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Epistemo-somática

Print version ISSN 1980-2005

Epistemo-somática vol.4 no.1 Belo Horizonte July 2007

 

ARTIGOS

 

O corpo além do corpo: os reflexos da (im) possibilidade

 

The body beyond body: the reflections of (im) possibility

 

El cuerpo más allá del cuerpo: las consecuencias de la (im) posibilidad

 

Le corps outre le corps : les reflexes de la (im) possibilité

 

 

Valéria de Araújo Elias

Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Londrina – Paraná, Brasil

 

 


RESUMO

A partir da experiência clínica com transexuais femininas, no âmbito hospitalar, realizou-se uma pesquisa em psicanálise privilegiando-se os processos de subjetivação que atuaram na construção da demanda de “mudança de sexo”. As saídas ou soluções encontradas para o impasse vivido revelaram que, em alguns casos, além da fascinação pela imagem, a busca pela tecnologia esteve pautada em um duplo eixo: um horizontal, que tornaria o desejo por um outro homem (livrando-se do tabu da homossexualidade) um efeito da sua heterossexualidade. E um vertical, na relação com o Outro da ciência, pautada no imaginário de que é a forma biológica dos genitais que define a ’identidade sexual’ e não o Falo, referente da Lei simbólica.

Palavras-chave: Psicanálise, Hospital, Corpo, Transexualismo.


ABSTRACT

From clinical experience with female transexuals in the hospital resulted a psychoanalytical research privileging the subjectivity processes that acted in favor of the “sex-change” demand. The exits, i.e., the solutions found, reveal that, beyond image fascination, the seek for technology in some cases traveled on double tracks: horizontally in relation to his fellow, so that the desire for another man wouldn’t be homosexual but a result of his heterosexuality; vertically, in relation to the Other of science, created in his imaginary that it is the shape of his genital that defines his sexual identity and not the Phallus, referring to the symbolic Law.

Key-words: Psychoanalysis, Hospital, Body, Transexualism.


RESUMEN

A partir de la experiencia clínica con transexuales femeninos, en el hospital, realizó una pesquisa en psicoanálisis privilegiando los procesos subjetivos que habían actuado en la construcción de la demanda de “cambio del sexo”. Las salidas o las soluciones encontradas para el impasse vivido, en algunos casos, más allá del fascinación por la imagen, la búsqueda para la tecnología esteve pautada en un árbol doble: el horizontal, que convirtió el deseo por otro hombre (librando del tabú del homosexualidad) un efecto de su heterosexualidad. E un vertical, en la relación con Otro de la ciencia, pautada en imaginario de que es la forma biológica las genitales que define la “identidad sexual” y no el Falo, el referente de la Ley simbólica.

Palavras clave: Psicoanálisis, Hospital, Cuerpo, Transexualismo.


RESUMÉ

À partir de l’expérience clinique avec des transexuelles féminines, dans le contexte hospitalier, c’est réalisée une étude psychanalytique en se privilégiant les processus subjectives qui ont agi dans la construction de la demande de «changement de sexe». Les sorties ou les solutions trouvées pour l’impasse vive ont révélé que, dans quelques cas, outre la séduction par l’image, la recherche par la technologie a été réglée dans un double essieu : une horizontale, qui deviendrait le désir par un autre homme (en s’exemptant du tabou de l’homosexualité) un effet de l‘hétérosexualité. Et un essieu verticale, dans la relation avec l’Autre de la science, réglée dans l’imaginaire de que c’est la forme biologique de l’organes génitaux qui définit la “identité sexuelle” et non le Phallus, afférent de la Loi symbolique.

Mots-clés: Psychanalyse, Corps, Hôpital, Transexualisme.


 

 

Os avanços tecnológicos contemporâneos subvertem a bio-lógica dos sexos ao romper com a ilusão de que a anatomia é o destino, pautado nas possibilidades de alteração do sexo anatômico, que as técnicas cirúrgicas e a administração de hormônios oferecem, agora oficialmente em algumas instituições públicas e universitárias no Brasil. Como disse Lacan, com a oferta cria-se a demanda e assim presenciamos os reflexos dessa (im) possibilidade no hospital.

Esta pesquisa1 surgiu das minhas inquietações em relação à transexualidade, as quais me levaram a rever questões éticas, teóricas e clínicas em minha prática enquanto psicóloga em um hospital universitário, onde trabalho há sete anos diretamente com pessoas ditas transexuais femininas2, isto é, pessoas que biologicamente são homens, mas que subjetivamente se sentem identificadas com o sexo feminino, às quais irei me referir no gênero feminino.

Em geral, mas há exceções, essas pessoas relatam que seus órgãos genitais não correspondem ao seu ’sentimento de identidade sexual’, sendo comum a expressão: uma alma feminina encarcerada em um corpo físico masculino. Por conta disso, vão reivindicar uma “adequação” de sua anatomia sexual a uma condição da qual (dizem) já estão certas e para que aos olhos do social obtenham um re-conhecimento. Embora seja uma demanda dirigida à medicina, deparam-se, no hospital, com a psicanálise que é uma das áreas que deverão acompanhá-las no percurso de alteração corporal.

O encontro com esta clínica ocorreu a partir de um convite, feito pela direção do hospital, para que eu participasse de uma Comissão Multidisciplinar para Estudos sobre Casos de Transtornos de Identidade Sexual composta por profissionais de diversas áreas: psiquiatria, ginecologia, urologia, cirurgia plástica, endocrinologia, bioética, genética, serviço social, fonoaudiologia, fisioterapia e direito.

Chegavam à instituição pessoas que solicitavam a intervenção cirúrgica, além da correção de operações malfeitas (realizadas clandestinamente) e tentativas de suicídio decorrentes de uma insatisfação com o próprio corpo (referente à ’identidade sexual’). Diante desse panorama, fazia-se necessário uma equipe que pudesse avaliar, bem como atender tal população. Acrescentava-se a isso o apoio do governo que, por meio de uma Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM)3, autorizou, em 1997 (e ratificou em 2002), a cirurgia – desde que realizada em hospitais-escola, utilizando-se de recursos financeiros destinados a pesquisa4.

Quando aceitei o convite para fazer parte dessa comissão não tinha muita clareza dos impasses com os quais iria me deparar. Meu percurso pelo hospital iniciou-se em 1992 e já era possível perceber novas formas de subjetivação do sexo. No entanto, havia uma questão “a mais” no fenômeno transexual, relacionada à demanda de alteração corporal – por meio de intervenções cirúrgicas e hormonais – a passagem a um ato irreversível do qual a psicanálise é mera espectadora, na maioria das vezes. Esta era a questão: o que leva um sujeito a demandar alteração corporal, em nome de uma ’adequação’ ao seu sentimento de ’identidade sexual’?

 

Os caminhos percorridos

Tal questão despertou na equipe uma busca por informações que favorecessem nossa interlocução, pois a composição desse grupo pautava-se em uma Resolução, e precisávamos saber o que se esperava de cada profissional, já que era “exigida” a presença de várias áreas. O pressuposto era de que cada uma dessas áreas, ao avaliar uma paciente, deveria dizer se esta era uma “verdadeira transexual” ou não, pois somente à “verdadeira” estaria indicada a cirurgia. No caso de um “engano” correríamos o risco de sermos processados, a exemplo de outros casos5.

A limitação dos avanços nas cirurgias de mudança de sexo de mulher para homem direcionou a aceitação apenas para “candidatos” homens que se definissem transexuais femininas. Diante dessas exigências legais, algumas questões eram inevitáveis: por que teríamos de “autorizar” uma cirurgia de “mudança de sexo”, quando isso não é exigido para tantas outras cirurgias estéticas irreversíveis?

Tratava-se de um trabalho (trans) disciplinar que (trans) cendia o que até então sabíamos sobre (trans) sexualidade, pois nos deparávamos com algo novo e diferente. Estávamos diante de uma demanda de alterar o corpo que ia além das intervenções hormonais, um ato que “uma vez decidido não teria volta”. Não se tratava de um posicionamento individual, mas de um grupo que pudesse trocar os não-saberes, para juntos buscarmos um saber possível. Acreditávamos que desconsiderar o pedido dessas pessoas implicava em ser conivente com as conseqüências físicas e psíquicas de atos como a autoprescrição ou a submissão a cirurgias clandestinas.

À psiquiatria cabia a avaliação de possíveis distúrbios mentais e em parceria com a psicologia deveriam avaliar se havia alguma “co-morbidade” associada, ou seja, se havia aspectos que identificassem na paciente uma incapacidade para decidir esse ato. A equipe, portanto, deveria acompanhar tais pessoas sistematicamente e “assegurar que elas não iriam mudar de idéia” para que imaginariamente (onipotentemente) se escapasse do “engano”, do “arrependimento”. Embora se falasse de uma “convicção inabalável”, aparecia aqui a incoerência diagnóstica, pois se era convicção, a necessidade de dois anos era para quê?

Enquanto representante de uma das áreas que acompanhariam a paciente semanalmente, surgiam em mim algumas questões: O que eu poderia fazer por essa paciente? Como “avaliar” uma pessoa e garantir que ela não iria mudar de idéia? O que seria uma “verdadeira transexual”? Como um “saber” se outorga o direito de definir objetivamente a “verdade” sexual do sujeito? A “verdade” e a “mentira” dos sujeitos estão referenciadas no corpo (no órgão sexual) ou, antes, na identidade? Por que a psicanálise deveria se colocar nesse lugar de, junto com outras áreas, dar “garantias”? Garantia do que e para quem? Deveríamos tomar uma posição de “con-vencer” essas pessoas a “não mudarem de sexo” ou então “prepará-las” para isso? Eu teria que me “readequar” às regras institucionais para ajudar a paciente a “readequar” o seu sexo? Constatando-se que o problema é “sentir-se mulher no corpo de homem” não restaria outra coisa senão a alteração corporal?

Diante desses impasses era preciso tomar uma posição, pensar na ética para além da estética, ou seja, não se tratava de uma “autorização” de “mudar ou não mudar de sexo”. Se “auto”, “autor” refere-se a si próprio, a única autorização que eu poderia dar era a mim mesma, de me inserir ou não no trabalho de conduzir essas pessoas a se “autorizarem”, a reverem o seu desejo e a se responsabilizarem psicanaliticamente pela sua escolha, assumindo sua autoria. Afinal esse percurso não se iniciava ali, havia uma construção subjetiva que desembocava no pedido de alteração corporal.

O que a priori parecia uma impossibilidade foi o que me permitiu sustentar minha posição. O fato de tratar-se de uma comissão de estudos possibilitou o sentimento de “conforto” nesse lugar de “não saber”, embora soubesse ser essa a minha posição, pautada na psicanálise, já que estamos sempre diante do novo, do inédito e, portanto, de um não-sabido.

Havia, no entanto, uma demanda da equipe de que eu soubesse “mais” sobre a paciente. Isso não parecia um equívoco, afinal estaria mais próxima, nas sessões clínicas semanais. Desse modo, eu poderia escutá-la mais sobre o que ela sabia sobre si mesma ou que então ela pudesse saber mais a partir desses encontros. No entanto, dar garantias, descobrir sua “verdade” e decidir sobre um ato médico, dizendo se deveriam ou não realizar a cirurgia, tal garantia não poderia ser dada, mas me posicionaria dentro do que pudesse para que a decisão fosse tomada pela equipe. Tive o respaldo desses profissionais que sempre respeitaram minha posição, possibilitando que nosso trabalho, pautado em uma antinomia e nas singularidades de cada área, transitasse entre os discursos, no enfrentamento de um enigma que interroga constantemente nosso saber teórico-clínico. Diferenças necessárias, pois se não fosse assim, qual seria o sentido para a criação de uma equipe interdisciplinar?

Busquei interlocutores na psicanálise entendendo que essa busca pelo conhecimento na literatura, na teoria, com outros profissionais e áreas, longe de me “especializar” teve a função de silenciar as minhas questões. Só assim eu poderia estar à vontade para uma escuta flutuante do inconsciente desses sujeitos. Freud e Lacan não deixaram um legado teórico que nos permitisse acolher esses sujeitos pautados em ensinamentos sobre suas experiências. Era necessário, portanto, criar a partir do que nossa práxis nos apresenta, sem prescindir de uma ética e de um rigor metodológico. Restava, então, descobrir – a partir do que eu mais sabia fazer, ou seja, escutar o que esses sujeitos sabiam, acreditando que mais que qualquer “especialista” eram eles que poderiam me dizer sobre si mesmos.

É desse modo que meu lugar na clínica articula-se com a pesquisa em psicanálise. O que propus com esta pesquisa foi relatar como esse saber se construiu com cada sujeito transexual acompanhado por mim no hospital, despida de qualquer pré-concepção teórica, acreditando que só assim seria possível avançar na clínica. Remeto-me aqui ao sujeito desse processo analítico, que não coincide com a pessoa transexual, objetivável, tal qual a avaliada pela equipe enquanto uma candidata à cirurgia de transgenitalização.

 

O encontro na clínica com transexuais

O contato com a possibilidade de serem transexuais iniciou-se a partir de experiências de outras pessoas que assim se identificavam, servindo como um marco esse reconhecimento em suas vidas: um antes e um depois. Um antes recheado de dúvidas, de enclausuramento, de fantasias, de sentimentos de solidão, ao imaginarem ser a única sobrevivente em um mundo cruel em que não se “encaixam”. Ao buscarem um saber sobre si, é inicialmente no Outro da ciência que elas encontram a decifração de seu enigma. Como aponta Moretto (2006), é exatamente a não-autonomia do eu (que nunca está sozinho) que, em sua inconsistência, ancora-se na alienação imaginária ao outro que lhe dá consistência para saber sobre ele. Esse saber na linguagem da medicina “não tem cura”, mas tem “tratamento”.

O depois se refere a quando se deparam com o diagnóstico de “transexualismo” ou “transtorno de identidade” (no qual a figura do médico serviria apenas para confirmar o que já escutaram de colegas ou da mídia) vindo a tiracolo a solução mágica: intervenções hormono-cirúrgicas para alterarem o corpo, retirando “o pedaço de carne” que não reconhecem como delas.

À medida que lidam com seus desejos e sexualidades, não sentem que são o que o espelho lhes reflete: não são os homens que o espelho reflete, mas também não se encaixam no modelo da mulher que conhecem. Diante da falta de um ancoramento significante que funcionaria como um ponto angular em seu sentimento de identidade, se vêem imersas na dúvida, ao perder a condição de integridade protegida pela infância e suscitada pela transformação corporal da adolescência, na qual o aumento dos pêlos, a mudança da voz e o aumento do pênis vão acusar sua entrada no mundo da sexualidade adulta, onde deverão assumir sua posição sexuada.

Surge então a questão: “quem sou eu” dentro desse corpo no qual não me reconheço? Quebram-se assim as certezas e ilusões que a sustentaram na infância. Essa perda de referência é vivida com angústia e a pessoa tem que lidar com o luto pelo eu ideal e ao mesmo tempo lutar para se aproximar do ideal possível. Mas com quem falar sobre isso, para quem destinar essas dúvidas e essa angústia que a acompanha? A identificação com o ’não se sentir bem com o próprio corpo’ e que se traduz por ’transexualidade’ parece ser a saída para livrar-se deste mal-estar, passa a ser um sinal, uma luz no fim do túnel. Assim ela se entrega a uma série de identificações imaginárias entendendo, como ideal da salvação, a transformação física e jurídica de sua aparência, para conservar um lugar na vida social.

O termo transexual é o que possibilitou o compartilhamento da solução encontrada, mas não necessariamente partilhava a origem a que ela respondia. Na maioria dos casos, essas pessoas já chegaram com uma aparência feminina, e também já se autodiagnosticaram como transexuais e se auto-administraram hormônios.

Não é por acaso que o reconhecimento da transexualidade pelos psicanalistas tenha iniciado em leituras autobiográficas, afinal essas candidatas não consideram que “deveriam repensar” em análise algo que se inscreve no corpo. Embora disessem que o problema estava na ’alma’, e portanto na psique, não era isso que elas intencionavam tratar, mas sim o corpo que deveria refletir sua ’alma’. Se atualmente as encontramos em hospital geral, é porque, ao demandarem a intervenção hormonocirúrgica6, são convocadas a “pensar” sobre seus sentimentos como pré-condição para alterarem o corpo em sua dimensão sexual. Ao chegarem ao hospital, há uma lei que dita que, se querem ter sua demanda atendida, terão que atravessar uma etapa, passar por um “oráculo”, entrando em cena os encontros comigo.

Eu pretendia ir além, mas essas pessoas, assujeitadas ao saber da ciência, queriam apenas ser olhadas, em um cenário médico. Meu desejo era de escutá-las, saber o que elas sabiam sobre si mesmas. Como despertar o desejo nelas de falar, de serem escutadas? Esse foi meu desafio no hospital. Para além do “olhar médico” (necessário e indispensável), um olhar que provocasse o desejo para que olhassem para si mesmas, produzindo a sua subjetividade. Apostei que isso seria possível, fiel à psicanálise, sem esquecer minha função e meus limites, nem pretendendo nada além do que promover a fala dentro de um discurso diferente, não mais codificado por um discurso médico e pelo imaginário social.

Os encontros com esses sujeitos me fizeram pensar que, clinicamente, se eles chegavam até mim apenas para o cumprimento protocolar, não era isso que os fazia ficar. E, mais ainda, talvez nem fosse somente uma questão de conflito entre sexo biológico versus identidade sexual, tal como os teóricos apresentavam, já que isso não se fazia questão. Nesse caso então era necessário escutar o que elas queriam saber e como chegaram a esse pedido de alteração corporal.

Consideravam-se pessoas diferentes, incompreendidas nesse mundo e acreditavam que suas vivências, relacionadas ao domínio de uma força externa ao próprio querer sobre o seu corpo, pertenciam a uma “outra realidade” que a maioria das pessoas não conseguia entender: nem elas mesmas. Baseada nessa lógica, elas questionavam a minha intenção de ajudá-las em relação ao que buscavam. A demanda era de que eu acreditasse nelas, que não entendesse que fosse “invenção” de suas “mentes”.

Tratou-se na clínica de escutar o infantil do sujeito, trazendo para a atualidade a origem de sua ficção quanto a ser mulher em corpo de homem. Minha tentativa neste trabalho não foi criar certezas e teorias novas, mas possibilitar indagações entre a medicina, o social e a psicanálise ampliando assim o fazer psicanalítico: afinal, o que temos a acrescentar nesta clínica interdisciplinar? Não pretendi buscar a causa da transexualidade, mas sim, a partir da escuta clínica, abrir caminhos para se pensar nestas produções que se apresentam no hospital (cuja demanda inicial é dirigida à medicina) relacionando o saber científico definido a priori com a solução encontrada como saída para esse impasse.

 

O corpo além do corpo

Agir sobre o corpo requer ir além do corpo, uma ação sem intermediação, que chamamos práxis. Assim como Freud, Lacan se ocupou desse corpo, valendo-se da lingüística para pensar que a palavra logifica o corpo, conduzindo a psicanálise para além da verdade científica, para além dos limites do corpo-organismo.

Como um sujeito humano pode tomar uma parte de seu corpo como algo estranho? Algo que ele quer retirar porque não reconhece como ’parte de seu eu’? Mara dizia: Eu quero ter um corpo que eu não precise esconder, que expresse minha identidade feminina. Há, então, um elemento que não se pode inscrever nem na ordem do corpo-organismo, nem na ordem do corpo como experiência psíquica. Esta outra dimensão do corpo compreenderia o espaço do que Lacan chamou de carne.

Poderíamos associar a esse “pedaço de carne” (o pênis) que deve ser retirado porque não foi investido, estar morto pela linguagem. Para outras tem um “peso” insuportável: o “peso” do significante que incide diretamente no corpo, corpo este situado na história libidinal do sujeito. Mara dizia: Esse pênis precisa ser retirado porque ele é só um pedaço de carne, ele ’não faz parte de meu corpo’; enquanto Alice pretendia retirá-lo pois era o traço que a reconhecia como homossexual. Pensar o corpo como efeito de linguagem equivale a pensá-lo como uma estrutura que surge do corpo-organismo e o conduz à lógica simbólica. Desse modo, a constituição do corpo deve ser suposta como um jogo entre algo que conhece e algo que ignora: entre o Eu e o Isso.

“E o eu, o que é que é?” – questiona Lacan em sua Tópica do Imaginário (1954/1975. p.126) que ele mesmo responde que “não são instâncias homogêneas. Umas são realidades, outras são imagens, funções imaginárias. O próprio eu é uma delas”. Mara vê no espelho o que não corresponde com a imagem que tem do seu corpo, é da ordem de um estranhamento, é o isso. ’Isso’ não me pertence, não reconheço como meu. (apontando para pêlos, pênis, voz). Um eu ideal imaginarizado, especular que deverá se articular ao seu ideal de eu.

Essas pacientes não se reconhecem no espelho ou o que este reflete de sua imagem é ’inconcebível’: Quando me olho no espelho não me reconheço [...] aquele que o espelho reflete ’não sou eu’ [...] e ’eu’ preciso modificar ’meu corpo’ antes que ele mate ’meu eu’. Por que esses sujeitos humanos precisam alterar o corpo para se reconhecerem nele? Mesmo reconhecendo que faz parte de seu corpo, não reconhece o pênis como sendo de si próprio? Sua imagem refletida no espelho não é como imagina (imaginário), ou seja, sua imagem corporal não coincide com a imagem que o espelho lhe retorna, confirmando o que a psicanálise nos informa: o corpo para o sujeito não é o mesmo que um organismo.

Quando essas pacientes nos dizem que diante do espelho, ao se depararem com sua imagem, esta as informa sobre o real de seu corpo, há um momento em que tal imagem escapa. É na dimensão do próprio olhar que esta fuga se dá, pois quando aparece no espelho a dimensão do olhar, Lacan nos diz que “o valor da imagem começa a se modificar, sobretudo quando há um momento em que o olhar que aparece no espelho começa a não mais olhar para nós mesmos [...] aurora de um sentimento de estranheza que é a porta para a angústia” (LACAN, 1962-63/2005, p.100). É quando o real invade o imaginário furando a gestalt e, por isso, gera angústia, em suas fantasias, a respeito do que pode acontecer na relação com o Outro (ALBERTI, 2004). Trata-se aqui do objeto olhar, que fura a consistência da imagem, sendo, esta dimensão do olhar, invadida pela incidência do Real na imagem do corpo.

Na clínica, há então sempre um resto, uma brecha entre a enunciação e o enunciado, que nos remete à insatisfação e ao mal-estar da cultura, que se escuta na queixa acerca de sua desconformidade com respeito ao seu próprio corpo como não adequado. Na fantasia, reencontramos algo separado, aquilo que fica na condição de resto e que aparece no discurso ou no afeto: ’Tenho náusea, vergonha desse pênis’.

’Preciso retirar essa coisa porque não é parte de mim’, discurso que se repete nas narrativas. O pênis poderia se supor que é o unheimliche, o “estranho”, diz

Freud (1919/1980), mas que está ligado ao que é heimliche, conhecido, familiar. Nessa ótica, quando as pacientes dizem que o pênis não tem valor nenhum, ele o tem, nem que dito pelo negativo. Lacan (1969/1992) se refere ao êxtimo para falar deste aspecto, de algo que ao mesmo tempo em que é íntimo é desconhecido, sendo da ordem do recalcado, de um desamparo e de uma angústia de morte.

“É algo de seu próprio corpo que ex-iste enquanto fora; é dele, mas com ele não tem intimidade. É um corpo que não sendo íntimo é êxtimo [...] e estranha, pois o que vê não coincide com sua imagem corporal [...] ressaltando para nós a ’instabilidade consistente’ de toda alienação imaginária” (MORETTO, 2006, p.133).

Elas estranham e rejeitam porque não coincide com seu eu, está ali, “isso” elas não negam, percebem a diferença do que seria um corpo de mulher, mas sentem vergonha justamente porque essa imagem que o espelho lhes retorna é inaceitável. Algo do corpo real que atravessa a imagem corporal. Querem retirar a qualquer preço, a carne que sobra, o traço que as definem no masculino: pedem para extirpar no real do seu corpo o que já o fez psiquicamente ex-sistir em si.

É o recalcado inconsciente que Freud considerou como terra estranha. Estranho é, portanto, esse lugar da Outra Coisa (das Ding) que habita o sujeito e permanece inatingível, o real do qual o significante padece. Lacan (1966/1998) vai diferenciar o objeto como Das Ding do objeto como Coisa em que no primeiro caso seria a relação com um “interior excluído”, onde o sujeito estaria em uma “exclusão interna” ao seu objeto. Nessa lógica, o sujeito está aprisionado a esse objeto que serve de suporte ao que resta de uma significação inalcançável, que nunca se completará. De acordo com Kaufmann (1996), a Coisa recobre um lugar que seria vizinho do real, é o Outro real: “nesse sentido, o desejo vem por certo do Outro, mas o gozo, este está do lado da Coisa [...]; ela se tornará ’a-coisa’ , essa Coisa de que a é de certo modo o resto e o único índice”.

Um corpo foi feito para gozar, gozar de si mesmo, diz Lacan (1966/1998) em sua conferência Psicanálise e Medicina. Na categoria do Real, ele colocou a realidade psíquica, isto é, o desejo inconsciente e as fantasias a ele ligadas, como um “resto”, inacessível a qualquer pensamento subjetivo. Algumas dessas pacientes, embora nada quisessem de seu pênis, diziam: Eu não nego que esse órgão produz gozo [...] mas eu sinto vergonha, nojo. Do ponto de vista do Real, para que um corpo goze basta que esteja vivo, desde que consideremos esse corpo como pura energia psíquica, da qual o corpo orgânico seria apenas uma caixa de ressonância, aquele de que a psicanálise não tem de se ocupar (NÁSIO, 1993). O Real, sendo aquilo que escapa do corpo ao significante e à imagem, ex-siste, é o resto que não foi investido pela linguagem ou porque a palavra matou a coisa pelo negativo.

Um sujeito que se diz dividido entre um Real do corpo que indica uma exterioridade, implicará em uma tentativa de manter sua integridade subjetiva dentro das representações psíquicas que fez dele mesmo, sua corporeidade. O pênis, ao não ser incorporado, precisa ser ex-tirpado no Real, parecendo ser o que psiquicamente motivou a sua entrada em nosso hospital.

 

A demanda de alteração corporal: a que se destina?

Retomemos então a questão que não cessa de se inscrever nessa clínica: “Uma alma feminina aprisionada em um corpo masculino”, o que isso significa quando colocado inicialmente como a justificativa para a retirada do pênis e a construção de uma neovagina?

O verbo aprisionar com o poder de um significante fez a junção entre os elementos e nos revela que há um ’sujeito feminino’ que se prende a um ’corpo masculino’ a-sujeitado. Mostraram ser em alguns casos os significantes maternos que aprisionaram esse corpo biológico que enquanto ’masculino’ não tinha valor nenhum, a não ser pelo negativo, era ’mínimo’: o traço que marcou sua insuficiência masculina. Assim, algumas pacientes se viram coladas a esses significantes e buscaram a alteração corporal para sair do lugar obturante de objeto fantasmático, promovendo sua posição sexuada.

A busca de uma aparência que lhe garanta o olhar que confirmaria a imagem desejada e idealizada é o que impulsiona o ato de buscar a alteração corporal, prometendo a ilusão de uma construção de identidade desejável, tornando o sujeito aprisionado a esse discurso. Cabe aqui nos perguntarmos: para que e/ou para quem a cirurgia? É neste ponto que se pode encontrar, ou reencontrar, o caminho que leva um sujeito a se posicionar como objeto no desejo do outro. Essa mudança, a passagem de um lugar de objeto, assujeitado ao saber e ao desejo do outro/Outro, pressupõe a existência de um sujeito a quem se destinam as alterações corporais e também os resultados obtidos. Isso exige que a candidata se questione se é ela mesma a destinatária dessas modificações corporais, se é ela mesma o sujeito desse desejo.

Tais intervenções irreversíveis no corpo, voluntárias e vistas como “necessárias”, parecem tratar de uma tentativa de estabilizar algo que flutua, uma forma de integração psíquica ao excluir o traço que é vivido como excesso, dando a possibilidade de um contorno definitivo naquilo que ainda não foi simbolizado. A recusa do investimento homossexual é imposta culturalmente por uma proibição social (tal qual o tabu do incesto que divide o universo da eleição sexual em categorias de permitidos e proibidos) que mantém uma identidade estável, relacionada por desejos opostos.

Nessa ótica, foi possível perceber que o pênis funcionava como o obstáculo em sua possibilidade de trânsito nos significantes femininos. O órgão era sentido como o lugar em que o olhar do Outro o embaraçava denunciando sua impostura. A intervenção cirúrgica promoveria o corte enquanto um apelo simbólico que lhe daria o contorno necessário à sua ancoragem significante.

Se, por um lado, a experiência do sujeito transexual com seu corpo encontra uma diversidade de possibilidades de gozo, por outro, a diversidade identitária garante algo que vai além de um gozo puramente sexual. Para além disso, nessa amplitude de demandas, observamos uma dimensão de conflito: em sua busca obstinada por corresponder a um eu ideal, a transexual precisa ser não só A Mulher ideal, mas também ter o corpo ideal, condição necessária para manter-se em um lugar também ideal na cultura em que se insere.

Conforme Kehl (1996), o imaginário não admite pensamento uma vez que se encontra colado às imagens cujo significado é dado de forma fixa, impondo uma realidade de modo que o sujeito fica impedido de ser agente de si mesmo, pois suas ações e modos de ser já estariam definidos através de imagens saturadas de sentido. Assim, nesse mundo imaginário, não cria espaço para simbolizações, o que nos leva a compreender a resistência em “pensarem sobre sua demanda”, pois não admitem transformações.

Esse lugar de uma “alma feminina em um corpo masculino” que não se aproxima das referências simbólicas do que é masculino nem do que é feminino, promove o abismo nas relações sociais, fazendo ampliar seu desamparo ao desvelar sua condição. O temor ao desamparo, como nos diz Freud, faz com que o sujeito renuncie ao gozo submetendo-se às imposições da cultura.

A busca das transexuais por determinados padrões ideais de feminilidade é justificada se entendermos que o abalo narcísico implicaria em um risco de perda de sentido de existência ou de identidade, quando este sentido se encontra atrelado a tais padrões. Kehl (1996, p.12) define a produção de identidade como um “artifício protetor de nossa solidão subjetiva diante do enigma do desejo” que faz com que pensemos essa incessante busca identitária das transexuais como uma forma de evitar o desamparo.

Nesse sentido, as identidades seriam próteses subjetivas produzidas na sociedade, em que a posição identificatória sexual é constitutiva e necessária ao processo de organização subjetiva. Talvez a cirurgia enquanto uma passagem-ao-ato aja como contenção pulsional e possibilidade dessa entrada na cultura. Na busca de sustentar um lugar de pertencimento em seu meio social, a cirurgia visaria perpetuar os acordos inconscientes entre as partes: de um lado o social e a ciência e do outro um sujeito desamparado.

O modelo oferecido pelo diagnóstico de transexualidade, para a interpretação do discurso de um corpo biológico, em contradição com o sentimento de identidade sexual, fornece um caminho mais curto para o apaziguamento desses conflitos identitários (muitas vezes ainda presos em uma bissexualidade psíquica) e que tem na oferta cirúrgica a solução para se manter na ordem (heteros) sexual, diante das novas demandas do Outro.

De acordo com Costa (2003), o social exerce um papel central, pois institui tanto “bordas corporais” como “bordas sociais”. Socialmente seu efeito pode ter a função de um “isso” no qual não nos reconhecemos, mas que é, ao mesmo tempo, equivalente ao nosso “isso” pulsional, causando-nos fascínio e horror. É a parte que não foi possível capturar, porque o referente não foi completamente construído na linguagem. A vergonha assim como a náusea citada na narrativa de algumas pacientes seriam “expressões em corpo” do que não pôde ser legitimado.

Para Costa (2003), “encarnar” sugere tomar a palavra que precisa passar pela carne, no que esta se materializa no traço do Outro em nossa pele. “Uma palavra que precipita na pele o olhar do Outro: é ali onde o Outro faz corpo” (COSTA, 2003, p.61). Elas podem derivar do encontro da sexualidade infantil com a injunção ao exercício do sexo, na passagem para a adolescência. As modificações corporais não são acompanhadas de uma representação imediata do corpo: ela precisa ser construída, o que se observa na experiência das transexuais em sua relação às transformações da puberdade. Essa injunção interliga voz e olhar, lei e pulsão e podem provocar uma apresentação em corpo (vergonha, náusea).

A imagem é a primeira coisa que afeta o sujeito, e a preocupação com a aparência e a busca pela alteração corporal dizem respeito à “fachada”, desejando que possa advir daí a possibilidade de constituir-se enquanto um sujeito de desejo. Muitas buscavam recuperar com a cirurgia a imagem perdida da infância. Para estas, mais agressivo do que a alteração corporal via cirurgia foram as transformações corporais impostas pela puberdade. A modificação da aparência, calcada na constituição biológica, visaria à restauração narcísica dessa imagem corporal infantil: “sem pêlos, sem pênis”.

Essas histórias permitiram-me constatar quanto é na adolescência que a transexualidade se impõe, enquanto um significante que permite responder aos enigmas da infância, reatualizados nas modificações corporais. Quando o sujeito não é mais uma criança, mas ainda não é adulto, vivencia um momento de espera, de um vir-a-ser. A história familiar e a versão criada pelo sujeito, sobre a experiência editada pelos três tempos do Édipo na infância, adquirem na adolescência o estatuto de cobrança de tomada de posição e também de eleição de objeto sexual. Assim, as transformações da puberdade funcionariam para o sujeito como o momento lógico da constituição subjetiva ao se encontrar entre o circuito pulsional e o circuito social.

Mara falava de um medo de crescer, de uma recusa das modificações que a adolescência impunha em sua imagem corporal, o que ela associava à morte. Essas modificações corporais da puberdade decorrentes do aparecimento dos caracteres sexuais secundários que Lacan (1996) denominou de amuro: “[...] é o que aparece em signos bizarros no corpo. São esses caracteres sexuais que vêm do além [...] não se pode dizer que seja a vida, pois aquilo também porta a morte, a morte do corpo, por repeti-lo” (LACAN, 1972/1996, p.13).

Esses sujeitos adolescentes não têm um corpo; é como se este perdesse a configuração da imagem que o sustentou na infância, ao se deparar com as alterações corporais insuportáveis na puberdade. Como imaginar um absurdo a alteração corporal via hormônio e cirurgia, se a pior experiência de transformação corporal já vivenciaram na adolescência? O corpo que deixou de ser infantil, esse sim não tinha representação. Essa alteração que também “não tem mais volta”, é irreversível pelas vias “naturais”, mas que onipotentemente tornaria possível revertê-la pela biotecnologia contemporânea.

Nesse sentido, os avanços tecnológicos funcionaram como facilitadores na difícil elaboração psíquica do sujeito em busca de uma posição subjetiva sexuada, masculina ou feminina, em que a sexualidade não mais poderia ser perversa polimorfa. É o momento da segunda identificação, em que a causa passa a ser em relação ao outro semelhante, pondo à prova as identificações primárias. O corpo tornado um enigma para o sujeito, ante as modificações que surgiram independente do desejo e nem mesmo acompanhavam o amadurecimento psíquico, como ficou evidente nas narrativas.

O ser adolescente é então levado a introduzir-se em um jogo de identificações com o outro semelhante e também com o Outro, que não mais se restringe à filiação, ampliando-se para o Outro social. É quando a mídia e a internet em tempos de globalização vão funcionar como um facilitador na busca das identificações que venham amenizar o desamparo, ao ser convocado a se posicionar diante da emergência de um corpo, representante maior do efeito das identificações simbólicas.

Esses sujeitos se mostram desamparados por algo que os atravessa - sendo a adolescência um desses momentos de crise - e os faz criar próteses, um eu feminino de substituição para que o imaginário não se rompa do real e do simbólico. Concordando com Freud (1980), “se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do ser humano (...), podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização” (FREUD, 1929/1980, p.137).

Podemos hipotetizar que, se o ser adolescente faz sinthoma ao lançar-se no campo social (RASSIAL, 1999), a transexualidade pode ser uma dessas manifestações subjetivas, decorrentes de uma identificação a um traço, na ausência de alternativas que possam ter efeitos de produção de significantes, na passagem da posição infantil para uma posição adulta. Inventar um corpo feminino poderia ser pensado como um fazer sinthoma, construção que se manifestaria podendo ’vir a se fixar’, mas não necessariamente, como parte estrutural do sujeito.

Por falta de significantes que a nomeiem, a transexualidade serviria como um ponto de referência para as experiências afetivas sem nome. Uma definição do que são, mesmo que passageira (afinal ninguém quer ser transexual), é algo que aceitam como o espaço de transitoriedade que lhes permitirá aceder à posição subjetiva feminina. E ninguém pode sobreviver sem ser carregado pelo próprio discurso, razão para que a reivindicação ocupe também a esfera jurídica.

A ausência de uma nominação jurídica traz para as transexuais o sentimento diário de ser um logro, e sua impostura está sempre prestes a se denunciar. Por isso cria-se uma cascata de reivindicações, seja no corpo, seja no jurídico. Ao reivindicar ao Outro da ciência a sua sexuação na carne, as transexuais femininas necessitam ainda ser re-conhecidas pelo Outro da Lei, aquele que atestará: “sim você é mulher” e assim a nomeará como conseqüência desse reconhecimento. O Nome-próprio “traduzido” para o feminino cobra o valor de uma descrição simbólica de sua identidade imaginária na tentativa de produzir o laço social.

 

Considerações finais

Uma conclusão a que podemos chegar, mesmo que provisória, é que a transexualidade pode surgir como uma barreira entre o sujeito e o Outro, e a cirurgia e a ação dos hormônios por um lado funcionaria como um escudo protetor, uma borda, um limite, contra a ameaça de dispersão, de fragmentação, que são efeitos da intrusão de gozo. Por outro lado, pode haver casos em que uma cirurgia, ou seja, não só a retirada do pênis, mas a redução do estômago, a cirurgia do nariz, etc, pode dar lugar a vivências de despersonalização psicótica. O caráter irreversível de uma intervenção cirúrgica pode produzir efeitos desestabilizadores: uma lesão irreversível da compensação imaginária que garantiria ao sujeito uma identidade, no que concerne ao furo narcísico originário da psicose, ou o contrário, a possibilidade da estabilização que as transformações corporais da adolescência haviam desestabilizado.

Estamos então diante de um corpo que é significado enquanto partes; que deve ser “medido” e “pesado” e reduzido a um traço significante. Para isso é entregue ao saber do Outro para que seja manipulado, controlado, con-formado (tecnologia, medicina, social) ao reduzi-lo à “fôrma” da normatização cultural.

Assim se desfaz o limite entre realidade e ficção. A realidade reduzida a uma sucessão de imagens contribuindo para o afunilamento do simbólico que tem como conseqüência: por um lado, o fracasso da ficção simbólica que leva o sujeito a se ligar a soluções mágicas (imaginárias) que operam de acordo com os modos de produção do masculino e do feminino. Por outro, desencadeia uma necessidade de intervir no real do corpo, por meio dos hormônios, das cirurgias, do laser, etc, sacrificando-o para convertê-lo em símbolos. É neste território que se insere o corpo transexual: na fronteira entre o corpo e a linguagem, onde se inscreve a marca absoluta do Outro não barrado pelo significante fálico.

O interdito da homossexualidade opera em uma cultura predominantemente heterossexual e a forclusão é produzida justamente pela produção obrigatória de uma eleição de objeto heterossexual. A transexual, estando sujeita a uma interdição que exclui o homossexual como objeto de desejo, instala esse objeto como identificação em que contém o interdito e o desejo. A permanência da escolha de objeto homossexual forcluída a aterroriza, o que nos faz supor que a transexual feminina, ao repudiar a homossexualidade, tem de deslocar e ocultar esse desejo em favor de outro capaz de consagrar uma heterossexualidade sem suturas. Um limite, um impossível de conciliar precisa encontrar uma dupla inscrição, que se dá no registro tanto do real (cirurgia para fabricar uma vagina) quanto do simbólico (ser reconhecida como mulher).

O que presenciamos na fala de Mara, os homossexuais me dão nojo, pode falar desse “tabu da homossexualidade” que, na impossibilidade em nossa cultura de desejar um outro homem, já que biologicamente o é (embora recuse), demanda ao Outro da ciência o corte necessário para que tenha acesso ao desejo. Porém, não mais um desejo homo, mas sim heterossexual.

A oferta científica de superar a falha que a transexual supõe ser da “natureza”, encarrega-se de suprir com hormônios e cirurgias propondo repô-la com objetos ideais que prometem a completude e a felicidade. É a promessa imediatista, como disse Lacan (1962-63/2005), de recuperar essa parte de nossa carne tomada na máquina formal, nessa forma que enformou o sujeito para que ele se encaixasse na cultura e se tornasse um ser “conformado”. É este o equívoco que a análise pretende retificar; essa completude e essa suposta felicidade são inalcançáveis, e se a escolha pela cirurgia é a saída da qual o sujeito não quer abrir mão, que ele pelo menos saiba que não se trata de um passe de mágica onde a cirurgia será a solução para todos os seus males.

A expectativa de que é o órgão que a irá posicionar como mulher deve ser repensada, pois, paradoxalmente, este será o primeiro engano do sujeito ao ter se submetido à alteração corporal, se não tiverem claras as significações aí implicadas e as conseqüências dessa colocação em ato para sua vida. Uma coisa é tomar um hormônio e submeter-se a uma cirurgia esperando que estas intervenções possam amenizar a causa de seus males, outra coisa é esperar que esta cirurgia a constitua enquanto um ser feminino. Nenhuma tecnologia, por mais poderosa que seja, irá reintegrar a perda para o sujeito, que, para sê-lo, é somente enquanto faltante.

Esses encontros permitiram que elas seguissem a vida em frente (antes paralisadas em uma impossibilidade). Enquanto as modificações iam acontecendo, elas “cuidavam do corpo”. O corpo feminino que passava a ser visível tornou-se objeto de cuidados especiais: hormônios, laser, maquiagem, roupas, cirurgias. O investimento pulsional nos cuidados à imagem de si sustentada pelo diagnóstico de transexual, onde antes não havia lugar, correspondia a uma restauração imaginária e a uma possível “tentativa de cura”, pela incorporação de significantes femininos que “incorporavam” a elas, dando sustentação imaginária ao que antes era um gozo mortífero: não sou nada, nem homem, nem mulher.

A cirurgia, os hormônios, a medicina ou mesmo a psicanálise vão ocupar inicialmente lugar de ideal, cujo objetivo é justamente esvaziá-lo. Esse é o preparo psicológico, a parada necessária para pensar sobre as conseqüências desse ato, sobre o depois e sua capacidade para lidar com o inesperado. Não se tratou, portanto, de uma preparação nos moldes de uma fala educativa e de esclarecimento já que esta função era reservada aos outros profissionais. Tratou-se de avaliar como esse significante transexual e a cirurgia se inscreviam no psiquismo dessas pacientes.

Era preciso pensar na posição de cirurgiada, de alguém que teria um pênis “cortado” de seu corpo e que conviveria com a ausência dele presentificada em uma fenda denominada cientificamente neovagina, justamente porque não se trata de um órgão igual ao feminino. Ao construir a vagina com o próprio pênis, este permaneceria ali, como o resto, como o órgão fantasma, ainda presente em seu corpo. Pensar sobre isso não tinha a função de impossibilitar o ato, mas de evitar um equívoco percebido no depois.

Se em efeito, por mais que se almejasse a garantia do só depois, esta não era possível, era necessário levar cada candidata a se responsabilizar justamente por algo que não tinha garantia. Foi quando escutamos: Quero essa cirurgia nem se ’nunca mais’ gozar [...] se morrer, terei ido para o ’céu’, realizada como mulher [...] sei que mesmo com essa cirurgia nunca serei uma mulher de verdade, ou então [...] já não tenho tanta pressa em realizá-la.

Era a candidata quem deveria autorizar-se a alterar seu corpo. Isso deveria acontecer, nem antecipadamente, nem a posteriori (após dois anos exigidos), mas no próprio cerne do processo analítico, à medida que a pessoa encontrasse sua posição frente ao que suscitou sua demanda transformando a sua relação com seu gozo. Que fosse uma solução aos impasses de seu desejo, mas nem por isso se alienasse na prescrição que justificou sua busca no hospital. Talvez por isso é que o CFM não aceitasse simplesmente a cirurgia, porque sabia que se tratava de algo que necessitava de uma condição psíquica, da capacidade para lidar com o depois. A garantia tratava-se da capacidade da pessoa de antecipar psiquicamente algo, saber sobre as conseqüências físicas e psíquicas dessa decisão. O que ela sabia sobre sua escolha, o que ela buscava com a alteração corporal, e assim responsabilizar-se por esse ato.

É com base nessa liberdade que nossa práxis opera. O que importa é levar o sujeito a encontrar outras formas de resolver o impasse do seu corpo, a quebrar as certezas que incidem no discurso engendrado pelo fantasma, excedendo a ordem que escapa ao real, e assumindo o risco de uma ação sem garantias, em uma parceria ética com a equipe que o acompanha. Em suma, unindo o simbólico e o imaginário, na presença constante do real, para que nosso encontro não se torne também um equívoco, como nos diz Fernando Pessoa em sua poesia: Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, perdi-me. Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi no espelho, já tinha envelhecido.

 

Referências

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Recebido em: 01/07/2007
Aprovado em: 10/07/2007

 

 

Sobre o autor:
Mestre em Psicologia • Psicóloga e Psicanalista do Serviço de Psicologia do Hospital Universitário e do Ambulatório do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Londrina - Paraná, Brasil • Supervisora e docente do Curso de Formação em Psicologia Hospitalar • Membro do Conselho Fiscal da SBPH biênio 2006/2008 • Endereço eletrônico: valelias@sercomtel.com.br

1 O presente trabalho faz parte da Dissertação de Mestrado Para além do que se vê: das transexualidades às singularidades na busca pela alteração corporal (2007), sob a orientação do Dr. Fernando Silva Teixeira Filho, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade da Universidade Estadual Paulista (UNESP).s
2 O termo é usado aqui de acordo com o manual do Ministério da Saúde (BRASIL, 2002: 47), que define transexuais femininas como pessoas de sexo biológico masculino que desejam alterar seu corpo para aproximá-lo do gênero feminino.
3 Toda “candidata” (maior de 18 anos) deve se submeter a um acompanhamento multidisciplinar (pré e pós-cirurgia). Recomenda-se que este seja suficiente para que não pairem dúvidas na equipe quanto aos resultados. O argumento é que extirpar o pênis e os testículos de alguém e, artificialmente, criar uma vagina forjada na mesma região não se restringe ao simples ato cirúrgico. A pessoa deve estar “preparada” para a irreversibilidade do ato. Seguindo uma tendência internacional defendida nos documentos oficiais, neste trabalho o tempo mínimo exigido é de dois anos. O final desse percurso, porém, não significa que a pessoa estará automaticamente apta à cirurgia, devendo haver uma avaliação multidisciplinar que decida se a pessoa está pronta para isso.
4 Em 2006, o Ministério da Saúde, por meio de uma comissão técnica, passou a discutir a possibilidade de custear o ’processo transexualizador no SUS’ dentro do princípio da universalidade, integralidade e eqüidade na saúde pública, mas até o momento isso não acontece.
5 O médico Roberto Farina (1982) foi processado por “lesões corporais” ao realizar uma cirurgia de mudança de sexo (anterior à Resolução do CFM, de 1997).
6 Embora estas sejam as reivindicações no contexto hospitalar, sabemos que há exceções, o que nos leva mais uma vez a reforçar que não estamos caracterizando a transexualidade como uma única modalidade de ser. Diferente do que poderia acontecer com outros pesquisadores, não se apresentaram, em minha clínica, pessoas que se definissem como transexuais e que não buscassem a cirurgia, afinal foi o motivo que as levou até mim.

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