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Psicologia para América Latina

versão On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.36 México jul./dez. 2021

 

Renascer para Resistir: A Experiência da Escola de Formação Antimanicomial

 

Reborn to Resist: The Anti-Asylum Training School Experience

 

Renacer para Resistir: La Experiencia de La Escuela de Formación Antimanicomial

 

 

Gessica do Carmo de AquinoI; Halina Cavalcanti GouveiaI; Alanna Figueiroa ValentimI

IMilitantes do Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial Libertando Subjetividades – PE

Contato com as autoras

 

 


RESUMO

A Reforma Psiquiátrica Brasileira foi impulsionada pela organização da população a fim de questionar o modelo hegemônico manicomial e apontar novas possibilidades de cuidado. A participação social não se restringe aos espaços formais instituídos e a formação política possui papel fundamental para a construção de um processo crítico- reflexivo. O artigo traz a experiência de uma formação política em saúde mental como possível vetor de transformações sociais, um estudo qualitativo em formato de relato de experiência, com o objetivo de analisar a experiência e desdobramentos de duas edições da Escola de Formação Antimanicomial de Recife e Região Metropolitana. A análise dos dados foi baseada no método de sistematização de experiências proposto por Holliday. A Escola se mostra um potente instrumento de luta pela Reforma Psiquiátrica, que pode ser apropriado e adaptado aos diferentes contextos em função do fortalecimento do protagonismo dos usuários dos serviços de saúde mental.

Palavras-chave: luta antimanicomial; formação política; saúde mental.


ABSTRACT

The Brazilian Psychiatric Reform was driven by the popular organization to question the hegemonic asylum model and point out new care possibilities. Social participation is not restricted to established formal spaces and political formation has a fundamental role in the construction of a critical-reflective process. The article brings the experience of political training in mental health as a possible vector of social transformations, a qualitative study in the form of an experience report, intending to analyze the experience and developments of two editions of the Anti-Asylum Training School of Recife and Metropolitan Region. Data analysis was based on the experience systematization method proposed by Holliday. The School is a powerful instrument in the struggle for Psychiatric Reform, which can be appropriated and adapted to different contexts in terms of strengthening the role of users of mental health services.

Keywords: movement against asylums; political formation; mental health.


RESUMEN

La Reforma Psiquiátrica brasileña fue impulsada por la organización de la población para cuestionar el modelo de asilo hegemónico y señalar nuevas posibilidades de atención. La participación social no se restringe a los espacios formales establecidos y la formación política tiene un papel fundamental en la construcción de un proceso crítico-reflexivo. El artículo trae la experiencia de la formación política en salud mental como posible vector de transformaciones sociales, un estudio cualitativo en forma de relato vivencial, con el objetivo de analizar la experiencia y desarrollos de dos ediciones de la Escuela de Formación Antimanicomial de Recife y Región Metropolitana. El análisis de los datos se basó en el método de sistematización de experiencias propuesto por Holliday. La Escuela es un poderoso instrumento en la lucha por la Reforma Psiquiátrica, que se puede apropiar y adaptar a diferentes contextos para fortalecer el rol de los usuarios de los servicios de salud mental.

Palabras clave: movimiento de lucha antimanicomial; formación política; salud mental.


 

 

Introdução e Justificativa

O hospital psiquiátrico protagonizou a cena do modelo asilar que se consolidou no século XIX e favoreceu o desenvolvimento das políticas higienistas e da crescente medicalização da vida, gerando exclusão e sofrimento dos sujeitos considerados desviantes da ordem moral. No final da década de 1970, trabalhadores se organizaram em torno das denúncias de torturas e violações de direitos que faziam parte do cotidiano dos hospitais psiquiátricos. Nomeada como Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, essa organização popular construiu uma crítica aos manicômios com vistas à superação do modelo asilar, influenciada pelos fundamentos da Reforma Psiquiátrica italiana. O movimento estava identificado com os ideais que emanavam no contexto de redemocratização do país e alinhado com a Reforma Sanitária, reivindicando a saúde como direito dos cidadãos e dever do Estado (Amarante, 1995). A efetivação desse direito através da conquista do Sistema Único de Saúde abriu um campo no qual um modelo de atenção à saúde mental fundamentado no cuidado em liberdade poderia se sustentar.

De acordo com Passos (2017), no processo de construção da experiência brasileira da Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial existem projetos em disputa no próprio seio dessas correntes teóricas. Identificamos que há forças conservadoras da psiquiatria tradicional que defendem a reorganização dos serviços em saúde mental e entre os antimanicomiais também encontramos aqueles que defendem a humanização do hospício, o que nos convoca a reflexão e debates a todo instante (Passos, 2017).

A progressiva participação dos usuários dos serviços de saúde mental e seus familiares fortaleceu o que veio a se consolidar como Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, que sintetizou no lema "Por uma sociedade sem manicômios" a luta por uma assistência à saúde embasada no tratamento em liberdade, pela garantia dos direitos e cidadania das pessoas com transtorno mental e, mais do que isso, a luta pela aceitação dos ditos loucos, sem qualquer forma de exclusão. O modelo de atenção psicossocial, levando em consideração a indissociação entre a cidadania, a autonomia dos sujeitos e o tratamento em liberdade, tem como pressuposto viabilizar ações que promovam o protagonismo dos usuários dos serviços de saúde mental.

A partir de uma decisão de 13 núcleos de luta antimanicomial de todo Brasil, surge em 2003 a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA) que passa a se estruturar em seu primeiro encontro nacional, em 2004, quando é definida sua organicidade e princípios. A RENILA é composta por núcleos da luta antimanicomial autônomos, que se unem enquanto Rede com base nos mesmos princípios norteadores, escritos na carta de princípios da Rede.

A instituição de espaços de controle social no Sistema Único de Saúde (SUS), através da Lei 8.142/90, possibilitou que a participação nos conselhos e conferências de saúde conferisse à população meios de construção democrática das políticas públicas de saúde. Entretanto, como apontado por Costa e Paulon (2012), esses objetivos não são garantidos apenas pela criação desses fóruns, mas a participação social é construída coletivamente e associada à disputa de forças, poderes e ideias, sem se manter restrita aos espaços formais instituídos.

Nessa esfera, a dimensão micropolítica de produção de subjetividades é fundamental. Torre e Amarante (2001) apontam que a autonomia constitui um aspecto central no processo em que um usuário do serviço de saúde mental se desloca do assujeitamento, produzido historicamente pelas marcas de um diagnóstico psiquiátrico, na direção da transformação em um sujeito que luta pela construção da cidadania para o coletivo que pertence. Dessa maneira, a transformação almejada passa pela criação de formas concretas de produção de autonomia e de uma cidadania ativa.

O sistema capitalista forjou um modelo de subjetividade que favorece sua manutenção e expansão, centrado no indivíduo e em uma experiência de humanidade relacionada à interioridade e pretensiosamente apartada do social. Em seu contraponto, Torre e Amarante (2001) defendem que a subjetividade é invariavelmente coletiva e inscrita na historicidade não como elemento anterior ao indivíduo, mas como fruto de registros coletivos sociais e culturais. O constante trabalho de produção de subjetividade se dá tanto através dos equipamentos sociais, discursos, práticas e tecnologias institucionais para sua "modelagem e serialização", como também através de movimentos de resistência que produzem rupturas e singularizações que caminham na contramão das "máquinas capitalistas de produção de subjetividade" (p.77).

A plenitude de uma democracia implica na necessidade da formação de cidadãos que sejam ativos, participantes e tenham a capacidade de julgar e escolher. Em conformidade aos argumentos de Benevides (1996), é necessário que o desenvolvimento de uma educação política se desloque da instituição formal para espaços em que seja possível a formação de uma resistência ao poder hegemônico.

Na defesa de uma educação emancipadora, nomeada "educação para a democracia", Benevides (1996) parte do pressuposto de que a democracia é um "regime político fundado na soberania popular e no respeito integral aos direitos humanos" (p. 225) para sinalizar a indispensável associação entre democracia participativa e a educação política.

O paradigma da educação popular, pautado no trabalho de Paulo Freire, traz valiosas contribuições no sentido em que a educação popular estimula a participação política e cidadã com vistas à superação das condições sociais opressoras, consistindo em uma educação direcionada à transformação. O fundamento e a metodologia da educação problematizadora/libertadora é o diálogo, diálogo como encontro entre sujeitos, sujeitos do ser mais. Mas trata-se de encontro que vai para além do encontro eu-tu, o encontro é para ler e pronunciar o mundo e, assim, transformá-lo (Freire, 2005).

Consideramos importante pontuar o dito acima para que possamos compreender a autonomia no seu cerne, e que a autonomia aqui defendida é aquela em que as práticas favoreçam a inserção do sujeito, que o consideram a partir da sua vocação de ser mais e que, portanto, potencializam a autonomia (Freire, 2018).

Neste momento da Reforma Psiquiátrica, tem sido cada vez mais apontada a importância do repensar o lugar do sujeito da diferença, com o intuito de construção de uma política de saúde mental que considere a dívida histórica das políticas públicas com este segmento. Nessa construção, a participação cidadã do usuário configura-se como poderosa arma contra as amarras institucionais que engessam a potência instituinte dos embates com o que se julga a loucura em nossa sociedade (Costa & Paulon, 2012). Considerando a importância desta participação social, outro elemento primordial que deve estar na construção desse processo é o protagonismo desses sujeitos.

O protagonista é quem deve decidir sobre o que deve ser tratado mas, conforme Costa e Paulon (2012) apontam, pessoas lidas como loucas são frequentemente relativizadas, pois esta nomeação é seguida por uma série de estigmas e barreiras historicamente construídas e sustentadas pelo conjunto da sociedade.

A formação política faz-se necessária na compreensão e na luta pela garantia dos direitos das populações. Quando a usuária e usuário da RAPS têm a oportunidade de estar, tanto nesse processo de aprendizagem, quanto em todo o processo de construção dos processos formativos, constroem-se significados relacionados à compreensão de suas reivindicações e ao desenvolvimento de uma consciência crítica em relação a totalidade em que esse sujeito se encontra na sociedade.

A ideia de transformação do pensamento em relação às necessidades individuais e partir para uma consciência coletiva faz com que os(as) usuários(as) ratifiquem a ideia de formação política em saúde mental além do respeito às suas especificidades. Segundo Vasconcelos et al (2010), com isso, o processo formativo traz subsídios para que busquem novos sentidos para a vida e a defesa dos direitos humanos dos sujeitos em sofrimento psíquico; faz sair do âmbito da reivindicação individual e passa para a superação mútua de um problema. Considerando as reflexões aqui expostas, é possível afirmar que uma educação política comprometida com a transformação social pressupõe a produção de subjetividades na direção da cidadania ativa, em nome do fortalecimento de um Estado Democrático de Direito, fazendo frente ao poder instituído que objetifica os corpos e mantém um sistema de opressão e exclusão.

A participação e o controle social no Brasil encontram-se em xeque e uma Reforma Política é solicitada por quase todos os setores e movimentos populares, ainda que com discordâncias no formato e conteúdo. Interferir no destino do país é pauta atual e urgente do povo brasileiro e nos Movimentos da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica não poderia ser diferente. Dentro desta disputa, surge a dita "Nova Reforma Psiquiátrica", encabeçada por movimentos conservadores que institucionalizam uma crise na direção política dos serviços de cuidado em saúde mental, com a inclusão de "dispositivos considerados manicomiais, com caráter religioso e que não possuem uma equipe técnica" (Passos, 2017, p. 58). O que se enquadra nesse perfil são as Comunidades Terapêuticas, que passam a compor a rede de saúde mental utilizando-se de verbas públicas para se manterem, um processo de precarização da Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas que foi também denunciado no I Encontro Nacional da RAPS, em 2013, por trabalhadores(as), usuários(as) e familiares. Diante desse cenário, Passos (2017) sinaliza que existem hoje pelo menos três projetos em disputa:

1º) a proposta radical de Reforma Psiquiátrica, pautada na Luta Antimanicomial; 2º)a proposta de manutenção da perspectiva manicomial tradicional; 3º a proposta de uma Reforma Psiquiátrica "simpática" às mudanças de caráter meramente legislativo e assistencial. (PASSOS, 2017, p. 58)

Ainda que a instituição psiquiátrica deixe de existir, as suas expressões, na atual conjuntura, estão colocadas de outras formas e também precisam ser superadas e aniquiladas (Passos, 2017, p. 61).

Na cena política na resistência ao Golpe de 2016, movimentos sociais do estado de Pernambuco ganharam visibilidade, incluindo entidades constituintes da Frente Brasil Popular. Tomando como referência formas de organização de tais movimentos para fortalecimento de processos coletivos, aconteceram mensalmente assembleias nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da Região Metropolitana do Recife (RMR) e em Caruaru, na região Agreste do estado, conduzindo à primeira formação voltada apenas para usuários(as) da rede de saúde mental, nomeada como I Escola de Formação de Usuários – RMR.

Meses após a conclusão desta experiência, sucessivas alterações na Política de Saúde Mental foram anunciadas pelo Governo Federal através das Portarias de Consolidação do Ministério da Saúde em Setembro de 2017 (Brasil, 2017), além da 3.588/17 lançada em dezembro deste mesmo ano que, entre tantos pontos, anunciava o aumento da diária em Hospital Psiquiátrico. Em novembro de 2018, surge a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Nova Política de Saúde Mental e da Assistência Hospitalar Psiquiátrica. Junto a este processo de uma série de ataques à Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, tinha-se também as eleições de outubro de 2018 como momento de grande importância para apontarmos um projeto de nação e de política de saúde para o país, em consonância com a Luta Antimanicomial. Foi desta forma que entre os meses de Outubro e Dezembro de 2018 aconteceu a II Escola de Formação Antimanicomial.

Em outubro e novembro de 2019 foi realizada a III Escola de Formação Antimanicomial, já configurada como um permanente desafio de construção para todos(as) que participaram e para aqueles(as) que conhecem sua potência a cada vez é realizada. Em 2020 aconteceria a quarta edição deste projeto, se o mundo não tivesse sido surpreendido pela pandemia do COVID-19 e sua necessidade urgente de isolamento social. A dificuldade de manutenção da própria vida para grande parcela da população, em se tratando das condições materiais e subjetivas, e a exclusão histórica de acesso a emprego, renda, educação, moradia – incluindo acesso à tecnologia e comunicação – não possibilitaram a construção de uma edição virtual.

Este trabalho dedica-se a relatar a experiência da Escola de Formação Antimanicomial entre os anos de 2017 a 2019, com a intencionalidade de apresentar um registro coletivo que facilite a continuação deste processo formativo em Recife e Região Metropolitana e demais regiões de Pernambuco e do Brasil, por tratar-se uma iniciativa baseada em princípios de democracia, de participação social, da Luta Antimanicomial e do protagonismo de usuários(as) da RAPS e seus familiares.

 

Problema/Objetivos

Essas experiências da Escola de Formação aconteceram durante três anos consecutivos, 2017, 2018 e 2019 e se apresentam como uma potente ferramenta de intervenção e articulação dos(as) usuários(as) e familiares em busca de maior protagonismo destes na construção de estratégias de enfrentamento. Teve por objetivo fomentar nos(as) usuários(as) reflexões sobre a Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial, luta política e organização de familiares, usuárias(os) e trabalhadoras(es) da saúde mental, bem como incentivar a discussão sobre os atuais desafios da Luta Antimanicomial e incitar a necessidade de formação de coletivos de usuários(as), familiares, trabalhadores(as) da saúde mental em prol da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial.

Este artigo se pauta na realização das duas primeiras edições da Escola de Formação, pois tiveram participação ativa das autoras envolvidas como militantes do Núcleo da Luta Antimanicomial Libertando Subjetividades. Esta escrita tem o objetivo geral de analisar a experiência e consequentes desdobramentos das escolas de formação para a luta antimanicomial do Recife e Região Metropolitana, com o intuito de divulgar e promover a construção de estratégias de luta que fomentem o protagonismo de usuários nos mais diversos contextos que necessitam da manutenção de uma Reforma Psiquiátrica pautada na Luta Antimanicomial.

Como objetivos específicos, buscamos: descrever processo de organização e execução da Escola de Formação Antimanicomial do Recife e Região Metropolitana; analisar as contribuições da Escola de Formação Antimanicomial do Recife e Região Metropolitana para a Luta Antimanicomial da região; e analisar o processo de formação na vida dos sujeitos implicados na Escola de Formação Antimanicomial do Recife e Região Metropolitana.

Processo de Intervenção

O desenho deste estudo é de natureza qualitativa, em formato de um relato de experiência. Segundo Minayo e Sanches (1993), a abordagem qualitativa coloca tanto investigadora quanto investigadas como agentes de ação produtoras de sentido e significado, por isso entende toda etapa do processo de investigação como parte do fenômeno analisado, assim, considera toda crítica, todo momento relacional como material de investigação. Como forma de investigar os objetivos desta pesquisa.

Foram utilizados os registros dos diários de campo das autoras, componentes do grupo organizador da Escola de Formação, como também os materiais produzidos pelos participantes durante o processo formativo. As imagens e registros de falas e/ou referências feitas às vivências foram retirados de registros públicos da formação feita pelo movimento social organizador da experiência, encontradas em redes sociais e autorizadas pelos(as) usuários(as) na medida em que os registros eram produzidos.

A análise foi realizada à luz do método de sistematização de experiências proposto por Holliday (CIDAC, 2007), uma interpretação crítica que, utilizando-se da compilação e ordenação de dados e informações para a reconstrução da experiência, explicita os fatores que intervieram no processo vivido e como estes se relacionam entre si, com intencionalidade de extrair aprendizagens. Entre os objetivos da sistematização de experiências estão a compreensão em profundidade da experiência, intentando seu aperfeiçoamento; o compartilhamento das aprendizagens com demais atores que tenham vivenciado experiências semelhantes; e a contribuição para a reflexão teórica a partir de conhecimentos surgidos diretamente do campo vivencial (CIDAC, 2007).

Cada etapa de pesquisa e criação deste artigo se baseia no rigor proposto por Débora Diniz (2008), ao entender que cada desenho metodológico exige uma sensibilidade ética para entender novas possibilidades de riscos e adequações necessárias.

Efeitos e Impactos Observados

Processo de organização e execução da Escola de Formação Antimanicomial do Recife e Região Metropolitana

A cada edição da Escola de Formação foram realizados ajustes e aprimoramentos, baseados na avaliação realizada ao fim de cada processo e nas necessidades percebidas do contexto histórico e social. Para fins de sistematização da experiência, serão relatadas todas as estratégias utilizadas para alcançar o objetivo proposto em cada etapa.

A formação política foi destinada a, em média, 30 usuários dos serviços de saúde mental da cidade do Recife e Região Metropolitana, tendo participado também alguns familiares. As atividades foram realizadas em quatro etapas, com frequência quinzenal, em período diurno com alimentação disponibilizada aos participantes. Cada módulo contou com a participação de uma facilitadora convidada e uma equipe responsável pelo apoio pedagógico e logístico. Os temas abordaram a contextualização histórica da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial, discussão da Política Nacional de Saúde Mental e Política Nacional Sobre Drogas, análise da conjuntura política brasileira e estratégias de organização social. Diante da procura por participação de pessoas que não eram o público-alvo, como estudantes e trabalhadoras(res), a partir da II Escola o primeiro módulo foi aberto à população em geral, também com a função de ser um lançamento público do projeto.

Para tal, utilizou-se de exposições dialogadas, rodas de conversa, expressões artísticas e dinâmicas de grupo, privilegiando metodologias participativas. As atividades foram centralizadas nos Núcleos de Base (NBs), grupos permanentes definidos para integração entre os participantes, realização de atividades coletivas e corresponsabilização com a construção do espaço formativo. A partir da segunda edição, foi feita a proposta a pessoas que já haviam participado da Escola e novamente se inscreveram para que fossem monitores, uma em cada NB formado, com a função de acompanhar e auxiliar no aprendizado daquela turma. Elas não só aceitaram com bastante entusiasmo como cumpriram com responsabilidade a tarefa dada, emergindo ali mais uma modalidade de formação, jamais pensada durante o processo.

A aposta nos afetos como inerentes ao processo de despertar da consciência resultou em encontros permeados por místicas, realizadas no início e no final de cada dia de formação, assim como intervenções artísticas. A mística é a alma do sujeito coletivo, é o momento em que se reafirma o compromisso com determinados ideais e é uma forma de concretizá-los no momento presente (CEPIS, 2009). Se traduz em possibilidades diversas de expressão e dá margem à utilização de variadas linguagens.

Nesse campo, considerando a importância da memória dos companheiros que são referências na luta por uma sociedade justa e igualitária, escolheu-se na primeira edição homenagear Marcus Vinicius de Oliveira Silva (BA), conhecido também como Marcus Matraga, um dos militantes idealizadores da Luta Antimanicomial brasileira e referência na América Latina. Na segunda edição, a homenagem foi prestada a Rosimeire Silva (MG), importante militante da luta antimanicomial além de trabalhadora também com experiência na coordenação e gestão de serviços da RAPS, com participação na criação e implementação dos serviços substitutivos aos manicômios. Na última edição realizada, a homenagem foi dirigida a Edjane Sampaio, trabalhadora da RAPS do Recife, defensora da luta antimanicomial, admiradora da Escola de Formação e incentivadora da participação e protagonismo dos usuários(as) nos processos políticos e de decisão.

Contribuições da Escola de Formação Antimanicomial do Recife e Região Metropolitana para a Luta Antimanicomial da região

A existência de um processo de formação recoloca o movimento social e os(as) usuários(as) em um patamar de disputa política mais qualificado, tendo em vista que compreende-se melhor as estruturas de opressão, o sistema e os atores que a sustentam e. Desta forma, posicionam-se melhor nas reuniões de organização, nos atos públicos, nos serviços a que são vinculados e com a sociedade.

O Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial Libertando Subjetividades teve a participação de usuários desde a sua fundação, entretanto os processos de formação facilitaram a filiação de novos usuários que se interessaram em buscar uma organização política atuante e ideologicamente alinhada aos princípios da luta antimanicomial. Consequentemente, foi expressiva a presença e participação dos mesmos no V Encontro Nacional da RENILA, realizado em 2018 no Centro de Formação Paulo Freire – Assentamento Normandia do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no município de Caruaru – PE.

A rede de contatos entre usuários proporcionada pela convivência e pela formação política facilitou a construção de mais uma associação de usuárias(os) e familiares no estado de Pernambuco, denominada Corpo de Lama. Este pode ser utilizado como um fator importante para acreditar nos avanços que traz a continuidade deste processo de formação, a partir da leitura da contribuição destes momentos para o fortalecimento da atuação dos usuários como sujeitos políticos

A visibilidade dada a este processo de formação provocou a inspiração de coletivos antimanicomiais no Nordeste e no país para a construção de experiências semelhantes, à luz deste projeto, o que indica que pode ser um ponto de partida para um processo de maior porte que compreende a educação como prática de liberdade, seguindo orientações de Paulo Freire, e a centralidade na formação política para organizar processos de resistência para períodos de retrocessos nas políticas públicas.

Análise do processo de formação na vida dos sujeitos implicados

A compreensão dos elementos de conjuntura política apresenta-se como ferramenta de libertação de um nível de exclusão: o do conhecimento. Os relatos de experiências e trajetórias de vida das pessoas inscritas evidenciaram que se tratava de um grupo excluído de uma série de políticas sociais. Ainda que soubéssemos que as pessoas com sofrimento psíquico sistematicamente são referenciadas para as políticas de saúde e de assistência social, no cotidiano de uma proposta em formato de curso percebíamos das mais diversas formas o quanto este grupo tinha sido negligenciado pelo Estado no acesso às políticas de educação e, por consequência, a melhores ferramentas de convívio social, reprodução das condições materiais de existência e da inserção no mercado do trabalho.

Entendendo isso, era notório que também por estas questões um curso de formação tornava-se algo tão desejado e cuidado por toda a turma inscrita. A presença era sempre acompanhada por sujeitos atentos, concentrados, esforçados, participantes, comprometidos, honestos e sedentos por construção coletiva de um conhecimento anteriormente negado.

Durante todo o processo, a formação foi muito bem avaliada pelas(os) participantes e pelas trabalhadoras dos serviços que estavam acompanhando alguns grupos. Os(as) usuários(as) compartilhavam frequentemente sobre o aprimoramento da compreensão sobre sua realidade como sujeito e cidadão; da autonomia para o posicionamento em outros grupos que faziam parte; do reconhecimento do curso como sujeitos de direitos e com legitimidade de fazer parte de processos de formação; da importância de um local de sociabilidade e formação para além do local onde eles realizam o tratamento (CAPS); emoção pela conclusão e o recebimento dos certificados; e o desejo da continuidade de mais momentos como esse. Tais elementos deixavam claro a importância e o desafio da continuação e ampliação desse processo formativo.

 

Conclusão

A participação política nos espaços de controle social é uma questão para o SUS como um todo e não apenas para os usuários da RAPS, entretanto para este público há nuances específicas, tendo em vista a afirmação de uma posição ético-política que não admite que o tratamento esteja dissociado do imperativo de tomar os usuários como cidadãos e protagonistas.

Em tempos de graves ameaças à democracia brasileira, não se pode deixar escapar à memória que a Luta Antimanicomial se configurou como uma estratégia de redemocratização junto aos movimentos sociais no período pós-ditadura militar, na exigência da criação e efetivação de políticas sociais que garantissem a saúde integral da população. A remanicomialização, que tem se expressado no sucateamento do SUS e na aprovação de uma política de saúde mental alinhada a corporações e ideais excludentes e produtores de sofrimento, exige uma posição de constante resistência e fortalecimento dos movimentos sociais.

Assim, a Escola de Formação Antimanicomial se mostra um potente instrumento de luta pela Reforma Psiquiátrica, que pode ser apropriado e adaptado aos diferentes contextos em função do fortalecimento do protagonismo dos usuários dos serviços de saúde mental. Apesar de ser direcionada a um público específico, por estar em diálogo com princípios da educação popular a formação antimanicomial proporciona aprendizado a todas as pessoas presentes, em uma troca de saberes das mais diversas ordens que aponta para a emancipação dos sujeitos e a transformação social.

Memorial

Falar da Escola de Formação Antimanicomial demonstra uma fragilidade em nosso projeto de nação: aqui quem escreve ainda não são as formandas e os formandos deste processo. Porém protagonismo, luta política e participação social não são garantidos e conquistados em espaços pontuais, em certificados e sem enfrentamentos.

O presente trabalho traz a experiência de uma formação política em saúde mental como possível vetor de transformações sociais, para sinalizar que estes encontros são sementes de raízes coletivas que se fortalecem em momentos de violentos ataques à democracia e à vida no Brasil. De uma coisa não temos dúvida, a Escola de Formação Antimanicomial é um aviso a quem carrega o projeto da contra-reforma manicomial: não desistiremos.

 

Referências

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Contato com as autoras:
Gessica do Carmo de Aquino
Rua Walfrido de Moraes, 335, apto 310, bloco D, Janga
Paulista-PE, Brasil
CEP: 53437-100
Telefone: (81) 99808-7187

 

 

Sobre as autoras:
Gessica do Carmo de Aquino
Psicóloga (Universidade Federal da Bahia) especialista em Saúde Mental pela Residência Multiprofissional da Universidade de Pernambuco. Psicóloga no CAPS AD Eliane Aguiar (SMS/Paulista-PE). Militante do Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial Libertando Subjetividades – RENILA.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6799-130X
E-mail: gessicaquino@hotmail.com
Halina Cavalcanti Gouveia
Militante do Núcleo Estadual de Luta Antimanicomial Libertando Subjetividades – RENILA. Especialista em Saúde Mental pela Residência Multiprofissional da Universidade de Pernambuco; Mestranda do Programa de Política Pública de Saúde da Fiocruz; Assistente Social no Serviço de Apoio a Mulher Wilma Lessa / HAM-SES e no Consultório na Rua / SMS - Recife-PE.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4200-1813
E-mail: halina.cg@gmail.com
Alanna Figueiroa Valentim
Psicóloga (Universidade Federal de Pernambuco). Dançarina. Especialista em Saúde Mental pela Residência Multiprofissional da Universidade de Pernambuco. Mestra em Saúde Coletiva pelo IAM/FIOCRUZ. Integrante da Equipe de Desinstitucionalização de Pernambuco. Militante do Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial Libertando Subjetividades – RENILA.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0554-3966
E-mail: alannafigueiroa@gmail.com

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