SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número1Psicanálise, ciência extimaEl consentimiento informado en investigación de psicología hospitalaria índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Epistemo-somática

versión impresa ISSN 1980-2005

Epistemo-somática v.4 n.1 Belo Horizonte jul. 2007

 

ARTIGOS

 

O valor do tratamento numa instituição pública

 

The worth of treatment in a public institution

 

El precio del tratamiento en una institución pública

 

La valeur du traitement dans une institution publique

 

 

Humberto Moacir de Oliveira

Fundação Hemominas – Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo visa, a partir de uma experiência de estágio no Ambulatório da Fundação Hemominas, discorrer sobre a importância e o valor do pagamento das sessões no atendimento clínico, apontando para o fato de que, para o paciente da instituição pública, o tratamento também pode e deve ter seu valor. Além disso, pretende comentar, também, como o dinheiro ultrapassa o registro da necessidade de forma a ganhar outras dimensões em todo o tratamento e em toda a instituição, o que aponta para a importância do manejo e da condução do caso dado pelo terapeuta.

Palavras-chave: Pagamento do tratamento, Clínica, Instituição.


ABSTRACT

This article discusses, from an experience of trainee in the clinic of Fundação Hemominas, about the importance of the payment in the psychoanalytical treatment, considering that in a public institution the treatment can and must has its worth. Over there, it also comments how the money exceed the register of necessity and obtains others aspects in all the treatment and institution, showing the importance of how the psycoanalyst handle and conduct the case.

Keywords: Payment of the treatment, Clinic, Institution.


RESUMEN

El presente artículo pretende, a partir de una experiencia en prácticas en el Ambulatorio de la Fundação Hemominas, disertar sobre la importancia y el valor del pago de las sesiones en la atención clínica, apuntando el hecho de que, para el paciente de dicha institución pública, el tratamiento también puede y debe tener su precio. Además, pretende comentar, también, como el dinero extrapola el registro de la necesidad de forma que adquiere otras dimensiones en todo tratamiento y en toda institución, lo cual apunta la importancia del manejo y de la dirección del caso por el terapeuta.

Palavras clave: Pago de tratamiento, Clínica, Institución.


RESUMÉ

À partir d’une expérience d’un stage au Service d’accueil et d’urgence de la Fundação Hemominas, nous nous proposons de faire une analyse de l’importance et de la valeur du paiement des séances dans l’accueil clinique, en mettant l’accent sur le fait que, pour le patient de l’institution publique aussi, le traitement peut et doit avoir son prix. Nous nous demanderons aussi comment, dans tout traitement et dans toutes les institutions, l’argent dépasse le registre de la nécessité et gagne d’autres dimensions, ce qui met en valeur l’importance de la procédure et de la conduite du cas données par le thérapeute.

Mots-clés: Paiement du traitement, Clinique, Institution.


 

 

“Oh, não vamos discutir necessidades! Nossos miseráveis mais
miseráveis sempre têm alguma coisa que é supérflua às suas necessidades
miseráveis. Se concedermos à natureza humana apenas o que lhe é
essencial, a vida do homem vale tão pouco quanto a do animal”.

William Shakespeare

 

Freud, em seu texto “Sobre o início do tratamento”, adverte que o psicanalista não deve “desempenhar o papel do filantropo desinteressado – posição que não se pode, na realidade, ocupar, sob pena de ficar-se secretamente prejudicado” (FREUD, 1913/1996, p.147). Ele acrescenta que o psicanalista deve abster-se de fornecer tratamento gratuito e não fazer exceções em favor de colegas ou familiares; porém, em sua advertência, o autor não se limita a apontar, segundo suas palavras, apenas para o sacrifício de uma parte considerável do tempo do analista. Para Freud, a questão do dinheiro ultrapassa os meios de autopreservação e de obtenção de poder do analista, para atingir questões éticas que apontam para o modo de funcionamento do paciente. Ainda sustentando esta advertência, ele diz que “as questões de dinheiro são tratadas pelas pessoas civilizadas da mesma maneira que as questões sexuais – com a mesma incoerência, pudor e hipocrisia”. O autor continua dizendo que “o analista está determinado desde o princípio a não concordar com esta atitude, mas, em seus negócios com os pacientes, a tratar de assuntos de dinheiro com a mesma franqueza natural com que deseja educá-los nas questões relativas à vida sexual” (FREUD, 1913/1996, p.146). Freud ainda irá dizer, nesse mesmo texto, que “nada na vida é mais caro quanto a doença e a estupidez” (FREUD, 1913/1996, p.148). Estas considerações apontam a importância do pagamento para que a análise se caracterize como tal e para que o paciente se sinta investindo em seu tratamento. Segundo o autor, “constitui fato conhecido que o valor do tratamento não se realça aos olhos do paciente, se forem pedidos honorários muitos baixos” (FREUD, 1913/1996, p.147).

Para Quinet (2005), ao fazer o paciente pagar, “o analista mostra que não está ali por amor, por sacrifício, ou por ideal, e muito menos para gozar das histórias escabrosas dos pacientes” (QUINET, 2005, p.92).

O que vimos, portanto, é a importância que o dinheiro adquire na análise, tendo desdobramentos tanto para o analista – como podemos ver no comentário de Freud a respeito do filantropo desinteressado – quanto para o paciente e, claro, para o tratamento como um todo. No entanto, a realidade em que vivemos nos faz deparar com situações que pedem uma outra leitura dessa advertência freudiana que diz que o analista deve se abster de fornecer o tratamento gratuito. Em muitos casos a clientela encontrada é bastante prejudicada financeiramente e, por isso, é apoiada por órgãos institucionais que oferecem o tratamento.

Vejamos, por exemplo, o trabalho de estagiários de Psicologia no Ambulatório da Fundação Hemominas (HBH). O estágio demanda uma carga horária de 20 horas semanais, cumpridas de segunda à sexta, 4 horas por dia; nesse tempo o estagiário recebe os pacientes para a primeira entrevista, e a partir daí, quem sabe, iniciar um atendimento semanal ou para possível encaminhamento. Uma parte dessa carga horária é destinada, também, a supervisão com orientação psicanalítica, assim como a discussões de textos entre psicólogos e estagiários, além de outras atividades que eventualmente a instituição possa demandar. Destacaremos, nesse estágio, os atendimentos semanais acompanhados por uma supervisão de orientação psicanalítica. A clientela que o estagiário encontra nessa instituição é de pessoas, na grande maioria dos casos, carentes e portadores de doenças do sangue (coagulopatias e hemoglobinopatias) que demandam outros tratamentos na instituição. O vínculo do paciente na instituição, portanto, dá-se pelo tratamento de sua doença, seja ela anemia, hemofilia, talassemia, etc. Uma vez cadastrado na instituição, ao paciente que demandar atendimento no Serviço de Psicologia basta agendar a primeira entrevista na recepção. A primeira advertência de Freud, que diz que bancar o filantropo desinteressado pode fazer com que o analista se sinta secretamente prejudicado, é relativamente contornada, uma vez que a própria instituição paga os honorários do estagiário. Porém, uma outra questão ainda permanece: como fazer com que o valor do tratamento realce aos olhos do paciente, como diz Freud?

Em “A descoberta do inconsciente”, Quinet vai dizer que, para a psicanálise, “a necessidade se encontra do lado do animal”, e que “o animal encontra os seus objetos na própria natureza” (QUINET, 2003, p.89). O autor continua dizendo que este não é o caso para os seres falantes, uma vez que, inseridos na linguagem, aparece para eles uma outra dimensão, a dimensão do Outro. Na teoria lacaniana, o Outro aparece, justamente, como um código onde a linguagem adquire sentido; é o lugar da linguagem, lugar de todas as significações. Nas palavras de Lacan, “o Outro é a dimensão exigida pelo fato de a fala se afirmar como verdade” (LACAN, 1998, p.853). O sujeito, então, é constituído pelo o que Lacan chamou de ordem Simbólica. Esta dimensão do Outro, derivada da linguagem, retira os seres falantes do registro da necessidade que, como alerta Quinet, “tem sempre um objeto que a satisfaz, como o alimento para a fome” (QUINET, 2003, p.89) e os introduz no registro do Simbólico, onde cada sujeito faz sua própria construção, possuindo, cada um, uma relação particular com a cadeia significante, e isto, é claro, inclui o dinheiro.

Daí Quinet afirmar que, “dizer que pobre não pode fazer análise é tratá-lo como um animal, situando sua questão de dinheiro apenas no registro da necessidade”. O autor completa dizendo que, “na verdade, o rico é mais inanalisável do que o pobre, se chamarmos de rico aquele que não tem falta” (QUINET, 2005, p.83-84).

Como podemos ver, a questão do dinheiro ultrapassa o registro da necessidade, uma vez que ele existe na linguagem. Sustentar o seu lugar sem bancar o filantropo desinteressado e deixar claro de que está ali não por amor nem sacrifício, muito menos para gozar das histórias do paciente, exigirá um manejo adequado de quem ocupe esse lugar. A questão do valor do tratamento aparecerá mesmo que não seja na forma monetária. O estagiário pode lançar mão de outros recursos para dizer do valor do tratamento, por exemplo, demarcando um limite no não comparecimento das sessões e dizendo da importância do atendimento ao menos uma vez por semana. A questão do dinheiro e do valor do tratamento aparecerá na própria fala dos pacientes – ou desmarcando sessões por motivos supérfluos ou até mesmo interrompendo o tratamento. Cabe ao estagiário manejar o tratamento, de forma que o paciente sinta seu valor, mesmo que seja no dinheiro gasto para chegar às sessões – para muitos pacientes o próprio meio de condução já representa um sacrifício de parte considerável do orçamento da família.

Na instituição, nesse caso pública, a questão financeira aparece, muitas vezes, de maneira distinta da clínica particular, porém, não parece, como foi visto, impossibilitar o tratamento. O importante é que o psicólogo cuide, no manejo e na condução do caso, para que o paciente “aprenda” e descubra como pode se tratar. Além disso, deve ser trabalhada, também, a posição que o psicólogo ocupa na instituição, lembrando que, na prática institucional, é fundamental que o profissional dialogue com outros membros da equipe sempre que necessário.

O trabalho deve, sobretudo, ser orientado por uma clínica do particular, considerando sempre os significados distintos de cada sujeito, seja em relação ao dinheiro, seja em relação ao seu sintoma. Nas palavras de Lacan, “se a soma da experiência analítica permite destacar algumas formas gerais, uma análise só progride do particular para o particular” (Lacan, 1998, p.387). Portanto, será a posição e o manejo clínico do psicólogo que determinarão o curso do tratamento, neste caso, numa instituição pública. Para isso, os estagiários são acompanhados de supervisão semanal e discussões de textos que os auxiliam tanto nos casos atendidos como na sua formação profissional e clínica.

 

Referências

FREUD, Sigmund. “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” (1912). in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XII, p.125-133.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. “Sobre o início do tratamento” (1913). in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XII, p.139-158.        [ Links ]

LACAN, Jacques. “A subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.807-841.        [ Links ]

LACAN, Jacques. “Posição do inconsciente”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.843-864.        [ Links ]

LACAN, Jacques. “Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung de Freud”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.383-401.        [ Links ]

LEITE, Márcio Peter Souza. “O Simbólico”. in: Psicanálise lacaniana: cinco seminários para psicanalistas kleinianos. São Paulo: Iluminuras, 2000, p.55-113.         [ Links ]

NEVES, Anamaria Silva. O psicólogo e o paciente-instituição: considerações teóricas acerca da intervenção. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v.19, n.2, p.44-49, 1999.        [ Links ]

NUNES, Lúcia Efigênia Gonçalves. Grupo de supervisão e discussão de texto no ambulatório da Fundação Hemominas. Belo Horizonte: Fundação Hemominas (HBH), 2005/2006. Supervisões realizadas na Fundação Hemominas, 2º semestre de 2005 e 1º trimestre de 2006.        [ Links ]

PAES, Tereza da Gama Guimarães. “Psicanálise e medicina: reflexões sobre um exercício de transdisciplinaridade”. Revista SBPH, Belo Horizonte, v.2, n.2, p.42-47,1999.        [ Links ]

SHAKESPEARE, William. O Rei Lear. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 1997. Coleção pocket L&         [ Links ]PM.

QUINET, Antonio. “Demanda e desejo”. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.87-116.        [ Links ]

QUINET, Antonio. As 4 + 1 condições da análise. 10. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 21/01/2007
Aprovado em: 10/05/2007

 

 

Sobre o autor:
Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais em junho de 2006 • Ex-estagiário de Psicologia do Ambulatório da Fundação Hemominas – Belo Horizonte, Brasil • Endereço eletrônico: 7296@bol.com.br

Creative Commons License