batista FerreiraIV

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro, RJ
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro, RJ
IIIUniversidade Federal do Rio de Janeiro, RJ
IVUniversidade Federal do Rio de Janeiro, RJ

Contato com os autores

 

 


RESUMO

Este ensaio discute criticamente articulações entre raça, trabalho e psicologia à luz da pandemia pela COVID-19. A discussão foi referenciada na revisão narrativa de literatura e pela crítica ao colonialismo. A pandemia evidenciou a gravidade das condições sócio-históricas de desigualdades, manutenção das assimetrias e privilégios raciais do Brasil, intensificando efeitos nocivos à saúde da população negra no contexto trabalhista. O ensaio se encaixa na proposta de uma psicologia ético-política e antirracista, endossando elaborações de políticas públicas de assistência em saúde no trabalho, durante e no período pós-pandemia.

Palavras-chave: Covid-19; pandemia; racismo; saúde do trabalhador, psicologia.


ABSTRACT

This essay critically discusses articulations between race, labor, and psychology in light of the pandemic by COVID-19. The discussion was referenced in the narrative literature review and by the critique of colonialism. The pandemic highlighted the severity of Brazil’s socio-historical conditions of inequality, maintenance of racial asymmetries and privilege, intensifying harmful effects on the health of the black population in the labor context. This essay fits the proposal of an ethical-political and anti-racist psychology, endorsing the elaboration of public policies for health care at work, during and after the pandemic.

Keywords: Covid-19, pandemic, racism, labor health, psychology.


RESUMEN

Este ensayo discute críticamente las articulaciones entre raza, trabajo y psicología a la luz de la pandemia de COVID-19. La discusión fue referida, en la revisión de la literatura narrativa y por la crítica del colonialismo. La pandemia muestra la gravedad de las condiciones socio-históricas de las desigualdades, el mantenimiento de las asimetrías y los privilegios raciales en Brasil, intensificando los efectos nocivos sobre la salud de la población negra, en el contexto laboral. Este ensayo se inscribe en la propuesta de una psicología ético-política y antirracista, respaldando las elaboraciones de políticas públicas de atención a la salud en el trabajo, durante y en el período post pandémico.

Palabras clave: Covid-19, pandemia, racismo, salud del trabajador, psicología.


 

 

Introdução

Cleonice Gonçalves, 63 anos, mulher, negra e empregada doméstica foi a primeira vítima fatal do novo coronavírus (SARS-CoV-2) no estado do Rio de Janeiro. Moradora do bairro de Miguel Pereira, atravessava em média 120 quilômetros por semana para chegar ao trabalho, no Leblon, região nobre do estado. Antes do óbito, a empregadora de Cleonice retornou de viagem da Itália e aguardava o resultado da testagem para o coronavírus, posteriormente, confirmada positiva. Este caso, tomado como ponto de partida deste ensaio, revela a complexidade da atual crise, seus desdobramentos na América Latina e no contexto brasileiro, cujo número de óbitos, no momento da finalização deste texto, ultrapassa 278.229 (OMS, 2020).

O enfrentamento da pandemia exige esforços de diferentes setores sociais e possui múltiplos impactos na vida da população ao evidenciar, particularmente no Brasil, severas desigualdades sócio-estruturais. Entre elas, as desigualdades raciais têm papel relevante nos riscos da doença, exposição, medidas preventivas, assistenciais, mortes e outros danos associados. Recentes estudos apontam que a população negra sofre mais severamente impactos da pandemia (Goes, Ramos e Ferreira, 2020; Garcia, 2020; Oliveira et al., 2020; Santos et al., 2020) e alertam para a maior quantidade de pessoas negras que morrem pela doença no Brasil (ENSP, 2020). Neste cenário, o objetivo deste ensaio é analisar criticamente as articulações entre raça, trabalho e psicologia à luz da atual pandemia, referenciadas por questões afrodiaspóricas.

 

Método

O método do presente ensaio é baseado em uma revisão narrativa de literatura (Pautasso, 2020), que integra diferentes estudos sobre uma mesma temática - o que favorece reflexões sobre temas de pesquisas recentes, como é o caso da pandemia pela COVID-19; compondo um corpo teórico-metodológico derivado de levantamento bibliográfico qualitativo e informações oriundas de bases e entidades nacionais e internacionais. Tal processo de busca ocorreu durante os meses de agosto e setembro de 2020. A partir da leitura do material selecionado, definiu-se as seguintes categorias: 1) Racismo estrutural: apontamentos sócio-históricos; 2) Racismo e precarização estrutural do trabalho no Brasil: apontamentos pandêmicos; e 3) Implicações e provocações ético-políticas para a Psicologia brasileira no contexto da COVID-19: intersecção das categorias raça e trabalho. Desta forma, foi possível construir análises que compõem perspectivas múltiplas e atualizadas a partir de teorias e críticas consolidadas, considerando o objetivo deste estudo. Por se tratar de um ensaio que busca pensar eventos em andamento, foi importante a atenção às teorias e também atualizá-las no fenômeno político-social dos problemas de saúde pública decorrentes da pandemia.

 

Resultados e Discussão

Racismo estrutural: apontamentos sócio-históricos

Pensar as relações sociais a partir da lógica racial exige que entendamos os processos do evento que marca a modernidade: o colonialismo. Na lógica colonial na América a ideia de raça tornou-se essencial para o escravismo como dispositivo fundamentado nessa divisão da humanidade, que faz despontar antigas práticas de superioridade e inferioridade, alçando o racismo à tecnologia de Estado (Quijano, 2005). Deste modo, a ideia de raça como fundamento para que o racismo se tornasse estrutura social, é onde se faz necessário começar os debates sobre relações entre saúde e trabalho. O racismo estrutural emerge do que é fundante em nossa sociedade para habitar os interstícios de toda e qualquer relação social, que sempre legitimou o padrão racializado das relações de poder (Almeida, 2020). Neste processo colonial observa-se a associação das ideias distintas de raça e divisão do trabalho (Quijano, 2005). A branquitude - beneficiária do racismo estrutural - se apresenta como conjunto de práticas e discursos que exerce poder ao distorcer relações, impondo suas perspectivas na produção da realidade. Essa construção ocorre na relação com a negritude, que acaba identificada como "objeto ruim" nas dinâmicas sociais por ser ela assimilada às idiossincrasias e tabus da sociedade branca, tais como agressividade e a sexualidade (Kilomba, 2020). O Estado aparece como regulador da vida, a partir de dispositivos de gestão da vida - a "biopolítica" - na qual o valor de cada sujeito depende da posição racial. O Estado decide quem e quais são as vidas matáveis, transfigurando-se em economia da morte - em "necropolítica" (Mbembe, 2016). O Estado é o alicerce da branquitude para operar o racismo, que se transmuta desde as institucionalizações do trabalho precarizado ao genocídio de vidas negras. Isso ficou manifesto na Lei de Terras (anterior à proibição do escravismo no Brasil com a Lei Áurea e não revista após a abolição legal do escravismo), que sustentava a impossibilidade jurídica da divisão de terras contemplando a população escravizada durante séculos. Na historicidade do trabalho no Brasil, tal lógica pode ser ainda observada, por exemplo, na Lei do Ventre Livre que, pretendendo ser emancipatória, trazia o trabalho infantil como indenização do sujeito escravagista. Nas leis abolicionistas do país, outra proposta que atravessou a questão do trabalho foi a Lei dos Sexagenários, que garantia liberdade para escravizados com mais de sessenta anos. Entretanto, a expectativa de vida de pessoas escravizadas na época não alcançava a idade estipulada na lei, servindo para descartar escravizados não-produtivos (Bento, 2002). Assim, no decorrer do percurso histórico, o trabalho precarizado representa para a população negra a perda da possibilidade de reafirmar seu lugar social e existência ético-política, processo oposto à função social e ontológica do próprio trabalho. As opressões são marcas inapagáveis, e as lutas, por sua vez, não são reconhecidas. As lutas e conquistas históricas dos movimentos trabalhistas são largamente consideradas, no meio acadêmico e no imaginário comum, a partir da perspectiva branco-europeia, que suprime aspectos da população negra. Entre as mais conhecidas no Brasil, estão as revoltas pela mobilização de pessoas negras em torno de questões trabalhistas: a Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates (1798), de trabalhadores desse ofício, que marcaram a resistência; e a Revolta dos Jangadeiros (1881), cuja greve parou o porto da capital do do Ceará, Fortaleza, por três dias, e acelerou o fim da escravismo formal no estado, em 1884: quatro anos antes da Lei Áurea, que proibia o escravismo no Brasil. Outros movimentos são pouco registrados ou não rememorados, como a Revolta do Engenho Santana (1789 e 1824), primeira greve no país; e a Greve Negra (1857), paralisação geral na Bahia por pessoas escravizadas ou livres - os "negros de ganho" - que realizavam desde o trabalho de carregamento de pessoas até venda de alimento e outras mercadorias. As trabalhadoras(es) se opuseram ao arrocho fiscal e controle policial legislados pela Câmara Municipal de Salvador. A partir desta eurocentralidade na narrativa histórica, sobressai a dependência histórico-estrutural no Brasil, e toda a América, imersos após os eventos de independência dos Estados-nações. A colonialidade regula o poder na política e na construção psicossocial dos sujeitos. Sustentada por esta lógica, uma minoria branca lidera os países americanos, identificando-se mais com a Europa do que com as populações negras e indígenas, majoritária nos territórios americanos. O que faz com que as questões regionais, como reparações aos povos escravizados, fossem se avolumando. No Brasil, para rearranjar tais questões aos interesses da nova ordem mundial ditada pela Europa, criaram-se mitos da suposta democracia racial, para sustentar políticas estatais de branqueamento e reconhecer a miscigenação não mais como o horror dos estupros ou degenerescência moral e genética, forjando a mestiçagem como símbolo democrático e da luta igualitária. A república emerge da ala mais conservadora e fortemente militarizada, na continuidade do que havia de mais antidemocrático no país, ostentando a ordem e o progresso conservadores e descendentes dos mais de trezentos anos de escravismo. A revisão destes eventos históricos aponta processos de constituição de sujeitos coloniais nos quais as formas de pensar, sentir, agir e falar dos americanos é fundamentada na lógica colonial que inaugura a relação do branco europeu com o mundo. Isso invalida qualquer processo revolucionário na América colonial e agora se atualiza no poder do capitalismo mundial. O debate racial nas questões trabalhistas não pode ser um rec orte do que se tornou estrutural e transversal. O imperativo na investigação de novas formas que nos empurrem para fora da subjetividade colonial deve considerar - e porque não ter a sua gênese - no racismo e na racialização do mundo que são inaugurais na história das Américas.

Racismo e precarização estrutural do trabalho no Brasil: apontamentos pandêmicos

A presente seção parte da noção de precarização social do trabalho (Antunes, 2020) para analisar a lógica racista nos contextos laborais na atual pandemia. O processo de precarização do trabalho é analisado como fenômeno social em curso no Brasil, cujos efeitos político-econômicos e desdobramentos subjetivos são catalisados pela configuração pandêmica. Destaca-se a relevância da dimensão racial desta precarização, pois tais práticas estão capilarizadas na anatomia colonialista e excludente das heranças e desigualdades estruturais do contexto brasileiro. A constituição da precarização é sustentada por elementos controversos, pois seu alcance, destinos e efeitos não são homogêneos, mas variam com as assimetrias e privilégios raciais. Esses e outros aspectos formam o mosaico dos contextos laborais marcados por perdas de direitos trabalhistas e do direito às formas de trabalho e vida ético-politicamente qualificadas. Para Almeida (2020), na relação com o capitalismo, o caráter estrutural do racismo naturaliza a inserção de negras(os) no mercado de trabalho, com salários menores e condições precárias. Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010) apontam maiores índices de desemprego e informalidade da população negra. Druck (2013) denuncia a majoritária presença de pessoas negras em atividades com maiores prejuízos à saúde e exposição a riscos de acidentes de trabalho. Antunes (2020) revela a predominância desta população nos novos tipos de exploração e fl xibilização na uberização do trabalho, vide entregadores e motoristas de aplicativos. Para Bento (2002) e Ribeiro (2019), a branquitude reproduz injustiças e desigualdades raciais nas organizações (processos de seleção de pessoal, avaliação, treinamento e reconhecimento) e como se mantêm privilégios e assimetrias raciais. Santos, Diogo e Shucman (2014) evidenciam a divisão racial e sexual do trabalho que criam "não lugares" destinados às mulheres, negros e, particularmente, às mulheres negras. Pessoas de cor preta ou parda são a maior parte da força de trabalho brasileira, constituem a maioria desocupada, subutilizada e associada à informalidade no mercado de trabalho (IBGE, 2019). Esses dados revelam a necessidade de trazer a dimensão racial para o centro do debate sobre o trabalho precarizado no Brasil. O racismo é constituinte desta precarização: vínculos, contratações, condições e relações laborais e precarização subjetiva com efeitos para a saúde mental da classe trabalhadora. Combinações que, diante das ofensivas do capital, fragmentam e dificultam a organização coletiva, proteção e luta pela saúde no trabalho, particularmente nos períodos durante e pós pandemia. Observam-se decisões político-jurídicas no cenário trabalhista brasileiro que respaldam a precarização e representam as condições de possibilidade, manutenção e aperfeiçoamento de práticas racistas. O Projeto de Lei 4.302/1998 - depois Lei Ordinária nº 13.429/2017 que legalizou a terceirização irrestrita, a Reforma Trabalhista (Lei n.º 13.467/2017) e a extinção do Ministério do Trabalho, Emprego e Previdência em 2019 - são chaves neste império da intermitência, com reflexos das ofensivas antidemocráticas no país. Pandemia aqui considerada como crise sanitária e humanitária - com sobreposições políticas e econômicas - que espelha desigualdades que refletem severas questões estruturais, especialmente étnico-raciais. Tais considerações fazem emergir o questionamento: diante da atual pandemia, quem pode de fato fi ar em casa? Recentes debates acerca da proteção da saúde da classe trabalhadora, em tempos de pandemia (Almeida, 2020; Filho et al., 2020; Ribeiro et al., 2020; Silva et al., 2020), evidenciam os riscos para a saúde de trabalhadoras(es) - e não somente para envolvida(o)s nas "atividades essenciais". Com o enfoque racial da análise da precarização do trabalho no Brasil, a noção de risco é colocada em questão, pois a população negra sempre esteve exposta a maior risco pela lógica excludente do racismo, com funções laborais em condições mais precárias, exposição e riscos de acidentes e mortes. Os riscos inerentes à pandemia evidenciam os riscos das formas de trabalho precarizado. O Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdades - CEERT aponta que, durante a pandemia, o desemprego aumentou mais para negros do que para brancos (Marchesan, 2020). Tal constatação advém dos impactos sócio-econômicos da crise para atividades com forte participação da população negra: setor de comércio, serviços e trabalho doméstico, mais expostas aos riscos de contaminação.

Implicações e provocações ético-políticas para a Psicologia brasileira no contexto da COVID-19: intersecção das categorias raça e trabalho

Se existe no Brasil, na perspectiva decolonial, a necessidade da racialização das análises sobre a precarização do trabalho, acirradas no contexto atual, deve-se enfatizar o papel do trabalho em saúde no enfrentamento aos efeitos de tal processo. O trabalho em saúde no país é orientado, por políticas públicas, a oferecer a atenção às dimensões biopsicossociais dos usuários. Políticas e normas técnicas de diferentes instâncias se debruçam nas questões da saúde das(os) trabalhadoras(es) brasileiros, mas sua implementação requer mais do que vontade política. Tais normativas têm entre seus objetivos a redução de desigualdades sociais, mas sem delineamentos a respeito das problemáticas da população negra. Visando promover equidade, foi implementada a Política Nacional da Saúde Integral da População Negra: uma política do SUS, do Ministério da Saúde (2013). Fruto da luta secular pela cidadania e da atuação do Movimento Social Negro e pesquisadores da saúde, a partir da década de 1980. Tal documento argumenta que é consenso, entre estudiosos no Brasil, a existência de doenças prevalentes na população negra relacionadas ao trabalho, como estresse e depressão, para mencionar algumas. Alerta sobre os efeitos segregacionistas do racismo nas instituições. Estabelece como objetivo geral a promoção da saúde integral deste segmento, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais. Os objetivos específicos incluem: identificar, combater e prevenir situações de abuso, exploração e violência, como assédio moral no trabalho. A Psicologia é uma profissão da saúde pela resolução nº 287, de 8/10/98 do Ministério de Saúde (2016). Tal disposição resulta na regulamentação deste campo de práticas, por parte do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Concernem à Psicologia brasileira as questões que comprometem a saúde da população e das(os) trabalhadoras(es) negras(os). A interseção das categorias trabalho e raça é abordada por este campo no país há décadas, sendo anterior à deliberação dos regimentos aqui recuperados, constituindo-se como parte das bases para essa elaboração, embora pouco difundida. Destaca-se a tese de Bento (2002), fundadora do CEERT, que conceitua o preterimento dos trabalhadores negros nas relações organizacionais como pacto narcísico da branquitude. Todavia, segundo o CFP (2017), historicamente a Psicologia brasileira posicionou-se ao lado do racismo. Produziu conhecimentos pseudocientíficos que o validaram. Foi necessário o impacto do ativismo para operar, ao menos na legislação do exercício profissional, transformações como a resolução CFP nº 018/2002 (2002), com normas para psicólogas(os) sobre preconceito e discriminação racial, que repercutiram em alguns dos princípios fundamentais do Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005). O manual de Relações Raciais: Referências Técnicas para a atuação de psicólogas(os) (2017), do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) do CFP, estabelece normas para desconstrução do racismo e promoção da igualdade, com estratégias de enfrentamento ao racismo institucional como: diagnóstico e enfrentamento da discriminação institucional; sensibilização de gestoras(es) e consideração do quesito raça/cor, este último obrigatório para pesquisas em saúde junto ao Ministério de Saúde (2013).

As demandas pelos serviços da psicologia (atendimento psicológico, contratações para serviços de saúde, entre outros) aumentaram durante a pandemia. No entanto, a legislação não garante práticas racializadas. A Redação Acorda Cidade (2020) assinala a pandemia como atualização do racismo em diferentes dimensões, a precariedade do registro raça/cor nos relatórios de saúde e abaixa adesão à Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), denotando discriminação institucional. Isto resulta na negação do sujeito, seus direitos, e na impossibilidade de conhecer a gravidade dos efeitos da crise neste segmento. A negligência com a PNSIPN no âmbito do trabalho em saúde, apesar dos esforços políticos dos movimentos negro e setores da saúde, impõe questionamentos às futuras pesquisas: de que maneira ecoam na psicologia brasileira as diretrizes políticas e técnicas que visam combater o preconceito e a discriminação étnico-racial? Como produzir subsídios para enfrentá-los?

 

Considerações finais

Pensar a intersecção das categorias trabalho e raça reivindica averiguações sócio-históricas do contexto brasileiro. O colonialismo escravizador deixou resquícios de desumanização na vida política, econômica, social e subjetiva da população. O Brasil constituiu-se com base na brutal exploração da força de trabalho negra. Racializar a história é fundamental para a crítica de movimentos de transformação do presente. Os efeitos da precarização do trabalho acentuam as forças de assolação sobre a população negra. O corrente desmonte da máquina pública impacta a possibilidade do exercício de cidadania deste segmento historicamente preterido. A população negra, com maior número de trabalhadoras(es) informais e subutilizados do país, sofre intensamente os efeitos da pandemia, se dividindo entre o desemprego e o requerimento do isolamento social. O combate à discriminação racial nas instituições é indispensável e demanda múltiplas frentes. Nos âmbitos da micro e macropolítica, é necessário fazer ribombar os dispositivos existentes e criar novos para a prevenção, promoção e cuidado da saúde da população negra. Esperamos que as contribuições deste ensaio se integrem aos materiais críticos produzidos para processos de formação, capacitação, atuação ético-política e antirracista em psicologia, e como potencial recurso para ampliar a elaboração e implementação de políticas públicas de cuidado e assistência em saúde no trabalho e nas práticas de intervenção em psicologia.

 

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Contato com os autores:
Miguel de Sousa Lacerda Neto
Instituto de Psicologia - UFRJ
Av. Pasteur, 250 - Urca
Rio de Janeiro-RJ, Brasil
CEP: 22290-240
+55 21 9 7939-1178

Recebido em: 22/02/2021
Reformulado em: 25/04/2021
Aceito em: 28/06/2021

 

 

Sobre os autores:
Miguel de Sousa Lacerda Neto
Psicólogo, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRJ. Pesquisador colaborador do Núcleo Trabalho Vivo (IP-PPGP-UFRJ).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4211-0163
E-mail:mlacerda.psi@gmail.com
Sergio Dias Guimarães Junior
Psicólogo, mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRJ. Pesquisador colaborador do Núcleo Trabalho Vivo (IP-PPGP-UFRJ). Professor substituto do Departamento de Psicologia (UFF/Niterói).
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5522-6646
E-mail:sergiodiasguima@gmail.com
Patricia Morales Monteagudo
Psicóloga pela UFRJ. Formada em Psicologia pela UFRJ. Mestranda bolsista CNPq do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ e participante do Núcleo Trabalho Vivo (IP-PPGP-UFRJ).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7048-9724
E-mail:psicopamm@gmail.com
João Batista Ferreira
Psicólogo, professor associado e pesquisador do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e da Graduação em Psicologia/UFRJ. Coordenador do Núcleo Trabalho Vivo (IP-PPGP-UFRJ). Doutor em Psicologia (UnB). Pós-doutorado em Filosofia (Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7723-744X
E-mail:ferreira.jb@gmail.com

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