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Epistemo-somática

Print version ISSN 1980-2005

Epistemo-somática vol.4 no.1 Belo Horizonte July 2007

 

ARTIGOS

 

Prevenção precoce e rastreamento em psiquiatria infantil: a psicanálise tem algo a trazer ao debate atual?

 

Early prevention and tracing in childish psychiatry: tdoes psychoanalysis have anything to bring to the present debate?

 

Prevención precoz y rastreo en psiquiatría infantil: el psicoanálisis tiene algo que aportar al debate actual?

 

Prévention précoce et dépistages en psychiatrie infantile: la psychanalyse a-t-elle quelque chose a apporter au débat actuel?

 

 

Claude Schauder

Universté Louis Pasteur – Strasbourg, France

 

 


RESUMO

Confrontados com políticas de prevenção e rastreamento, que a psiquiatria moderna emprega em todo o mundo um pouco, e cada vez mais precocemente, podem os psicanalistas fazer outra coisa, além de tornar a comunidade científica, assim como os interventores sanitários1, atenta ao que eles estão, volens nolens2, associados e correm o risco de se tornarem cúmplices? Após ter lembrado certo número de argumentos suscetíveis de apoiar as análises epistemológicas, éticas e políticas destas iniciativas, nós esboçaremos um quadro, que acreditamos indispensável, com algumas pistas, para que os psicanalistas continuem a avançar, partindo da idéia de que, sustentando desde seu nascimento um ser humano na sua identidade, seu espaço, seu tempo, suas ascendências paterna e materna, oferecendo-lhe as mediações imaginárias que sustentam a simbolização das relações humanas, ou acompanhando-o no caminho que o conduzirá a inscrever suas relações com os outros pela palavra, podemos com freqüência evitar as complicações que levam geralmente a transtornos de relações precoces, ao fazer disso trabalho de prevenção.

Palavras-chave: Psicanálise, Prevenção, Rastreamento, Transtornos de relação precoce, DSM.


ABSTRACT

Confronted by prevention and tracing politics used by modern psychiatry all over the world and each day earlier, can psychoanalysts do anything else besides turning the scientific community and sanitary interventionists, attentive to what they are, volens noles, associated with and risk to become accessories? After reminding some arguments liable to support epistemological, ethical and political analyses of these initiatives, we’ll outline a picture believed indispensable using some hints so psychoanalysts keep on advancing, starting from the idea that, supporting a human being in his identity, his space, his time, his paternal and maternal ascendancy, since his birth, offering him imaginary mediations which withstand the human relations symbolization, or accompanying him on the path that will lead him to inscribe his relations with the others through the word, we can frequently avoid complications that generally lead up to early relation disorders, when doing a prevention work from this.

Keywords: Psychoanalysis, Prevention, Tracing, Early relation disorder, DSM.


RESUMEN

Enfrentados a políticas de prevención y rastreo, que la psiquiatría moderna emplea en todo el mundo un poco, y cada vez más precozmente, pueden los psicoanalistas hacer otra cosa, además de volver la comunidad científica, así como los interventores sanitarios , atentos a lo que ellos están, volens nolens , asociados y corren el riesgo de ser cómplices? Tras haber recordado cierto número de argumentos susceptibles de apoyar los análisis epistemológicos, éticos y políticas de estas iniciativas, vamos a esbozar un cuadro, que creemos indispensable, con algunas pistas, para que los psicoanalistas continúen avanzando, partiendo de la idea de que, manteniendo desde su nacimiento a un ser humano en su identidad, su espacio, su tiempo, sus ascendencias paterna y materna, ofreciéndole las mediaciones imaginarias que sustentan la simbolización de las relaciones humanas, o acompañándolo por el camino que lo conducirá a inscribir sus relaciones con los otros por la palabra, podemos con frecuencia evitar las complicaciones que llevan generalmente a trastornos de relaciones precoces, al hacer de ello trabajo de prevención.

Palavras clave: Psicoanálisis, Prevención, Rastreamiento, Transtornos de relación precoz, DSM.


 

 

Se existe um domínio da vida social atual, onde as transformações se mostram ligadas à dominação do discurso da Ciência e do liberalismo, e são suscetíveis de questionar os psicanalistas, é justamente o da prevenção e do rastreamento médico precoces. É justamente o caso da prevenção e do rastreamento precoces dos transtornos de comportamento e das condutas, que um pouco em todo mundo “ocidental” os poderes públicos tornaram obrigatórios ou se prepararam para tornar obrigatórios.

O emprego dessas políticas, às quais estão associados psiquiatras, psicólogos, trabalhadores sanitários e sociais, pesquisadores e industriais da farmácia3, não só questionam e inquietam os psicanalistas, mas lançam igualmente a eles, um desafio às vezes teórico, clínico e institucional, que eles não podem mais ignorar com desprezo, como não sendo de sua competência, como acreditavam freqüentemente no passado.

Por quê? Porque os riscos desse desafio são de agora em diante vitais não só para o vir a ser da subjetividade de milhões de crianças (quer dizer de adultos por vir!), mas igualmente para a democracia.

De que se trata exatamente? Um pouco em todo o mundo, onde o bacilo da peste que um certo Freud queria inocular na América não criou raízes duradouras, e igualmente lá onde teve sucesso para se instalar e proliferar, e até mesmo mutar, aqueles que não chegam a aceitar o escândalo da sexualidade infantil e a obscenidade da existência da pulsão de morte, lutaram sem descanso para que a psiquiatria reintegrasse o eixo da medicina.

Como mostraram Gori e M.J.Del Volgo (GORI & DEL VOLGO, 2005), esse movimento se intensificou consideravelmente e acelerou há uns vinte anos, mais particularmente desde a aparição do DSM 3 e de sua dominação absoluta sobre o conjunto da literatura internacional, e também sobre todas as avaliações a que se referem. Assiste-se efetivamente, desde então, a uma verdadeira mutação antropológica, com a afirmação do postulado ideológico de que não há distinção fundamental entre os transtornos mentais e as afecções médicas gerais. Isso conduz a verdadeiro atenuante antropológico do fato psiquiátrico, que constitui o desmantelamento das grandes entidades psicopatológicas, como a da neurose ou da melancolia,

“em proveito da noção frágil e flexível de ‘transtornos de comportamento’, que permite, ao mesmo tempo, estender ao infinito o campo do patológico em função dos valores éticos de uma sociedade e imunizar os sistemas de classificação dos DSM contra as críticas epistemológicas, aumentando sem cessar o número de transtornos do comportamento recenseados. Nós entramos decididamente numa psiquiatria pós-moderna, que em nome do positivismo e do pragmatismo estabelece uma flexibilidade, uma precariedade, uma liquidez dos critérios classificatórios da psiquiatria, permitindo sua instrumentalização ideológica e política favorecendo as indústrias de saúde mental.” (GORI, 2005, p.16 ).

Esta recomposição do campo da saúde mental e a remedicalização da psiquiatria, pelas quais ela perde toda autonomia conceitual, e toda possibilidade de reconhecer nos sintomas sua dimensão discursiva, são particularmente sustentadas e encorajadas pela indústria farmacêutica, que sabe fazer valer o progresso e a eficácia de seus tratamentos sintomatológicos.

Convertidas de novo em patologias reconhecidas pela medicina, e justificando assim tratamentos medicamentosos, as condutas que inquietam ou perturbam a tranqüilidade dos adultos constituem assim o objeto de todas as atenções dos laboratórios farmacêuticos, que servem a elas (BLECH, 2005). São milhões (mais de vinte e três em 2004, só nos E.U.A), e provavelmente dezenas de milhões no resto do mundo4, de pequenos consumidores da anfetamina méthyphénidate, que vocês conhecem talvez pelo belo nome de “ritalina” ou de “concerta”, ou de uma molécula próxima chamada de dexédrine. Em princípio reservados a situações psicopatológicas e neurológicas muito específicas, esses produtos são cada vez mais prescritos sem discernimento e sem o acompanhamento psicoterápico que deveria ser obrigatoriamente associado ao seu uso. De eficácia duvidosa, eles transformam as crianças agitadas em bem comportadas na escola, e os pequenos rebeldes, distraídos e falantes, em disciplinados e conscienciosos..., evidentemente durante o tempo em que o produto age. Se eles fazem desaparecer os efeitos, quer dizer os sintomas, eles não afetam em nada suas causas e criam, em muitos casos, verdadeiras dependências, da mesma maneira que qualquer das drogas que Freud chamava tão lindamente “quebradoras de preocupações” (Sorgenbrecher) (FREUD, 1929/1986, p.23).

Sabe-se que, algumas vezes, é dos professores exaustos e extenuados que vêm os pedidos, e até mesmo, está aí um golpe de mestre, das próprias crianças.

Todos tão desesperados quanto seus pais, condicionados por publicidades bem feitas, eles próprios vêm às vezes pedir a pílula da obediência que os amordaça e “regula” seus problemas de pequeno ser humano inscrito de pronto na linguagem mais deserta das verdadeiras palavras que circunscrevem a existência e que permitem crescer sem grandes angústias.

As estratégias dessa indústria asseguram a recuperação mercantil, e a reciclagem industrial dessas manifestações intempestivas dos males existenciais, daqui em diante rebatizados “transtornos de déficit de atenção” (TDA), com ou sem hiperatividade (neste caso trata-se de TDAH), e outros “transtornos oposicionais com provocação” (os TOP), permitem a essa medicina, como ao conjunto do grupo social que a delega para fazer isto, economizar uma reflexão fundamentada, relativa às causas reais dos males em questão.

Se suas invenções não são ainda capazes de cobrir o conjunto do campo comportamental suscetível de se fazer testemunho do sofrimento dos pequenos, apostamos que, em face deste mercado promissor, a indústria farmacêutica não economizará esforços para estender sua cobertura sem que em breve ninguém tenha mais o que dizer sobre isso. Pode-se adivinhar como conseqüência o escândalo e as campanhas (evidentemente financiados pelos grandes grupos farmacêuticos reunidos) que seriam desencadeados pelo fato de ter posto em questão, o querer privar nossos caros pequenos do tratamento de doenças tão invalidantes e custosas para nossa sociedade como os transtornos de déficit de atenção (TDA) e outros TOP!!!

Essa recomposição do campo de saúde mental e a remedicalização da psiquiatria conduzem igualmente os mantenedores desta psiquiatria a aspirações científicas de adotar o rastreamento e a prevenção dos transtornos mentais.

Esperando resultados convincentes relativos à demonstração da etiologia biológica ou genética dessas patologias (que tardam evidentemente a aparecer!), esses práticos voltam-se em direção aos transtornos redefinidos pelos DSM e às ditas condutas ou comportamentos. Muitas declarações de alguns pesquisadores, como Bárbara Koening, presidente do comitê de ética da Universidade de Stanford, podiam anunciar em 2002, na ocasião de um colóquio consagrado à “neuroética”, que os “neurobiologistas vão em breve ter a incumbência de avaliar os riscos da chegada repentina dos transtornos cognitivos, as potencialidades de sucesso escolar e profissional, a predileção pela violência e o consumo de drogas” (citado por Vidal, 2006, p.68). Esses procuradores colocam em prática, desde a mais tenra idade e mesmo durante o período pré-natal, programas de rastreamento, e a promoção de “boas práticas” (best practices) ou de práticas fundamentadas nos dados probantes que provam (evidence –based practices), a partir de abordagens positivistas, tais como a biopsicologia a busca dos determinantes neurofisiológicos e genéticos do desenvolvimento e do comportamento, ou a ecologia do desenvolvimento (que estuda os determinantes comportamentais e ambientais que agem sobre o desenvolvimento). A ambição deles, bem entendida, é a predição e a modificação do curso da evolução do desenvolvimento das crianças rastreadas, tendo em vista uma adaptação social às exigências do seu meio ambiente.

Na França um relatório do INSERM5 de 2005, intitulado “Transtorno das condutas na criança e no adolescente”, preconiza assim desde os três meses o rastreamento dos “transtornos de condutas” tidos como capazes de anunciar um devir delinqüente. Os profissionais são chamados a indicar os fatores de risco pré-natais e perinatais, genéticos, ambientais, e os ligados ao temperamento e à personalidade. Esse relatório evoca assim, a respeito das crianças pequenas, “traços de caráter”, tais como frieza afetiva, tendência a manipulação, cinismo e a noção d’héritabilité6 (genética) do transtorno de conduta. Ele insiste no rastreamento aos 36 meses dos seguintes sinais: indocilidade, heteroagressividade, fraco controle emocional, impulsividade, índice de moralidade baixo, etc. Uma vez rastreados, “os portadores desses sintomas devem ser submetidos a uma bateria de testes elaborados, tendo como base as teorias de neuropsicologia comportamentalista, permitindo indicar todo desvio de uma norma estabelecida segundo os critérios da literatura científica anglo-saxônica. Seguindo um implacável princípio de linearidade, essa abordagem determinista faz do mínimo gesto, como das mínimas bobagens da criança, a expressão de uma personalidade patológica que convém neutralizar o mais rápido possível. Esse relatório termina com recomendações relativas à responsabilização por essas crianças, associando reeducação, psicoterapia e medicamentos, tais como os evocados acima.

Concordar-se-á com os autores de l’Appel que difundiu, após a publicação desse relatório de L’INSERM, o “Collectif Pas de 0 de conduite”7, que medicalizando ao extremo os fenômenos de ordem educativa, psicológica e social, (esse relatório) mantém de fato a confusão entre mal social e sofrimento psíquico, e até mesmo hereditário. Estigmatizando como patológica toda manifestação viva de oposição inerente ao desenvolvimento psíquico da criança, isolando os sintomas de sua significação no percurso de cada uma, considerando-as como fatores de prognósticos da delinqüência, o acesso ao desenvolvimento singular do ser humano está negado e o pensamento é cuidado robotizado (Collectif Pas de 0 de conduite, 2006, p.12-16 ).

Na síntese do trabalho que dedica à situação no Québec, Parazelli (2006b) afirma que:

“essas abordagens bio-psicológicas e ecológicas impõem suas ‘verdades’ aos indivíduos sem considerar o debate democrático sobre as escolhas normativas de uma sociedade como uma necessidade.
- Os responsáveis políticos e os gestores institucionais transmitem uma mensagem de incompetência não somente às jovens mães alvos de risco, mas aos profissionais cujo julgamento e experiência não são solicitados, e até mesmo desvalorizados se eles se distanciam da orientação e do emprego dos programas do Estado concebidos por experts...
- As condições de vida e os riscos sóciopolíticos não figuram jamais nas estratégias das ações dos programas; as pesquisas na origem dos programas de prevenção precoce permanecem em torno de um eixo sobre o estudo dos comportamentos individuais e sociais de onde vem a idéia segundo a qual a pobreza seria tratada como uma doença.
- O rastreamento dos grupos de risco favorece uma estigmatização dos indivíduos, criando assim outros problemas sociais, como um sentimento de insegurança em face do exercício da parentalidade8. Cria-se também uma nova categoria social juvenil: a adolescência virtual com risco de delinqüência! Reduz-se o percurso biográfico de um indivíduo a uma trajetória probabilística que qualifica seu destino, o que tem por conseqüência estigmatizar a criança designando-a de risco, antes mesmo que ela manifeste os comportamentos apreendidos.
- A integração dos atores associativos na distribuição de serviços associados aos programas de prevenção precoce cria um desvio de sua primeira missão, a de manter as pessoas nas suas iniciativas de modo coletivo. A dimensão ‘comunitária’ dos programas de prevenção precoce se reduz à mobilização local dos organismos sociais a fim de que a ‘comunidade’ possa contribuir com as atividades do programa de prevenção precoce” (PARAZELLI, 2006b, p.76-77).

Dentre outros, essencialmente produzidos pela literatura anglo-saxã, o relatório do INSERM revela por outro lado, de uma maneira obscena, a cumplicidade objetiva que pode existir entre cientistas desviantes e ideologias securitárias (GORI & DEL VOLGO, 2005) e pode-se constatar com Gori:

“... que medicalizando os desvios sociais ou os transtornos de conduta, justifica-se o caráter natural das normas e se desculpabiliza no mesmo movimento o ambiente dos sintomas que afetam o sujeito. É esse desmentido do Outro que trabalha na transformação dos sintomas, dos sofrimentos psíquicos ou sociais em transtornos do comportamento. O sujeito encontra-se reduzido à soma de seus comportamentos e de seus desvios sociais, procedendo de má gestão de sua economia psíquica. Essa economia psíquica encontra-se reduzida a um disfuncionamento neuronal, a um déficit neurodesenvolvimental, ou a maus hábitos educativos. Nós estamos aqui na presença de uma nova frenologia que tira das teorias deterministas do século XIX suas raízes, cuja ideologia justificou nos sistemas totalitários as piores práticas de desumanidade.” Os modelos que dão conta dos transtornos em termos de disfuncionamento neuronal ou de uma anomalia genética justificam sobretudo o ‘biopoder’,a ‘biopolítica’ das populações. Aqui o desvio torna-se natural. E esse modelo põe em marcha a economia encorajando ‘a servidão liberal’. Essa medicalização dos sofrimentos repousa sobre o postulado simples martelado incessantemente como uma evidência, pelos promotores desse tipo de saúde mental. Nossa posição é de que os riscos éticos desse tratamento preventivo são, em psiquiatria, os mesmos para todas as intervenções precoces em medicina” (GORI, 2005, p.18 ).

Não será surpresa saber que, nessa mesma lógica, iniciativas se desenvolvem um pouco em todo o mundo a fim de empregar mais cedo ainda os rastreamentos, desde o nascimento e mesmo antes, durante a gravidez, como por exemplo no caso da França, onde as iniciativas tão generosas quanto as de acompanhar melhor as mulheres grávidas em sofrimento, inquietas, ou simplesmente isoladas, oferecendo-lhes um apoio mais acolhedor e mais humano, se transformaram recentemente em um programa oficial, prevendo uma entrevista psicossocial sistemática, no quarto mês de gravidez, na qual ninguém sabe, até o presente momento, o que garantirá sua confidenciabilidade, e em que isso servirá tanto aos interesses dos interessados quanto aos dos serviços sociais encarregados de cuidar melhor das populações (DUGNAT & DOUZON, 2007).

Confrontados com essa situação, os psicanalistas têm outra coisa a propor, além do que devem fazer todos os cidadãos, quando eles percebem que as liberdades fundamentais e logo a democracia estão em perigo? Podem fazer outra coisa além de chamar a atenção da comunidade científica assim como dos interventores sanitários e sociais aos quais está associada e dos quais se torna cúmplice? Têm eles outros argumentos para fazer valer, além daqueles que permitem apoiar, as análises epistemológicas, éticas e políticas, como algumas que acabo de sintetizar?

 

Na prevenção dos transtornos relacionais precoces

Hoje mais que nunca, acredito ser possível responder sim a esta questão. E se as propostas que são possíveis de serem feitas não aspiram ao status de panacéia universal, penso que elas não são menos susceptíveis de trazer uma contribuição importante ao movimento de resistência que a situação atual impõe. Essas propostas são de fato de três tipos:

1. Prevenção dos transtornos relacionais precoces em consulta

A primeira das modalidades de trabalho de prevenção em que os psicanalistas (como os psicólogos e psiquiatras formados em psicanálise e trabalhando nos diferentes lugares de acolhimento e de cuidados da pequena infância) podem participar é a que consiste em trabalhar não só com os pais em dificuldade, mas também com as crianças e mais particularmente com as menores.

a) Trabalho com as crianças menores

Interessar-se no momento de sua aparição, “in situ”, pelos transtornos relacionais que uma criança apresenta antes de esperar os efeitos e conseqüências patogênicas e as seqüelas que podem resultar disso, tem, evidentemente, efeitos preventivos.

Esses transtornos aparecem geralmente durante um período, que se situa entre o nascimento e a idade de Édipo, quer dizer, num tempo de prematuração em que a fala está inscrita no cruzamento das sensações corporais e das palavras, um tempo em que o crescimento e o devir da criança pequena dependem ainda totalmente desta fala. A clínica nos ensinou que durante este período a criança atua conforme o que a questiona ou a coloca em sofrimento. Sua busca é, neste nível, em princípio e antes de tudo, identitária. Na ausência de resposta, ela reage através de transtornos funcionais ou psíquicos, o que testemunha, ao menos num primeiro momento, sua boa saúde psíquica.

Só posteriormente, caso tenha ficado frustrada com essa resposta, que lhe é indispensável para continuar seus progressos, é que ela se organizará em sintoma. Esperando, ela abandona os avanços que tinha empreendido, e retorna a um estado de equilíbrio, ou mais exatamente volta a uma imagem inconsciente mais segura do corpo anterior. DOLTO, 1984; SCHAUDER, C. [eds], 2004). Visto que os transtornos relacionais precoces aparecem nestes primeiros tempos de vida, nos quais deve-se poder retornar em muitos tratamentos de adultos (BURKAS, 2005), isso com as dificuldades e as resistências sabidas, é que nós achamos indispensável que os psicanalistas se interessem por isso no momento de seu surgimento, e não esperar os efeitos e conseqüências patogênicos e as seqüelas que podem daí resultar.

Para tanto, é preciso que esses psicanalistas estejam prontos a comunicar-se com o que há de mais arcaico na criança (ver mais particularmente MALENDRIN, 2004–2005; YVERT et al., 2005).

De fato trata-se de comunicar-se com o que há de mais regredido nela, mas sem complacência com essa regressão, sem nunca gozar desse arcaico tão freqüentemente fascinante para os adultos. Trata-se de ir procurar o outro, de acompanhá-lo, ou ainda ajudá-lo a encontrar os meios suscetíveis de tornar-lhe possível a vida na comunidade dos humanos e permitir-lhe, ao fazer isso, ultrapassar, “hic et nunc”, a dificuldade com a qual ele se choca. Isso, para nós, é prioritário e se revela, ao mesmo tempo, terapêutica do sofrimento e preventivo dos sintomas que podem resultar daí...

b) Trabalho com os pais

Na impossibilidade de desenvolver esse aspecto do trabalho, notar-se-á, todavia, que é durante esse período precoce, quando a criança desenvolve estes transtornos relacionais, que os analistas podem verificar as tendências à regressão, que alguns adultos, que devem assegurar a tutela destas crianças, apresentam. Em razão da proximidade, tanto psíquica quanto física, à qual essa responsabilidade os conduz, esses adultos são realmente algumas vezes levados a reviver inconscientemente o “já vivido” e insuficientemente simbolizado na época de sua própria infância (HAMAD, 2004).

Esses acompanhamentos psicanalíticos que queremos que ainda existam, que não são consultas de aconselhamento9 e não têm nada a ver com os programas de aconselhamento e de educação, com a parentalidade que floresce um pouco em todo lugar, podem permitir-lhe de aí voltar a fim de assumir o surgimento. Ao fazer isso eles desincumbem a criança pequena e permitem a ela seguir em frente. É aí que se inscreve a eficácia do que Dolto nomeia “parole vraie”, quando ela autoriza a criança em sofrimento a encontrar seu desejo, a apoiar-se nele para continuar seu caminho e sair dos impasses desatinados, dos não-ditos e das mentiras.

2. Difusão dos conhecimentos relativos à construção e às condições da subjetividade

Nem todas as crianças necessariamente têm necessidade,ou os meios de adequarem-se aos psicanalistas. Seus pais também não.

Com muita freqüência, os sofrimentos dos pequenos resultam apenas de desconhecimentos relativos a seu funcionamento e a suas necessidades...

A segunda das propostas, que está em questão, quer lembrar a importância de continuar o trabalho de difusão dos conhecimentos relativos à construção e às condições da subjetividade, iniciado por Freud em seu tempo. Sabe-se que em 1933, quer dizer, bem depois da sua descoberta da pulsão de morte, ele afirmava sempre ser tema que lhe parecia “ter a maior importância, tendo em vista as magníficas perspectivas que ele oferece para o futuro. A saber..., a aplicação da psicanálise à pedagogia, a educação da geração por vir!” (FREUD, 1933). Freud conservava, conseqüentemente, essa idéia, a despeito das conclusões que sua segunda tópica o havia conduzido em matéria de prevenção dos transtornos mentais e, de maneira mais geral, a propósito das probabilidades de ver o homem melhorar, certas dificuldades que ele é chamado para encontrar, estando intimamente ligadas à sua essência e não podendo ceder a nenhuma tentativa de reforma. (FREUD, 1929/1986).

Freud conhecia igualmente o risco “de cair no preconceito segundo o qual cultura equivaleria a progresso e mostraria ao homem a via da perfeição” (FREUD, 1929/1986, p.46). Nós também o reconhecemos evidentemente. Mas porque não temos esta ambição e do modo de F. Dolto, nós temos somente a de minimizar parcialmente os sofrimentos devidos à ignorância (DOLTO, 1981), nós continuamos a pensar que é indispensável lutar contra eles, transmitindo o que aprendemos a respeito da construção e das condições da subjetividade. (SCHAUDER [eds], 2004; SCHAUDER [eds], 2005).

A clínica mostra realmente que é porque eles permaneceram atentos a algumas dessas condições que os pais e os profissionais podem se perguntar quando a criança tenta fazer ouvir seu sofrimento, ao invés de se precipitar para fazê-la calar, como eles são cada vez mais convidados hoje.

No rastro da releitura do infantil para a qual Freud nos convidou, e graças aos ensinamentos da psicanálise, certas violências antes infligidas antigamente com assiduidade às crianças tornam-se mais raras, a partir dos anos 70. Desde então alguns segredos de família e outros silêncios, cheios de conseqüências, são doravante suprimidos com mais freqüência, sendo comum aparecer nas consultas dos pais ansiosos por não compreenderem alguma manifestação de mal-estar de sua criança pequena. São muitos os que sabem reconhecer que existe aí algo de importante para sua criança, que eles desejam compreender e, sobretudo, ajudar a viver melhor. Um pouco em todo lugar, escuta-se falar dos bebês e aos bebês como a pessoas, e não mais como a animais a serem adestrados. Em vários lugares do mundo as crianças não são mais, graças a essas contribuições, acolhidas e tratadas como o eram com tanta freqüência anteriormente.

Sem dúvida essas informações podem, muitas vezes, igualmente servir para elaborar raciocínios destinados a explicar tudo e, como todos os discursos dos cientistas, a tamponar as brechas que elas poderiam abrir. Não faltam exemplos de pais e profissionais prontos a fazer disso novos dogmas, ou armas duvidosas, contribuindo para estabelecer seu poder. Eles foram muitas vezes contrários a nós, em razão do passado.

Mas o que acontecerá com essas crianças amanhã, quando não houver mais ninguém para dizer ou lembrar que uma criança é, desde o nascimento, um ser de linguagem, e logo, um sujeito? O que será dessas crianças que serão entupidas de psicotrópicos e outras anfetaminas na presença do menor sintoma, ao invés de se perguntar o que não vai bem? O que será delas quando mais ninguém estiver interessado em escutar e a fazer escutar sua voz, para mostrar que é ela quem padece sob a ditadura do mercado farmacêutico e das reeducações cognitivo-comportamentais?

3. A casa verde

Em face dos limites da difusão desses saberes (SCHAUDER, 2006), em face das resistências que o inconsciente pode opor à razão e às escolhas esclarecidas pelas descobertas da psicanálise, e em face das que se manifestam quando os adultos se põem a escutar o que as crianças dizem, os psicanalistas podem igualmente contribuir para o trabalho de prevenção, participando das experiências. Tal como a que, junto com outras como Marie Hélène Malendrin ou Annie Grosser, Françoise Dolto iniciou em Paris em 1979: A “Casa Verde” é realmente um lugar de prevenção, cujo modelo foi espalhado um pouco em todo o mundo. Lugar de acolhida e de lazer para os crianças menores, obrigatória e constantemente acompanhadas de um familiar responsável (mãe, pai, avós, babá, etc....), onde se vai anonimamente, quando se quer e pelo tempo desejado, sem consulta marcada, sem receita ou relatórios médicos. Não se faz aí nenhuma consulta, e a ida lá é para os adultos falarem na presença das crianças, que vão e vêm livremente e descobrem a relação social e as trocas com outros, além dos familiares. Os acolhedores, psicanalistas e profissionais analisados, colocam-se à disposição das crianças pequenas e maiores, que freqüentam esse lugar para escutar, e falar, repreender, e se for preciso, fazer ouvir o que acaba de se dizer ou de se mostrar. Trata-se então de um lugar onde se pode colocar palavras acerca do que a criança pode estar sofrendo, e onde o seu sofrimento possa ser reconhecido com compaixão. (DOLTO, 1987, p. 104; SCHAUDER , N., 1988; SCHAUDER, C. & SCHAUDER, N., 1991).

A questão da simbolização está aí permanentemente na “ordem do dia” e “a trabalho”. As frustrações que a criança tem são faladas ali, e desse modo, as castrações que ela deve receber não aparecem nunca como o feito de um príncipe todo-poderoso, sádico e sobretudo dispensado de se submeter às leis de todos.

Regras, pouco numerosas mas intangíveis, servem de suporte para a confrontação da criança (mas também dos adultos ) com os limites que, pelas palavras que os acompanham, têm vocação para ser estruturantes. O proibido adquire valor de inter-dito (VASSE, 1995, p.93-110) e o exercício da função parental encontra seu sentido e sua finalidade.

Na medida em que na Casa Verde a presença dos pais garante à criança sua segurança básica, mas lhe permite também ser nomeada, interpelada, e até mesmo situada na sua própria filiação (quando ela acaba de ser evocada e os acolhedores convidam os adultos a associar sua criança ao que se diz de essencial para ela), o dispositivo oferecido se propõe igualmente como um lugar de marcação na ordem das gerações e dessa inscrição que barra a estrada ao arbitrário e aos trens mais ou menos loucos de autofundação e da confusão..

A concepção psicanalítica da socialização precoce, numa sociedade cada vez mais marcada pela solidão, a ruptura dos laços familiares assim como o desaparecimento das tradições e das referências (o que Dolto chamava a “lepra simbólica”), faz com que nesse lugar seja oferecida a possibilidade para a criança ter acesso aos outros na segurança, na confiança estando acompanhada, até que o mundo dos outros não seja mais vivido como ameaçador, e que ela aceite se distanciar dele mesmo, para finalmente existir fora da presença da sua mãe (DOLTO, 1987). É por isso que Dolto queria que esse lugar fosse intermediário entre o lar e o mundo social, e que antes de toda separação, e antes de entrar na creche ou na escola maternal, a criança possa se preparar para se aproximar de outras crianças menores e maiores. Um lugar onde ela possa também “se vacinar” contra os incidentes e as emoções de seus encontros, graças à presença segura e confortadora do adulto responsável conhecido dela” (DOLTO, 1987).

A socialização precoce que a Casa Verde permite, apresenta-se então como uma oferta de inscrição simbólica “do pequeno do homem”, não só em relação à sua intimidade familiar, mas também com relação a toda a coletividade que o recebe e deve constituir um lugar para ele (SCHAUDER, 2000). E não obstante, ele é convidado a fazer isso, a primeira coisa que é feita quando ele chega: a inscrição no quadro (ou sobre o papel situado na entrada) do seu nome, traço escrito de sua presença singular depois da sua passagem neste lugar.

Para que o encontro da criança pequena com os outros se realize, ao mesmo tempo, na segurança e na dinâmica que desencadeiam as castrações symboligènes10, a socialização que se torna possível inscrever-se aí, na seqüência lógica das mutações que conduzem “o pequeno do homem” a procurar em outro lugar o que lhe é recusado no seio do que Vasse (1995, p.103) chama o “jardim edipiano”. Permitir à criança entrar no “jardim social” vai com efeito permitir a ela encontrar interesse em outros, além daqueles da família, outros além dos que permitem aproximar o núcleo do íntimo. E é assim que fechando-se a porta, que deve lentamente, mas certamente, interditar o acesso ao “jardim edipiano”, abre-se a passagem em direção a todos eles. As modalidades de acolhida que a Casa Verde propõe apresentam-se assim como um quadro suscetível de dar à socialização precoce sua plena medida e de se revelar o que ela deveria ser em todo lugar: a operação que permite “ao pequeno do homem” tomar lugar no grupo ao qual ele pertence enquanto sujeito, quer dizer, ser de palavras e filiação simbólica.

Uma vinheta clínica vai ilustrar do que se pode abster como preventivo nesse tipo de lugar .

A cena se passa na Casa Verde. Marie deve ter 18 meses ou dois anos. Annie Grosser11 que trabalha neste dia a conhece um pouco... Ela está ao telefone quando cruza o olhar de Marie. Esta a olha, e enquanto Annie discute, Marie ultrapassa o quadro e escreve sobre a parede. A acolhedora repreende e continua sua conversa. Ela levanta a cabeça, Marie cruza de novo seu olhar e recomeça.

Fim da conversação telefônica. Annie vai em direção a Marie: “O que você tem a me dizer hoje? Eu não a estou conhecendo. O que você quer me contar rabiscando sobre a parede?”. Marie olha no fundo do sala. Annie continua: “Ah,você não veio com sua babá, você veio com seu pai .” Do pai só se vê dois pés e pernas; ele desdobrou o “Le Monde” e se escondeu atrás dele. Então Annie diz a Marie: “Ah, é isto. Você quer que eu conheça seu pai. Vamos lá”. Ela a toma pela mão, faz toc-toc sobre o jornal do pai e diz : “Bom-dia Senhor, eu me chamo Annie Grosser; Marie quer que a gente se conheça”. Ele: “Como você sabe isto?”. Annie: “Ela escreveu fora do quadro, na parede, o que não é seu hábito; ela escreveu sobre as paredes, eu não a reconheço assim”. Ele: “um quadro, uma parede, enfim Senhora.... Ela é pequena ainda...!” Annie, brincando: “Ah eu não tinha ainda notado que Marie era um pouco limitada intelectualmente!” Ele: “Por que você diz isto ?” Annie: “Se você diz que Marie não é capaz de fazer a diferença entre um quadro e uma parede, talvez ela seja um pouco limitada!” Evidentemente, ele não fica contente e responde : “Mas eu não disse isso!” Annie quer tranqüilizá-lo e lhe diz que está brincando, mas Marie a interrompe com seu olhar, pega seu hidrocor e rabisca o jornal do seu pai. Ele, bastante orgulhoso : “Você está vendo, ela faz qualquer coisa. Ela rabisca!” Annie: “Não, Marie está me pedindo alguma coisa, mas eu não sei ainda o quê”.

E nesse momento Marie olha para ela ainda mais seriamente e Annie é chamada a sustentar este olhar e a dizer “Sim!” Marie pega seu hidrocor e rabisca a calça do seu pai. Então ele faz um movimento violento, surpreso e irritado. Annie espera, vai acontecer alguma coisa. Marie também. E então este pai “se eclipsa” e diz: “Você sabe naquela idade...” Marie comenta docemente : “Papai não... o pai”, como Annie percebe então dentro dos olhos da criança um olhar de desespero imenso. Num murmúrio, ela começa: “Meu pai, eram correiadas!” E se afunda em lágrimas.

Marie acabou seu trabalho. O do seu pai pode começar agora.

Se nessa seqüência, a analista torna-se inteiramente disponível à séméiologie12 (principal característica do trabalho psicanalítico com as crianças que ainda não falam), se ela se pergunta sobre o que é dado a ver e ouvir, se ela concede à expressão do corpo, inclusive do seu tomado na relação transferencial, um lugar privilegiado, isto não como uma observadora behaviorista ou comportamentalista à maneira dos babywatchers, mas, primeiramente, e antes de tudo, porque ela está à procura, e na escuta do pequeno sujeito que, ainda que sem palavras, procura se fazer entender por ela. É a ele que ela está atenta. (GOLDER, 2005 ). Aqui é a imputação do sujeito (do qual Dolto fez o pedestal de toda sua prática e que Annie retoma por sua conta), que se vê na obra da qual pode-se medir o alcance.

É porque Marie quer ouvir alguma coisa de seu pai, mas como esse pai não pode nem tomar a palavra, nem agir (porque para ele, bater e falar são a mesma coisa), que ela vai procurar Annie, que não só a olha mas igualmente a vê... Não somente a escuta, mas também a ouve.

E o que ela procura fazer esta criança ouvir? Que ela chame seu pai, ou antes, que ela chame o pai. É através dessa relação que Annie será para Marie, que ela atingirá seus fins e encontrará o caminho, voz13... é na verdade graças a esta manobra que esse homem poderá se constituir como pai de seu filho...

O analista está aqui atento a um apelo, à palavra do pai, que Dolto tinha notado a função singular desde 1946, quer dizer, como lembra Solange Faladé, bem antes que Lacan pensasse em teorizá-la (FALADÉ, 1993, p.557). Trata-se para Dolto de um pai do qual ela faz uma das garantias essenciais das castrações “simbolígenas”.

Mas para que o pai de Marie possa chegar lá, para que ele possa ocupar este lugar onde Marie o convoca, é preciso que alguma coisa advenha, que alguma coisa se abra nele, que alguma coisa de um outro tempo se desperte, algo de uma outra instância, precisamente a da criança que existe nele, a qual ele não tem mais acesso e da qual procura se proteger.

Dolto mostrou que é freqüentemente nesse encontro com a “infans” que se despertam, algumas vezes no adulto, sofrimentos de uma amplitude insuspeitada suscetíveis de colocá-lo em dificuldade. Nesse encontro ele é efetivamente e antes de tudo questão da criança que os adultos foram, e, mais precisamente ainda, do fato que

“a linguagem da criança tem isto de inquietante estranheza ou familiaridade, que nos toca no que temos de mais íntimo, de mais secreto (heimlich), e que se tornou ao mesmo tempo estranho ao nosso pensamento adulto. Essa linguagem encontra uma ressonância na nossa linguagem de criança que em si é muda, dissimulada, mas que responde através do nosso corpo, nosso ressentido muitas vezes inominável. Mas não é porque esse ressentido é inominável para o adulto, o pai, que ele não tem representação. Geralmente essa representação é da ordem da inscrição no corpo. É ela em nós que se faz eco, que desperta no contato com o bebé que nos emociona” (HAMAD, 2004, p.29 ).

Acrescentemos que a clínica mostra que nesses casos, quer dizer, quando há uma barreira intransponível entre os adultos que têm a responsabilidade e a criança que chama, quando não há resposta no número que as crianças discam em busca dos pais, ou então quando elas só encontram uma formalidade, quer dizer, um pai ou uma mãe puramente formais, e até mesmo decididamente indeterminada, o sofrimento que aparece não demora a se transformar em patologia...

Ao analista confrontado com esse tipo de situação, Dolto designa um papel de condutor entre dois seres que estão na impossibilidade de se encontrar sem sua mediação. Mas este traço de união só poderá se inscrever nesta partitura se o analista encontra, com a criança, o caminho em direção a esse outro no outro. É ao fazer isso que Dolto e respectivamente seus alunos, como aqui Annie Grosser, fazem trabalho de prevenção.

 

Conclusão

Eis aqui então, rapidamente esboçado, um painel com algumas pistas, que acredito indispensáveis para que os psicanalistas continuem a avançar.

Sustentando desde seu nascimento um ser humano na sua identidade, seu espaço, seu tempo, suas linhagens paterna e materna, oferecendo-lhe as mediações imaginárias que sustentam a simbolização das relações humanas (DOLTO, 1985) ou acompanhando o sujeito no caminho que o conduzirá a inscrever suas relações com os outros nas relações de palavra (enquanto elas não cessem de criar o outro na sua alteridade), essas iniciativas evitam em muitos casos as complicações que levam freqüentemente a transtornos de relações precoces.

Porque elas integram os ensinamentos da psicanálise e se inscrevem na sua ética, oferecem uma verdadeira alternativa às políticas preventivas que querem impor os mantenedores da psiquiatria médica e as suas conseqüências deletérias.

Resta saber se os psicanalistas vão querer levantar este desafio!

 

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Recebido em: 03/07/2007
Aprovado em: 11/07/2007

 

 

Sobre o autor:
Psicólogo •Psicanalista • Professor associado de psicopatologia clínica da Faculdade de Psicologia – Université Louis Pasteur – Strasbourg, France • Endereço eletrônico: ncschauder@hotmail.com

Tradução: Juliana de Paula Baia / Maria do Carmo de Melo Pinheiro
1 N.T. interventores sanitários ou agentes de saúde.
2 N.T “volens nolens” expressão que significa “não querendo (e) querendo”.
3 N.T. Talvez poderíamos pensar em “donos de laboratórios”
4 170 000 caixas reembolsadas na França em 2004, ou seja, três vezes mais que em 2000 (cf> Cécile PRIEUR, “Des enfants sages sur ordonnance”, Le Monde, 23.11.2005)
5 Criado em 1964, o Instituto Nacional da Saúde da Pesquisa Médica é um estabelecimento público de caráter científico e tecnológico, que está sob a dupla tutela do Ministério da Saúde e do Ministério da Pesquisa. É na França o único órgão público de pesquisa inteiramente dedicado à saúde humana. Seus pesquisadores têm por vocação o estudo de todas as doenças, das mais freqüentes às mais raras, através de seus trabalhos de pesquisas biológicas, médicas e da saúde das populações (cf site internet INSERM France)
6 N.T. “Heritabilité” – probabilidade de uma característica aparente de um indivíduo ser transmitida hereditariamente por fatores genéticos.
7 Esse manifesto recolheu em alguns meses mais de 200 000 assinaturas e foi finalmente renegadas pelas mais altas instâncias científicas de nosso país.
8 N.T. Em francês “parentalité”
9 N.T. “Consultations de guidance” : ajuda psicológica e psicoterapêutica e conselhos dados por um especialista tendo em vista uma melhor adaptação da pessoa.
10 Em francês “simbolígenas”, termo não dicionarizado.
11 Nós agradecemos aqui Annie Grosser, psicanalista e acolhedora da Casa Verde, por ter nos autorizado a publicar essa vinheta apresentada na Jornada de estudos da SPF “Psicanálise com crianças: questões atuais”, Marseille, 13 e 14.10.2001.
12 “séméiologie” em francês
13 No original: voie(x) jogo de palavras: voie – via, caminho; voix – voz

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