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Epistemo-somática

versão impressa ISSN 1980-2005

Epistemo-somática v.4 n.1 Belo Horizonte jul. 2007

 

ARTIGOS

 

O discurso organizador da perinatalidade na França de hoje

 

The organizer speech of perinatally in today's France

 

El discurso organizador de la peri natalidad en la Francia de hoy

 

 

Marie-Paule Chevalérias

Universté Louis Pasteur – Strasbourg, France

 

 


RESUMO

Quando as manifestações comportamentais da criança e do adolescente são fonte de preocupação social ou de desordem na cidade ou no seio das familias, os políticos recorrem de imediato ao saber científico, a fim de pôr em prática qualquer dispositivo que permita dar uma reposta rápida ao tumulto ocorrido, e prevenir posteriormente tal disfunção. Inscrevendo-se nesse contexto geral, o discurso organizador da prevenção dos problemas infantis encontra na perinatalidade seu ponto de apoio. Mas quais podem ser os efeitos sobre o fato de tornar-se pai e sobre o ser em devir que é filho dessa angústia social e desse saber do Outro, que permite contê-la ? Quais poderiam ser as injunções éticas de uma política de prevenção em perinatalidade, baseada numa abordagem preditiva do tornar-se do sujeito?

Palavras-chave: Perinatalidade, Discurso social, Prevenção, Ética.


ABSTRACT

When children’s and adolescents’ behavioral demonstrations are source of social concern or disorders in the city or inside families, politicians immediately appeal to scientific knowledge in order to put any device into practice, which allows to give a fast response to the uproar and to prevent the disorder afterwards. Inscribing itself in this general context, the organizer speech of childish problems prevention finds in perinatally its abutment. But what are the effects of becoming a parent and of the being in devir (tenho duvidas quanto a este termo mas foi o unico que encontrei para ser em devir) which is the social angst’s and the Other’s knowledge’s son, that permits to restrain it? What could be the ethical injunctions of a perinatally prevention politic based on a predictive approach about becoming a subject?

Keywords: Perinatally, Social speech, Prevention, Ethics.


RESUMEN

Cuando las manifestaciones comportamentales del niño y del adolescente son fuente de preocupación social o de desorden en la ciudad o en el seno de las familias, los políticos recurren inmediatamente al saber científico, con el fin de poner en práctica cualquier dispositivo que permita dar una repuesta rápida al tumulto, y prevenir posteriormente tal disfunción. Inscribiéndose en este contexto general, el discurso organizador de la prevención de los problemas infantiles se encuentra en la perinatalidad su punto de apoyo. Pero cuales pueden ser los efectos sobre el hecho de ser padre y sobre el ser en desarrollo que es hijo de esa angustia social y de ese saber del Otro, que permite contenerla ? Cuales podrían ser las directrices éticas de una política de prevención en perinatalidad, basada en un abordaje predictivo de lo que se va a convertir el sujeto ?

Palavras clave: Perinatalidad, Discurso social, Prevención, Ética.


 

 

A sociedade na qual vivemos na França de hoje enfrenta, há alguns anos, uma exacerbação da divulgação, pela mídia, dos disfuncionamentos sociais e familiais. Aquilo a que chamamos normalmente de « crise da periferia », ou ainda as desordens que ocasionam, no meio escolar ou familiar, os tumultos do comportamento da criança ou do adolescente, ou, então, a descoberta de maus-tratos graves infligidos às crianças nas escolas ou no ambiente familiar; todas essas informações assumem, no contexto atual, o caráter de revelação de situações percebidas como particularmente dramáticas, que irrompem num cotidiano que até então parecia tudo ignorar. Divulgadas no discurso mediático, essas situações engendram reações das populações e das famílias em que se vêem exacerbados a emoção e o apelo premente à solução rápida da desordem.

Para enfrentar essa problemática, interpretada, a maioria das vezes, como conseqüência de uma falha parental na transmissão dos pontos de referência essenciais, que possibilitam a vida em sociedade e em família, os políticos fazem apelo ao legislador e ao saber dos cientistas, procurando achar as soluções mais eficazes para conter as desordens ocorridas, pensando ser necessário intervir o mais rápido possível para prevenir todas essas disfunções.

Nesse contexto que revela as falhas do modelo social e as desordens familiais, a criança aparece, ou como um ser despreparado, frágil e terrivelmente dependente de seu meio de vida, ou, ao contrário, onipotente, impondo sem limite sua lei e seu poder ao outro. Essas situações vêm questionar, como havia enunciado Laurence Gavarini, há alguns anos (GAVARINI, 2001), nossa relação com a criança, as representações que temos dela, o lugar que lhe é atribuído ou talvez, cada vez mais, o lugar que lhe é imposto na nossa sociedade. Essas histórias policiais, divulgadas pela mídia, e retomadas imediatamente nos discursos sociais e políticos, produzem outros efeitos: de um lado, o de estigmatizar a criança pelos problemas que ela suscita e, por outro lado, o de questionar a qualidade de seu meio, seus próximos e, em primeiro lugar, seus pais e seus métodos educativos.

A uma política de cuidados comuns, prestados a crianças e adolescentes em dificuldade, acrescenta-se hoje uma política de prevenção de grande amplitude, cujo objetivo é a detecção e a assunção, o mais precocemente possível, não dos problemas relacionais revelados entre os pais e a criança, mas das situações reconhecidas como vulneráveis e potencialmente de risco para o desenvolvimento e o desabrochar da criança no futuro. É nesse contexto que se inscrevem as grandes orientações e diretrizes de intervenção na perinatalidade, cujos eixos centrais são o rastreamento sistemático desde o quarto mês da gravidez das vulnerabilidades psicossociais dos pais, e a implantação do que se chama « uma educação para a parentalidade.

Além da reivindicação legítimada por todos do bem-estar da criança, pergunta-se: que significa, entretanto, para os atores políticos, encarregados da conduta da sociedade, essa idéia de bem-estar, e a que lhe é associada a da educação dos pais? Por que ter feito a escolha da solicitação dos atores médico-sociais para a implementação de um programa de prevenção que, na realidade, se inscreve num tecido social, cuja problemática diz respeito tanto à economia quanto à evolução dos costumes e das idéias? A angústia presente no discurso social não estaria procurando uma forma de se calar, « aninhando-se » numa política de prevenção precoce, preconizando intervir antes que o « mal » apareça?

Enquanto clínico, não podemos deixar de interrogar-nos sobre o impacto que podem ter sobre a criança e sobre as relações que têm com seus próximos, os discursos sociais e científicos que fundamentam a política de prevenção. No contexto social atual, que exige uma intervenção precoce, que lugar é reservado ao tornar-se pai e ao ser em devir que é a criança?

Para tentar esclarecer essas questões, vários eixos serão explorados aqui:

- o primeiro propõe situar o papel desempenhado através da história pelo discurso social e científico sobre as políticas de prevenção na perinatalidade;

- o segundo questionará o dispositivo atual, e as implicações que ele levanta em relação à expressão da subjetividade.

 

1. O discurso social enquanto ordenador do discurso médico

O estudo das relações e das diretrizes, previstas hoje no âmbito da prevenção na perinatalidade, mostra que a problemática dos transtornos da criança, como também do adolescente, se situa no centro das propostas, e orienta toda política de atendimento aos pais, a ser desenvolvida desde a época da perinatalidade.

O Plano perinatalidade: humanidade, proximidade, segurança, qualidade -2005-2007 lembra, na verdade, que « os acontecimentos ocorridos durante a gravidez, o parto e o período neonatal inflluenciam consideravelmente o futuro da criança e seu estado de saúde, tanto no que se refere à ocorrência de certas doenças, ou até deficiências, quanto a seu acesso ao bem-estar e, mais tarde, a seu desenvolvimento. » Ele acrescenta que« os profissionais especializados no nascimento estão de acordo quanto à necessidade de considerarem-se as vulnerabilidades pessoais e familiais particulares desse período como um fator que influencia o bom desenvolvimento do processo natural do nascimento. »

Podemos dizer que, nessas primeiras considerações, concordamos com as políticas de prevenção implementadas até hoje, cujos objetivos eram os de atentarmos para todo acontecimento ocorrido nesse período, reconhecendo-os como sendo de uma fragilidade especial, a fim de que a mulher grávida possa levar a bom termo sua gravidez e, em seguida, acolher da melhor forma possivel o seu filho. Mas o que constitui novidade hoje é o elo implicativo que se opera com a predição, a longo prazo, de transtornos relacionais relativamente graves. O texto continua: « Essas vulnerabilidades são na verdade de natureza a perturbar a instauração do laço esperado entre os pais e o filho, disfuncionamentos que podem ser causa de problemas psicopatológicos posteriores na criança até a adolescência e para além dela, até mesmo causa de maus-tratos ». É essa predição que vai, então, se estabelecer como discurso ordenador das ações a serem seguidas.

Quais poderiam ser os efeitos desse discurso, presente no fundamento da política de prevenção, nesse período tão especial da espera e do nascimento de uma criança? Se a prevenção em perinatalidade é um assunto largamente debatido há muito tempo, essa prevenção dizia respeito, no entanto, à mortalidade materna e infantil, a do deficiente, e a do prematuro, isto é, tratava-se, antes de tudo, da luta pela preservação do bem-estar físico da criança. Essa preservação se apoiava principalmente nas recomendações médicas e de higiene de vida, isto é, o cuidado com a saúde materna desde a gravidez. Nesse caso, o discurso médico ocupava um lugar de destaque na preocupação com os cuidados a serem prestados ao corpo materno, a fim de garantir, da melhor maneira possível, o bem-estar físico da mãe e do filho. E foi por ocasião das dificuldades encontradas principalmente pela mãe na travessia psíquica dessa época da gravidez e do pós-parto que se fazia apelo à competência dos psicólogos ou psiquiatras. Podemos dizer que o dispositivo relativo aos cuidados acompanhava a evolução somática e psíquica da mulher nos diferentes períodos da gravidez, parto e primeiros encontros com o filho.

O elo que se opera atualmente entre as preocupações sociais e o dispositivo médico-social que cerca a vinda de um filho vem transformar radicalmente a abordagem do nascimento, tanto para os profissionais quanto para as famílias. Com efeito, se até o momento presente tratava-se de acompanhar da melhor maneira possível os pais nesse período da perinatalidade, e de levar em consideração as situações das famílias em dificuldade, a partir de agora, o fator preditivo, inerente às noções de vulnerabilidades e fatores de riscos, definidos de antemão, vem transformar as representações das mulheres e dos homens atendidos e a maneira de pensar a posição parental, antes mesmo que eles próprios tenham tempo de fazer a experiência do encontro com o filho.

Antes mesmo de aprofundarmos esses aspectos, façamos um desvio na história da prevenção em perinatalidade, para tentar abordar a evolução dessa « amarração » entre discurso social, político e discurso médico.

A prevenção na área da perinatalidade não data de hoje. Podemos dizer que a preocupação primeira na origem de sua implantação na França remonta ao fim do século XVII, após a constatação, feita pelos primeiros demógrafos, da existência de uma mortalidade infantil extremamente importante e economicamente insuportável para o país. O estudo mais aprofundado dessa constatação revelava, então, que essas perdas humanas se situavam essencialmente no comecinho da vida da criança, isso sobretudo em razão da recusa das mães a amamentar seu filho (BADINTER,1980). Essa recusa se relacionava, nas classes mais ricas, a questões de costumes, e, nas classes mais pobres, às condições de vida demasiadamente miseráveis, que obrigavam a måe a trabalhar e a confiar seu recém-nascido a uma babá mercenária, ela própria miserável.

Diante dessa miséria humana, políticas sociais, discursos filosóficos e religiosos se alternaram, sobretudo na época das Luzes, para tentar parar esse flagelo.Tratava-se de mudar as mentalidades, revalorizando a mulher em seu papel de mãe junto ao filho, dando-lhe os meios financeiros para sobreviver. Podemos dizer nesse caso que, a uma questão social, uma resposta, em termos de política social de transformação dos costumes, estava sendo implementada.

Apesar da importância das medidas tomadas, se houve regressão da mortalidade infantil, esta só ocorreu progressivamente e muito depois, devido à resistência das populações às mudanças de hábitos e de crenças, ao olhar lançado sobre a mulher e sobre a nova expectativa de seu lugar como mãe. Tratava-se de todo um contexto social, cultural, religioso, transmitido de geração em geração, e com ele toda uma mudança nas modalidades do saber estar com seu filho que havia sido abalado, e que vinha limitar o projeto societal. Ademais, era preciso que cada um pudesse apropriar-se, em seu percurso de vida, desse projeto comum, e isso levou tempo.

O que é importante nesse percurso de proteção à criança é a grande imbricação dessa questão com o reconhecimento dos lugares de cada um na sociedade. Se em si era suficiente incitar as mães a amamentar seus filhos, a fim de asssegurar-lhes a sobrevivência, era necessário ainda que isso fizesse sentido para as mães, que elas encontrassem um lugar e uma função nesse novo papel de mãe. Era preciso que esse engajamento coletivo na questão do bebê fosse acompanhado também de um reconhecimento social das qualidades maternas e de uma valorização de sua função. Em outros termos, a uma questão inicial de sociedade, foi proposta uma mudança desta que, como acréscimo, permitiu às crianças sobreviver.

As mudanças sociais ocorridas no século XIX com a industrialização e a urbanização exigiram um novo olhar sobre a criança. Seja ela abandonada, ou entregue a si mesma, errando em grupos pelas cidades, agora é a criança maior que é reconhecida com toda a sua fragilidade, considerada como elemento de risco para ela própria e para a ordem pública. Uma nova dimensão da prevenção é, então, posta em prática: decidiu-se socorrer as famílias e principalmente as mães com dificuldades sociais, oferecendo-lhes ajuda, e pondo à disposição de seus filhos lugares de acolhimento. A prevenção toma o rumo daquilo que será conhecido algum tempo mais tarde como « proteção materna e infantil ».

Com o impulso formidável das descobertas médicas, psicológicas e psicanalíticas do século XX, uma outra transformação da maneira de pensar a prevenção se opera mais uma vez. O período da infância é doravante reconhecido por todos como um período crucial para a criança, e a relacão mãe/recém-nascido é extremamente valorizada. Deve fazer-se de tudo para atender a criança, nas melhores condições, e uma importante medicalização do nascimento é implantada. No âmbito da perinatalidade, tratava-se de dar conselhos de higiene de vida à mulher grávida, de proteger a criança desde seu nascimento, de confiá-la à mãe o mais rapidamente possível, a fim de que se pudesse pôr em prática esse apego primordial, fonte de tantos estudos, como os estudos célebres de Klauss et Kennel (KLAUS; JERAULD; KREGER; Mc ALPINE; STEFFA; KENNELL, 1972). É o aqui-e-agora da descoberta do recém-nascido que passa a constituir fonte de interesse.

A psicanálise demorará, no entanto, muito tempo para entrar no mundo do hospital, sendo anteriormente dada a prioridade aos cuidados médicos e à técnica do nascimento, e aos conselhos de puericultura, embora seja dada progressivamente uma grande atenção às interações reais e fantasmáticas do recém-nascido com seus próximos e sobretudo sua mãe (LEBOVICI, 1983).

A influência da psicanálise no mundo da primeira infância fez-se primeiramente em outros lugares que não as maternidades, sobretudo em lugares de acolhimento como a « Casa Verde » (Maison Verte) de F. Dolto (DOLTO, 1985), ainda que a detecção dos transtornos da « maternalidade » (RACAMIER; SENS; CARRETIER, 1961) e das patologias próprias do período perinatal estivesse já em fase de estudo. Mas é principalmente na atuação engajada em relação aos transtornos psíquicos reconhecidos, e igualmente no acompanhamento psicológico da experiência vivida da maternidade, que ela encontrou o seu lugar desde então.

Ora, esse objetivo em relação ao acompanhamento do futuro pai ou pais, simultâneo à descoberta feita pelos psicanalistas dos transtornos psíquicos que os pais vivem, está sendo suplementado, num objetivo preventivo, por um projeto educativo, pré-pensado para eles, relegando os profissionais « psi » ao segundo plano, num trabalho de apoio às equipes médicas e paramédicas. Quais seriam as injunções desse dispositivo atual em relação à sujetividade?

 

2. As injunções do dispositivo atual em relação à subjetividade

As políticas de prevenção, baseadas numa abordagem causal e linear, concebidas em quatro tempos : detectar, predizer, investigar e intervir, podem aplicar-se às problemáticas psíquicas, tal como estas aparecem no mundo de hoje? Qual é a prevenção possível no período da perinatalidade?

O tempo da perinatalidade é reconhecido por todos hoje como um tempo de fragilização especial, em que os remanejamentos da obra participam da implantação não de um saber-fazer parental, mas de um movimento psíquico criador no cotidiano do ser pai na relação com o filho. Esse trabalho psíquico complexo se realiza na intimidade das relações ao corpo-próprio, ao recém-nascido, ao cônjuge e na apropriação progressiva dos momentos da história individual e familial (WILLERVAL-CHEVALERIAS, 1999). Esse trabalho delicado deve ser protegido, como bem havia detectado Winnicott (WINNICOTT, 1957), a fim de que essa experiência – a de ser pai – possa fazer-se por si mesma.

O engajamento materno no processo da maternidade, Winnicott o concebe como algo totalmente novo para a mãe, em virtude de ela não saber como o bebé vai se comportar. Para ele, é uma mãe desprovida de qualquer saber sobre o outro – estimulada só pelo seu desejo – que se apresenta a seu filho. Se a singularidade, o caráter único do encontro pode ser evidenciado aqui, descobre-se também aí toda a complexidade inconsciente desse engajamento, que repousa unicamente sobre a subjetividade materna. E é justamente esse desejo que é preciso preservar, nos diz Winnicott, protegendo a jovem mãe « de tudo o que pode intrometer-se entre ela e o filho » (WINNICOTT, 1973, p.12). O que Winnicott comenta aqui é de extrema importância, e vem questionar diretamente as políticas a serem implantadas na perinatalidade. Pode-se intervir com objetivo preventivo, sem atrapalhar, ou até perturbar aquilo que está sendo posto em prática e criando um elo com a criança, no seio das relações precoces?

O que pode vir a intervir entre a mãe e o filho é todo um saber preestabelecido, vindo de um outro, nos diz Winnicott, um saber que não se importa com a dinâmica desejante singular. É o que, em primeiro lugar, nos diz o «saber social», e sabemos a que ponto ele é desenvolvido na nossa sociedade, e sobretudo no discurso atual organizador da perinatalidade. Mas é também um saber que não pode ser transposto como tal: o « saber pertencendo à própria mãe da jovem que deu à luz ». A relação com o recém-nacido, iniciado pelo desejo materno, não pode, pois, ser concebido em relação unicamente a um saber social, ou a uma retomada de um modelo educativo, mas, ao contrário, em relação a um funcionamento e a uma apropriação, num contato com o bebê, do corpo-próprio e da dinâmica psíquica. Tratar-se-ia para a mãe, no aqui e agora do encontro com seu bebê, de colocar em prática, ou mesmo à prova, seu desejo de viver « a experiência de agir conforme seu sentimento » (WINNICOTT, 1973, p.12), como nos diz Winnicott, isto é, « de ser », « de existir subjetivamente ». Essa experiência vivida na relação com o outro, o bebê, e ajustada à sua alteridade, não somente seria útil ao bebê, mas também levaria à descoberta por si mesma do como ser mãe.

Trata-se de uma temporalidade psíquica a ser respeitada, que não está de acordo com uma temporalidade linear, previsível. O inesperado está no centro das relações que se tecem no cotidiano com a criança recém-nascida, e é precisamente esse encontro e a maneira como ele vai ser apreendido e elaborado singularmente por cada um dos pais que permitirá o nascimento dessa vez do ser pai e do ser filho e a criação do elo que os une. Esse caminhar no desconhecido não é, entretanto, sempre fácil, sabemos disso, sobretudo quando os pontos de referência psíquicos indispensáveis faltam. E, nesse caso, os riscos de distúrbios relacionais e de perda de identidade são bem reais. Mas, pode-se prevenir alguma coisa, antes mesmo que ela aconteça, quando, por outro lado, sabemos de toda a plasticidade do funcionamento psíquico, principalmente nessa fase da perinatalidade? Michel Dugnat (DUGNAT, 2004, p.102) nos diz a esse respeito : « do ponto de vista psíquico, não há nada a « pre-venir »; ao contrário, trata-se justamente de « vir depois », de inter-vir para oferecer uma atenção, uma escuta, um trabalho de elaboração para situações potencialmente violentas ».

Que sentido e que influência pode ter, nesse caso, uma intervenção a partir do quarto mês da gravidez, através de um trabalho de investigação das vulnerabilidades psicossociais? Que espaço é deixado ao acompanhamento, quando a prevenção precoce é articulada a um esquema linear de resolução de uma preocupação de saúde pública?

Para terminar, eu retomaria um enunciado de Jean-Claude Ameisen, presidente da Comissão de Ética do Inserm, publicado num artigo do jornal « Le Monde », em 8 de fevereiro de 2007, em que ele nos lembra que « a missão primeira da medicina é de acompanhar a pessoa que sofre. Não se deve deslocar seu papel, sobretudo pedindo-lhe que faça prevenção de risco coletivo, com objetivo político ».

Ele dissera igualmente, anteriormente, com Didier Sicard, presidente da Comissão consultiva nacional de Ética, num artigo do jornal « Le Monde », publicado em 23 de março de 2006: « Há um ano, a comissão de ética do Inserm recomendava que as experiências, realizadas em nível de organizações de pesquisa, não formulem, senão nas urgências, recomendações de forma prescritiva (…).A Ética não reside na afirmação daquilo que não deve acontecer em termos de humano. Ela reside nessa interrogação permanente sobre o que constitui nossa humanidade. É preciso enriquecer o humano, não reduzi-lo; aliviar o sofrimento e ajudar cada um a inventar seu futuro, não aprisioná-lo numa predição: respeitar a alteridade e a diversidade, não determiná-la como alvo e persegui-la, com a obsessão de adaptá-la sem parar a uma « norma » muitas vezes cambiante, sempre ilusória ».

 

Referências

BADINTER, E. L’amour en plus. Paris, Flammarion, 1980.        [ Links ]

DOLTO , F. “Nous irons à la Maison Verte”. in: La Cause des enfants, Paris, Robert Laffont, 1985, 541-602.        [ Links ]

DUGNAT, M. Prévention précoce Parentalité et périnatalité, Ramonville Saint-Agne, Érès, 2004.        [ Links ]

GAVARINI, L. La passion de l’enfant Filiation, procréation et éducation à l’aube du XXIè siècle. Paris, Denoël, 2001.        [ Links ]

KLAUS M. H., JERAULD R., KREGER N., Mc ALPINE W., STEFFA M. et KENNELL J.H., 1972, Maternal attachment importance of the first postpartum days, New England Journal of Medicine, 286, 460-63.        [ Links ]

LEBOVICI, S. Le nourrisson, la mère et le psychanalyste – Les interactions précoces. Paris, Le Centurion, 1983.        [ Links ]

RACAMIER P.C., SENS C., CARRETIER L. “La mère et l’enfant dans les psychoses du post-partum”, Evolution psychiatrique, 1961, IV, 525-570.        [ Links ]

WILLERVAL-CHEVALERIAS M.-P. Le désir maternel d’intimité avec le nouveau-né, Villeneuve d’Ascq, Presses universitaires du Septentrion, 1999.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. L’enfant et sa famille–Les premières relations(1957), Paris, Payot, 1973.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 01/07/2007
Aprovado em: 16/07/2007

 

 

Tradução: Consuelo Fortes Santiago
Revisão: Maria Dolores Lustosa Cabral

Sobre a autora:
« Maître de conférences » em Psicologia clínica da Faculté de Psychologie et des Sciences de l’Éducation – Universté Louis Pasteur – Strasbourg, France • Endereço eletrônico: marie-paule.chevalerias@psycho-ulp.u-strasbg.fr

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