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Epistemo-somática

Print version ISSN 1980-2005

Epistemo-somática vol.4 no.1 Belo Horizonte July 2007

 

ARTIGOS

 

Psicanálise, ciência extima

 

Psychoanalysis, science and extimity

 

Psicoanálisis, ciencia éxtima

 

Psychanalyse, science extime

 

 

Gilson Iannini

Universidade Federal de Ouro Preto – Minas Gerais, Brasil

 

 


RESUMO

A epistemologia contemporânea assistiu a um gradual esvaziamento de sua dimensão normativa, devido à falência de soluções epistêmicas para o problema da demarcação. Neste artigo, estudo as relações entre psicanálise e ciência em outros termos. A noção lacaniana de extimidade é central em nosso argumento.

Palavras-chave: Ciência, Psicanálise, Problema da demarcação, Validade, Extimidade.


ABSTRACT

The contemporary epistemology has seen a gradual emptying of its normative dimension, due to the epistemic criteria’s failure to solve the so-called “problem of demarcation”. In this article, I study the relationship between psychoanalysis and science from another point of view. Lacan’s notion of “extimity” plays a major role in my argument.

Keywords: Science , Psychoanalysis , Problem of demarcation , Validity , Extimity.


RESUMEN

La epistemología contemporánea asistió a la gradual pérdida de su dimensión normativa, debido a las carencias de las soluciones epistémicas para el problema de la demarcación. En este artículo, estudio las relaciones entre psicoanálisis y la ciencia en otros términos. La noción lacaniana de extimidad es el centro de nuestro argumento.

Palavras clave: Ciencia, Psicoanálisis, Problema de la demarcación, Validad, Extimidad.


RESUMÉ

L’épistémologie contemporaine a vu la disparition graduelle de son caractère normatif, du à l’échec des critéres épistemiques face au « problème de la démarcation ». J’étudie ici les rapports entre la psychanalyse et la science en d’autres termes. La notion lacanienne d’extimité occupe une place tout à fait centrale dans ce travail.

Mots-clés: Science , Psychanalyse, Problème de la démarcation, Validité, Extimité.


 

 

I

Intimidade não é o termo que melhor descreve as relações entre psicanálise e ciência. Diversos fatores contribuem para isso. De maneira geral, a pergunta pela cientificidade da psicanálise esbarra em duas ordens de dificuldades iniciais.

1. Primeiramente, definir o que vem a ser ciência e estabelecer critérios de cientificidade não é tarefa fácil. Muitas vezes, filósofos da ciência que se empenharam nesta tarefa chegaram a resultados constrangedores. Critérios demasiado estritos de cientificidade freqüentemente deixam de fora ramos do conhecimento tradicionalmente associados à nossa imagem de ciência. Ênfase na verificabilidade empírica de proposições ou restrição a enunciados em algum grau dependentes de pressupostos metafísicos poderiam gerar o dilema de, por exemplo, ou rejeitar a cientificidade de certos setores da matemática ou renunciar a protocolos rígidos de cientificidade. Por outro lado, critérios demasiado frouxos acabam implicando a aceitação contra-intuitiva de certas práticas, que dificilmente poderiam ser vistas como científicas, como a astrologia, para pegarmos um caso extremo. A epistemologia atual parece afastar-se mais e mais do problema da demarcação, isto é, cada vez mais o programa de determinar critérios gerais capazes de demarcar epistemicamente as fronteiras entre ciência e não-ciência ou de propor critérios racionais para escolha entre teorias rivais tem mostrado suas limitações. Isso vale não apenas para ciências humanas e sociais, mas também para ramos historicamente melhor identificados à atividade científica, como as assim chamadas ciências duras. Nem mesmo a estratégia de deslocamento do prescritivismo em direção ao descritivismo conseguiu superar as aporias acima esboçadas. No limite, este abandono progressivo de critérios epistemológicos e do caráter normativo da demarcação acaba esbarrando na também indesejável relativização do conhecimento científico e na adoção de critérios não-epistêmicos, de tipo psicológicos, sociológicos ou ideológicos, como adesão a crenças, consenso intraparadigmático ou utilidade social.

2. Uma segunda ordem de dificuldades concerne à definição do que venha a ser psicanálise. Os contornos tanto teóricos quanto práticos da própria psicanálise não são tão claros assim: a não ser por uma sensação mais ou menos vaga de filiação a Freud, não há consenso quanto ao sentido a ser dado a alguns de seus conceitos fundamentais, assim como não há consenso nem mesmo quanto aos objetivos do tratamento analítico e aos limites de sua aplicação. Correntes tão distintas como a kleiniana, a winnicottiana, a lacaniana, a laplanchiana ou a pragmática, sem contar hibridismos os mais heteróclitos, divergem não apenas do ponto de vista de seus pressupostos teóricos e técnicas, mas também quanto ao que se entende por processo ou cura analítica. Estas dificuldades incidem de maneira ainda mais forte quando se trata da extensão da psicanálise a dispositivos clínicos não-clássicos, como a psicanálise aplicada a hospitais, instituições, e/ou quando se trata da incorporação de técnicas oriundas de outras tradições psicoterápicas ou do fornecimento de subsídio conceitual psicanalítico a outras práticas terapêuticas.

Mas mesmo que as dificuldades de definir o que é ciência e o que é psicanálise pudessem ser superadas, restaria ainda a tarefa de estabelecer critérios de pertinência e limites de tolerância para a atribuição do predicado “ciência” ao argumento “psicanálise”. Deste modo, não faz sentido defender a cientificidade da psicanálise, nem denegri-la por sua suposta a-cientificidade. Ambas as posições não fazem senão ecoar o caráter meramente endossador de que goza a palavra “ciência” em nossa cultura, na qual o status de cientificidade é visto como via de acesso a títulos de nobreza do mais alto valor, capazes de garantir ingresso a uma série de benesses de diversas naturezas, desde prestígio social até financiamento para pesquisa, inserção institucional ou no mercado editorial. Assim, para tomarmos um exemplo atual, responder às críticas panfletárias de um “Le livre noir de la psychanalyse” (MEYER, 2005) pela vertente epistemológica, tentando defender a cientificidade da psicanálise, é deixar-se enredar por uma visão ideologicamente interessada, para dizer o mínimo, na qual a legitimação de uma determinada práxis é fortemente dependente da atribuição de cientificidade. Como se a postulação da cientificidade, por exemplo, da medicina ou das ciências que formam sua base teórica fosse isenta de problemas e não fosse envolta em configurações culturais mais amplas, que englobam aspectos históricos, políticos, ideológicos, etc. É certo que há um sentimento mais ou menos difuso de que neurociências ou psicologia cognitiva conformam-se melhor ao epíteto de ciência do que outros ramos da psiquiatria ou da psicologia. Mas é preciso salientar que se isso é, pelo menos em parte, verdade, é também verdade que a imagem de ciência subentendida neste caso não corresponde de nenhuma maneira a critérios epistemologicamente neutros e aceitos universalmente. Está em jogo muito mais um problema de natureza política, relativo a critérios utilitários de legitimação, do que critérios epistemológicos. Isto não quer dizer que não haja diferenças entre conhecimentos científicos e não-científicos ou mesmo pseudocientíficos. Quer dizer apenas que não dispomos de critérios epistêmicos capazes de traçar a linha divisória e que, ao que tudo indica, o problema, quando colocado em termos generalizantes, está mal formulado. Por esta razão, uma tarefa preliminar para a abordagem do tema exige uma escolha, nem sempre inteiramente justificável, de uma definição local do que se entende por ciência e por psicanálise.

Mas a suspensão do caráter normativo da pergunta pela cientificidade não quer dizer que a psicanálise possa se furtar à tarefa de explicitar protocolos para validação de sua práxis e de seus conceitos. É necessário, porém, que ela possa estabelecer parâmetros internos, a partir da própria esfera de racionalidade que ela instala. Evidentemente, estes critérios não podem fechar-se em si mesmos. É preciso confrontá-los à vasta gama de saberes e de práticas sociais com as quais a psicanálise precisa ombrear, sem que seja preciso recorrer ao que Hesse chamou de “cross-theory criteria” (1980, p. XIV) ou ao mito das “posições-padrão” de Searle (2000, p. 18-9). Não por acaso, a psicanálise nunca se furtou à tarefa de medir-se também com práticas artísticas e culturais, como a literatura, a filosofia, a teoria social, entre outras.

É claro que um programa de pesquisas que objetivasse explicitar tais protocolos de validação e estabelecer tais parâmetros de racionalidade não poderia ser nem mesmo esboçado, nos limites deste trabalho. A fim, então, de abordar o tema proposto, pretendo colocar o problema em outras bases, começando pelo tratamento localizado dado por Lacan. Vale ressaltar que suas posições quanto à cientificidade da psicanálise só podem ser extrapoladas para fora de seus contextos de origem depois de uma série nada trivial de mediações, porque são fortemente dependentes de concepções epistemológicas disponíveis em seu contexto de produção. Assim, por exemplo, proposições do tipo “a ciência forclui a verdade como causa”, que são centrais na teorização lacaniana, apenas em sentido muito aproximativo podem ser usadas na formulação de respostas a demandas culturais do tipo “a psicanálise é uma ciência?”, pela simples razão de que o termo “ciência” num e noutro caso designa coisas bastante heterogêneas. Quero dizer que proposições deste tipo informam muito mais acerca da psicanálise do que acerca da ciência. Mais precisamente: informam mais acerca de como a psicanálise trata os problemas da verdade e da causação da constituição subjetiva, do que, propriamente, respondem à questão da cientificidade. Em outros termos, embora a concepção lacaniana de ciência não tenha nada de trivial e seja absolutamente central para a formalização de uma teoria do sujeito e do objeto, ela não responde à demanda inicial de saber sobre a cientificidade ou não da psicanálise. Paradoxalmente, é nisso que reside sua força e seu interesse. Tudo se passa como se Lacan recusasse de saída a colocar o problema da cientificidade da psicanálise sob a égide do problema epistemológico da demarcação, que cada vez mais se mostra obsoleto. Deste modo, mesmo que a concepção lacaniana de ciência não dê conta da complexidade da produção científica atual (mostrando-se insuficiente, por exemplo, para pensar os desenvolvimentos recentes de certos setores da biologia, em que a matematicidade não desempenha papel tão preponderante e em que a singularidade contingente ganha força insuspeitada), ainda assim ela é relevante, pois incide na própria constituição da racionalidade psicanalítica.

O que me proponho a fazer neste trabalho é sugerir um modelo para a colocação do problema das relações entre psicanálise e ciência em outros termos, partindo de um operador interno à própria psicanálise que pode se mostrar heuristicamente profícuo. Minha estratégia consiste em avaliar se a noção lacaniana de extimidade pode ser empregada para pensar o lugar da psicanálise em relação à ciência. Extimidade, originalmente, designa a operação de “inclusão externa” (MILNER, 1996, p.85), proposta a fim de formalizar a modalidade da relação do sujeito ao significante. É possível dizer que a psicanálise está incluída externamente na ciência e por isso constitui-se como ciência extima1?

 

II

Um corte maior afeta todos os discursos compossíveis (MILNER, 1996, p. 62 e ss). O corte da ciência moderna é um corte desta natureza: há um antes, um depois e há algo que, permanecendo imune, permite nomeá-lo. Este algo seria a língua no ponto em que esta toca a dimensão do real. A psicanálise é tributária do corte da ciência moderna em mais de um sentido. A ciência moderna, segundo a leitura que Lacan faz de Koyré, caracteriza-se (i) pela idéia de um Universo infinito, marcado pelas notas da contingência e da precisão; (ii) pela recusa da existência de uma ”alma mundi” e a conseqüente rejeição do finalismo; (iii) pelo postulado de que a sucessão de eventos dá-se segundo uma ordem determinística imanente à própria estrutura deste Universo; (iv) pela literalização do real que, na verdade, resulta da combinação das teses precedentes, ou seja, da postulação de que o universo pode ser pensado matematicamente, de que o real pode ser tratado pelo simbólico; finalmente, (v) pela formulação de uma teoria do sujeito que seria correlata ao advento da ciência e lhe serviria como fundamento.

Lacan retém, sem ressalvas, as teses (i) e (ii). Em relação às teses (iii) e (iv), no entanto, opõe a noção de incompletude: (iii’) o determinismo é incompleto, o que, conseqüentemente, abre espaço para a interpretação e para o ato. Com a tese da incompletude, a literalização do real torna-se: (iv’) não há um recobrimento total do real pelo simbólico: toda formalização esbarra em um limite. Finalmente, (v’) Lacan recusa que a teoria do sujeito se consolide como metafísica da subjetividade, rejeitando o papel de fundamento do conhecimento atribuído desde Descartes ao sujeito. Lacan nega, ipso facto, que a subjetividade possa ser caracterizada pela transparência dos atos de consciência, pela interioridade como instância destes atos e pela autonomia da vontade. A estratégia é subverter a teoria moderna do sujeito, propondo o sujeito não mais como fundamento do conhecimento e da vontade livre, mas como efeito de determinações da ordem do imaginário, do simbólico e do real2; não mais como unidade e interioridade, mas como marcado por uma divisão que lhe é essencial (a ”Spaltung”). A descoberta do inconsciente leva-nos à crítica do sujeito enquanto tal, na medida em que ”o inconsciente é um conceito forjado sobre o rastro daquilo que opera para constituir o sujeito” (LACAN, 1998, p. 844). Muito embora, nos textos de Freud, o termo ”Subjekt” seja apenas pontual, importa aqui que no núcleo da psicanálise de Lacan está a convicção de que a teoria do inconsciente e da pulsão exige uma releitura do sujeito. Já em Freud, no entanto, o ’sujeito’ parece ser o pressuposto elidido da operação metapsicológica: embora não seja uma categoria da metapsicologia, é, segundo Assoun, “o pressuposto necessário da experiência freudiana”, seu operador metapsicológico (ASSOUN, 1996, p. 33-35).

A psicanálise lacaniana opõe à ciência, de uma maneira mais geral, a crítica à exigência de fundamentação suficiente e ao ideal de completude, bem como a idéia de que a ciência possa se erigir como tribunal privilegiado da verdade. Em uma palavra, a ciência como estratégia cognitiva de produção de conhecimento justificado não é nem a única, nem a melhor. Ao mesmo tempo, a metafísica da subjetividade que historicamente lhe corresponde seria um esforço obstinado, e ao mesmo tempo vão, de pensar o sujeito como uma espécie de esfera do ser em exceção ao determinismo que o programa de infinitização do universo implica. Importa menos, para Lacan, a razão pela qual o sujeito está fora do campo dos objetos possíveis da ciência: se pelo fato de funcionar como seu fundamento (Descartes) ou, ao contrário, se pelo fato de estar confinado aos limites do mundo e da figurabilidade (Wittgenstein3). A ambigüidade da relação do sujeito com o saber é a mesma ambigüidade “que manifestam os efeitos da ciência no universo contemporâneo” (LACAN, 1998, p. 808).

A tese de Lacan é que a ciência – por exigências de ordem metodológica ou epistemológica – exclui o sujeito, enquanto a psicanálise – por um imperativo ao mesmo tempo ético e estético – o acolhe. Tese que seria banal, não fosse o fato de o sujeito ser um lugar vazio onde se entrecruzam verdade e contingência.

A fórmula programática de Lacan admite o paradoxo instaurado pela equação dos sujeitos: “dizer que o sujeito sobre o qual operamos em psicanálise não pode ser senão o sujeito da ciência pode parecer um paradoxo” (LACAN, 1998, p. 858). Assim, ao operar sobre o sujeito sem qualidades e sem consciência de si, correlato antinômico da ciência moderna, a psicanálise seria, a um tempo, prova e efeito do corte que a ciência impõe. É a revolução galilaico-cartesiana que faz surgir o universo infinito e contingente que condiciona o advento da psicanálise. A tese é conhecida de todos. A escrita de A ciência no singular e com maiúsculas justifica-se, escreve Lacan,

“por uma radical mudança de estilo no tempo [andamento] de seu progresso, pela forma galopante de sua imisção em nosso mundo, pelas reações em cadeia que caracterizam o que podemos chamar de expansões de sua energética. Em tudo isso nos parece radical uma modificação em nossa posição de sujeito, no duplo sentido: de que ela é inaugural nesta e de que a ciência a reforça cada vez mais” (LACAN, 1998, p.869-870).

Lacan não pretende submeter a psicanálise a qualquer método científico pré-existente, tampouco submeter a cientificidade da psicanálise à sua subordinação a qualquer outra disciplina piloto. A pergunta propriamente lacaniana não é ’que condições a psicanálise deve satisfazer para se transformar numa ciência?’, mas, ao contrário, ’o que é uma ciência que inclua a psicanálise?’ (LACAN, 2003, p. 195). A situação pode, então, ser resumida do seguinte modo. Por um lado, a psicanálise nasce no universo já constituído pela ciência moderna e não sonha com algum idílico estado de coisas anterior ao corte que a matematização e a infinitização do universo impõem. Neste sentido, a psicanálise opera exatamente sobre o sujeito produzido nesse universo da ciência. Ela não visa devolver ao sujeito algo como uma ’plenitude perdida’, uma ’reconciliação com o sentido do ser’, ou ainda um ’estado anterior à separação sujeito/objeto’. Mas, se a psicanálise opera sobre o sujeito da ciência, por outro lado, ela não se subordina à concepção moderna que identifica razão e cientificidade e, muito menos, compartilha alguma fé obsedante quanto à exclusividade ou superioridade da ciência como estratégia cognitiva. Para a psicanálise, ainda que a natureza esteja escrita em caracteres matemáticos, ou seja, que o simbólico possa representar o real, resta algo que escapa inexoravelmente a esta redução. O conceito de Coisa (”das Ding”) é o ponto fulcral em torno do qual gira toda a rede de conceitos que engloba as temáticas relativas à incompletude, ao real, ao impossível, ao vazio, ao que permanece imune à ruptura da ciência, ao que se coloca como impasse da formalização, etc.

 

III

Na visão de Lacan, mais do que contingente, a posição epistemológica de Freud acerca da vocação científica da psicanálise lhe é essencial. É graças a ela que, por exemplo, a psicanálise está salvaguardada das críticas de inspiração pseudomarxista que tentariam reduzir a doutrina de Freud às condições históricas materiais de sua elaboração. A despeito do contexto histórico que poderia arruinar a descoberta freudiana – dupla monarquia, judaísmo, ordem capitalista e ética burguesa –, o pensamento de Freud estaria resguardado, na justa medida em que opera com o sujeito da ciência (LACAN, 1998, p. 872), ainda que este sujeito não estivesse completamente formalizado.

Lacan não se interessa em discutir a relação de Freud com o positivismo alemão. Talvez por considerar que Freud soubera superar a contento as diatribes que seu tempo enfrentava. O que não seria o caso para seus “seguidores”, que, não raro, teriam se deixado seduzir pelo porto seguro da promessa positivista. Num claro movimento de deslocamento da questão em direção ao solo francês, Lacan concentra, então, seu arsenal contra a filosofia positiva de Comte. É bastante conhecida a teoria comtiana dos três estágios. O pensamento humano passaria, inevitavelmente, por três momentos: o estágio teológico, o metafísico e o positivo. Apenas as ciências naturais teriam atingido o cimo desta evolução. Também é bastante conhecida sua hipótese acerca da hierarquia das ciências: a sociologia estaria no topo, sendo a mais alta, a mais importante. Não obstante, Comte crê que a sociologia estaria ainda, do ponto de vista de sua evolução, no estágio metafísico. Ele próprio estaria tentando fazer esta difícil passagem para a era positiva da sociologia. Mas o que de fato ocorre, conforme salienta Lacan, é justamente o inverso:

“Essa noção [de ciência verdadeira] se degradou, como se sabe, na inversão positivista que, colocando as ciências do homem no coroamento do edifício das ciências experimentais, na verdade as subordinou a estas. Essa noção provém de uma visão errônea da história da ciência, baseada no prestígio de um desenvolvimento especializado dos experimentos” (LACAN, 1998, p.285).

Não é o fundamento experimental que garante o sucesso de uma ciência, até mesmo porque um experimento só faz sentido no interior de determinado paradigma teórico e técnico4. Vale citar a conclusão de Koyré: “não só as experiências válidas se baseiam numa teoria, mas até os meios que as permitem realizar nada mais são do que a própria encarnação da teoria” (KOYRÉ, 1982, p. 288). Por este conjunto de razões, escreve Lacan, estaríamos obrigados a “revisar a classificação das ciências que conservamos do século XIX, num sentido que os espíritos mais lúcidos denotam claramente” (LACAN, 1998, p. 285).

Esta visão errônea da história das ciências pode ser consertada, sugere Lacan, pela leitura de Koyré, que mostra exatamente como o principal motor da revolução científica dos séculos XVI-XVII está longe de ser algo como a vitória da observação sobre a teoria, da vida ativa sobre a contemplativa, etc. No artigo intitulado “Uma Experiência de Medida”, citado por Lacan em “Função e campo...”, Koyré trata do papel da teoria, em oposição à experiência na revolução científica. Perseguindo seu incansável objetivo de refutar interpretações de tendência empirista da ciência (e o positivismo é uma delas), Koyré mostra como a introdução da medida no real depende da passagem do mundo qualitativo da ciência aristotélica ao mundo arquimediano da ciência galileana. Em outras palavras, “o que é exatamente a mesma coisa – substituindo o mundo do mais ou menos (...) por um Universo de precisão” (KOYRÉ, 1982, p. 272)5. Difícil não lembrar de Lacan em “Subversão do Sujeito”: “as condições de uma ciência não poderiam ser o empirismo” (LACAN, 1998, p. 809).

A concepção lacaniana de ciência, motivada amplamente pelos trabalhos de Koyré, tende a caracterizar a ciência como um dispositivo no qual a certeza se apóia apenas na consistência significante. Nas palavras de Lacan,

“Pois só a história da ciência pode aqui ser decisiva, e ela é fulgurante ao demonstrar, ao dar à luz a teoria da gravitação, que foi somente a partir do extermínio de qualquer simbolismo dos céus que se puderam estabelecer as bases, na terra, da física moderna, isto é: que, de Giordano Bruno a Kepler e de Kepler a Newton, por tanto tempo se manteve uma exigência de atribuição de uma forma ’perfeita’ às órbitas celestes (na medida em que implicava, por exemplo, a preponderância do círculo sobre a elipse), que essa exigência criou um obstáculo ao surgimento das equações mestras da teoria” (LACAN, 1998, p. 719).

Crítico do pensamento analógico e entusiasta da formalização, Lacan deparou-se cedo com impasses inevitáveis da formalização científica. A história de seu pensamento confunde-se com a história das sucessivas tentativas de superação dos impasses internos a cada modelo de formalização adotado. O recurso à estrutura, ao matema, à topologia e à teoria dos nós é apenas parte desta estratégia. É verdade que tanto sua concepção de ciência quanto seu conhecimento de história das ciências demonstram a intimidade de Lacan com a epistemologia histórica de seu tempo. Se, apesar desta intimidade, ele preferiu pensar a psicanálise como ciência extima, não é por acaso.

 

Referências

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LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.        [ Links ]

ASSOUN, P-L. Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.        [ Links ]

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Sobre o autor:
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP (Minas Gerais, Brasil) • Mestre em Filosofia (UFMG) • Diploma de “Master” em Psicanálise (Univ. Paris VIII) • Doutorando em Filosofia (USP) • Publicou “O tempo, o objeto e o avesso: ensaios de filosofia e psicanálise” (Ed. Autêntica) • Endereço eletrônico: gilsoniannini@yahoo.com.br

 

 

Recebido em: 20/06/2007
Aprovado em: 02/07/2007

 

 

1 Tomo a expressão emprestada de François Regnault (REGNAULT, 1997, p. 75).
2 Milner dá uma definição simples e precisa do dispositivo lacaniano dos registros RSI: “rien ne saurait s’imaginer, c’est-à-dire, se représenter, que de I, rien ne saurait exister que de R, rien ne saurait s’écrire que de S” (MILNER, 1983, p. 8).
3 Tractatus, §5.632. A oposição entre Wittgenstein e Lacan fica ainda mais evidente: para o segundo, o sujeito (não-metafísico e não-solipsista) é parte do Universo; para o primeiro, o sujeito (metafísico) é ”o limite – não uma parte – do mundo” (§5.641). O horizonte último da discussão parece ser menos um problema lógico ou epistemológico, como pode parecer ao primeiro exame, mas, sobretudo, um problema ético: para um, a ética do silêncio, para o outro, a do bem-dizer. Cf. a posição de Wittgenstein § 4.116 e §7 e a resposta de Lacan (2003, p. 544-5)
4 Uma das correntes da epistemologia contemporânea, amplamente baseada em Quine, advoga o holismo a fim de dar conta do problema do estatuto da empiria numa teoria científica, em oposição tanto ao atomismo baseado em protocolos de observação quanto ao coerencialismo tout court.
5 Não obstante, a situação da ciência moderna, em seu nascimento, é paradoxal: conhece as leis matemáticas exatas, mas está impossibilitada de aplicá-las, já que não dispõe de um instrumento preciso de medição do tempo. Esta situação paradoxal só termina com Huygens, criador do primeiro relógio de pêndulos com precisão considerável (1659). Interessante notar, com Lacan e Koyré, que este relógio é criado não por tentativa e erro, mas por aplicação de estudos minuciosos acerca da estrutura matemática dos movimentos circulares e oscilatórios, isto é, trata-se da encarnação de uma teoria (KOYRÉ, 1982, p. 288) ou de “órgão realizador da hipótese de Galileu” (LACAN, 1998, p. 288).

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