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Psicologia para América Latina

versão On-line ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.36 México jul./dez. 2021

 

A Escuta Territorial na Construção de Dispositivos Clínicos em Situações Sociais Críticas

 

The Use of Territorial Listening in the Creation of Clinical Devices for Critical Social Circumstances

 

Escucha Territorial en la Construcción de Dispositivos Clínicos en Situaciones Sociales Críticas

 

 

Bianca S. LapaI; Marina B. RoganoI; Carolina A. RodeI; Alexandra W. NigriI; Emília E. BroideII; Gabriela PiccininI; Helena B. G. AlbuquerqueI; Jorge BroideI; Patrícia B. de LimaI; Thiago E. BragaI; Ulisses A. M. NetoI

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo
IIUniversidade de São Paulo – SP

Contato com os autores

 

 


RESUMO

Este trabalho narra a experiência de um coletivo de psicologia na construção de um dispositivo clínico público em um centro assistencial, com o objetivo de cuidar das demandas psicológicas dos seus atendidos e funcionários. As noções de transferência e escuta territorial foram usadas como metodologia. A construção de uma psicologia nas situações sociais críticas, não-hegemônica e comprometida socialmente, perpassa a construção de uma nova práxis, condizente com a realidade social apresentada no território, ao buscar resgatar a condição de sujeitos de direitos e trabalhar com a redução da desigualdade. Conflitos e contradições foram ferramentas para a construção de um dispositivo clínico que procura dar voz às potências subjetivas, garantindo um lugar de fala aos sujeitos silenciados por suas condições de vida precarizadas. Através da escuta das vidas em situações sociais críticas, presenciou-se a recuperação da dignidade dos sujeitos de desejos e direitos.

Palavras-chave: clínica pública; dispositivos clínicos; escuta territorial; psicanálise.


ABSTRACT

This article describes the experience of a group of psychologists in developing a free clinic device at a community healthcare facility, with the objective of providing assistance for the psychological needs of the population served and the institution employees. The concepts of transference and "territorial listening" were used in the methodology. The creation of a non-hegemonic psychology work, engaged socially, involves creating a new-praxis, lined up with the social reality presented and involves searching for ways to ensure rights and minimize social disparity. Conflicts and contradictions were utilized as means for the creation of this clinical device, enabling self empowerment, and assuring to people who have been silent by consequence of their precarious life conditions a place they could be listened to. By the use of this device of psychoanalytic listening, we witnessed a recovery of dignity, rights and desires on the people assisted.

Keywords: public clinic; clinical devices; territorial listening; psycanalises.


RESUMEN

Este trabajo cuenta la experiencia de un colectivo de psicología durante la construcción de un dispositivo clínico público en un centro asistencial, que tiene como objetivo acoger demandas psicológicas de sus frecuentadores y funcionarios. Como metodología, se usaron las nociones de "transferencia" y "escucha territorial". Crear una psicología en las situaciones sociales críticas, heterogénea y socialmente comprometida, exige la construcción de una nueva práctica, que sea coherente con la realidad social presente en el territorio, en cuanto se busca rescatar la condición de sujetos de derechos y reducir la desigualdad social. Los conflictos y contradicciones fueron herramientas para construir un dispositivo clínico que busca darles voz a las potencias subjetivas, garantizando un lugar de palabra a los sujetos silenciados en sus condiciones precarias de vida. Por la escucha de las vidas en situaciones sociales críticas, se concretizó la recuperación de la dignidad de los sujetos de deseos y derechos.

Palabras clave: clínica pública; dispositivos clínicos; escucha territorial; psicoanálisis.


 

 

Introdução e Justificativa

Em 2019, foi criado um coletivo de psicólogos recém-formados e de estudantes de psicologia engajados em atender pessoas em situações sociais críticas, movidos pela compreensão ética de que a psicologia precisa se reinventar, atingindo espaços e pessoas excluídas dos modelos tradicionais de atendimento psicológico. A prática do coletivo em questão procurou articular diversos saberes à escuta psicanalítica, tanto no atendimento direto às populações vulneráveis quanto na oferta de cuidado aos cuidadores da comunidade que trabalham diretamente com direitos humanos.

Apostando em uma parceria com um centro assistencial, o projeto de uma clínica pública foi se formando a partir de suas principais propostas: a capacitação dos profissionais da instituição, e a oferta de atendimentos clínicos à população que a frequenta, assim como aos seus trabalhadores. Construiu-se, então, uma clínica a partir de perspectivas próprias e condizentes com a realidade social que se apresentava nos entornos de um bairro de extrema vulnerabilidade social.

A equipe é composta por nove membros, sendo dois psicólogos e sete estudantes de psicologia, além de dois supervisores (Jorge Broide e Emília Estivalet Broide). Como psicólogos latino-americanos, movidos por uma psicologia social, crítica e comprometida com os direitos humanos, a atuação do grupo no território opera através de um fazer ético-político diretamente relacionado às transformações individuais e da subjetividade coletiva, garantindo uma escuta atenta às questões sociais que atravessam os sujeitos vulnerabilizados (Rey, 2007). Afinal, atender aos setores populares envolve mudar também os modelos e instrumentos hegemônicos de atendimento a partir da escuta da realidade social que se apresenta (Martín-Baró, 1996).

Assim, a urgência de uma escuta qualificada do sofrimento, diante da violência urbana e de condições de vida precárias, fortemente afetadas pela desigualdade social, pobreza, racismo, machismo e violência policial, foi o que impulsionou a formação da equipe e fez deste trabalho relevante e necessário desde o princípio. Partindo da noção de que o processo saúde-doença se constitui pelo social, sendo multideterminado tanto por questões materiais quanto por processos individuais dos modos de interação com a realidade, a própria produção de saúde mental visa convocar os sujeitos às ações transformadoras da realidade que adoece o tecido social. Soma-se, portanto, a esse processo de resgate material da dignidade humana, a recuperação dos indivíduos enquanto sujeitos de direitos que, uma vez revitalizados, se reconheçam em sua força político-social de alteração do meio em que vivem. Isso porque a conceituação da subjetividade enquanto uma dimensão social permite a criação de alternativas ao percurso histórico-pessoal que altere, também, os rumos sociais da civilização, pela criação, por exemplo, de outros sentidos e significados, que gerem tensão aos valores hegemônicos estruturais da sociedade ocidentalocêntrica, elitista, branca e heterocisnormativa atual (Mori & Rey, 2012).

Com isso, partindo, de uma articulação teórico-prática entre saúde-sociedade-subjetividade, o trabalho desenvolveu-se orientado pela metodologia da escuta territorial (Broide & Broide, 2016), em que, através da escuta das relações conscientes e inconscientes presentes na instituição, e advindas da própria cidade, seja possível uma investigação clínica dos fenômenos sociais presentes nos discursos dos sujeitos. Além do mais, a própria escuta nos atendimentos grupais e individuais que, uma vez pautada em uma perspectiva teórico-prática que reposiciona o saber e a práxis nos sujeitos das maiorias populares, opta por acompanhá-los no seu caminho histórico em direção à libertação, tendo como horizonte de trabalho a conscientização destes sujeitos, a fim de apoiá-los no processo de superação de suas identidades alienadas, transformando as condições opressivas de seus contextos (Martín-Baró, 1996).

Os processos de intervenção em curso dizem respeito à criação de uma rede de apoio e acolhimento em que o sujeito possa enfrentar o vazio, o desconhecido e o não-saber, para então tomar as rédeas da sua vida, construindo um saber crítico sobre si mesmo, sobre seu mundo e sobre sua inserção neste — podendo assim, dizer a palavra da sua existência, escrever a própria história, que é pessoal, mas, sobretudo, coletiva. Dizem respeito, também, a suportar um vazio de onde o saber possa emergir, em que haja a circulação do afeto e da palavra, fazendo aparecer um sujeito de desejos tanto quanto um sujeito de direitos. O trabalho visa, portanto, muito mais do que uma mera análise psicológica da conduta — o comportamento observável —, mas sim a da consciência humana: caracterizada não só pelo âmbito privado do saber e sentir subjetivo dos indivíduos, mas também pelo aspecto de que cada pessoa encontra o impacto de seu ser e de seu fazer refletido na sociedade. Tudo isso a fim de garantir o resgate dos sujeitos enquanto membros de uma coletividade (Martín-Baró, 1996). Afinal, uma vez que as narrativas são retiradas da invisibilidade, estas passam a ser também reflexões (inclusive de seus sufocamentos), sendo o espaço terapêutico uma ferramenta potente de ação política e subjetiva.

A partir disso, passam a emergir e ganhar voz as ranhuras causadas por um espaço geográfico globalizado (Santos, 1996): subjetividades constituídas e apoiadas a partir da lógica do consumo como aquilo que lhes constitui. A atuação da equipe busca produzir um furo nessa lógica e subvertê-la subjetivamente, para que os sujeitos possam reorientar seus desejos a partir de algo menos colonizador do que a lógica capitalista. Nesse hiato que se produz entre quem se é e o que se consome, é possível estabelecer um diálogo entre sujeito de desejo e sujeito de direitos. Reconhecer-se como alguém que pode desejar é a única possibilidade de resistir, de se reafirmar como uma existência potente, e que pode constituir coletivos, estes sim, capazes de provocar mudanças sociais em grande escala. Mas, se as relações estão laceradas, com sujeitos roubados de suas palavras, a constituição de algo dessa ordem é muito mais difícil; e através da psicanálise se faz a aposta de reconstituir esse tecido, utilizando a fala como ferramenta de costura.

É , portanto, pela construção de um dispositivo clínico coerente e adequado à atuação em situações sociais críticas, consolidando-se enquanto um modelo clínico transformador, que é firmada a atuação da equipe na redução da desigualdade social. Trata-se de uma atuação comprometida com as populações vulneráveis que perpassa não só a consideração do contexto social, enquanto um panorama que constrói seres sociais, mas, para além disso, um adentramento transferencial à realidade, que permita uma atuação direta nos conflitos — visto que isso possibilita não só falar sobre as misérias, mas estar na miséria e vivenciar a desigualdade, agindo sobre ela. Sendo assim, isso é se deparar com a urgência social em si e suportar, junto ao sujeito, o mal-estar que determinadas condições causam, abrindo a possibilidade para que se repensem práticas, construções e expectativas a partir desse lugar.

Tudo isso é constituído através da relação transferencial estabelecida entre analista e atendido, através dos discursos dos sujeitos apoderados de suas vidas, detentores da palavra e de seu lugar no mundo — os quais, agindo através do pertencimento e reconhecimento, operam diferentemente sobre sua realidade. Mas, para que isso ocorra, é imprescindível que os psicólogos estejam atentos à escuta dos fenômenos sociais, garantindo que eles apareçam e que a vida pulsante se apresente ao vivo e a cores.

 

Problema/Objetivos

O objetivo geral do projeto consiste em atender a demanda do centro assistencial, e oferecer aos seus atendidos e funcionários o serviço de acompanhamento psicológico gratuito através da estruturação de uma clínica pública de psicologia que ofereça diversas modalidades de atendimento: psicoterapia, psicoterapia breve e grupos operativos — tendo sempre em vista um olhar que leve em conta a situação de vulnerabilidade social envolvida nos casos. Já como objetivos específicos, o trabalho visa auxiliar a instituição a compreender as necessidades dos moradores do território relacionadas ao sofrimento emocional que apresentam, e promover um espaço de escuta das angústias e dificuldades vivenciadas.

O acesso difícil e precário a outros dispositivos públicos de saúde acabou por consolidar essa instituição como um dos pontos de referência do território, lugar onde acabaram aparecendo todas as nuances desses sujeitos, incluindo seus sofrimentos. Tendo a instituição rapidamente se dado conta de que era necessário algum tipo de ação diante de situações tão urgentes, a equipe foi solicitada para pensar a criação de um dispositivo clínico que se adequasse a essa demanda.

O foco é criar um espaço seguro para que os sujeitos possam falar de suas dificuldades. A desigualdade social e as suas diversas intersecções, somadas ao desmonte de políticas públicas essenciais, causam efeitos psicossociais profundos nos sujeitos, que raramente têm possibilidades de narrar isso. A finalidade, portanto, do trabalho, é chegar ao seio do território e poder ouvir aqueles que experimentam na pele a desigualdade social e o desrespeito aos direitos básicos de existência, desenvolvendo, para isso, ações consistentes que não reproduzam a exclusão, mas sim que efetivem alternativas de saída da situação de sofrimento e vulnerabilidade (Broide & Broide, 2016).

O que se pretende é fortalecer as relações entre os sujeitos, e abrir espaço para que falem de outros lugares – lugares potentes e subjetivados, sendo a escuta sempre orientada para o que é possível restituir dos direitos, diariamente desrespeitados, desses sujeitos. Trata-se de possibilitar que eles se apropriem de suas histórias e comecem, a partir daí, a abrir espaço no coletivo para aquilo que é do campo dos seus desejos.

 

Método

Orientados pela ideia de um trabalho crítico – e também seguro – em que os sujeitos possam se colocar de maneira integral, foi pensada a criação de um dispositivo clínico que permita à equipe ter instrumental para lidar com as situações de urgência que se impõem em situações sociais críticas. O trabalho é, assim, conduzido a partir das noções de ancoragem, transferência e escuta territorial (Broide & Broide, 2016), buscando um modo de operar que melhor se adéque à realidade social em questão, garantindo tanto o sigilo quanto um comportamento profissional ético, para que as questões sejam abordadas de maneira a proteger e ampliar as relações de contiguidade do território. O processo de elaboração do dispositivo clínico contou com vários momentos destrinchados aqui em etapas. Cada uma delas é importante na medida em que fornece dados sobre as relações do território e os sujeitos que o habitam.

Etapa I – Mapeamento territorial

Fase I – Escuta da demanda. Reunião com a diretora da instituição para entender a demanda do trabalho, pactuar a metodologia e estimar o tempo do projeto.

Fase II – Planejamento do cronograma e divisão de tarefas entre a equipe.

Fase III – Realização da metodologia de escuta territorial. Entrevistas individuais e grupais realizadas com os gestores e funcionários do centro assistencial. A pergunta disparadora das entrevistas indagava o que as pessoas entendem como possíveis contribuições de uma equipe de psicologia atuando na instituição. Relacionava-se também com uma escuta mais ampliada das questões sociais e das dificuldades emocionais, os impactos de estar em um território de extrema vulnerabilidade socioeconômica e as principais adversidades da comunidade do território.

Fase IV – Registro do levantamento empírico realizado, acompanhado de reuniões semanais com os coordenadores da equipe para análise das entrevistas e organização da metodologia de trabalho.

Fase V – Aperfeiçoamento teórico da equipe técnica. Leitura de textos, com intuito de promover reflexões e o estudo da psicanálise nas situações sociais críticas, em diagnósticos institucionais e em contextos grupais.

Etapa II – Diagnóstico e elaboração do dispositivo clínico a partir da escuta territorial

Fase I – Sistematização dos dados obtidos a partir de um olhar psicanalítico e crítico. Tal olhar diagnóstico possibilitou a formulação de hipóteses sobre os desafios que se repetem no cotidiano, bem como a criação de estratégias alternativas de enfrentamento a essas questões.

Fase II – Elaboração do dispositivo que será utilizado para enfrentar as questões diagnosticadas. O dispositivo consiste na ferramenta ou modelo de trabalho da equipe que mais se adéqua às necessidades identificadas. Planejamento das ações que serão executadas, considerando os meios disponíveis e a logística mais eficaz para o contexto.

Fase III – Confirmação da pertinência e viabilidade do dispositivo. Conversas marcadas com atores institucionais já entrevistados, para expor as ideias do dispositivo planejado, buscando uma elaboração coletiva. A partir do que foi compreendido, seguiu-se construindo em cima do delineamento inicial dos dispositivos.

Fase IV – Apresentação da proposta final de dispositivo para aprovação da diretora da instituição.

Fase V – Preparação da implementação do dispositivo. Seleção de novos membros para expandir a equipe e realizar nova distribuição de tarefas; organização dos espaços de atendimento e divulgação do trabalho; preparação das salas de atendimento no centro assistencial; elaboração de flyers de divulgação; realização de plantão para recebimento das inscrições dos funcionários; conversas com os profissionais do serviço de medidas socioeducativas para avaliação do encaminhamento dos adolescentes, juntamente com a realização de visitas domiciliares para melhor entender a realidade dos atendidos.

Concomitantemente, percebeu-se a necessidade do desenvolvimento de diferentes dispositivos de atendimento, para dar conta das demandas da instituição e do território. Para os funcionários, o dispositivo mais adequado era o de atendimento individual — afinal, pôde-se perceber que havia uma demanda de escuta de conteúdos que não seriam ditos em grupo (em função das relações institucionais estabelecidas); assim como para os adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas, pois estes já participavam de grupos pelo centro assistencial. Já para a comunidade, percebeu-se que um dispositivo grupal seria mais adequado, contribuindo para a contiguidade do território. Assim, foram utilizados os significantes mencionados como temáticas para os grupos, servindo igualmente para diferenciar os públicos-alvo.

Com todo esse trabalho realizado, e os atendimentos ocorrendo, a equipe foi surpreendida pela pandemia do novo coronavírus, que impossibilitou a presencialidade das tarefas. Todo o conhecimento reunido ao longo desses meses foi novamente mobilizado para pensar a reorganização da estrutura do dispositivo, seguindo o esforço de mantê-lo coerente com a meta de atuar nas urgências, que certamente se tornariam ainda mais agudas com uma pandemia. Isso constituiu uma nova etapa de trabalho, com fases muito próprias e singulares, que produziram muita reflexão nas possibilidades de atuação e reinvenção necessárias dos psicólogos nas situações sociais críticas.

Etapa III – Readaptação do trabalho devido à pandemia da covid-19

Fase I – Reorganização do dispositivo clínico devido à urgência do trabalho em situações sociais críticas. Elaboração de proposições de como transformá-lo em um modelo apto e de qualidade, agora no modelo de atendimentos remotos. Adiamento do trabalho com adolescentes em conflito com a lei, devido à importância do vínculo em um momento em que esse é insípido.

Fase II – Estruturação do novo modelo clínico com três frentes de trabalho: os atendimentos individuais online, oferecidos a todos os funcionários da instituição; o plantão de atendimentos online (psicoterapia ou psicoterapia breve), para o acesso e cuidado das demandas da população do entorno do centro assistencial, visando alcançar o território das favelas do entorno; e os atendimentos grupais a diferentes públicos-alvo, agora com uma readequação das temáticas, devido à mudança das demandas e da realidade de ação.

Fase III – Organização dos grupos, separados por públicos-alvo: o grupo de mães e pais do Centro de Educação Infantil (CEI) da instituição; o grupo de funcionárias do CEI; e o grupo de funcionárias do Centro de Crianças e Adolescentes (CCA).

Fase IV – Execução do novo modelo clínico. Preparo de formulários de inscrição (separados por frente de trabalho e grupos) e de conteúdos, em formato de vídeo e flyers, que explicassem a proposta do trabalho, incluindo enquadre, objetivos e a importância do cuidado com a saúde mental em meio à pandemia. Divulgação destes através dos grupos de WhatsApp que os diferentes equipamentos mantêm com seus usuários e funcionários, assim como na disposição dos flyers dentro das cestas básicas distribuídas pelo centro assistencial.

Etapa IV – Registro

As modalidades de registro das ações realizadas foram crônicas e vinhetas clínicas. As crônicas são relatos pessoais dos membros da equipe, nos quais constam impressões, reflexões e sentimentos suscitados durante as ações, registrando os fatos, não apenas na camada mais objetiva, mas também incluindo uma análise interpretativa e subjetiva do ocorrido. Já as vinhetas clínicas são cenas dos atendimentos terapêuticos que os sintetizam de forma potente, ressaltando o que há de mais relevante e marcante nos diálogos e nas falas dos atendidos. Além disso, há a elaboração de relatórios para o centro assistencial. Tudo isso, respeitando os critérios éticos e de sigilo da profissão.

 

Discussão

Plantão de atendimentos online

Ao oferecer a modalidade de plantão de atendimento para a população dos arredores do centro assistencial, a equipe contribuiu para a demanda social que se apresentava frente à pandemia do novo coronavírus, capilarizando as frentes de trabalho para dentro da periferia. Além de ser coerente com as demandas circunstanciais de saúde mental em um cenário pandêmico, a escolha pelo plantão foi pertinente às urgências já colocadas. Possibilitou-se que os moradores da região pudessem compartilhar as angústias vividas, sejam essas originadas em etapas anteriores da vida, e que eventualmente se ampliaram durante o isolamento social, sejam essas mais recentes, suscitadas pela própria pandemia do novo coronavírus. Tal dispositivo clínico operou como um convite à fala em um momento de crise, e pôde se desdobrar em atendimentos psicoterapêuticos extensos ou focais, conforme a demanda de cada um.

O plantão de atendimentos se propagou por meio de diferentes formas de divulgação semanal do formulário de inscrição (via vídeo, flyers online e entregue nas cestas básicas), o que resultou em mais de 300 pessoas contatadas no período de um ano, incluindo idosos, adultos, adolescentes e crianças. Houve um esforço da equipe, para o êxito do plantão, em desconstruir a ideia de que "terapia é coisa de doido". Entre as principais questões tratadas, é possível citar: as dificuldades em relação à maternidade (advindas de mães sobrecarregadas pelo desamparo em que vivem); o medo de contágio e transmissão do novo coronavírus (aumentado pelos fatores de risco como a diabetes, a obesidade, a impossibilidade de fazer isolamento social, a necessidade de se manter trabalhando e etc); as dificuldades no convívio familiar, incluindo violência domiciliar; o estresse com a sobrecarga de trabalho; perseguição policial, entre outros. Alguns dos sujeitos eram extremamente afetados pela vida na favela, povoada por violências. Explicitando a imersão na desigualdade social que a relação transferencial permite, o trecho a seguir escancara o alcance possível de uma prática comprometida e responsável socialmente:

J. na primeira sessão, ao ligar sua câmera de celular, me coloca dentro de seu mundo do modo mais concreto possível. Conta sobre as dificuldades que enfrenta, a ideação suicida e o pesar que sente ao ver que sua filha poderá sofrer com as diversas mazelas sociais. Me mostra as paredes de seu barraco e diz que são finas demais, a qualquer momento o tiro pode atravessar, e em um instante de explosão, de raiva, começa a bater seu celular na parede para que eu note o quão fina essas paredes que lhe sustentam são.1

Atendimento individual online dos funcionários

Os atendimentos aos profissionais da instituição foram iniciados antes da pandemia e se mantiveram remotamente para os que assim desejaram, sendo expandidos através da divulgação de um formulário exclusivo para os funcionários durante a pandemia. Inscrições e atendimentos continuaram ocorrendo durante todo o ano de 2020, totalizando 10 trabalhadores atendidos individualmente. Com esta frente de trabalho, foi possível a construção do cuidado aos cuidadores da comunidade – acolhimento dos funcionários –, que estabeleceu também um cuidado à instituição, o qual, dialeticamente, permitiu o adentramento aos cuidados da favela. Devido à delicadeza que estes trabalhos exigem, e a constante exposição a situações de violência, vulnerabilidade e desigualdade social, muitos destes atendimentos perpassaram a questão do trabalho e de sua sobrecarga, além de assuntos de ordem pessoal.

Grupos online

A equipe optou por esta forma de dispositivo para o atendimento dos funcionários do CEI, dos familiares do CEI, e dos funcionários do CCA. Nem todos esses grupos já tiveram seu início formal, dado que diversas reuniões e entrevistas são necessárias para que o trabalho se estruture, conforme explicitado nos processos de intervenção.

A proposta de realizar um grupo com as funcionárias do CEI partiu de entrevistas com a diretora desse serviço, que alertou para as vulnerabilidades nas quais as profissionais estavam inseridas. Após a divulgação de formulário online, a equipe recebeu 11 inscrições, mas teve seis participantes frequentemente presentes. Foi oferecido um espaço de acolhimento das angústias relacionadas à volta às atividades presenciais, e de reflexão sobre as possíveis estratégias de atuação neste contexto.

O grupo teve início em setembro de 2020, pois a retomada das atividades presenciais com as crianças estava, inicialmente, prevista para outubro. Para o atendimento das funcionárias, tal dispositivo se mostrou ideal durante a pandemia, pois além de estarem apartadas umas das outras, precisando repensar a prática laboral à distância, as angústias que as afligiam eram semelhantes. Essas circulavam em torno do receio de retornar às atividades presenciais, se contaminar, e disseminar aos entes queridos a covid-19. Ao mesmo tempo, as trabalhadoras do CEI se dão conta dos desafios de realizar o trabalho com as crianças enquanto se respeita os protocolos de segurança sanitária, trazendo de forma contundente as contradições e os temores de não conseguir conciliar as medidas de segurança com a afetividade que media a prática pedagógica. Trouxeram também angústias relacionadas à ansiedade frente ao manejo com as famílias atendidas, igualmente abaladas pela pandemia.

Cabe salientar que esse tipo de situação, que envolve a renúncia dos ideais estabelecidos sobre o trabalho, faz emergir sentimento de impotência, castração e desamparo, resultando em angústia e medo nos envolvidos. Reconhecer esses limites, e até ponderar sobre a função protetora que o medo pode ter, foi fundamental para pensar práticas conciliadoras, responsáveis e autônomas, sem recair em polaridades: cuidar das crianças e bebês, a despeito dos protocolos de segurança, ou paralisar-se frente ao medo de contágio.

O grupo do CCA, por sua vez, tinha uma demanda diferente em alguns pontos. Com a maioria dos seus funcionários já trabalhando em jornadas reduzidas, o medo de contágio por covid-19 não aparecia como algo em questão. O que era destacado, quando procuramos investigar as razões e meios para um possível trabalho, era a preocupação da inviabilidade do contato com as crianças e adolescentes, já que a expressão de afeto à distância aparecia como algo muito improvável. A saúde e bem estar deles, vivendo em meio à comunidade, também era uma preocupação que existia anteriormente, mas que se intensificava agora com o risco de contaminação. O trabalho, já normalmente desafiador e delicado, tornou-se ainda mais, e foi proposta a ideia de um grupo de escuta para esses profissionais.

 

Conclusão

A experiência de trabalho relatada ao longo deste artigo reafirmou a hipótese da equipe de que havia uma demanda urgente por escuta psíquica, tanto no centro assistencial, como em seus arredores. Amparados pelos princípios da clínica ampliada (Wagner, 2002), da psicologia social e da psicanálise nas situações sociais críticas, a equipe deu um passo em direção a um atendimento das vulnerabilidades da população da favela em questão, reconhecendo que ainda há articulações a serem feitas. Verificou-se também a eficácia da metodologia da escuta territorial para a construção de dispositivos clínicos, pois esta permitiu que a equipe entrasse em contato com o território e, assim, capturasse no ar aquilo que pulsa nele através da livre associação dos sujeitos em suas falas (Broide & Broide, 2016).

Lidar com os relatos de dores, misérias e traumas faz com que o psicólogo social não somente compreenda as diversas relações histórico-sociais que se colocam e se contradizem nos fenômenos apresentados, possibilitando o entendimento das determinações dos indivíduos, mas, principalmente, entenda como os sujeitos se inserem no território, a partir de qual posição subjetiva, e como se tornam agentes da história, capazes de transformar a sociedade em que vivem (Lane, 2006).

A escuta do inconsciente, que também perpassou todo o trabalho, permitiu a elaboração de algo que pouco aparece em outras situações: que as pessoas pudessem se colocar não só a partir de seus direitos, mas também com seus desejos. Concretizava-se, assim, o que chamamos por psicanálise nas situações sociais críticas: aquilo que, da psicanálise, pode não só conversar com a clínica ampliada e psicologia social, mas instaurar algo de novo dentro da busca do empoderamento dos sujeitos de direito.

Ao ouvir as pessoas falarem sobre suas dores — além das potências, sonhos e projetos — o psicanalista e o espaço terapêutico promovem a possibilidade de falar e ouvir de si. A escuta clínica cria um campo de reflexão e ponderação sobre a própria vida e as condições em que esta se dá, o que pode auxiliar os sujeitos a encontrarem, entre outros fatores, formas possíveis de enfrentamento à desigualdade social; meios de resistência às diversas formas de violências sofridas, que acabam sendo incorporadas e reproduzidas; maneiras de desfazer-se dos entrelaçamentos entre a vivência de experiências de subalternidade e as consequentes dimensões subjetivas de subcidadania, empoderando-se na busca por direitos; além de desenvolver a autonomia e apropriação dos sujeitos sobre suas vidas (Santos, Mota, & Silva, 2013).

A forma como os atendimentos ocorreriam eram discutidas em conjunto com o sujeito, levando-se em consideração as condições materiais e subjetivas de cada um, ou seja, atentando-se para os dispositivos móveis presentes, a conexão à internet, os horários de trabalho, a quantidade de residentes na casa e a possibilidade de privacidade, para que a pessoa se sentisse à vontade durante o atendimento, em um espaço seu, apesar de compartilhado com outras. Isso foi possível graças ao vínculo terapêutico que se estabelecia em cada situação e à delicadeza no manejo, dentro de possibilidades tão particulares, para que ainda assim houvesse a escuta do sofrimento. Longe, portanto, de ingressar em simples cenas familiares, mas aceitando o convite de submergir nas complexas relações de todo um território.

Entendeu-se que quanto mais exigências da clínica tradicional se impusessem aos atendimentos (que os atendidos buscassem estar sozinhos, que não fossem interrompidos, etc), maior seria a exclusão de determinadas pessoas, que não poderiam garantir o espaço terapêutico nesses moldes, e também das temáticas possíveis. Ademais, vale ressaltar que a atuação nas situações sociais críticas não pressupõe a simples transposição do modelo clínico do consultório particular, mas sim sua expansão para outros modelos de intervenção.

Além disso, as diferenças de classe e raça entre os terapeutas e atendidos demonstrou as rachaduras de uma sociedade dividida, ao mesmo tempo em que se buscou integrar um campo comum, em que tais diferenças pudessem ganhar espaço de fala, abrindo para a potência transformadora das palavras em ato. As reflexões sobre essas diferenças e a imersão nas cenas cotidianas dos atendidos foram importantes combustíveis para movimentar as compreensões e práticas psicológicas no cuidado de si e dos outros à sua volta.

Portanto, pelo trabalho realizado, buscou-se convidar sujeitos silenciados a falarem de si e de sua condição, promovendo dignidade às narrativas e histórias de vida. Conforme Vieira e Romagnoli, "o trabalho . . . funciona como um espaço de inclusão dos discursos excluídos, proibidos, interditos na sociedade" (2018, p. 125), algo que de fato a equipe presenciou no seu movimento de capilarização da entrada na favela. Afinal, ter a oportunidade de vivenciar espaços de troca de ideias e elaboração é invariavelmente transformador para quem vive questões sociais avassaladoras diariamente.

o plantonista se depara com a escuta do inesperado, com a escuta do inconsciente que, no centro da repetição, insiste para que seja escutado. Espera-se que, ao mesmo tempo em que é escutado pelo plantonista, o próprio indivíduo que fala se escute e que esta escuta possa, de alguma forma, contribuir para que o sujeito se reposicione ou ressignifique o motivo que o fez procurar o plantão psicológico. (Daher et al, 2017, p. 156).

Assim, é pela concretização de um espaço de fala que os sofrimentos, tanto existenciais quanto sociais, puderam ganhar forma, garantindo uma escuta do sujeito em relação a si mesmo, que o recolocou em sua própria narrativa e, consequentemente, em sua posição de classe, raça e gênero. Essa possibilidade de ingressar verdadeiramente na realidade subjetiva do território, a partir de uma escuta ética, foi o que garantiu que um vínculo fosse formado e que a transferência se estabelecesse — transferência essa primordial no espaço de escuta. Essas medidas procuravam garantir coisas tão imprescindíveis quanto à possibilidade dos atendidos terem seu sofrimento escutado e validado, para então ser transformado.

 

Referências Bibliográficas

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Contato com os autores:
Rua Ministro Godoy, 1270, Perdizes
São Paulo-SP, Brasil
CEP: 05015-001
Telefone: (11) 97370-5251

 

 

Nota dos autores:
Todos os autores, atualmente, são membros da equipe SUR Psicanálise e Intervenção Social.
Sobre os autores:
Bianca S. Lapa
Graduada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é atualmente membro da SUR Psicanálise e Intervenção Social, onde atua em projetos de atendimento a população em situações de vulnerabilidade social e clínica pública. Psicóloga e psicanalista em consultório particular, integrou projeto Conectando mulheres – defendendo direitos em parceria com rede SUR e Instituto AMMA Psique e Negritude pela defesa de mulheres defensoras de direitos humanos.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0908-6272
E-mail: spinolabiancalapa@gmail.com
Marina B. Rogano
Graduada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É membro da Rede Sur Psicanálise e Intervenção Social, na qual realiza atendimentos a população em situação social crítica e desenvolve dispositivos clínicos.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1547-6293
E-mail: marinarogano@gmail.com
Carolina A. Rode
Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Realizou o Curso de Extensão "A construção de dispositivos psicanalíticos nas situações sociais críticas". Na área da saúde coletiva, é escritora do capítulo "E no meio do caminho teve uma pandemia... e sobre como estamos preparando nossos profissionais da saúde para trabalhar no mundo real", no livro intitulado "Dispositivos de cuidado e formação em saúde". Atua como psicóloga na SUR Psicanálise e Intervenção Social.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8018-1037
E-mail: carolina_cnb@hotmail.com
Alexandra W. Nigri
Psicóloga graduada na PUC-SP. Coordenadora do Projeto Juntos (SUR), Psicoterapeuta de grupo no ambulatório para dependências químicas no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8941-4896
E-mail: nigri.alexandra@gmail.com
Emília E. Broide
Psicanalista, Mestre em Saúde Pública pela USP; Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP. Pôs-doutoranda em Psicologia Clínica pela USP. Supervisora e assessora nas áreas da saúde, assistência social e educação. Co-coordenadora da SUR Psicanálise e Intervenção Social. Autora de vários livros e artigos na área da psicanálise.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6992-8312
E-mail: emilia_bro@uol.com.br
Gabriela Piccinin
Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro da Rede SUR – Psicanálise e Intervenção Social.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4875-4990
E-mail: gabipiccininn@gmail.com
Helena B. G. Albuquerque
Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro da Equipe de Atendimento SUR – Psicanálise e intervenção Social.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7673-2396
E-mail: helenabalbachevsky@gmail.com
Jorge Broide
Psicanalista, analista institucional, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC de Campinas, Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Co-coordenador da SUR Psicanálise e Intervenção Social. Professor do Curso de Psicologia da PUC-SP, coordenador do curso de especialização Psicanálise nas situações Sociais Críticas no COGEAE da PUC-SP. Professor convidado do Curso de Pós-graduação em Psicologia Social da USP. Vários livros e artigos publicados no Brasil e na Argentina. Trabalha desde 1976 com diferentes situações sociais críticas.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5616-5312
E-mail: jorgebro@uol.com.br
Patrícia B. de Lima
Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, membro da Equipe de Atendimento SUR – Psicanálise e intervenção social. Aprimoranda no Instituto Sedes Sapientiae, e acompanhante terapêutica pelo Instituto A Casa.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8051-7701
E-mail: patriciabrandaodelima@gmail.com
Thiago E. Braga
Psicólogo e Mestrando em Filosofia pela PUC-SP. Membro da rede SUR psicanálise.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9578-3017
E-mail: tg.thiago@uol.com.br
Ulisses A. M. Neto
Psicólogo formado pela PUC-SP e psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae. Integrante do projeto SUR Psicanálise e Intervenção Social e psicoterapeuta na clínica particular.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1889-2735
E-mail: ulissesamn@gmail.com
1 O trecho em questão não se localiza em nenhuma referência bibliográfica, pois se trata de uma produção interna das anotações dos atendimentos realizados dentro do projeto, a partir do modelo de escrita das vinhetas clínicas.

 

 

Anexo I – Memorial

Antes mesmo de qualquer intervenção, a demanda para o trabalho já era desafiadora: atender a população de um bairro dentre os mais violentos da capital de São Paulo de uma maneira que realmente produzisse transformações nesse cenário. Tarefa delicada que exigia, ao mesmo tempo, firmeza e sutileza. Mesmo com o tecido social bastante esgarçado, algo dos laços ainda permanecia nestes territórios. Como seria possível atuar nisso, então, de forma a assegurar direitos, com o máximo respeito às subjetividades que ali se encontravam?

Apoiados e apostando em nossas melhores ferramentas — uma escuta flutuante, livre de julgamentos, afiada às desigualdades sociais e que aposta na potência de fala dos sujeitos — fomos, aos poucos, nos transformando, ao longo de um ano e meio, de uma célula estrangeira em um dispositivo clínico reconhecido e viabilizado por falas como "meus colegas me contaram que aqui tinha ótimos psicólogos, então procurei. Precisava falar".

Durante esse processo, esbarramos nos mais diversos obstáculos: institucionais, do território, pandêmicos, do abismo de classes sociais, dos diferentes modos de falar e ouvir, das diferenças entre ouvir e escutar, da estranheza que constitui nosso trabalho, da apropriação do espaço, da desconstrução de práticas psicológicas hegemônicas. A todo o momento, precisávamos nos manter atentos para sustentar o equilíbrio delicado de – apropriados dos saberes acadêmicos – fazer com que eles trabalhassem como o que os conduz e não os trava, como a carruagem, e não o cabresto.

Por vezes, escutar o sofrimento e a violência de tantas pessoas com direitos arrancados tornava difícil escapar do desejo de se esconder atrás do saber – das resistências em ouvir aquilo que traz impotência –, e, aqui, a ação dos supervisores e a troca entre a equipe eram fundamentais. Por vezes, era a possibilidade de agir e pensar coletivamente que, não só produzia as ideias que precisávamos, mas também impedia que nos perdêssemos, individualmente, em nossas angústias. Algo de um micro tecido social costurou-se entre nós, e da experiência dessa costura é que podíamos compreender outras tantas e trabalhar junto delas.

Não bastava instrumental teórico adequado, apenas. Foi preciso uma verdadeira imersão. Para entrar em contato com as veias abertas destes espaços, o corpo precisava estar presente, em carne e osso e alma. Com a pandemia, o trabalho remoto colocou uma nova questão: como abrir e co-criar esses respiros de vida em meio a tanta tragédia do outro lado de uma tela. Seguimos com a aposta de que os meses de trabalho haviam construído um vínculo entre equipe e território, de que estávamos plantando algo ali maior do que a prática cotidiana poderia visualizar (uma prática inovadora em psicologia). E as demandas que começávamos a receber eram um atestado de que agora já constituíamos um significante relevante demais naquele meio para não tornar o trabalho cada vez mais concreto frente à materialidade irremediável de vidas vividas em miséria objetiva, mas não em miséria subjetiva.

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