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Epistemo-somática

versão impressa ISSN 1980-2005

Epistemo-somática v.3 n.2 Belo Horizonte dez. 2006

 

ARTIGOS

 

UTI: Onde a vida pulsa

 

Intensive care unit: The pulse of life

 

 

Laura de Souza Bechara Secchin*

Serviço de Psicologia Clínica do Hospital Monte Sinai, Juiz de Fora/MG

 

 


RESUMO

A partir da resenha do filme “Fale com ela”, dirigido por Pedro Almodóvar (“Hable con ella”, Espanha, 2002), o texto traz considerações teóricas, baseando-se nos pressupostos freudianos, sobre a relação entre pulsão de vida e pulsão de morte. Assim, correlaciona tais conceitos à prática do psicanalista em uma UTI, somando a um recorte de caso clínico, que visa ilustrar melhor tais questões.

Palavras-chave: Aparelho psíquico, Pulsão de vida, Pulsão de morte, Psicanálise, Unidade de Terapia Intensiva (UTI).


ABSTRACT

The text makes theorical considerations about the film “Talk to Her”, directed by Pedro Almodóvar (“Hable con ella”, Espanha, 2002), based on the works about the relation between life instinct and death instinct, written by Freud. Therefore, it correlates these concepts to the psychoanalytic practice at the intensive care unit, adding some case reports in order to illustrate better these questions.

Keywords: Psychic apparatus, Life instinct, Death instinct, Intensive Care Unit, Psychoanalysis.


 

 

Os últimos cinqüenta anos foram caracterizados pela rapidez dos avanços tecnológicos, que marcaram de forma histórica a humanidade. A própria medicina e os conceitos de saúde e de doença estão passando por profundas transformações. Até recentemente, as doenças eram compreendidas como processos biológicos e as equipes de saúde resumiam-se a médicos e enfermeiros. Contudo, neste mesmo tempo, o trabalho de psicólogos vem crescendo continuamente no contexto hospitalar, e, cada vez mais, alguns profissionais sustentam sua prática a partir da teoria psicanalítica.

Pensamos, então, qual a possibilidade de intervenção psicanalítica, a partir dos pressupostos teóricos de Freud, no ambiente de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Este setor, o mais tecnológico da instituição hospitalar, tem demandado um profissional que não sabe de medicina, nem dos avanços científicos, mas certamente quer saber sobre os efeitos disto tudo no ser humano.

Na UTI os pacientes ficam isolados e desnudos de suas roupas, de seus desejos, de sua identidade, sendo reduzidos, muitas vezes, às vozes que lhes falam, a um leito, a uma doença grave. Podemos considerar tal estado como o máximo da entrega na mão do outro, em que se concretiza o desamparo humano. Por outro lado, é inevitável que o paciente traga consigo a sua história inscrita. Esta não tem como ser calada, ainda mais diante da possibilidade de morte. A hospitalização toma um sentido diferente para cada ser humano e faz emergir uma angústia que não pode ser tratada pelos grandes avanços tecnológicos da medicina.

Na UTI ficam internados os pacientes em estado grave, que correm risco de morte. A maioria deles estão impossibilitados de verbalização e isolados de suas famílias, recebendo pouca visita. Este setor, “fechado” por excelência, se por um lado concretiza o anseio dos homens, no sentido dos avanços médicos-científicos, paradoxalmente aponta a falta de garantias, o impossível de tudo controlar e dominar, nos remetendo à possibilidade de perda de pessoas queridas. Lá, vida e morte pulsam o tempo todo.

Para levantar algumas questões a serem trabalhadas, nos valeremos do filme “Fale com ela”, dirigido por Pedro Almodóvar (“Hable com ella”, Espanha, 2002), que poderá ser pensado como um exemplo de história clínica.

Trata-se do drama de Benigno e Alicia. Benigno é um enfermeiro cuja vida baseia-se no cuidado e devoção à sua mãe, e depois transfere este zelo a uma jovem bailarina, Alicia, que fazia aula de dança em uma escola em frente à sua casa e por quem se apaixona perdidamente. A bailarina sofre um acidente gravíssimo e entra em coma, estado em que permanece por quatro anos sendo cuidada por Benigno.

Paralelamente tem-se o drama do jornalista Marco e da toureira Lydia. Após uma decepção amorosa, Lydia é entrevistada por Marco, com quem se envolve. A ele relata sua conturbada história afetiva, referindo-se ao pai, morto há um ano, como o único homem que a compreendeu. Após algumas semanas de relacionamento, Lydia é atingida por um touro durante uma apresentação, e também entra em coma, permanecendo na mesma clínica em que se encontra Alicia.

O enfermeiro, percebendo a dificuldade de Marco em aproximar-se da namorada, aconselha: “A mulher precisa ser tocada, mimada, acariciada. Você precisa falar com ela, ouvir seus segredos... fale com ela...”

Benigno dedica-se de corpo e alma à adoração e aos cuidados daquela mulher viva-morta. Interessante notar a foto dela, em coma, no porta-retrato à cabeceira da cama dele. E justifica o fato de desejar casar-se com ela, a seu amigo jornalista: “Os últimos quatro anos foram os melhores da minha vida. Cuidando dela, e fazendo as coisas que ela gostava de fazer”.

Por ouro lado, Marco, ao saber que Lydia reatara com um antigo namorado, decide seguir sua vida, deixando-na na clínica. Mais tarde, tem-se a notícia de sua morte.

Benigno se apoderara de alguns hábitos da amada, como assistir a peças de balé e ir ao cinema. E a partir de um filme assistido, e dos rotineiros cuidados à higiene do corpo da bela mulher, o enfermeiro tem sua sexualidade despertada.

Após alguns meses, uma enfermeira nota a ausência da menstruação da bailarina, e repara o inchaço de seu corpo. Alicia está grávida. Assim, o enfermeiro é preso, e tem-se a notícia de que seu filho, “o feto” como é referido no filme, é natimorto. Não é informado a Benigno que Alicia, depois do parto (e hipoteticamente a partir da gravidez), saíra do coma. Contudo, após escrever a seu amigo que a vida não fazia sentido se não estivesse cuidando de seu grande amor, suicida-se.

Algumas questões sobressaltam-se a partir deste filme. O que sustenta o amor de Benigno por Alicia? O que faz com que Alicia se mantenha viva durante esses quatro anos? O que a faz despertar? O que faz Benigno, quando se vê impossibilitado de cuidar de seu amor?

No texto “A Pulsão1e suas Vicissitudes” (1915), Freud revela que as energias e as excitações internas representam a pulsão no aparelho mental, definindo-a como “um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, ... o representante psíquico dos estímulos que se originam de dentro do organismo e alcançam a mente” (FREUD, [1915] 1996, p.127) tendo como finalidade a satisfação, para que o aparelho psíquico reduza ao nível mais baixo possível a quantidade de estímulos.

Segundo os pressupostos do que se nomeia “o primeiro dualismo pulsional”, Freud afirma a existência da pulsão sexual, energia própria da libido, e da pulsão do ego, ou de conservação, orientada pela satisfação das necessidades, como a fome e a sede. A partir de 1920, com o texto “Além do Princípio do Prazer”, surge uma nova concepção, inaugura-se um novo dualismo. Após um longo percurso de trabalho sobre as vicissitudes pulsionais e suas evidências clínicas, Freud proporá a existência de duas forças básicas que se contrapõem em estreita conexão: a pulsão de vida e a pulsão de morte.

A pulsão de vida, ou Eros, exerce pressão no sentido do prolongamento vital e está presente desde o início da vida. Ela se manifesta sob várias formas, como na sobrevivência da espécie, na reprodução, portanto com a sexualidade e com a autoconservação, e tem como finalidade ligar, unir, constituir unidades cada vez mais amplas. A pulsão de morte, ou Tanatos, aparece sob a forma de agressividade e destrutividade, fragmentando as grandes unidades constituídas, impulsionando para um estado de inércia total, um estado inorgânico.

Defende-se a hipótese de que o aparelho psíquico se esforça por manter a quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, procura mantê-la estável ou constante. Daí a suposição de que o princípio do prazer decorre do princípio da constância, ou princípio homeostático.

Contudo, é no célebre jogo do Fort-Da que Freud reconsidera um dos mais importantes conceitos de sua teoria. Freud introduz o termo “compulsão à repetição”, a partir da experiência do jogo infantil do carretel, em que é notada a repetição de algo sofrido, contradizendo o princípio de que o objetivo da vida psíquica seria a obtenção de prazer. Tal experiência é relacionada a uma renúncia da satisfação pulsional, de algo que não foi simbolizado pela criança. Com esta repetição lúdica, ela aprende não só a lidar simbolicamente com a situação desprazerosa, como também a retirar desta uma outra satisfação que não a da redução de tensão.

A “compulsão à repetição” deriva da natureza mais íntima da pulsão, e implica em uma ultrapassagem do princípio do prazer. A repetição é, em si, uma fonte de prazer. Esta tendência se apresenta em algumas situações penosas, e faz parte de uma propriedade geral das pulsões, cuja conseqüência é orientar o organismo para a restauração de um estado anterior, expressando a natureza conservadora de tudo que vive.

Assim, articula a compulsão à repetição com a pulsão de morte. Com o termo pulsão de morte, Freud formula uma tendência primária da pulsão para reconstruir um estado sempre anterior de satisfação, em tentativa de restaurar um suposto estado anorgânico antecedente à criação de vida.

De acordo com Freud, parece, então, que uma pulsão é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica FREUD, [1920]1996, p.47).

Freud incorpora o conceito de Bárbara Low de princípio do Nirvana, referindo-se a um estado de ausência total de excitação. Ele o reconhece como uma tendência conservadora, regressiva, desintegradora, que busca a restauração de um estado anterior, não dotado de vida, a serviço da pulsão de morte. (Ibidem, p.66). Assim, conforme Freud, o objetivo de toda vida é a morte ( Ibidem, p.49).

Dessa forma, pode-se afirmar a existência nítida de duas forças motrizes do ser humano: a pulsão de vida, exercendo pressão no sentido de prolongamento da vida, e a pulsão de morte, consistindo em um empuxo no sentido da morte.

Resta claro, então, que a dinâmica entre as forças pulsionais - Vida e Morte - é marcada não apenas pela oposição, mas também e principalmente pela fusão entre ambas, pela possibilidade de investimentos recíprocos que determinam uma mudança nas características das pulsões e nos seus destinos. As tendências libidinais ficam assim marcadas pelas forças desagregadoras e destrutivas da pulsão de morte, e a destrutividade impregnada pelas forças libidinais de ligação e integração característica da pulsão de vida.

Freud ressalta, com sua concepção da fusão e desfusão pulsional, a impossibilidade de pensar qualquer categoria pulsional de forma isolada. Não há, na vida psíquica, a presença de uma única atividade pulsional, de uma única tendência. Apesar de ambas coexistirem, sempre há uma relação entre uma e outra em proporções desiguais.

Nos diz Freud: “(...) somos levados a concluir que a pulsão de morte é, por sua natureza, muda, e que o clamor da vida procede, na maior parte, de Eros” (FREUD, [1923]1996, p.59).

Em “Esboço de Psicanálise” (1940[1938]), Freud reafirma que a pulsão de morte opera silenciosa e internamente, e só é percebida quando desviada para fora como forma de destruição e agressividade.

Ele retoma a pulsão de vida com a finalidade de unir, contrapondo-se à da pulsão de morte, com a finalidade de desagregar, visando o retorno ao estado inorgânico.

Para trabalhar melhor estas formulações, temos um caso clínico. O Senhor M., 86 anos, depois de sofrer um extenso AVC, está há um ano internado no hospital e não fala, não anda e não come. Está sempre acompanhado pela esposa, Senhora N., que não vai a sua casa há mais de três meses, referindo-se ao hospital como “aqui em casa” e não permitindo que ninguém, além dela mesma, cuide dele. Não têm filhos, nem outros parentes: “vivem” (e morrem) um para o outro. Este caso mobiliza muito a equipe técnica. Segundo os profissionais, angustia ver aquela idosa senhora falando com e pelo marido, como se estivesse tudo bem. E estava. Ele, a partir de sua condição de morto-vivo, completamente entregue, foi sendo alienado ao desejo devorador desta mulher. Lacan, no Seminário 17, metaforiza o desejo da mãe a uma bocarra de jacaré que pode ser fechada se não mediado pela função paterna. Desejo original e fundador, mas ao mesmo tempo destrutivo e mortal (LACAN, 1992, (1969-1970), p.105).

Logo após a internação, a Senhora N. chorava muito. Contudo, com o decorrer do tempo, foi-se restabelecendo sem demandar atendimento psicanalítico. O Senhor M. estava lá, conforme o desejo dela. Agora, o plano de saúde tenta transferir o doente para outro hospital. Sentindo o seu pacto ameaçado, pacto fusional de vida que sustenta a morte, a Senhora N. põe-se a falar:

“Eu não quero ser transferida. Lá, ele vai acabar morrendo. Não posso viver sem meu paizinho” - (grifos nossos), referindo-se ao marido. Mesmo admitindo que ele não gostaria de estar desse jeito, diz que, se ele morrer, ela morre também. Remete-se à morte de seu pai quando tinha seis anos de idade. Segundo ela, ele a levava para a cama no colo e a amava muito. Apesar de já pensar sobre a possibilidade de morte do marido, diz ser insuportável esta idéia.

Lacan reafirma no Seminário 11, em a “Desmontagem da pulsão” (1964, p.153), que a finalidade e função da pulsão é a sua satisfação, ou seja, chegar ao seu alvo. O trajeto da pulsão é um contorno do objeto e retorno a seu ponto de origem, o que a prepara para reativar a sua fonte e iniciar um novo trajeto. O alvo pulsional é impossível de ser atingido de maneira direta por motivos estruturais.

O primeiro registro de satisfação do sujeito é em termos orgânicos - no nível da necessidade. Em termos do aparelho psíquico, vai inscrever um traço mnésico da imagem e percepção do objeto que proporcionou satisfação, mas que jamais será a mesma. Assim a pulsão irá sempre tentar reencontrar o objeto de desejo, o qual é por essência o objeto a, o objeto perdido.

Assim, a psicanálise pode construir uma direção para que a pessoa, diante da emergência do trágico, do acidente, do vazio, possa fazer borda pela via da urgência do desejo. A tentativa de resgatar o paciente enquanto sujeito desejante colabora para a sua implicação no tratamento, na sua doença, na sua vida.

A pulsão é a representação de forças somáticas, ou seja, do corpo no psiquismo. Para a medicina há vida enquanto há atividade mental, uma vez que atualmente o conceito de morte para esta ciência é o da morte cerebral. Isto pode oferecer mais uma possibilidade ao psicanalista, que, incomodado com a condição muitas vezes imposta pela equipe de “quase morto”, quer saber do sujeito, de sua história.

Da oposição e dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte, nasce a dinâmica responsável pela vida do sujeito, que constitui o ponto primordial das vias do seu desejo, e dos desejos de vida e de morte. Apesar de a noção de pulsão não aparecer como fenômeno clínico tangível, esta questão muitas vezes se faz presente, na UTI, quando o sujeito se encontra no limite entre a vida e a morte. Em coma ou não, ali a vida pulsa como fora subjetivamente para cada um.

 

 

Referências

FREUD, Sigmund. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911). v .XII. In.: Edição standard brasileira das obras psicológicas compltas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. A pulsão e suas vicissitudes (1915). v. XIV. In.: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1996.        [ Links ]

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FREUD, Sigmund. O problema econômico do masoquismo (1924). v. XIX In.: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1996.         [ Links ]

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LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário: livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.        [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.        [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário: livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 27/11/2006
Aprovado em: 16/12/2006

 

 

* Psicóloga. Psicanalista • Coordenadora do Serviço de Psicologia Clínica do Hospital Monte Sinai, Juiz de Fora/MG • Especialização em Psicologia Hospitalar pela Universidade FUMEC • Mestrado em Psicologia e Psicanálise pelo CES/Juiz de Fora • Endereço eletrônico: labechara@ig.com.br
1 Na tradução brasileira, “instinto” é o termo utilizado como tradução do termo freudiano Trieb, para o qual, numa terminologia coerente, convém recorrer ao termo “pulsão”. Desta forma este será o termo usado neste texto.

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