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Epistemo-somática

Print version ISSN 1980-2005

Epistemo-somática vol.4 no.1 Belo Horizonte July 2007

 

ARTIGOS

 

Do imaginário ao simbólico: o desabamento do sujeito frente à doença oncológica

 

From the imaginary to the symbolic one's falling-apart face cancerous diseases

 

De lo imaginario a lo simbólico: el derrumbe del sujeto frente a una enfermedad oncológica

 

De l'imaginaire au symbolique : l'écroulement du sujet face à la maladie oncologique

 

 

Anamarina de Oliveira Soares; Rosa Carla de Mendonça Melo Lôbo

Santa Casa de Misericórdia de Maceió – Maceió, Brasil

 

 


RESUMO

O homem está inserido em uma sociedade dita hoje narcisista, onde o universo ilusório do tudo ter e tudo poder são as regras impostas por esse mundo contemporâneo. Entretanto, é diante do adoecimento que o sujeito desaba e se depara com a sua falta. Este artigo tentou pontuar a importância da pesquisa realizada pelo psicanalista no ambiente hospitalar, abrindo a possibilidade de o sujeito falar de sua história de vida para além da história de sua doença. Foi a partir do recorte de duas outras pesquisas que trataram das crenças relacionadas ao processo de adoecimento e cura em pacientes portadores de doença oncológica que se pretendeu construir reflexões a respeito da castração, do narcisismo e das representações de masculinidade e feminilidade. Buscou-se demonstrar a possibilidade de aproximação entre a pesquisa empírica representada pelo discurso da ciência, que nega a subjetividade, e a pesquisa psicanalítica que pode favorecer a escuta psíquica do sujeito e contribuir para a interlocução dos vários saberes, possibilitando uma melhor intervenção da equipe multiprofissional.

Palavras-chave: Pesquisa, Psicanálise, Ciência, Câncer.


ABSTRACT

Men are inserted nowadays into a so-called narcissistic society, where having everything and being capable of anything are the rules imposed by this contemporary world. However, when it comes to facing illnesses, one falls apart and realizes the things he really lacks. This article has tried to emphasize the importance of the psychoanalyst’s researches inside the hospital environment, with the purpose of giving the patient the possibility of talking about his life’s history, instead of only relating the history of his disease. Taking information from two other researches about the beliefs regarding the sickening and healing processes in cancerous patients, this present project has intended to build the possibility to contemplate subjects such as the castration, the narcissism and the masculinity/femininity representations. The main aim was to demonstrate the approach possibility between the empirical research, which is represented by the scientific-denial-of-the-subjectivism speech, and the psychoanalytic research, which has the ability of sustaining one’s psychic attendance, and to contribute to the gathering and use of the many available forms of knowledge. This tends to possibilitate a much efficient intervention from the multi-professional crew.

Keywords: Research, Psychoanalysis, Science, Cancer.


RESUMEN

El hombre está incluido en una sociedad hoy reconocidamente narcisista, donde el universo ilusorio de tener todo y poder todo son las reglas impuestas por este mundo contemporáneo. Mientras, es frente a la enfermedad que el sujeto se derrumba y se encuentra con su fallo. Este artículo intenta marcar la importancia de la investigación realizada por el psicoanalista en el ambiente hospitalario, abriendo la posibilidad del sujeto contar su historia de vida más allá de su historia de enfermedad. Fue a partir del recorte de dos investigaciones que trataron de las creencias relacionadas con el proceso de la enfermedad y la cura en pacientes portadores de enfermedad oncológica que se pretendió construir reflexiones respecto a la castración, al narcisismo y a las representaciones de masculinidad y feminidad. Intentando demostrar la posibilidad de aproximación entre la investigación empírica representada por el discurso de la ciencia que niega la subjetividad y la investigación psicoanalítica que puede favorecer la escucha psíquica del sujeto y contribuir para la interlocución de los varios saberes, posibilitando una mejor intervención del equipo multiprofesional.

Palavras clave: Investigación, Psicoanálisis, Ciencia, Cáncer.


RESUMÉ

L’homme est inséré dans une société appelée aujourd’hui narcissique, où l’univers illusoire du tout avoir et du tout pouvoir sont les règles imposées par le monde contemporain. Cependant, c’est en se confrontant à la maladie que le sujet s’écroule et se retrouve face à son manque. Cet article a essayé de ponctuer l’importance de la recherche réalisée par le psychanalyste en milieu hospitalier, quand celui-ci ouvre au sujet la possibilité de parler de son histoire de vie, en allant au-delà de l’histoire de sa maladie. C’est à partir du recoupement de deux autres recherches - celles traitant des croyances se rapportant au processus de la maladie et de la cure chez des patients porteurs de maladie oncologique - qu’on a voulu construire des réflexions sur la castration, le narcissisme et les représentations de la masculinité et de la féminilité. On a essayé de montrer la possibilité de rapprochement entre la recherche empirique, représentée par le discours de la science, qui nie la subjectivité, et la recherche psychanalytique, qui peut favoriser l’écoute psychique du sujet, et contribuer à l’interlocution des divers savoirs, en rendant possible une meilleure intervention de l’équipe multiprofessionnelle.

Mots-clés: Recherche, Psychanalyse, Science, Cancer.


 

 

A humanidade está inserida em um universo transformacional em vários setores do conhecimento. É fato que a tecnologia vem exercendo uma imensa contribuição para as várias transformações e, dentro destas, as modificações socioculturais, éticas, psicológicas, religiosas e ambientais acompanham a globalização deste mundo dito moderno.

Pensar hoje no sujeito é acompanhá-lo dentro da contemporaneidade. Os novos paradigmas estão instalados, e os regimentos e os códigos que imperam a lei também estão bem diferentes.

Vivemos hoje uma sociedade extremamente exigente quanto aos padrões estéticos de beleza e de poder. O núcleo familiar está também sendo remodelado. Pais casam, separam e constituem várias outras famílias. Casais homossexuais adotam crianças. Filhos e pais brigam na justiça por dinheiro. Filhos matam pais.

Paralelo a isso tudo o poder da ciência é fantástico! Casais inférteis podem ter seus filhos. Extremos prematuros sobrevivem e concluem seu processo maturacional fora do útero. Células tronco trazem uma esperança de vida a várias pessoas. Órgãos vitais já estão sendo substituídos por artificiais. Somado a isso, o estudo genoma vem antecipando situações e revelando achados jamais esperados.

Na sociedade do poder, onde tudo é regido pelo capital, as idealizações imperam e as frustrações abrem espaço para um estado de conflito que acarreta mal-estar. Comprar, ter e poder são palavras de ordem! Paradoxalmente, no entanto, é no contexto hospitalar que nos deparamos com o “desabamento do sujeito”. As palavras saem da ordem e desorganizam todo discurso. Assim, para ser reconhecido, o homem tem buscado “adquirir” falsos semblantes.

No campo da urgência médica, a urgência psíquica se instala e a psicanálise quer saber daquele que padece. De sua dor, seu sofrimento e sua angústia que, apesar de todo avanço tecnológico, não consegue ser tratada pela ciência médica. Onde faltou, falhou ou causou estranheza à ciência, a psicanálise surge como o recurso possível para lidar com o que não estava “pré-visto”. E foi assim com Freud, o pai da psicanálise, médico e pesquisador, que, com as pacientes histéricas, pôde ver além dos sintomas que se apresentavam e enxergar, ou melhor, escutar o sofrimento daquilo que elas, tal qual a ciência, não sabiam.

Em seu texto “A questão da análise leiga”, Freud já trazia sua preocupação com a difusão da psicanálise. Seus esforços pretendiam que a psicanálise se tornasse “(...) indispensável a todas as ciências que se interessam pela evolução da civilização humana e suas principais instituições como a arte, a religião e ordem social” (FREUD, 1926/1969, p. 280).

Atualmente, psicanalistas adentram os hospitais e cada vez mais a Psicanálise vem sendo convocada para auscultar a singularidade de cada sujeito. Porém, ao sair do consultório particular, o psicanalista também é desafiado em sua práxis. Deixa de trabalhar sozinho e passa a compor uma equipe multidisciplinar. A interlocução dos saberes e as discussões sobre o paciente se fazem necessárias e, assim, comunicar os efeitos terapêuticos de nossa escuta e de nosso trabalho é de extrema importância para contribuir com um saber sobre o sujeito que padece.

Vale ressaltar que Freud, em seu escrito “Dois verbetes de enciclopédia”, vem definir a psicanálise como:

“(...) o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica” (FREUD, 1923/1969, p. 287).

As pesquisas científicas no hospital se incluem nesse rol de comunicações, ao tempo em que também, já em sua execução, favorecem a escuta com o método psicanalítico, promovendo espaço para a fala e assim atribuindo ao sujeito uma possibilidade de manifestar o seu sofrimento.

Freud, em seu texto “Construções em análise” (1937), compara o ofício do psicanalista ao de um arqueólogo em seu trabalho de escavação no que se refere à capacidade de construção e reconstrução, chegando a concluir que a principal diferença entre os dois é que o psicanalista possui no seu trabalho de reconstrução a condição inicial para o tratamento e não o seu fim.

Diferentemente do médico que trabalha com o estetoscópio ou mesmo o bisturi, o psicanalista leva a sua escuta diferenciada a todos os contextos em que estiver inserido, havendo um direcionamento baseado em um método de investigação. Portanto, quando se faz psicanálise, se faz pesquisa.

A esse respeito Warchavchik, Saddi & Khouri (2004) apontam que as intervenções do analista são o veículo que possibilita ao paciente criar uma narrativa sobre os vazios representacionais, completando sua afirmação ao direcionar a importância da escrita na transmissão da pesquisa. Para essas autoras, a escrita possibilita a criação e o desenvolvimento do pensamento psicanalítico.

Hermann (2000) apud Zecchin (2004) destaca que, ao se trabalhar com o método psicanalítico, são lançadas condições para que se aprimore a condição terapêutica. Assim nos diz:

“(...) a investigação psicanalítica é eficaz e produtiva, desde que não ceda à tentação de imitar o difundido modelo tecnológico-estatístico; que a função terapêutica instaurada pelo emprego do método psicanalítico possui amplitude bastante para cumprir diferentes metas, em condições bem diversas; que isso se dá, não pela introdução de conhecimento e de técnicas derivadas das teorias psicanalíticas, mas pela transformação em instrumento terapêutico do próprio conhecimento, das vivências e das práticas inerentes à equipe; que assim se cria uma espécie de síntese das contribuições peculiares às diversas disciplinas e uma abertura à dimensão emocional do conhecimento, úteis para a instauração de um novo tipo de interdisciplinaridade e potencialmente capazes de transformar a própria prática no hospital” (HERMANN apud ZECCHIN, 2004, p.41-42).

A pesquisa no hospital pode agregar subsídios da pesquisa empírica, com seus dados quantitativos e da pesquisa psicanalítica, sustentada por um método que envolve uma técnica fundamentada na associação livre do entrevistado, atenção flutuante do analista e da transferência, a partir da escuta psíquica do sujeito. Quando se faz pesquisa psicanalítica, ocorre uma mudança no enquadre e não uma mudança do método.

Por meio da pesquisa no hospital, pode-se instalar a possibilidade de o sujeito falar a história de vida para além da história de sua doença, resgatando a subjetividade tão combatida numa pesquisa empírica. Permite-se que o sujeito seja escutado de uma forma diferenciada.

Dentro da impossibilidade da Ciência em considerar a subjetividade do paciente, os dados quantitativos podem ser uma forma de tradução/transmissão da grande importância do desejo inerente a cada sujeito.

Trazemos agora, para ilustrar, o recorte de duas pesquisas que abrangem os métodos já descritos, onde se procurou realizar uma construção, a saber, sobre o adoecimento oncológico.

Ao pesquisar as Crenças relacionadas ao processo de adoecimento e cura em pacientes com câncer de próstata e mulheres mastectomizadas, buscou-se, no ambiente hospitalar, agregar os métodos psicanalítico e empírico, demonstrando a possibilidade do encontro desses saberes, visando a uma melhor consideração do discurso de tais pacientes.

Tratou-se de um estudo clínico transversal, com participação voluntária e amostragem constituída por meio de uma técnica não-probabilística cuja coleta dos dados foi realizada por meio de Entrevistas Semidirigidas Individuais (roteiro de questões-estímulo). Tais dados foram categorizados por tipo de conteúdo e analisados quantitativa e qualitativamente.

O estudo foi realizado com 25 pacientes mastectomizadas e 25 pacientes portadores de câncer de próstata em tratamento no Serviço de Oncologia da Santa Casa de Misericórdia de Maceió, visando analisar o repertório de informações desses sujeitos, no tocante às suas crenças sobre o adoecer, o tratamento e a cura, buscando, assim, verificar as principais dificuldades inerentes a essas questões.

Chamou-se de crenças o estado persistente ou um hábito de ação involuntário e não-controlável. A origem e a (re)construção da crença são feitas através da interação do sujeito com o mundo natural e social, levando-o, a partir de uma regularidade do que foi ou é, a pensar ou fazer algo em dadas circunstâncias, de modo adequado ou habitual, demonstrando aí sua mutabilidade. Toda crença está ligada a outros estados mentais e a outras crenças (DINIZ, 2004).

Psicanaliticamente ocorre de forma consciente ou inconsciente. Os conteúdos podem ser decifrados a partir do discurso do sujeito, podendo, por exemplo, ser particulares, relacionando-se com certo objeto, situação ou seqüência de acontecimentos, mas também é admissível possuírem uma marca que lhes confere o estatuto de poderem ser atribuíveis a outrem.

A partir dos resultados encontrados pelas duas pesquisadoras, alguns aspectos inquietantes suscitaram pontos de aproximação com as duas condições clínicas, o que as fez decidir lançar um olhar além das respostas apresentadas pelos sujeitos investigados.

Os achados do início da nossa discussão aludem justamente ao conhecimento do tratamento e diagnóstico. Verificamos que parte das mastectomizadas (16%), assim como a maioria dos pacientes em tratamento do câncer de próstata (64%), deu respostas evasivas ou fez comentários eufemistas a respeito. Esse aspecto nos faz pensar na dificuldade de esses sujeitos encararem a “verdade” apresentada pelo discurso da ciência. Eis a fala dos pacientes:

“Venho aqui tratar de uma inflamaçãozinha que deu no meu peito” (M.M.S., 51 anos) e “O tratamento é pra reduzir a próstata, o problema é que ela cresce e pode virar até um câncer” (A.L.R., 57 anos).

Bion (1973) apud Zimerman (2001) mostra que o sujeito, por vezes, não pode e não quer tomar conhecimento de verdades penosas, tanto as externas quanto as internas, assim impedindo o desmascaramento, a percepção e correlação dessas verdades intoleráveis. E acrescenta: “O indivíduo pode sentir que lhe falta uma capacidade para a verdade, seja para ouvi-la, seja para procurá-la, seja para encontrá-la, seja para comunicá-la, seja para desejá-la” (BION apud ZIMERMAN, 2001, p.426).

Das mulheres mastectomizadas, 28% delas relacionaram o surgimento do câncer a um fator psicológico/estresse e/ou a uma crença pessoal em que se destaca o uso do significante “pancada” como a mais apontada por essas mulheres. A sabedoria popular atesta que as mágoas, dores e ressentimentos são responsáveis por “fazer” a doença oncológica. Os problemas conjugais, familiares, financeiros e ocupacionais citados pelas pacientes parecem ser traduzidos como “pancadas da vida”, que, em alguns casos, quando não faladas, tiveram sua resposta no corpo.

Paralelamente, os portadores de doença da próstata apontaram as relações sexuais promíscuas da juventude e as relações extraconjugais como causadoras de seu problema. Parecem se culpar pela promiscuidade, ao tempo em que se desculpam (encobrindo algo seu), pois, para eles, as mulheres são as responsáveis por levar-lhes as doenças venéreas.

Outro ponto de destaque para as pesquisadoras refere-se à questão da detecção precoce da doença. Ambas, mama e próstata, implicam a questão do toque ao corpo, em que a primeira diz de um toque por auto-exame, enquanto a segunda de um exame do toque de um outro. Sabemos que a questão do toque ao corpo é permeada por questões culturais, religiosas e psicológicas. Na mulher, o toque no próprio corpo pode ser vivido como ato proibitivo. O seio é o representante feminino, a marca da mulher. No homem, o toque do outro, no exame de toque retal, pode ser experienciado como preconceito por medo da perda de sua masculinidade.

Esses aspectos suscitam um questionamento a respeito da ameaça da perda da feminilidade e da perda da masculinidade. Parece-nos que, para a mulher, a perda do seio reflete no deixar de ser mulher, enquanto o homem sente a masculinidade ameaçada, aproximando-se do fato de ser como uma mulher. Então, vê-se aí a reedição do complexo de castração. Complexo este em que ocorrem a inveja do pênis para a menina e a entrada na angústia de castração para o menino ao ser verificada a diferença anatômica entre os sexos (FREUD, 1908). Demonstra-se o desejo de algo que lhe falta ou do que acha que pode ser retirado. Posteriormente, Lacan afirma ser esta uma operação simbólica, referindo-se ao falo como objeto imaginário e não o real, onde, a partir da falta, surge o desejo.

Masculino e feminino são categorias de gênero historicamente construídas que diferem de sexo, qualidade de macho ou fêmea (STOLLER apud BARROS LIMA, 2002). Referindo-se aos cuidados com a saúde, Barros Lima (2002) apontou que os homens apresentam índices maiores de mortalidade em relação às mulheres, relacionando isso ao fato de as mulheres se cuidarem/prevenirem mais do que os homens. Essa premissa relaciona-se com o processo de construção da subjetividade que é baseada nas questões de poder próprias das relações de gênero que vão contribuir com o surgimento dos estereótipos, sexismo e preconceitos.

No que diz respeito aos tratamentos realizados, percebeu-se que, enquanto nos homens existe um valor idealizado no tocante ao ato cirúrgico como extirpador da doença, nas mulheres o procedimento cirúrgico não foi apontado como tratamento e, em muitos casos, nem citado. A existência do corte mutilador não falado parece existir como uma reação negativa à agressividade desse ato. Porém, destacamos que em ambas as situações, a objetividade e a subjetividade presentes no procedimento cirúrgico implicam questões narcísicas.

“O ato cirúrgico é um acontecimento que marca o corpo e o si mesmo do sujeito, considerando que há um forte vínculo estabelecido entre a psique e o corpo, este último vivido como a morada da psique e os dois caminham juntos” (ZECCHIN, 2004, p.29).

O estado narcísico está presente em todas as estruturas psíquicas e pode ser compreendido como uma maneira de defesa ou de regressão do sujeito ao se deparar com situações de desamparo que apontam para sua fragilidade. Assim, também, podemos lembrar o conceito freudiano de narcisismo (1914) que nos diz que o sujeito toma o seu próprio corpo como fonte e objeto da libido sexual.

Na contemporaneidade, podemos pensar que o sujeito vem se utilizando de recursos como forma de preencher os vazios diante de sua incompletude pela condição de sua falta, falha, limitações e finitude da vida, como nos aponta Zimerman (2001).

Vale ressaltar que a pesquisa possibilitou um espaço para a escuta da subjetividade dos sujeitos investigados em um território onde o sofrimento psíquico é sempre silenciado, e as angústias “tamponadas”. Verificou-se que o pacto de silêncio presente nas unidades de tratamento oncológico, seja da equipe, familiares e/ou pacientes, acaba também favorecendo, muitas vezes, o estigma e preconceito frente ao câncer. Destacamos que, já no anúncio do diagnóstico oncológico, precipita-se no paciente uma urgência psíquica da angústia que aponta para a sua condição de ser incompleto, faltante, o que o faz desabar de seu lugar narcisista. Questionamos, no entanto, o que leva alguns pacientes com prognóstico positivo a recaírem (recidivando) ou apresentarem metástases. E ainda, em que condições os sintomas psíquicos podem impedir que o paciente se “descole” do discurso da ciência, isto é, de sua doença e surja como sujeito?

As crenças presentes no imaginário do sujeito podem ser obstáculos à procura por atendimento ou tratamento, ao tempo em que lhe servem e lhe conferem sustentação psíquica. A partir das crenças, buscou-se um entrelaçamento das respostas dos pacientes, favorecendo uma melhor compreensão destas e fornecendo subsídios para que a equipe multiprofissional – através da comunicação da pesquisa – pudesse produzir estratégias intervencionistas, criando condições de continência, aproximando-se de tais pacientes de forma a facilitar a adesão terapêutica.

Vale ressaltar a diferença entre o “saber” veiculado, transmitido, ensinado, mostrado e demonstrado pelo discurso da ciência – sempre enganoso, engodo, tentativa de encobrir a castração – e a “verdade”, esta como o produto de um sujeito que se confronta com sua experiência frente ao inconsciente e à castração.

A psicanálise está para deixar surgir o sujeito do inconsciente, permitindo-lhe que apareça a sua verdade, ao sair da universidade para a singularidade. É considerável a questão de que, no sentido da difusão da psicanálise, não se ensina, transmite-se.

 

Referências

BARROS LIMA, N. R. de. “A identidade de gênero e a lógica binária da diferença – psicanálise e gênero masculino”.in: Tópica – Revista de Psicanálise, Maceió, n.1, v.1, 2002, p.27-35.        [ Links ]

DINIZ, A. M. Sobre essas coisas a que chamamos crenças. Lisboa: Climepsi, 2004.        [ Links ]

FREUD, S. “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1908). in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.VIII, p.127-230.        [ Links ]

FREUD, S. “Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a Técnica da Psicanálise I)” (1913). in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XII, p.164-187.        [ Links ]

FREUD, S. “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914). in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v.XIV, p.89-119.        [ Links ]

FREUD, S. “Dois verbetes de enciclopédia” (1923). in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v.XVIII, p.287-312.        [ Links ]

FREUD, S. “A questão da análise leiga” (1926). in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XX, p.209-293.        [ Links ]

FREUD, S. “Construções em análise” (1937). in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v.XXIII, p.291-304.        [ Links ]

WARCHAVCHIK, I. H., SADDI, L. & KHOURI, M. G. “Um estudo sobre características da pesquisa psicanalítica”. in: HERMANN, F. & LOWENKRON, T. Pesquisando com o método psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.        [ Links ]

ZECCHIN, R.N. A perda do seio. Um trabalho psicanalítico institucional com mulheres com câncer de mama. São Paulo: Casa do Psicólogo: FAPESP, 2004.        [ Links ]

ZIMERMAN, D. E. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2001.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 15/06/2007
Aprovado em: 29/06/2007

 

 

Sobre as autoras:
Anamarina de Oliveira Soares
Psicóloga pós-graduada em psicologia hospitalar pela Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – SP, Brasil • Psicóloga do Instituto de Cardiologia da Santa Casa de Misericórdia de Maceió – AL, Brasil • Psicóloga do Centro de Referência da Assistência Social Cacilda Sampaio – AL, Brasil • Endereço eletrônico: anamarinasoares@ig.com.br
Rosa Carla de Mendonça Melo Lôbo
Psicóloga pós-graduada em psicologia hospitalar pela Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – SP, Brasil • Coordenadora do Serviço de Psicologia e Psicóloga do Centro de Oncologia da Santa Casa de Misericórdia de Maceió – AL, Brasil • Candidata em formação psicanalítica pelo Núcleo Psicanalítico de Maceió – AL, Brasil, filiado à International Psychoanalytical Association (IPA) • Endereço eletrônico: jhlobo@uol.com.br

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