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Epistemo-somática

versão impressa ISSN 1980-2005

Epistemo-somática v.4 n.1 Belo Horizonte jul. 2007

 

ARTIGOS

 

O analista sinthoma: uma das funções do analista no hospital geral

 

The synthome analyst: one of the functions of the analyst at a general hospital

 

El analista sínthoma: Una de las funciones del analista en el hospital general

 

L'analyste sinthoma: une des fonctions de l'analyste à l'hôpital général

 

 

Luis Flávio Silva Couto

Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte – Brasil)

 

 


RESUMO

Trata-se da tentativa de formalizar uma função do analista no hospital geral que se coloca na vertente que vai além da escuta de um paciente. Reconhecendo a importância da escuta, este texto pretende apontar a existência de uma outra função, qual seja, a de permitir a organização de uma consistência de campos em um hospital, articulando-os com o quarto laço do último ensino de Lacan, isto é, do sinthoma. Procura-se apontar a função sinthoma do psicanalista no enlaçamento de demandas do corpo clínico, do corpo de funcionários, pacientes e familiares, entre outras. O embasamento teórico da proposta referida a elementos que não o RSI pode ser encontrado em Lacan, Quinet, Nominé, Alicia Arenas, Éric Laurent e Leonardo Gorostiza, citados no texto. Sustentando-se como elemento de amarração, deve o analista ser capaz de perceber o momento de considerar a sua função terminada quando os elementos em questão conseguirem outra forma de amarração. Nesse caso, o analista pode ser descartado da situação, deixando-se cair como resto.

Palavras-chave: Psicanálise lacaniana, Hospital geral, Função do analista, Sinthoma.


ABSTRACT

It’s an attempt to formalize a function of the analyst at a general hospital that goes beyond the listening of a patient. Recognizing the importance of the listening, this text intends to point the existence of another function, which is to allow the organization of fields consistency at a hospital, articulating them through the fourth bow as into Lacan’s last teaching, namely, the synthome. It searches to point the psychoanalyst’s synthome function at the enlacing of demands, among others, from the clinical body, from the staff, patients and families. The proposition’s theoretical basement referred to elements that not RSI can be found in Lacan, Quinet, Nominé, Alicia Arenas, Éric Laurent and Leonardo Gorostiza, quoted in the text. Maintaining himself as an enlacing element, the analyst must be able to perceive the moment to consider his function over, when the elements involved manage another type of enfolding. In this case, the analyst may be discarded from the situation, falling down as a remainder.

Keywords: Lacanian psychoanalysis, General hospital, Analyst’s function, Synthome.


RESUMEN

Se trata de la tentativa de formalizar una función del analista en el hospital general que se sitúa en la vertiente que va más allá de escuchar a un paciente. Reconociendo la importancia de escuchar, este texto pretende señalar la existencia de otra función, la de permitir la organización de una consistencia de campos en un hospital, articulándolos a través del cuarto lazo tal y como en la última enseñanza de Lacan, es decir, del síntoma. Se busca apuntar la función síntoma del psicoanalista en el enlace de demandas, entre otros, del cuerpo clínico, del cuerpo de funcionarios, pacientes y familiares. La base teórica de la propuesta referida a elementos que no el RSI puede encontrarse en Lacan, Quinet, Nominé, Alicia Arenas, Éric Laurent e Leonardo Gorostiza, citados en el texto. Sustentándose como elemento de amalgama, debe el analista ser capaz de captar el momento de considerar su función terminada cuando los elementos en cuestión consigan otra forma de unión. En ese caso, el analista puede ser descartado de la situación, dejándose caer como resto

Palavras clave: Psicoanálisis lacaniana, Hospital general, Función del analista, Sinthoma.


RESUMÉ

Notre texte a pour objet la tentative de formaliser une fonction de l’analyste à l’hôpital général, laquelle se situe sur un versant qui va au-delà de l’écoute du patient. En reconnaissant l’importance de l’écoute, ce texte prétend signaler l’existence d’une autre fonction, celle qui permet l’organisation d’une consistance de champs à un hôpital, en les articulant à l’aide du quatrième noeud, selon le dernier enseignement de Lacan, c’est-à-dire, le sinthoma. Nous essayons de montrer la fonction sinthoma du psychanalyste dans le nouage de demandes, celles du corps clinique, du corps de fonctionnaires, des patients et de la famille parmi d’autres. L’embasement théorique de la proposition, faisant appel à des éléments qui ne sont pas le RSI, peut être trouvé chez Lacan, Quinet, Nomine, Alicia Arenas, Éric Laurent et Leonardo Gorostiza, cités dans notre texte. En tant qu’élément de nouage, l’analyste doit être capable de percevoir le moment où il doit considérer sa fonction comme terminée, quand les éléments en question auront réussi une autre forme de nouage. Dans ce cas, l’analyste peut être rejeté, en se laissant tomber comme reste.

Mots-clés: Psychanalyse lacanienne, Hôpital général, Fonction de l’analyste, Sinthoma.


 

 

Introdução

Em seu texto “De nossos antecedentes”, Lacan diz que a experiência do sujeito é a matéria única do trabalho analítico (LACAN, 1966/1998: p.71). Assim, a princípio, é possível considerar que o trabalho de um psicanalista em um hospital seria o de possibilitar a experiência do sujeito. Em vista disso, podemos em primeiro lugar nos interrogar sobre o que é o sujeito para a psicanálise lacaniana, e o que vem a ser uma experiência de sujeito. No Seminário 17, O avesso da psicanálise, 1969-70, Lacan propõe uma fórmula segundo a qual “no instante mesmo em que o S1 intervém no campo já constituído dos outros significantes, na medida em que eles já se articulam entre si como tais, que ao intervir junto a um outro, do sistema, surge isto, $, que é o que chamamos de sujeito como dividido” (LACAN, 26-11-1969/1992: p.13).

Isso indica que a experiência de sujeito se dá pelo apontamento por um psicanalista de um significante mestre no enunciado de um analisante. Tal intervenção ou pontuação abre um hiato, produz um corte na seqüência dita pelo analisante, o que possibilita o surgimento de uma experiência de sujeito, o sujeito do inconsciente. A intervenção em forma de corte da cadeia enunciada, que não chega a ser o pontapé de um mestre zen (LACAN, 18-11-1953/1979, p.9) – tão bem trabalhado por Andrade (ANDRADE, 2006) –, pode produzir no analisante um espanto, uma perda de rumo ou mesmo um choro ou uma gargalhada. É claro que este ato somente deve ser executado pelo psicanalista numa situação de transferência e, mesmo assim, quando tiver se assegurado de que há uma estrutura capaz de suportá-lo.

É, portanto, a este sujeito que a psicanálise se dirige, sujeito da palavra, “sujeito que se encarrega de sua palavra” (BASSOLS, 2003, p.52), e que pelo ato da interrupção de um enunciado pode ter acesso ao seu desejo mais ignorado, ao saber que chamamos inconsciente. Bassols afirma que a pergunta sobre o sujeito da palavra e do gozo deveria estar no centro de cada intervenção de todos aqueles que estão implicados nos dispositivos de uma instituição, embora ressalte que não se trata com isso de fazer, de cada um, um psicanalista, não se importando muito com o lugar que deve ter um psicanalista na instituição (BASSOLS, 2003, p.56).

O objetivo deste texto, entretanto, é o de propor um mais além dessa função no caso de um psicanalista em uma instituição hospitalar. O modelo acima descrito limita o psicanalista a se manter na função de possibilitar o surgimento do inconsciente, o que não é de pouca monta, mas isso o limitaria a um trabalho de escuta, como é habitual nas instituições. Entretanto, o que proponho neste texto não é ampliar a escuta do psicanalista na instituição, vinculando-a a alguma espécie de auxílio concreto às famílias na superação dos problemas ou preparando-a para qualquer espécie de parceria, nem se encarregando de resolver por si só conflitos e problemas decorrentes de uma possível falta de diálogo entre os que se encontram envolvidos no drama de um paciente internado. Não se trata de o psicanalista tornar-se, por exemplo, “suporte para os pais” de um bebê internado, ajudando-os a “manter um vínculo com a criança”, nem encontrar, no caso em que uma mãe descompensa, “outro familiar que ocupe o seu lugar”, tal como proposto no texto Um elo essencial (DIÁLOGOS, 2006). Não que essas funções não sejam importantes, mas assumir um papel ativo de apoio ou de definição dos comportamentos no intuito de fornecer suporte para a reorganização de uma família de um paciente internado em uma instituição hospitalar não me parece função de um psicanalista, devendo isso ser deixado ao psicólogo ou ao assistente social.

A função de um psicanalista em um hospital geral, entretanto, deve ir além de uma escuta, mesmo que essa escuta seja acompanhada por uma intervenção que implique o sujeito do desejo. É evidente que devem ser mantidas as intervenções que de alguma forma possibilitem o surgimento do sujeito do inconsciente, ou mesmo uma primeira localização de uma posição no real (LACAN, 1958/1998, p.602). Refiro-me aqui ao grau das intervenções que podem ir de um discernimento muito incipiente do sujeito do inconsciente propiciado por uma intervenção retificadora, tal como propõe Sonia Couto (COUTO, 2005), até uma retificação subjetiva tal como apontada por Quinet (QUINET, 1991, p.36).

O que estou propondo como além dessas intervenções que visam ao sujeito do inconsciente é uma intervenção que atinja o lapso do nó borromeano (também chamado de nó borromeu, borromeo ou dos Borromeos), possibilitando uma nova estruturação para ele, mas, o nó borromeano considerado aqui não na sua vertente RSI, mas na sua vertente social. Obs: Lacan (LACAN, 17-02-1976/2005, p.94s) chama lapso o traçado do nó que faz erro, pois no lugar em que o nó de três rateia há uma espécie de lapso do próprio nó. Diz Lacan: um nó, isso rateia. Ainda nessa lição, Lacan diz que já havia falado da possibilidade da correção do próprio lapso no ponto onde ele se produz. O lapso tem de ser reparado por um sinthoma ou no próprio ponto em que o nó rateou, isto é, no lugar em que o lapso se produziu ou nos outros dois pontos. O que é importante assinalar é que, se a reparação ocorrer nestes outros dois pontos, as conseqüências serão diferentes. Os nós daí surgidos terão outras configurações, não serão iguais ao nó original não rateado. Entretanto, é possível corrigir o lapso nos outros dois pontos que não onde o erro se produziu porque é necessário que permaneça alguma coisa da primeira estrutura do nó. Mas, caso isso seja feito, o que subsiste da intervenção do sinthoma é diferente no caso dele ser colocado no próprio ponto do lapso ou nos outros dois.

A discussão que levanto, e que tentarei desenvolver abaixo (mesmo que em uma primeira aproximação, pois ainda lhe falta um melhor desenvolvimento), é que tanto o nó borromeano ao qual me refiro neste artigo quanto o analista sinthoma têm uma função de enlaçamento social que vai além daquela de enodar o RSI. É esta a hipótese que levanto: o nó borromeano poder ser considerado, de forma consistente, como articulando elementos da ordem do laço social, e não apenas do RSI.

Neste artigo defendo a idéia de que, num hospital geral, um psicanalista pode ter a função de sinthoma, amarrando um lapso de uma triangulação que falhou. Essa triangulação não será a do RSI, mas a tomarei como formada pelos diversos segmentos que compõem a vida de um hospital geral: o corpo médico, os pacientes, sua família, a equipe, etc. Esta função do psicanalista será completamente diferente daquela exercida por outros profissionais, tais como psicólogos ou assistentes sociais. Nesse sentido, uma triangulação como, por exemplo, paciente, família, equipe, de forma diferente do que é colocada no artigo Um elo essencial (2006, p.11), pode ser conseguida sem que o psicanalista tenha de exercer uma função de apoio e de porta-voz da equipe médica para situar a família diante da gravidade da situação. Não é necessário que ele assuma qualquer papel de liderança ou de modelo de resolução das desarticulações surgidas. E isso torna o seu trabalho diferente daquele do psicólogo. Ele não promove qualquer ajustamento do ego, não se prestando a ser modelo de identificação. A sua função não é a de reificar o objeto da fantasia, enrijecendo-a, nem fazer consistir o Outro, impedindo o contato com a falta. A sua função é a de escuta e intervenção, mas, mais do que uma intervenção que visa ao sujeito do inconsciente, ele deve possibilitar, com essa intervenção, uma nova invenção para a reparação das rupturas nos laços sociais decorrentes do encontro com o real.

 

Embasamento histórico

As propostas de ampliação das funções do psicanalista para além do campo privado de seu consultório já tinham chamado a atenção de Freud. Em 1917 ele alertou para a necessidade de adaptar a técnica psicanalítica a novas condições que facilitassem o acesso das camadas populares da sociedade (FREUD, 1917/1977, p.210). Ele considerava a possibilidade de criação de algum tipo de organização capaz de atender pessoas pobres. Ampliando essa idéia, embora não necessariamente nessa direção, os psicanalistas passaram a aceitar pacientes que não poderiam se enquadrar no modelo de uma psicanálise pura, como, por exemplo, os psicóticos. Os hospitais psiquiátricos passaram então a oferecer, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, um acompanhamento psicanalítico a seus pacientes em gabinetes privados montados no interior dessas instituições. Entretanto, a idéia de um analista solitário, recolhido a esse tipo de atendimento, foi criticada por Zenoni em seu texto sobre a orientação analítica na instituição psiquiátrica (ZENONI, 2003). O dever de um psicanalista, diz ele, não é somente o de escutar, encerrado em sua reserva. Se houve um tempo em que se pensava que um analista tinha que se manifestar principalmente no campo da cultura, agora se trata de intervir em pontos mais precisos de nossa sociedade, em particular “nas redes de assistência, nas práticas institucionais e sociais, na política de saúde mental” (ZENONI, 2003, p.66). Para ele, alguns analistas consideram a instituição como um lugar inapropriado para o tratamento psicanalítico; outros aceitam a prática da psicanálise, com a condição de não se entrar no dispositivo institucional. Ambas as posições conduzem a um duplo inconveniente: a primeira deixa o analista em uma exterioridade absoluta em relação à instituição, e a segunda termina por suscitar a aversão à psicanálise, pois ao querer se desembaraçar de toda a responsabilidade nos critérios de funcionamento institucional, o psicanalista pode ser isolado e, eventualmente, até desligado da instituição. Ambas as posições impedem a incidência da psicanálise, seja na própria clínica, seja na instituição.

Zenoni critica também o psicanalista especialista da desidentificação, concordando com a posição de Laurent apresentada no texto O analista cidadão (LAURENT, 1999). Laurent diz que Serge Leclaire promovia uma concepção extra pura da psicanálise, entendida como um processo sem fim para desidentificar o sujeito até o infinito. Com isso, no campo institucional ou social, a função de um psicanalista seria a de levar a desidentificação a todas as partes. Laurent é bastante duro: diz claramente que essa posição não pode prosseguir, tendo que ser destruída. “Digamos claramente que temos que destruir essa posição: delenta est! Ela não pode prosseguir e se os analistas crêem que podem ficar aí... seu papel histórico terminou. A função dos analistas não é essa” (LAURENT, 1999, p.13).

O papel histórico dos psicanalistas que crêem poder permanecer nessa posição extra pura terminou. Não é mais essa a função dos psicanalistas. Como está trabalhando com saúde mental, Zenoni diz que, no caso de pacientes psiquiátricos, o analista tem o dever de tentar “reinseri-los no dispositivo da saúde mental” (LAURENT, 1999, p. 13).

Tomando por base essa proposição, podemos dizer que em outros campos profissionais os analistas podem assumir uma posição diferente da tradicional, aceitando funções que vão além daquelas de uma escuta durante um atendimento clínico.

 

Lacan e os nós

Em seu último ensino, Lacan trabalha os nós. Toda uma articulação sobre eles é feita no Seminário 25, O momento de concluir (LACAN, 1977-78/inédito). Ali, Lacan procura a verdadeira natureza do nó borromeano (05-01-1978) partindo da idéia básica relacionada ao enlaçamento. O que caracteriza o nó está relacionado ao seu desenlace: se um nó é cortado, todo o enlaçamento se desfaz, tornando livres os anéis restantes. Essa é a definição do nó borromeano da primeira lição do RSI (LACAN, 10-12-1974/inédito). O que não acontece, por exemplo, com os nós olímpicos.

Em relação ao número de anéis que o compõem, Lacan titubeia um pouco. Ele confessa que esse assunto o embaraça (tintouin) pois ele quer encontrar não apenas os fundamentos dessa amarração, mas dali extrair as conseqüências, levando o raciocínio ao limite.

Na lição de 14-02-1978 de O momento de concluir, Lacan diz que Sourry queria a qualquer preço fazer o nó de quatro anéis. Ele questiona por que fazê-lo de quatro já que há o de dois e, mesmo, o de três. A cadeia de quatro anéis é obtida, diz Sourry, “a partir de duas cadeias de três, quer dizer, três e três fazem quatro” (LACAN 10-01-1978/inédito). Assim, pode-se ver a complexidade de se tentar montar a cadeia de quatro, na medida em que ela é obtida pelo enlaçamento de duas cadeias de três.

Em relação ao nó de dois anéis, Lacan diz que basta que se juntem dois toros (enlaçados) para que se consiga, nessa dimensão, esse nó. A isto podem se ir juntando outros laços. Mas ele lembra que é a partir de três que se encontrará o que os caracteriza e engloba, de fato, na categoria dos borromeus. Só há nó borromeano, diz Lacan (RSI, 10-12-1974/inédito), “se houver ao menos três”. O nó de três que é o único que é circular, é o nó borromeano típico, aquele ao qual estamos acostumados. A partir daí, e por uma razão eminentemente clínica, Lacan introduz mais laços nesse nó a três (LACAN, 14-02-1978).

Aliás, ele já mostrara que é possível juntar a esse nó de três um número indefinido de círculos dobrados, todos com a mesma característica, para que a condição borromeana permaneça: se se solta um anel, todos os outros se soltam, qualquer que seja o número deles. É essa propriedade que dá a característica de borromeanos aos nós a partir de três. Desde aí, o número de nós pode ser de uma quantidade tal que Lacan não hesita em dizer que “não há razão para não se qualificar de infinita” (LACAN, 10-12-1974).

Essa idéia é ligeiramente modificada na lição de 21-11-1978 do Seminário 26, A topologia e o tempo, 1978-79/inédito, quando Lacan diz que, para generalizar os nós borromeanos, pode haver um modo de fazer com que a característica de borromeu seja mantida mesmo que seja preciso cortar mais de um nó. No caso do nó de cinco laços, por exemplo, é necessário o corte de dois para que a característica seja mantida, isto é, para que os outros três restantes se tornem livres. A generalização dos nós borromeanos, isto é, a quantidade de anéis que será preciso atar e desatar para manter a característica, vai depender dos casos específicos.

No mesmo Seminário, na lição de 12 de dezembro de 1978, Lacan vai trabalhar com o nó de seis anéis, procurando entender como se obtém o nó borromeano generalizado. Seria a característica borromeana mantida no nó de seis se, por exemplo, fossem cortados três laços? Diz que há trinta e cinco formas de fazê-lo...

Em 20 de fevereiro de 1979, ele continua a sua busca das fórmulas do nó borromeano generalizado. Trabalha intensamente as relações matemáticas entre os nós questionando se se trata de uma diferença no corte de dois laços, como, por exemplo, 4 menos 2, 5 menos 3, 6 menos 4, 7 menos 5, 8 menos 6, etc. Diz não acreditar muito nisso, porquanto em todos esses casos há dois laços de diferença. O que os tornaria borromeanos? Seria neutro tomá-los dois a dois e borromeu tomá-los três a três? O argumento é interrompido em um dilema: o que caracteriza o nó borromeano generalizado é que ele possui dois laços que podem ser cortados ou é necessário que se proceda de uma outra maneira? E aqui Lacan explica o que vem a ser a banda de Slade, já introduzida por ele na lição de 09-05-1978 do Seminário 25, O momento de concluir, 1977-78/inédito, dizendo que talvez ela possa ajudá-lo a resolver a questão do nó borromeano generalizado.

Em 13-03-1979, ele confessa que se encontra muito embaraçado com o problema do nó borromeano generalizado, mas tenta mostrar a importância desse assunto. O nó borromeu generalizado, diz ele, não é algo destituído de importância.

Ora, se existem nós borromeanos além do de quatro anéis, é obvio que não se pode restringir a lógica borromeana apenas às relações entre RSI.

Voltando à lição de 10-12-1974, ali Lacan se pergunta a que registro pertence o nó: ao registro do Simbólico, do Imaginário ou ao do Real? Ele responde: “o nó borromeano, enquanto se sustenta pelo número três, é do registro do Imaginário”. Tem como consistência o imaginar-se, e o que o Imaginário faz é, enquanto reflexão, imaginar o Real (LACAN, 09-01-1979). O nó pertence ao imaginário não por qualquer espécie de estética transcendental, mas apenas porque suporta a tríade do Imaginário, do Simbólico e do Real. Assim, Lacan aponta que o nó é apenas um suporte imaginário para a compreensão de um esquema, seja ele de três ou mais laços.

Por ser suporte imaginário, o nó pode ser escrito. Afinal de contas, ele é uma escritura (LACAN, 17-12-1974/inédito), uma construção que suporta, no caso do nó de três, a idéia do Real. Real, no sujeito, em seu enlaçamento com o Imaginário e o Simbólico. Com isso, Lacan se pergunta: o nó é um modelo que dá conta, como os modelos matemáticos, das interrogações que serão trazidas pela experiência para esse Real? A resposta é negativa. Lacan repudia essa qualificação de modelo, mesmo que o nó se encontre situado também no Imaginário. O nó borromeano é uma exceção ao modelo porque os anéis que ali estão funcionam como pura consistência. Eles consistem apenas por sua ligação entre si. E a consistência das rodelas só se suporta pelo Real. Com isso, Lacan prefere tomá-lo, num primeiro momento, como metáfora. Os três elementos, Real, Simbólico e Imaginário, tomados como um nó, ou mais precisamente como uma cadeia, “são ditos enodados, na realidade, encadeados, fazem metáfora” (LACAN, 13-04-1976/2007, p.177).

Mas, alerta que não se deve quebrar demais a cabeça em relação a ele (LACAN, 17-12-1974/inédito). Para operá-lo de uma forma conveniente é necessário um pouco de besteira, usá-lo bestamente, ser tolo nisso. Não se deve entrar nisso pela dúvida obsessiva nem hesitar muito.

É com base em tal assertiva que proponho considerá-lo sob um ponto de vista que, embora imaginário, possa estar ligado a um outro objetivo clínico, qual seja, o de suplementar a função social de um psicanalista cidadão.

Com a passagem do nó de três para o nó de quatro anéis, Lacan situa um outro tipo de amarração. Não se trata mais de um enlaçamento no qual o sentido não importa. Ao fixar que os anéis de barbante podem ser articulados por um quarto nó, ele imagina uma estabilidade mais consistente. O quarto nó que enreda o Real, o Simbólico e o Imaginário será chamado por ele de Nome do pai. O Nome do pai é o nó que dá suporte a essa elementação com quatro, e a sua substância é a questão através da qual Lacan encerra o RSI (LACAN, 13-05-1975/inédito).

Trata-se agora de quatro consistências cuja origem Lacan busca em Freud. Ainda no RSI ele diz que, se tivesse escrito corretamente os Nomes do Pai, teria enunciado uma consistência que esclareceria certas variações em Freud (LACAN, 14-01-1975/inédito). Diz ainda que foram necessárias a Freud não três, mas quatro consistências, relacionando assim o Real, o Simbólico e o Imaginário ao complexo de Édipo nessa amarração denominada realidade psíquica.

Assim, para a psicanálise, a clínica dos nós em Freud terá como consistência o complexo de Édipo. Sem ele, o enlaçamento dos três registros não se sustenta. Mas Freud não chegou a esse nível de elaboração. Ele não se deu conta de que é preciso que o Real (não a realidade no sentido freudiano) superponha o Simbólico (não em sentido Imaginário, mas de domínio do Simbólico pelo Real) para que o nó borromeano seja realizado.

Lacan diz que o essencial do complexo de Édipo é que ele ata os três nós do RSI. E é essa amarração que faz o essencial do complexo. No caso de um tratamento psicanalítico, o próprio modo de a psicanálise operar é através do estabelecimento de novas formas de amarração desses registros pelo complexo que os articula de maneira diferente daquela apresentada originalmente pelo sujeito que demandou uma psicanálise.

Com o desenvolvimento de seu ensino, Lacan faz o complexo de Édipo freudiano sofrer duas torções. A primeira, enquanto Nome do Pai, e a segunda através da concepção do sinthoma. Em 17-02-1976, no Seminário 23, O Sinthoma, Lacan define o sinthoma como o que possibilita, no nó borromeano, o enlaçamento da cadeia borromeana. Se um erro de enlaçamento é cometido, não há mais cadeia borromeana.

Entretanto, há um meio de reparar isso – é o de fazer algo que permita ao Simbólico, ao Imaginário e ao Real continuar mantendo-se juntos. E isso é o sinthoma. O sinthoma pode ser compreendido como a corda suplementária que impede que o nó se desfaça ou se torne trivial, corda essa que remete ao erro de enlaçamento da relação do sujeito com o Outro, e que pode reparar o lapso ou o erro do enlaçamento. O sinthoma, como quarto laço, faz suplência, compensa, remedeia, repara o defeito ou erro do enlaçamento.

No Seminário 25, O momento de concluir, Lacan se pergunta sobre a razão que o levou a introduzir o nó borromeano. Ele o introduziu, explica (LACAN, 14-02-1978/inédito), porque isso lhe parecia ter alguma coisa a ver com a clínica. No seminário seguinte, o 26, A topologia e o tempo (LACAN, 1978/1979/inédito), diz que o nó é um dos elementos que lhe permitiram orientar-se na estrutura, embora confesse que a metáfora “nó borromano” em seu estado mais simples é imprópria (LACAN, 09-01-1979/inédito, p.1). Trata-se de um abuso de metáfora porque, na verdade, não há qualquer coisa que suporte o Imaginário, o Simbólico e o Real. Haveria apenas articulação, amarração entre instâncias? Se for assim, é possível estender a função de quarto nó a pelo menos uma outra articulação clínica que não a psicanálise pura. Estou me referindo a uma função clínica social, ou, em outros termos, às experiências coletivas relacionadas a necessidades sociais (LACAN, 22-01-1964/1979, p.25). Nesse sentido, a função que se está propondo ao analista não é apenas a da escuta e a da intervenção no campo do sujeito do inconsciente, na singularidade do paciente, do médico, do enfermeiro ou do diretor, por exemplo, mas dar, através de uma amarração sinthomática, uma dimensão de consistência a instâncias do hospital que se apresentam desarticuladas.

Na conversação sobre a criação de um Centro de Atendimento Psicanalítico da EBP em Belo Horizonte, sugeri que ele poderia

“ser um espaço de discussão das políticas públicas, da relação da psicanálise com a cidade e as leis, um espaço também político, e o analista, uma espécie de quarto nó [...] entre essas três instâncias: a instância do atendimento privado (o consultório), o Centro Psicanalítico [e as políticas públicas]” (CONVERSAÇÃO, 2005, p.116).

Se considerarmos as seguintes possibilidades: de o nó borromeano ser apenas um modelo, uma metáfora ou mesmo apenas uma forma de amarração; de que ele não seja composto apenas por três ou quatro laços, mas o seu número poder ser generalizado; se considerarmos os avanços na questão de sua generalização, e a possibilidade de tomarmos o quarto laço, o sinthoma como nominação (LACAN, 13-05-1975/inédito), podemos nos perguntar se o analista não poderia facilitar a articulação entre a clínica social da EBP - MG, o Instituto e a Seção Minas, exercendo quando necessário um papel similar ao do sinthoma, possibilitando a produção de um quarto efeito que tem a ver com a formação do analista, como dizia Arenas (NEL, inédito). Nesse lugar, o psicanalista, enquanto corda suplementária, poderia articular várias consistências. Se pensarmos no nó de quatro anéis, as consistências poderiam ser o atendimento privado no próprio Centro Psicanalítico, as relações desse centro com o atendimento ali realizado e as relações desse centro com a cidade – leia-se: as políticas públicas de saúde, a relação com a sociedade civil, enfim, com tudo o que se relaciona à psicanálise em sua dimensão política.

Na generalização dos nós, outras consistências ainda poderiam ser pensadas e articuladas. No caso da instituição hospitalar, o psicanalista poderia fazer consistir algumas articulações, como aquelas acima citadas: a família, o paciente internado e a equipe médica, etc. Lembrando que os anéis do nó borromeano ganham consistência apenas em sua ligação entre si, o psicanalista seria a figura adequada para reorganizar os círculos que se encontram em colapso, que podem ser ainda os regulamentos do atendimento da própria instituição, e até mesmo as leis e as resoluções que regem as políticas públicas de saúde mental, remendando ou reparando, onde houver, os erros do enlaçamento. Com isso, a função tradicional de um psicanalista pode se ampliar: além daquela de fazer surgir o sujeito do desejo, ele pode possibilitar novas amarrações sinthomáticas. Ser, como diz Lacan no Seminário 23, um psicanalista sinthoma. Não é a psicanálise que é um sinthoma, mas sim o analista: “Fazem-me a seguinte pergunta: se a psicanálise é um sinthoma – não disse que a psicanálise era um sinthoma [...]. Penso que não se pode conceber o psicanalista de outra forma senão como um sinthoma. Não é a psicamálise que é um sinthoma, mas o psicanalista (LACAN, 13/04/1976/2007, p.131 – grifos do autor).

 

Os usos do psicanalista

Silva, em recente dissertação defendida na PUC Minas (SILVA, 2006), pesquisando as novas funções do psicanalista, aponta diversos usos que dele se pode fazer. Entre esses, ela aponta o analista cidadão proposto por Laurent, o analista bricoleur tal como apresentado por Laia (SILVA, 2006), o analista como favorecendo um novo tipo de enlaçamento através do quarto nó borromeano, tanto no RSI como tem sido considerado, quanto como venho propondo há algum tempo, e o analista gestor, “entendido como coordenador de um serviço público de saúde mental”, função que dá o título à sua dissertação (SILVA, 2006, p.117). Ali ainda, ela comenta o ponto de vista de Brodski, segundo o qual “um psicanalista não cumpre em um hospital a mesma função que em seu consultório, ainda que, no transcurso de meia hora, faça exatamente o mesmo: escutar, interpretar” (SILVA, 2006, p.25). Ora, é possível que nas situações cotidianas de um hospital geral o psicanalista possa escutar e, eventualmente, até fazer intervenções retificadoras. A sua função, entretanto, vai muito além.

Retomemos os usos do psicanalista, indo às fontes citadas por Silva:

Para Laurent, os analistas têm que passar da posição de analista como especialista da desidentificação à de analista cidadão. Segundo ele, “há que se passar do analista fechado em sua reserva, crítico, a um analista que participa; um analista sensível às formas de segregação; um analista capaz de entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora” (LAURENT, 1999, p.13).

Segundo Laia, tal qual um bricoleur, ao analista é exigido “se arranjar com os meios de que dispõe”, descobrindo, “para uma peça, novos usos não previstos no projeto original que a concebeu” (SILVA, 2006, p.120).

Em sua própria dissertação de mestrado, Silva escreve toda uma seção dedicada ao analista gestor e às suas possíveis estratégias de intervenção que começa com a afirmação de que “um analista gestor não implica uma experiência clínica propriamente dita” (SILVA, 2006, p.127), pois, “mesmo ocupando o lugar dominante no discurso do mestre, ou seja, da política, não se identifica ao imperativo, não se identifica com esse lugar de domínio e imposição. Ele sabe que esse lugar e esta função são um semblante e que quem nele se situa está castrado” (SILVA, 2006, p.129).

A perspectiva que apresento é a de que o psicanalista, sem deixar de lado a escuta e as intervenções que visam ao sujeito do inconsciente, pode também exercer a função de possibilitar, por uma intervenção ou um ato, um enlaçamento social quando verificar a existência de uma inconsistência, um lapso no funcionamento institucional. Por exemplo, o psicanalista pode interpretar na situação, seja através de uma palavra, seja de um ato, um descaso familiar ou do corpo clínico em relação a um doente internado na UTI; pode interpretar uma dificuldade da diretoria em relação aos funcionários; ou um paciente que se revela menos cooperativo com o seu médico, ou vice-versa. Isto é, pode interpretar as dificuldades da relação do médico com determinado paciente específico. Quando digo interpretar, não estou me referindo aos diversos tipos de interpretação apontados por Freud, seja a interpretação em seu sentido clássico (dita “selvagem”, por alguns), seja a construção ou o apontamento das repetições e das resistências transferenciais. Refiro-me aqui à interpretação no sentido de uma intervenção, ou por palavras ou por um ato, que visa a uma re-configuração, a reparação de um laço social que fez erro. Laço social tomado aqui num sentido borromeano, isto é, com um tipo de enlaçamento que une elementos que se encontram dispersos, não tendo uma consistência como que unificada, por exemplo, paciente, família, corpo hospitalar. E quando digo unificada, não me refiro a qualquer espécie de pretensa totalidade. A própria concepção do nó borromeano, por seus furos (tanto central quanto nas superposições dos anéis), já aponta para a impossibilidade de tal totalização.

Quando as unidades funcionais do sistema hospitalar (paciente, família, corpo clínico, funcionários burocráticos ou serventes, diretoria, e até mesmo as leis que regem os serviços públicos de saúde) se encontram desarticuladas ou mesmo cindidas, o analista pode ser considerado como uma espécie de quarto laço, uma espécie de sinthoma que pode possibilitar ou um novo funcionamento do sistema ou até mesmo a própria constituição de um sistema (no caso das unidades estarem tão desarticuladas que não perfazem quaisquer laços sociais).

A proposta toma o psicanalista como sinthoma, como diz Lacan (LACAN, 13-04-1976/inédito), mas não no sentido de possibilitar um enlaçamento do Real, do Simbólico e do Imaginário de um analisante, tarefa clínica, mas a de possibilitar que aspectos desarticulados que interferem no bom funcionamento de uma instituição passem a ter uma estrutura borromeana, sem a qual as cisões poderiam chegar a até mesmo impossibilitar o funcionamento institucional.

 

Esboço de uma justificativa da proposta

Estamos acostumados a considerar o nó borromeano nas articulações entre o Real, o Simbólico e o Imaginário. Entretanto, a proposta aqui é a de questionar se seria possível considerarmos o nó como estrutura, como modelo, como metáfora, ou mesmo como simples amarração, para se pensar outras articulações que não o RSI. O objetivo deste texto é justamente este: questionar a possibilidade de se pensar o nó borromeano desvinculado do RSI.

Quinet, no início da década de noventa, em As 4 + 1 condições da análise (QUINET, 1991, p.14), já havia proposto que a passagem de analisante a analista, no final da análise, pode ser tomada como a condição +1 das quatro condições da análise enumeradas no texto freudiano. Nessa função, ela confere ao conjunto das quatro condições da análise (entrevistas preliminares, tempo, dinheiro e divã), tal como o + 1 do cartel, uma estrutura borromeana. Na ausência dessa função de passagem, as quatro condições não representam coisa alguma, não formam um encadeamento. Para Quinet, as condições freudianas da análise estão submetidas à estrutura borromeana.

A relação entre a amarração borromeana das condições e a constituição do cartel não foi colocada ao acaso por Quinet. Tal posição encontra, certamente, a sua base em Lacan (LACAN, 15-04-1975/inédito). Ali, Lacan se questiona sobre o que seria um cartel, e afirma que a estrutura do cartel é como um nó borromeano. Ele se pergunta: “Um cartel, por quê?” (p.64). Diz que, ao fazer essa questão, como que por milagre recebeu respostas indicativas, pseudópodes; coisas que, um pouquinho, faziam nó. Um cartel, diz ele, “parte de três mais uma pessoa, cosa que, em princípio, faz quatro, e que dei como máximo cinco, graças ao que faz seis” (LACAN, 1975, p.64). O argumento prossegue e Lacan se pergunta se com isso ele estaria dizendo que pensa que, como no nó borromeano, “há três que devem encarnar o Simbólico, o Imaginário e o Real?” A questão suscita uma observação irônica: “a questão pode se colocar, pois afinal, posso ser doido!” (idem). Dando continuidade à sua comparação entre o cartel e o nó borromeano, Lacan diz que “o ponto de partida para qualquer nó se constitui, já disse, na não-relação sexual como buraco. Não dois, pelo menos três, e o que eu quero dizer é que se vocês forem três [no cartel], isso já faz quatro. A mais uma estará aí mesmo que sejam só três, como mostra bem, precisamente esse esquema aqui, dando exemplo do que faria um nó borromeano”.

O tema do nó borromeano para a compreensão de um real que não é da ordem do RSI pode ser visto também em Nominé. Em suas conferências em Belo Horizonte (NOMINÉ,1997), em relação a um caso clínico, ele cita explicitamente o Seminário de 1975, retomando o círculo que Lacan chama de pai ou sintoma. Embora prefira fazer a análise desse caso em termos do Seminário 4, A relação de objeto e as estruturas freudianas, de 1956-57, e dos discursos em psicanálise do Seminário 17, O avesso da psicanálise, de 1969-70, não deixa de apontar a questão do quarto elemento. A referência ao nó borromeano aqui é clara: “Para nós hoje em dia, este quarto elemento que Lacan acrescenta e que se chama pai é muito importante. É exatamente deste papel do quarto círculo que Lacan falará em seu Seminário de 75, aquele círculo que chamará pai ou sintoma” (NOMINÉ, 1997, p.38). Embora ele não faça uma análise de tipo borromeano nesse relato de uma fobia infantil, a intervenção não é feita no sentido de fazer surgir o sujeito do desejo. A intenção é a de modificar o funcionamento da estrutura familiar de sua pequena paciente. Diz Nominé: “Frente ao gozo de sua mãe, que certamente alimentava, [a menina] quase desaparecia. Foi o que pude verificar em meu consultório e por isso tive que interromper essa mulher e pedir ao pai que trouxesse a criança” (NOMINÉ, 1997, p.38).

Considerando a relação pai, mãe, criança, podemos perceber nesse caso a existência de um lapso na relação mãe-criança. O pai encontra-se inoperante nessa situação, permitindo que a mãe faça de sua filha palco de seu gozo inconsciente. A fobia da criança, diz Nominé, era um sintoma vinculado à verdade do par familiar. “Com seu sintoma fóbico, [a menina] recusava o lugar que a mãe lhe outorgava, [...] o lugar de falo materno” (NOMINÉ, 1997, p.36). A intervenção de Nominé aqui é clara: ele busca reorganizar a estrutura – que posso tomar como borromeana – de uma família sintomática, fazendo com que um pai – enquanto quarto laço, enquanto sinthoma – permita uma nova amarração. A intervenção do psicanalista não se relaciona diretamente em fazer surgir o sujeito do desejo, como disse, mas em intervir diretamente no lapso do nó. No caso dessa criança, pode-se perceber que seu pai é insuficiente para representar a falta imaginária da mãe. Com isso “a criança encontra o recurso do sintoma para, por um lado, manter o laço fálico e, por outro, distanciar-se da posição perigosa de ser o objeto de gozo da mãe” (NOMINÉ, 1997, p.38).

Ao interrogar o que é um pai, Nominé (1997, p. 48) retoma o Lacan do início de seu ensino (lição de 19-06-1957 do Seminário 4, A relação de objeto, 1956-57, p.389-90), chamando a atenção para a metáfora paterna. Diz ele que o nome do pai dá a significação do enigma do desejo materno, e que no último ensino Lacan outorga ao pai uma outra função, a de sintoma, a de quarto termo (LACAN, 15-04-1975/inédito). Nessa última formulação, o pai é aquele que impulsiona um sentido. É o que ele vai chamar de per-versão paterna, ou seja, a função de orientação do pai. Já é bastante conhecido este fragmento:

“Um pai só tem direito ao respeito, senão ao amor, se o-dito amor, o-dito respeito, estiver, vocês não vão acreditar em suas orelhas, père-vertidamente orientado, isto é, feito de uma mulher, objeto pequeno a que causa seu desejo, mas o que essa mulher em pequeno acolhe, se posso me exprimir assim, nada tem a ver na questão. Do que ela se ocupa, são outros objetos pequeno a que são as crianças junto a quem o pai então intervém, excepcionalmente, no bom caso, para manter na repressão, dentro do justo semi-Deus, se me permitem, a versão que lhe é própria de sua pai-versão. Única garantia de sua, função de pai; que é a função, a função de sintoma tal como a escrevi ali” (LACAN, 21-01-1975/inédito, p.23).

A palavra versão aqui está no sentido de orientação, e Nominé chama a atenção para que essa orientação equivale, na topologia lacaniana, ao enlaçamento dos três círculos do nó borromeano. Entretanto, nesse momento de seu ensino (estamos em 1997), ele confessa que não pode demonstrar a sua hipótese através dos nós, embora diga que “a orientação do pai impulsiona o sentido nessa estrutura” (idem). A estrutura, entretanto, ele não hesita em dizer, é a escritura do nó de borromeu. Ao invés de alcançar diretamente seu objeto, o pai tem de passar pelo desfiladeiro do discurso, discurso esse que constitui o seu sintoma. E é isso a versão do pai. Ela impulsiona um sentido no par significante, orientando-o e isso terá efeito na relação imaginária entre a mãe e o filho. Nominé conclui o seu raciocínio afirmando que “a versão do pai é o que orienta a estrutura da família edípica” (idem).

De sua lição podemos concluir que é legítimo propor que o psicanalista pode agir nessa estrutura, considerada aqui não do ponto de vista do RSI de um sujeito, mas nas formas borromeanas nas quais a família de seus pacientes encontra-se estruturada.

Aliás, o próprio Miller, nas Conversações clínicas de Barcelona (MILLER, 2005), também parece apresentar uma outra função do nó borromeano diferente daquela de amarrar o RSI. Ao comentar o caso clínico do triângulo das falsas parcerias, ele chama a atenção para o fato de que a sogra da paciente mantinha uma relação muito estreita com seu filho (marido da paciente), encontrando-se como que “casada” com ele. A paciente mantinha, nesse sentido, um papel de terceiro termo, triangulando a relação. Em um determinado momento do relato, Miller diz que a cliente percebe o nó borromeano da situação (MILLER, 2005, p.90). Ou seja, a cliente percebe que há uma amarração de tipo borromeano que entrelaça essas falsas parcerias. Miller chega inclusive a dizer que muito do sucesso do caso clínico se deve ao fato de que, finalmente, a paciente consegue cortar o que ele chama até de “nó borromeu infernal” ao qual ela se encontrava atada (idem, p. 98).

Um último argumento. Nas IV Jornadas da NEL (Nueva Escuela Lacaniana, Bogotá), Alicia Arenas, na mesa-redonda intitulada “La Escuela Borromea, diz que

“O tema que vamos discutir nessa mesa é pioneiro, e está relacionado com a proposta de Éric Laurent, o Delegado Geral da AMP, em seu discurso de candidatura em julho deste ano em Roma, durante o Congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Elegemos o título ’A Escola Borromeana’ para esta mesa, isto é, uma proposta segundo a qual Escola, Instituto e Centros de Atendimento se enlaçariam em forma borromeana para produzir um efeito, um quarto efeito que tem a ver com a formação do analista e com a prática clínica, uma novidade a explorar em cada uma de nossas escolas”. (NEL, inédito. Trad. cast. do Autor)

Na sua fala, Leonardo Gorostiza diz que “falar em Escola borromeana em sentido estrito, induz à idéia de que teria de se pensar em três consistências que, enlaçadas, constituem e sustentam a própria Escola”. Relacionando tal idéia ao nó borromeano, afirma que “tal como dizemos que o nó borromeano é sustentado pelo enlaçamento das três rodelas de barbante, e que, se uma se solta, as outras também se liberam” (idem). Com isso Gorostiza está sustentando que a Escola, o Instituto e o Centro de Psicanálise Aplicada devem ser estruturados de forma borromeana.

Buscando exemplificar, Gorostiza diz que se ele fala de Escola Borromeana, o que lhe ocorre numa primeira aproximação é pensar nos três registros do passe, tal como propostos por Miller: o clínico, o epistêmico e o político. Pensar a problemática do passe no final de análise através desses três registros, diz, “é pensá-la como um enlaçamento borromeano que, quando bem situada, é o que permitiria sustentar a consistência da Escola”. Embora não vá por esse caminho, Gorostiza diz que “esse poderia ser um ângulo para pensar o que queremos dizer quando falamos da Escola borromeana enquanto tal”. Citando Laurent, afirma que “todo o problema que concerne às Escolas é o que deve ser concebido segundo esse enlaçamento das três consistências, sendo a Escola uma delas.” (idem). Ora, é obvio que não se trata aqui do RSI. A fala de Gorostiza termina quando ele se pergunta qual poderia ser o bom enlaçamento da NEL ou da EBP (Escola Brasileira de Psicanálise). Alegando estar ainda no “instante de olhar”, ele se cala. Cala-se, mas lança para nós o desafio: como poderia ser o bom enlaçamento de instâncias em um hospital geral?

Com isso, parece justificado tentar compreender determinadas estruturações via nó borromeano, sejam do RSI, sejam de certas circunstâncias, como as relações familiares, o funcionamento de instâncias no hospital geral, ou até mesmo as relações das quais o bem-estar de um paciente parece depender. Como exemplo, é possível citar o caso de uma jovem paciente psiquiátrica que foi encontrada por transeuntes à beira da lagoa da Pampulha em Belo Horizonte, meio desacordada e com as vestes encharcadas. Em sua bolsa, foi encontrado o cartão de marcação de consultas de uma clínica, e seu psicanalista foi contatado. Em vão ele procurou imediatamente implicar os irmãos da paciente na situação, eles se recusaram a buscar a paciente na beirada da lagoa. Em vista de tal recusa, a ambulância da clínica recolheu-a. Este caso serve de contraponto ao da triangulação das falsas parcerias. Os familiares da paciente não se implicam em seu tratamento, não dão uma espécie de estrutura borromeana a seu tratamento. A clínica psiquiátrica hoje aponta para a necessidade de que tal consistência se dê para um percurso menos acidentado da cura. Com isso não se está dizendo que o psicanalista deva pessoalmente procurar a família, ou algo do gênero. Na medida em que percebe a importância da articulação desses elementos, ele pode ser aquele que possibilitará essa espécie de amarração, essa espécie de quarto laço, que Lacan denomina sinthoma. A função do psicanalista poderia ser a de tentar acionar, por exemplo, os serviços de assistência social, para que houvesse a articulação borromeana nos três elementos em jogo naquele tratamento, quais sejam, a própria paciente, a clínica (na qual o psicanalista atua) e a família. Se há laço entre a clínica (o psicanalista) e a paciente, o mesmo não ocorre com relação à família, e o psicanalista poderia promover a amarração sinthomática. A implicação da família, amarrada então aos outros dois elementos pelo laço do sinthoma, parece fundamental para a própria sanidade da paciente. É até possível fazer-se uma conjectura acerca da implicação borromeana dos elementos envolvidos nessa situação: a participação familiar em seu tratamento poderia não ser alheia e até mesmo facilitaria uma reparação sinthomática de seu RSI no ponto onde o lapso ocorreu. Por ter possibilitado as assistências necessárias, como a implicação da família, o psicanalista não mais precisa exercer essa amarração específica, podendo se dedicar a amarrações mais necessárias. Talvez o mesmo raciocínio possa ser testado no hospital geral.

 

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Recebido em: 06/06/2007
Aprovado em: 30/06/2007

 

 

Sobre o autor:
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais, PUC-Minas e Newton Paiva – Belo Horizonte, Brasil • Doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, Brasil • correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise, seção Minas Gerais – Belo Horizonte, Brasil • Endereço eletrônico: luisflaviocouto@terra.com.br

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