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Epistemo-somática

Print version ISSN 1980-2005

Epistemo-somática vol.3 no.2 Belo Horizonte Dec. 2006

 

ARTIGOS

 

As estruturas clínicas e o universo infinito

 

Clinical structures and the infinicte universe

 

 

Guilherme Massara Rocha*

Departamento de Psicologia da UFMG – Belo Horizonte/MG

 

 


RESUMO

Este trabalho retoma criticamente elementos da história do paradigma estrutural na psicanálise. A partir dessas observações, são investigados os fenômenos clínicos dos rituais obsessivos e o fenômeno de massa das raves, considerando-se a referência de Lacan à questão da voz do Outro.

Palavras-chave: Estruturas clínicas, Gozo, Mecanismo de prazer/desprazer, Clínica contemporânea.


ABSTRACT

This article takes on review historical elements of structural thought on psychoanalysis. It also investigates clinical and cultural phenomena’s, such as obsessive rituals on neurosis and subjective aspects of rave parties. Lacan´s observations concerning pleasure and un-pleasure mechanisms and its psychological consequences are theoretical substrata for the development of the argument.

Keywords: Clinical structures, Enjoyement, Pleasure/un-pleasure mechanism, Contemporary clinic.


 

 

Acreditamos muito naturalmente sermos mais capazes de
alcançar o centro das coisas que de abraçar-lhes a
circunferência; a extensão visível do mundo ultrapassa-
nos manifestamente (...) conheçamos, pois, nossas forças; somos
algo e não tudo; o que temos que ser, priva-nos do
conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada;
e o pouco que temos de ser impede-nos a visão do infinito.
(Pascal: Pensamentos, p. 57)

 

I

É Lacan mesmo, advertido por Koyrè, quem não deixou os psicanalistas perderem de vista o fato de que o discurso que sustentam - o discurso analítico - é condicionado pelo discurso da ciência moderna. Advertiu-nos Lacan que as estrelas que gravitam no universo infinito descortinado pelas lunetas de Copérnico, Galileu e Descartes, desde a aurora do século XVII, fazem signo da magnífica abóbada da ciência, sob os auspícios da qual Freud pretendeu fundar a sua própria. E é mesmo ainda sob o brilho estelar desses nomes próprios - S. Freud e J. Lacan - que se mantém coeso o discurso por eles fundado e, não menos, apesar da realidade de que as constelações de analistas que se reúnem sob a reivindicação dos mais diversos patronímicos não sejam regidas pelas mesmas coordenadas gravitacionais. Copérnico e Galileu não souberam que a luz que lhes advinha do firmamento emanava de um corpo talvez não mais existente. Essa, que é uma questão do tempo, e para o nosso tempo, a saber, aquela referente à permanência do brilho daquilo que já não é mais. Parafraseando a expressão insidiosa do diretor francês Michel Boudry, Eternal shine of a starless light - Brilho eterno de uma luz sem estrela.

Eis que a manutenção da vocação científica da psicanálise, obstinada e metodicamente perseguida por Lacan, alcança um de seus apogeus com aquilo que veio a se consagrar sob a rubrica do sintagma “estruturas clínicas”. A história que poderia ser aqui contada não faria a essa invenção de Lacan mais justiça do que aquela fixada pelo vigor de suas próprias palavras. Lacan resume os passos dessa invenção em momentos diferentes, e dirigindo-se a públicos distintos. Bastaria aqui, para ficar com dois exemplos vivos, sugerir a retomada de Radiophonie e Télévision. Seja como for, Lacan consagra-se à investigação das bases do pensamento estrutural, sobretudo aquelas inaugurais, e esboçadas pelo gênio daquele a quem ele chamava de amigo, nomeadamente, Claude Lévi-Strauss. O artigo de 1949, “A eficácia simbólica”, que Lévi-Strauss retoma dez anos depois na sua Antropologia estrutural, teria tido, para Lacan, o valor de uma descoberta. Ouçam-se os ecos dessa descoberta, ora já transmutados em conceitos-chave de seu retorno a Freud, nos textos lacanianos de 1953 – “O simbólico, o imaginário e o real” – e, mais ainda, no seminário As psicoses, de 1955-56. Já nesse tempo, a obra de Lacan parecia oferecer aos analistas fundamento conceitual de peso suficiente para sustentar um giro em seus protocolos nosológicos e em suas pretensões diagnósticas.

O paradigma estrutural lacaniano responde ainda, cabe lembrar, como uma saída possível do circuito das aporias da fenomenologia psiquiátrica cujo fundamento, demonstra Lacan, seria incompatível com a lógica dos processos de subjetivação empreendidos no seio das categorias metapsicológicas de Freud. As estruturas clínicas viriam consistir, portanto, numa promessa de reconciliação entre a direção dos tratamentos psicanalíticos e os seus fundamentos diagnósticos que - uma vez deposto o indesejável psicologismo fenomenológico que lhes contaminava - seriam ali finalmente reintegrados. Sublinhe-se, então, o vigor epistêmico desse passo, que consistiu em integrar no campo da doutrina freudiana os diversos planos de sua constituição: a teoria dos processos de subjetivação e seus resultados (traduzidos em terminologia freudiana sob a rubrica dessas três formas clínicas clássicas: Neuroses de transferência, Psico-neuroses narcísicas e Perversão); os protocolos de seu reconhecimento - o diagnóstico com base na escuta do sujeito; e a técnica psicanalítica ou, como preferiria Lacan, a direção dos tratamentos. Com esse passo, Lacan edifica uma espécie de “teoria do campo unificado” psicanalítica, e daí também, possivelmente, decorre a confiança progressiva que a comunidade formada por seus seguidores passa a ter na potência heurística de seu arsenal, e na invulnerabilidade de sua confirmação clínica.

É difícil datar até quando o brilho dessa aposta triunfa sobre as sombras de sua aparente insuficiência. Até 10 anos atrás, talvez, quando começam a surgir expressões tais como “casos inclassificáveis” ou “estados-limite”? Ou até os dias de hoje, quando a psicanálise ainda não parece suficientemente advertida dessa hiância ou, mesmo admitindo que o seja, não foi capaz ainda de concluir a reforma de seus fundamentos.

 

II

As estruturas clínicas de Lacan, designadas no escopo da tríade clássica que se suporta nos significantes Neurose, Psicose e Perversão, vêm sendo interrogadas, ou melhor, re-interrogadas. Fosse outro o acesso aqui a esse tema, e não nos poderíamos furtar a um excurso que desse mínima visibilidade à problematização dos fundamentos do paradigma estrutural, desde pelos menos os estudos de Laplanche e Leclaire, no Colóquio de Bonneval em 19601. Mas no âmbito do meio lacaniano, de forma mais ou menos responsável, ouvem-se com cada vez mais freqüência dizeres do tipo: “todo mundo delira”. A proliferação de expressões - das mais bem formuladas às mais esdrúxulas - que têm em seu horizonte a interpelação das fronteiras entre as estruturas clínicas não caminha lado a lado, contudo, com o rigor que seria exigido das investigações que as suportassem. Constate-se, ainda antes de prosseguirmos, que - salvo raras e honrosas exceções2 - a crítica à validação dos fundamentos do diagnóstico estrutural não estabeleceu, até o momento, sequer a validação convincente e suficiente da materialidade dos fenômenos clínicos que a justificaria. Pois seria admissível, pergunte-se, fundar essa crítica na hipostasia aforismática e auto-reveladora da afirmação de que “todo mundo delira”? Deduzir-se-ia, da pura imanência sugerida no fenômeno aí indicado, a redução cabal e derradeira daquilo que se reúne sob a rubrica de três distintas estruturas clínicas em uma apenas, a saber, aquela da psicose? Digamos que, ainda que seja verdade a proposição segundo a qual todo mundo delira, concluir-se daí pela destituição da qualidade formalizadora que as diferentes estruturas clínicas põem em jogo seria um passo, no mínimo, incauto e precipitado. Pela razão simples e suficiente de que o delírio, enquanto fenômeno clínico, não responde sozinho pela determinação de uma estrutura psicótica. Releia-se o capítulo sétimo do escrito freudiano O inconsciente, de 1910, para que se observe ali a descrição dada por Freud de dois pacientes obsessivos que mantêm, a despeito das vicissitudes do recalcamento, uma relação delirante com as respectivas condutas de calçar as meias e espremer espinhas (FREUD, 1989 [1910]: 240-241).

Se evocamos esse exemplo, não é senão para esboçar um efeito resultante da aposentadoria precoce do raciocínio acerca das estruturas clínicas. Admitamos que mesmo se passarmos a crer em sermos todos psicóticos, ainda assim não nos livraríamos da tarefa de explicitarmos as particularidades dos sintomas, das formações do inconsciente, das atuações e passagens ao ato, da toxicomania, das condutas perversas e psicopáticas, entre inúmeras outras vicissitudes pulsionais inerentes à práxis psicanalítica. Observe-se que a superficialidade em jogo nessa fórmula - “todo mundo delira” - não é menos perniciosa do que a dessa outra, ainda em moda entre muitos praticantes da clínica psicanalítica, e que afirma que “o inconsciente interpreta”. Essa inferência, não menos, assimilada a-crítica e dogmaticamente, resulta na absoluta falta de compromisso do analista com seu trabalho ou, dizendo mais objetivamente, com seu compromisso ético com o sujeito visado na produção discursiva de seu paciente. Não é menos lamentável do que real o fato de que o mal-entendido em jogo nessa fórmula já incitou analistas a não mais se pronunciarem diante de um relato de sonho, de um ato-falho ou de quaisquer outros elementos em jogo na produção discursiva daqueles que supostamente deveria analisar. Há quem narre até histórias de analistas que dormem, fazem lanche, digitam trabalhos ou proseiam no telefone durante as sessões, já que o inconsciente “interpreta”. Tais exemplos, pontualmente assinalados aqui, têm como horizonte nada mais do que a denúncia dos “extravios”, para dizer como Lacan, aos quais os analistas se sujeitam, e cuja medida é proporcional à sua alienação patética diante dos astros que fazem resplandecer o brilho de artifício das fórmulas conceituais. Resta saber que cálculo se pode fazer sobre o custo - para o analisante, sobretudo - de semelhante impostura.

Mas para que não se perca de vista o fio lógico desse argumento, referente ao sustentáculo do paradigma das estruturas clínicas, considere-se a materialidade daquilo que se constituiria em exceções a seu escopo de formalização. Afinal, que tipo de fenômeno não se poderia formular com o auxílio do raciocínio estrutural? Certo é que vivemos dias em que coisas inauditas se produzem com os sujeitos que analisamos. Não raro, os neuróticos “surtam”, passam ao ato, ou consomem-se no álcool, nas drogas, nas academias, nas mesas de cirurgias e demais protocolos médicos, nas parcerias amorosas e na metonímia do serviço dos bens. Não raro, os psicóticos não deliram ou, se o fazem, fazem-no como porta-vozes de engenhosas ideologias de caráter messiânico, higienista e redentor, sob o jugo das quais muitos neuróticos vêm paradoxalmente submeter sua solidão, sua melancolia e seu desamparo. E quanto aos perversos? Cada vez mais iconoclastas, mais charmosos, solícitos e prestativos. Cada vez mais polidos, e mais políticos.

Seria tudo isso a insígnia de uma revolução no campo do fenômeno clínico, cujo resultado não seria outro que aquele de sua imediata renovação conceitual? Ora, dizer que eis chegado o momento de repensar conceitos é algo que não se poderia fazer responsavelmente sem considerar, em primeiro lugar, o seguinte: em que tempo não se deveria fazê-lo? Sempre é o tempo de colocar a teoria à prova, advertia Freud em seus escritos sobre a técnica. Note-se, ainda, a prudência e a parcimônia com a qual Freud revisou sua metapsicologia - por exemplo, em 1920, diante do estranho fenômeno das neuroses traumáticas - e observe-se que as mudanças empreendidas ali, particularmente no âmbito do dualismo pulsional, não implicaram em qualquer abandono ou aposentadoria de suas perspectivas metapsicológicas mais substantivas. Reconhecer a magnitude de uma satisfação para além do princípio do prazer não destituiu o valor epistêmico da teoria do princípio do prazer, nem sequer de seus desdobramentos clínicos, como pode ser atestado na leitura de artigos tais como O problema econômico do masoquismo, ou Uma nota sobre o Bloco mágico, de 1924, redigidos após a consolidação da teoria da pulsão de morte.

Considerando-se, portanto, que a teoria psicanalítica é dotada de uma organicidade, fundada histórica e epistemicamente, talvez não seja devido considerá-la sob a perspectiva de um revisionismo à la Thomas Kuhn. E é J.C. Milner quem melhor o formula, quando assinala que os percursos de Freud e Lacan dão consistência a uma obra, e não propriamente a uma ciência. A obra, insiste Milner, é uma forma que organiza a cultura. A ciência por sua vez, obsedada pelo ideal de seu “progresso”, é marcada por uma amnésia sistemática e, com isso, sua condição é aquela de estar “fora-da-cultura”. A psicanálise, então, conclui Milner, vem interpelar essa amnésia da ciência, introduzindo no pensamento os avatares da cultura - do sujeito, portanto - que a ciência exclui para constituir-se (MILNER, 1996: 12-13). Da ciência, cumpre assinalar ainda seu fascínio pela obsolescência, traduzido numa compulsão em caducar saberes e anunciar novidades. Observe-se aí, com clareza, que a psicanálise se desqualificaria enquanto obra, na medida em que passasse a ser presidida pelo ideal da ciência. Esse extravio é justamente o que a tornaria regida pelo revisionismo descontinuísta, que se traduz em expressões do tipo “primeiro e segundo Lacan”, ou em teses como aquelas da supressão do primeiro dualismo freudiano a partir da teoria da pulsão de morte. Ou, ainda, da deposição da teoria do significante em benefício da teoria dos Nós e, indo ao limite que ora interessa, da invalidação do sistema das estruturas clínicas em benefício de uma teoria da forclusão generalizada ou de uma metafísica do Sinthome. Dir-se-ia com Milner: nada mais fora-da-cultura do que esse cientificismo que retorna, a despeito dos esforços de Freud e Lacan.

 

III

Talvez não seja inoportuno reabilitar aqui a noção de “ação da estrutura”, cunhada em artigo emblemático pelo então jovem J-A. Miller. A estrutura, lembra Miller, seria aquilo que “localiza uma experiência para o sujeito que ela inclui” (MILLER, 1996: 11). Ora, o corolário de semelhante formulação não é outro senão o de que o valor heurístico da estrutura mantém-se enquanto ela nos possa fornecer as coordenadas de localização do sujeito no âmbito da variabilidade empírica de suas condutas. A ação da estrutura por sua vez reivindica ser demonstrada, conforme distingue Miller, na medida em que “por não estar aí, [ela] rege o real”(Idem:12). Lacan mesmo, em Radiophonie, atesta que a “a estrutura é o saber que cerne o real”. E acrescenta que é justamente na medida em que o Real se distingue da realidade é que se torna necessário demonstrá-lo e não, como pretende a ciência, conhecê-lo. Ora o real, apresentando-se como do registro do impossível, é incognoscível. E sua demonstração, conclui Lacan, é tarefa tributária da experiência psicanalítica, e “isenta de toda idealização” (LACAN, 2001 [1970]: 408). . Diante disso, um acesso fundamentado à ação das estruturas clínicas seria dado pelas coordenadas de localização subjetiva que elas possam fornecer, para além de qualquer função puramente nosológica. O argumento que se segue retoma elementos da teoria lacaniana que fornecerão a base conceitual de elaboração acerca de fenômenos da subjetividade contemporânea.

 

IV

Do seminário acerca dos Nomes-do-pai, inaugurado por Lacan em novembro de 1963, não restou senão uma primeira lição, que o fato de não ter sucedâneos não torna menos emblemática. Numa passagem de absoluta atualidade, Lacan esmera-se nos esforços de fornecer os contornos da noção de objeto a. A certa altura ele afirma:

A voz do Outro deve ser considerada como um objeto essencial. Todo analista será solicitado a lhe fornecer seu lugar, e a seguir-lhe as encarnações diversas, tanto no campo da psicose quanto, no mais extremo do normal, na formação do supereu (LACAN, 2005 [1963]: 84)

Observe-se a indicação sutil de que o elemento pulsional em jogo no objeto voz, parece indicar um tênue parentesco entre sua manifestação psicótica e algo que se situa, como diz Lacan, “no mais extremo do normal”, ou seja, no transbordamento de um gozo superegóico da estrutura neurótica. Quantos de nós já não nos deparamos com sujeitos obsessivo-compulsivos, para os quais a estrutura em jogo na dinâmica de seus rituais responde precisamente a tal formação? O ritual obsessivo-compulsivo é usualmente presidido por uma injunção tirânica e injustificável que exige obediência complacente, e cuja voz feroz não pode ser contrariada, sob a pena de que o sujeito sucumba a um destino em que os mais trágicos acontecimentos sucederão a si e àqueles que ele ama. É curioso notar como Freud jamais estabeleceu cabalmente o caráter de formação do inconsciente aos rituais obsessivos. Em Atos obsessivos e práticas religiosas, Freud reconhece que, enquanto nas práticas religiosas o elemento simbólico pode ser facilmente atestado, os atos obsessivos, ao contrário, “parecem tolos e absurdos” (FREUD, 1987 [1907]:123). Com vistas à localização da função do inconsciente nessas manifestações, Freud chega, ainda em 1909, a advogar em favor da existência de uma “consciência especial” (Idem: 127) que, no curso do recalcamento, consolida-se como o horizonte de uma formação reativa destinada a dar sustentáculo à ação do recalque. Essa voz tirânica do supereu é encarnada e goza do sujeito. Mais do que isso, pontua Lacan, e contrariando as expectativas de Freud de que a análise revelasse seus avatares significantes, ela se consuma sob uma forma delirante. Ou seja, como pura voz, sem lei, sem contrapartida significante no nível do inconsciente, e sem sentido outro que aquele da obediência ritualística.

Na conclusão de seu artigo, Freud parece adivinhar a fórmula dessa voz, em sua encarnação religiosa, e que dá consistência à presença de um Outro absoluto e feroz: “a vingança é minha, diz o Senhor” (Idem: 130). Mas é curioso notar ainda como o obsessivo, ao contrário do psicótico, não se deixa capturar numa certeza indubitável da existência empírica dessa voz. O que torna, possivelmente, sua condição ainda mais trágica, pois, ao contrário do psicótico que se submete a um Outro cuja existência é inconteste, o sujeito obsessivo ainda tem que se haver com a culpa de não conseguir evitar submeter-se a uma alteridade cuja consistência em agenciar o gozo não encontra contrapartida em sua forma empírica. O Outro que tortura o obsessivo não poderia ser mais cruel, precisamente na medida em que, no limite, trata-se de um Outro que não existe, e cuja inexistência o sujeito reconhece sob o paradoxo de sua voz real. Nessa medida, uma parcela significativa da experiência delirante se encontra deslocada da esfera do pensamento, e transportada para o registro do corpo, para a dimensão do ato incontrolável de submeter-se aos rituais e ao imaginário desregrado dos pensamentos absurdos que lhe são solidários, seja a sós, seja na presença de terceiros. Tal excedente, no limite, faz-se testemunha das exigências de um real sem bordas, e que não raramente permanece como um resto das análises de sujeitos obsessivos cujo sintoma inclui a submissão a rituais3. Talvez não seja indevido aqui reconhecer a permanência desse vestígio delirante, da materialização quase concreta dessa alteridade superegóica, encarnada no corpo que responde en automaton ao comando da voz, e que a tarefa da interpretação analítica não é capaz, e nem poderia esgotar.

 

V

O cenário das experiências juvenis também é marcado por circunstâncias que admitem certo nível de elaboração. Nos grandes centros urbanos do Ocidente, poucos são sujeitos entre 15 e 30 anos de idade que não se vêem captados pelo fascínio de um fenômeno de massa inicialmente designado como Rave e, mais contemporaneamente, Trances. Surgidas em Manchester na Grã-Bretanha, no início dos anos 80, e patrocinadas pela lendária boite Factory - berço ainda de grupos míticos do brit-pop como o Joy Division e New Order - as raves se distinguiam como festas de longa duração, e sustentadas sobre essas duas colunas: os psicoativos estimulantes e alucinógenos e a música eletrônica. O diretor britânico Michael Winterbottoms apresenta em seu filme 24 hour party people (lançado no Brasil com o nome de A festa nunca termina) uma dramatização bastante fidedigna da atmosfera das raves britânicas que, naquele tempo, fizeram com que a cidade de Manchester ganhasse o curioso apelido de “Madchester”. Passados vinte anos, as trances se tornaram objeto de culto, ganharam patrocínio internacional e, no Brasil, acontecem com regularidade, muitas vezes em lugares inóspitos - praias desertas, parques nacionais, fazendas, aeroportos -, sendo que algumas delas chegam a reunir mais de 30.000 pessoas. Os ingredientes básicos se mantêm, sofisticados e ampliados pela evolução tecnológico-artística da música eletrônica, não menos do que pelo dilatamento da oferta das mais diferentes drogas e substâncias psicoativas desenvolvidas em laboratório e disponíveis em profusão, a despeito de serem, em sua maioria, importadas.

O elemento musical em cena ali já desperta certa curiosidade. Sabe-se que o público de música instrumental - seja a música erudita, o jazz, a música folclórica, entre outras - é relativamente pequeno, seletista e exigente. Música instrumental jamais foi, salvo raríssimas exceções, objeto de eventos de massa. Como, então, 30.000 pessoas podem se reunir, dias a fio sem interrupção, para apreciar música instrumental? Talvez se possa arriscar a hipótese de que o elemento musical em jogo ali tem a ver com algo relativo à experiência do objeto em sua função, como lembrara Freud, parcial: o ritmo e a voz. O trance é uma forma musical dotada de cadência linear, acelerada e ritmicamente constante. As melodias são, de forma geral, graves e derivadas de samplers de baixo e/ou outros instrumentos de voz grave. O efeito que essa combinação gera sobre o ouvinte é tipicamente hipnótico, pois dispensa a atenção perceptiva da sensibilidade melódico-harmônica, na mesma intensidade com que captura o corpo, a partir de suas intensas vibrações. O apogeu do transe da trance é fornecido pelo alto consumo de alucinógenos tipo ecstasy, LSD e cannabis, associados a estimulantes como a anfetamina e a cocaína. Muitas dessas drogas combinam estimulantes e alucinógenos, tais como as “balas” ou as “gotas”.

Ouvi de uma pessoa que trabalha num circuito internacional de trances um depoimento, no mínimo, curioso: “Lá quase não tem azaração, quer dizer, tem, mas pouca gente fica com outra pessoa. Fica depois, quando fica”. O cenário em questão, de fato, parece muito mais favorável para uma experiência primitiva com o objeto, do tipo daquela que Freud descreveu em 1895. Precisamente aquela em que o sujeito tenta recuperar o objeto pela via da alucinação. Condição em que ele permanecerá indefinidamente até esgotar seus recursos físicos, ou até que o Outro faça para ele a ação específica. Os sujeitos aqui em questão consomem-se no afã de seu encontro com o objeto perdido, presididos pela voz do Outro que não existe, que não fala, e que não canta. Presididos pela voz reduzida, como lembrara outrora R. Barthes, a um puro rumor, um rumor da língua cuja palavra se desfez. Essa forma de gozo, de um arcaísmo que remonta aos primórdios de constituição do aparelho psíquico, nos fornece os contornos de sua configuração no panorama ora apresentado. O sujeito aqui não é sequer susceptível da ação específica. A atividade alucinatória quimicamente induzida torna o outro-semelhante um objeto opaco, indistinguível de quaisquer outros que a sensibilidade alucinada captura, razão pela qual muitos desses sujeitos não são capazes sequer de se lembrar depois o que se passou, se ficaram ou não com alguém, se transaram ou não, como, com quem e em que circunstâncias. Esses encontros também são tipicamente presididos pela miragem direta do objeto. Sujeitos que não se conhecem se beijam sem nada dizer e, por vezes, sequer se despedem. O elemento parcial que comanda essa forma de relação com o objeto é expresso muitas vezes, literalmente, pelo número de “bocas beijadas” numa noite. Esses sujeitos fazem contabilidade - não fazem história - identificados que estão ao ideal de um horizonte sem discurso, e presidido exclusivamente pelos signos do número, da imagem e da força.

Observe-se aí, não menos, uma incidência peculiar e insuspeitada sobre esses sujeitos do discurso da ciência, nos termos próprios de seu ideal mas, sobretudo, na particularidade de seu afã relativo a um encontro direto com o real - aqui promovido pelo gozo toxicômano - e na amnésia que lhe é peculiar. Muitos desses sujeitos sustentam ainda convicções pitorescamente fisicalistas. Acreditam que todos os eventos psíquicos podem ser reduzidos a seu substrato neuro-fisiológico - “peptídico”, como dizem eles - argumento que combina bem com sua inclinação toxicômana e seu fascínio por novas experiências induzidas por novas drogas. A paixão que anima esses sujeitos é, usualmente, o tédio - esse corolário incontornável da constatação melancólica de que o objeto está perdido, e fonte, não menos, de uma nova volta pelo circuito alucinatório. Pode-se vislumbrar aí, nesse cenário desértico e povoado de milhares de pessoas, uma espécie de exercício de misantropia coletiva. O encontro com o real da morte não é raro. As trances são hoje um dos principais focos do Programa de Redução de Danos do Ministério da Saúde, dado o elevado índice de overdoses, surtos, acidentes - sobretudo quando se trata de locais com acidentes naturais, do tipo precipícios, lagos, mar ou matas fechadas. Os relatos de óbitos não são muitos, mas existem.

Mas não é menos verdadeiro o fato de que tais sujeitos são, freqüentemente, susceptíveis do trabalho analítico. No interior e a partir do qual, a ação da estrutura passa a comandar a formação de um outro circuito que não aquele da alucinação. Um circuito que se constitui pela ação do significante, a partir da qual a problemática do desejo - elidida até então - tem a oportunidade de ser formulada. Esses sujeitos - “muito loucos” dir-se-ia - revelam-se sonhadores, ou, tomando de empréstimo a expressão de Bertolucci, por excelência, “os sonhadores”.

Quanto à direção desses tratamentos, uma questão primeira que se coloca é relativa à elisão, promovida pelo sintoma desses sujeitos, do real que se refere à perda do objeto. A misantropia festiva que os acomete revela um profundo descontentamento com a realidade clivada da dimensão do desejo e, conseqüentemente, também com certa dimensão de perda inerente a toda escolha libidinal. Pode-se arriscar dizer que a intensidade com a qual esses sujeitos se drogam revela a dificuldade de suportarem a perda em jogo no fato de serem desejantes. O entorpecimento alucinatório é a prerrogativa que os exime de escolherem seus objetos, e se traduz na compulsão contábil em levar ao limite sua aptidão para gozar.

Freud, em 1911, advertira Jung que um dos destinos da introversão libidinal era a misantropia - essa forma radical de isolamento presidida por um gozo fantasmático com o objeto idealizado. Ali, onde Jung só admitia a perda da realidade psicótica, Freud vislumbrava uma operação defensiva tipicamente neurótica. Mas o fenômeno que ora investigamos sugere consistir em algo mais grave. Para tais sujeitos, a aliança entre o imaginário e o simbólico expressa na fantasia inconsciente revela-se ainda precária para sustentar o refluxo da libido, e isso demonstra ainda a precariedade dos ideais que dão consistência ao fantasma na contemporaneidade. O horizonte em que tais sujeitos visam sustentar seu gozo aponta na direção de um real mortífero e, nessa medida, a condição de suas análises dependerá da possibilidade de que eles façam, por assim dizer, uma certa experiência do trágico. Ou seja, que eles possam experimentar, a partir de sua posição na estrutura da linguagem, essa outra dimensão do real, relativa à perda do objeto. A partir daí, quem sabe, tais sujeitos sejam capazes de abdicar de sua compulsão mortífera em reencontrar o objeto e, com isso, experimentá-lo enquanto um objeto perdido4. Condição essa, em última instância, peculiar a toda e qualquer análise.

Noutra ocasião, possivelmente, poder-se-á desenvolver a formalização desses e de outros fenômenos - sobretudo daqueles que se produzem no hospital, diante da oferta de gozo do cientista, nomeadamente, dessa alteridade inexistente materializada na figura da medicina protocolar, e suportada pela figura do médico que não fala – e que interpelam nossas categorias de análise, mas cujo desafio as torna mais consistentes e mais sofisticadas. Se esse trabalho tiver sido capaz de demonstrar a atualidade da argumentação psicanalítica diante de algumas vicissitudes clínicas de nossos dias, terá ele chegado a bom termo.

 

 

Referências

FREUD, S. L´inconscient. In: Oeuvres complètes. Paris: PUF, 1988.        [ Links ]

FREUD, S. Atos obsessivos e práticas religiosas. In: Edição standard brasileira das obras psicoloógicas completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987 (2.ed.), v.IX.        [ Links ]

LACAN, J. Autres écrits. Paris: Seuil, 2001.        [ Links ]

LACAN, J. Des noms-du-Pére. Paris : Seuil, 2005.        [ Links ]

MILLER, J.A. Ação da estrutura. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.        [ Links ]

MILNER, J-C. A obra clara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 18/09/2006
Aprovado em: 21/10/2006

 

 

* Psicanalista e professor do Departamento de Psicologia da UFMG – Belo Horizonte/MG • Endereço eletrônico: gmassara@uai.com.br
1 Discutimos esse tema em outro trabalho, intitulado Revisitando as psicoses: ética e metapsicologia IN Anais do VI Fórum Mineiro de Psicanálise – A ética da psicanálise, do particular ao coletivo (CD-ROM).
2 Dentre os esboços sérios resultantes desses esforços, mencione-se aquele empreendido na primeira parte de As novas doenças da alma, de J. Kristeva (Rio de Janeiro: Rocco, 2002), e também o instigante artigo de J-P. Deffieux, Le risque suicidaire (IN Maladies d´époque – Nouvelle Revue de Psychanalyse. Paris: La Cause Freudienne, n. 58, p. 49-55).
3 Efetivamente, todo o argumento desenvolvido aqui foi empreendido sob a lembrança de um tratamento que conduzi por sete anos, de um sujeito obsessivo, que inúmeras vezes fora tido como louco, e cujos rituais foram atenuados, mas não cederam completamente aos esforços da análise. Sob outros aspectos, contudo, o tratamento obteve resultados bastante favoráveis.
4 Em outro trabalho, intitulado O excedente trágico: psicanálise, arte, filosofia (Belo Horizonte, Universidade Fumec, 2006) elaboramos melhor esse ponto.

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