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Epistemo-somática

Print version ISSN 1980-2005

Epistemo-somática vol.4 no.1 Belo Horizonte July 2007

 

ARTIGOS

 

A ciência e a religião

 

Science and religion

 

La ciencia y la religión

 

La science et la religion

 

 

Wagner Siqueira Bernardes

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Belo Horizonte, Brasil

 

 


RESUMO

O progresso da ciência abrange o saber e o poder que o homem adquiriu com a finalidade de controlar as forças da natureza e dela extrair bens que satisfaçam suas necessidades. Dos poderes que podem disputar com a ciência seu território, o único inimigo sério é a religião. Ela contém um sistema de ilusões que assegura aos homens proteção, poder e felicidade. A ciência, contudo, pode fornecer uma ilusão de onipotência e onisciência e transformar o homem numa espécie de “Deus de prótese”. Entretanto, os notórios progressos científicos não tornaram os homens mais felizes; a maioria dos benefícios da ciência consiste em “prazeres baratos”. As criações humanas são frágeis, e a ciência e a tecnologia, que as construíram, podem também ser empregadas para a sua destruição.

Palavras-chave: Cultura, Bens, Ilusão, Pulsão de agressão.


ABSTRACT

Science progress includes knowledge and power that were acquired by man with the aim to control the forces of nature and extract from it all the wealth for the satisfaction of his needs. Among the powers that may dispute the position of science, the only serious enemy is religion. It contains a system of illusions that ensures men protection, power and happiness. Science, however, may provide an illusion of omnipotence and omniscience and turn man into some kind of “prosthetic God”. However, notorious scientific progresses did not make men happier. The majority of benefits taken from science consist of “cheap enjoyments”. Human creations are quite fragile and science and technology, wich have built them, can also be used for their destruction.

Keywords: Culture, Benefits, Illusion, Aggressive drive.


RESUMEN

El avance de la ciencia comprende el saber y poder-hacer que los hombres han adquirido para gobernar las fuerzas de la naturaleza y arrancarle bienes que satisfagan sus necesidades. De los poderes que pueden disputar a la ciencia su territorio, el único e enemigo serio es la religión. Ella contiene un sistema de ilusiones que asegura a los hombres protección, poder y dicha. La ciencia, todavia, puede brindar a los hombres una ilusión de omnipotencia y omnisapiencia y convertir el hombre en una suerte de “dios-prótesis”. Todavía, los notorios progresos científicos no han hecho los hombres más felices. La mayoría de los beneficios de la ciencia estriban en “contentos baratos”. Las creaciones de los hombres son frágiles, y la ciencia y la técnica que han edificado pueden emplearse también en su destrucción.

Palavras clave: Cultura, Bienes, Ilusión, Pulsión de agresión.


RESUMÉ

Le progrès de la science couvre la connaissance et le pouvoir obtenus par l’homme avec le but de contrôler les forces de la nature et d’en extraire les richesses pour la satisfaction de ses besoins. Entre les forces qui peuvent ménacer la position de la science, le seul ennemi sérieux est la réligion. Celle-ci contient un système d’illusions qui garantit à l’homme protection, pouvoir et bonheur. Cependant, la science peut fournir une illusion de toute-puissance et d’omniscience et transformer l’homme dans une espèce de “Dieu prothétique”. Néanmoins, les progrès scientifiques notoires n’ont pas rendu les hommes plus heureux; la plupart de bénéfices de la science consiste en “plaisirs bon marché”. Les achèvements humains sont fragiles et la science aussi bien que la technologie, qui les ont construits, peuvent aussi bien être employés pour leur prope destruction.

Mots-clés: Culture, Bénéfices, Illusion, Pulsion d’agression.


 

 

Meu próximo, meu bem

Qualquer processo cultural é o resultado do saber e do poder do ser humano em controlar a natureza e dela extrair bens (FREUD, 1927/1974). A cultura deve incluir, por outro lado, os regulamentos necessários para ajustar as relações entre os homens na distribuição dos bens disponíveis.

É justamente em relação à repartição dos bens que o processo cultural esbarra em dificuldades. Isto porque as relações humanas são regidas pela quantidade de satisfação pulsional que os bens disponíveis propiciam e oferecem. Acrescente-se a isso o lembrete de Freud de que um homem pode vir, ele próprio, a funcionar como bem em relação a outro homem na medida em que pode ser explorado, seja na sua capacidade de trabalho, seja, até mesmo, como objeto sexual.

Lacan (1969-1970/1992, p.74) lembra que “não há discurso – e não apenas o analítico – que não seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade”. Nisso, o discurso do mestre é exemplar e nele se denuncia a espoliação do gozo, a redução do próprio trabalhador a ser apenas valor. O mais-de-gozar passa a se inscrever simplesmente “como valor a registrar ou deduzir da totalidade do que se acumula – o que se acumula de uma natureza essencialmente transformada” (LACAN, 1969-1970/1992, p.76). Pode-se dizer que o empuxo à produção desenfreada de bens a serem consumidos gera na cultura esse peso morto, traduzido por um mais-de-gozar que já não circula.

Ora, a manutenção dessa maquinaria exige a exploração do trabalho escravo. Nesse sentido, a figura inaugural do mestre e senhor encontra sua verdade no trabalho do outro, daquele que só se sabe por ter perdido seu corpo, “esse mesmo corpo em que se sustenta, por ter querido preservá-lo em seu acesso ao gozo” (LACAN, 1969-1970/1992, p.83).

Fica-se, portanto, com a impressão de que a cultura “é algo que foi imposto a uma maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção” (FREUD, 1927/1974, p.17). A partir daí, podemos entender a afirmativa de Freud (1927/1974) de que o homem, coagido ao trabalho, torna-se virtualmente um inimigo da cultura uma vez que esta, para se manter, exige dele um pesado fardo.

Embora a humanidade tenha efetuado avanços contínuos no controle da natureza, ela não progrediu no que tange ao trato dos assuntos humanos. A civilização, através da instituição de normas e regulamentos, só pode ser mantida sob a égide da coerção e da renúncia à pulsão.

A eficácia dessa manutenção exige, entretanto, que, ao lado da coerção, sejam adotadas medidas que se destinem a reconciliar os homens com a cultura e ressarci-los dos seus sacrifícios e sofrimentos. O homem deve ser iludido e entorpecido.

 

A força do discurso religioso

Sabe-se que foi devido à fraqueza e desamparo do ser humano diante das forças impiedosas da natureza que se criou a cultura, cujo objetivo inicial foi proteger o homem dos perigos naturais. Porém, na medida em que as tentativas de controle da natureza se mostraram falhas, foi preciso forjar a ilusão de uma Providência benevolente, que velava por todos. Desse estado de coisas nasceu o poder das idéias religiosas, sistemas de crenças que, acordes com os desejos do homem, passaram a fornecer a ilusão de proteção e segurança.

A ilusão religiosa, ao se inscrever no campo do desejo, coloca-se fora – ou mesmo, acima – da jurisdição da razão. Ela não é passível de ser provada ou refutada pela razão. Nesse sentido, difere do trabalho científico sobre a natureza, o qual se depara continuamente com o erro e exige ser verificado. Tal trabalho esbarra em duas limitações:

Por um lado, nosso aparelho psíquico não é fidedigno pois, detrás dos predicados do objeto que se apresenta diretamente à nossa percepção, algo escapa e permanece incognoscível. Por mais que tentemos aumentar a eficiência de nossos órgãos sensoriais mediante auxílios artificiais, algo permanece inabordável em relação àquilo que “se poderia supor ser o estado real das coisas” (FREUD, 1940/1975, p.225). Assim, resta à ciência se contentar em inferir processos, em si inapreensíveis, e traduzi-los para a linguagem acessível pela via de nossas percepções.

Por outro lado, não poucas são as pessoas que encontram sua única consolação nas doutrinas religiosas e só suportam a vida com o seu auxílio. Mesmo que a ciência progredisse ao máximo, ela não bastaria para o homem. Este “possui necessidades imperiosas de outro tipo, que jamais poderiam ser satisfeitas pela frígida ciência” (FREUD, 1927/1974, p.48).

Daí Freud (1933/1976) concluir que dos três poderes que podem disputar com a ciência seu território – a arte, a filosofia e a religião – o único inimigo sério é a religião. Esta, tendo à sua disposição as mais fortes emoções dos seres humanos, já nos primórdios da cultura “assumia o lugar da ciência ali onde mal havia algo que se assemelhasse à ciência (FREUD, 1933/1976, p.197). Assim, a religião adotou uma cosmovisão de um absolutismo incomparável, que persiste até os dias de hoje.

Ao ser perguntado sobre a eficácia da religião, Lacan (1975/2005) responde que esta triunfará não apenas sobre a psicanálise, mas sobre muitas outras coisas. Isto porque, diante da expansão do real, a religião – diz ele – terá razões de sobra para apaziguar os corações. E o fará a partir daquilo em que é competente, a sua capacidade de atribuir sentido a tudo, especialmente à vida humana. Completa Lacan (1975/2005).

“A religião vai dar um sentido às experiências mais curiosas, aquelas pela quais os próprios cientistas começam a sentir uma ponta de angústia. A religião vai encontrar para isso sentidos truculentos. É só ver o andar da carruagem, como eles estão se atualizando” (LACAN, 1975/2005, p.66).

A ilusão do discurso científico

Ao final de “O futuro de uma ilusão” Freud, que se posicionava contra as ilusões promovidas pela religião, conclui enfaticamente: “não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar (FREUD, 1927/1974, p.71).

Apesar de apontar uma falha no discurso da ciência, Freud, comprometido em fornecer um estatuto científico à psicanálise, não pôde perceber claramente que a própria ciência também se encarrega de preencher suas falhas com ilusões.

Lacan (1975/2005) adverte que tratar da posição do cientista era, para Freud, um tabu. Compreende-se que Freud tenha deixado quase intocado esse assunto. Afinal, não teria ele mesmo alimentado a ilusão de que a psicanálise, enquanto ciência, pudesse livrar a própria ciência de suas armadilhas?

Faz-se necessário acompanhar os tímidos questionamentos de Freud a respeito do discurso científico através, justamente, das suas críticas ao discurso religioso. A religião, assinala ele, ao assegurar proteção e felicidade, dirige o pensamento dos homens pela imposição de preceitos autoritários. Do mesmo modo, a ciência não pode se furtar ao fato de que das suas aplicações se derivem “normas e orientações quanto à conduta de vida” (FREUD, 1933/1976, p.197), as quais, muitas vezes, são coincidentes com as da religião. As medidas sanitaristas e higienistas o mostram bem.

Por outro lado, Freud assinala que o objetivo da ciência é chegar à concordância com a realidade, sendo que “a essa correspondência com o mundo externo real chamamos de ’verdade’ ” (FREUD, 1933/1976, p.207).

Ora, o próprio Freud é quem pergunta se também não seria ilusão a nossa convicção “de que podemos aprender algo sobre a realidade externa pelo emprego da observação no trabalho científico (FREUD, 1927/1974, p.47). O que proclamamos como verdade científica é apenas produto de nossas próprias necessidades. Fundamentalmente, “encontramos somente aquilo de que necessitamos e vemos apenas o que queremos ver” (FREUD, 1933/1976, p.213).

Portanto, a partir de Freud, pode-se não apenas questionar a verdade científica, como fazer, no seio do discurso da ciência, o deslocamento da verdade científica para a sua produção. Não sem razão, Lacan adverte que a ciência, hoje, ultrapassa em muito tudo o que se pode especular sobre um efeito de conhecimento. A nossa ciência não se caracteriza por ter introduzido um melhor e mais amplo conhecimento do mundo, mas por ter feito surgir no mundo “coisas que de forma alguma existiam no plano de nossa percepção” (LACAN, 1969-1970/1992, p.150). Ou seja, ela, sobretudo, produz artefados.

 

Do mercado das latusas ao Deus de prótese

O mundo de nossa ciência está povoado por latusas, pequenos objetos a – nos diz Lacan (1969-1970/1992) – feitos para causar o desejo. Gerados e governados pela ciência, esses objetos são consumidos freneticamente.

Tal é o estado de nossa civilização: um mundo em que um novo mestre aparece sob a forma do mercado das latusas, “onde o desejo do sujeito [...] se encontra a serviço das produções do mercado” ( SOLER, 1998, p.168 ). Por um lado, esses objetos são bens que facilitam a nossa vida, por outro, são “objetos impostos mais do que oferecidos, e que, por um círculo vicioso, nos obrigam a trabalhar muito para adquiri-los” (SOLER, 1998, p.169). Este trabalho, para manter sua eficácia, exige ser feito por um deus. É necessário que se fabrique um.

Se, conforme Freud (1930/1974), nos primórdios da civilização o homem formou um ideal de onipotência e onisciência corporificado em seus deuses, hoje ele mesmo está muito próximo da consecução desse ideal. Através da fabricação de utensílios e ferramentas o homem recriou e aperfeiçoou seus próprios órgãos motores e sensoriais. A ciência e a tecnologia colocaram à sua disposição poderes antes inalcançáveis.

O homem, assim, quase se tornou um deus. Mas, um deus denominado por Freud (1930/1974) “Deus de prótese” que, ao fazer uso de todos os seus órgãos auxiliares, sente-se verdadeiramente magnífico. Estes órgãos, porém, “não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam muitas dificuldades” (FREUD, 1930/1974, p.111-112).

As épocas vindouras trarão – prevê Freud – promessas de novos e inimagináveis avanços, aumentando ainda mais a semelhança do homem com Deus. Mas, o homem, desgraçadamente, permanecerá insatisfeito e infeliz. Por trás das indubitáveis vantagens e prazeres portados pela ciência,

“... a voz da crítica pessimista se faz ouvir e nos adverte que a maioria dessas satisfações segue o modelo do ’prazer barato’ louvado pela anedota: o prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das roupas de cama numa fria noite de inverno e recolhê-la novamente” (FREUD, 1930/1974: p.107).

Um “barato” que sai caro

Em “O mal-estar na civilização” Freud adverte que o projeto de felicidade para o homem não está contido no plano da Criação. O que se chama felicidade no sentido mais restrito “provém da satisfação (de preferência repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica” (FREUD, 1930/1974, p.95).

Somos feitos de tal modo – ressalta Freud – a só podermos gozar intensamente a partir do contraste, e não do estado em si. A infelicidade, contudo, é um estado mais constante e duradouro.

Por isso, o homem se acostumou a moderar sua reivindicação de felicidade, “tal como, na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio da realidade” (FREUD, 1930/1974, p.95). Assim, a tarefa de evitar o sofrimento coloca em segundo plano a de obter prazer.

Uma vez que há, por estrutura, uma impossibilidade de se atingir o gozo pleno, o homem teve que se arranjar, lançando mão de métodos que pudessem lhe proporcionar prazeres inusitados. Deles o modo mais grosseiro – embora também o mais eficaz – de afastar o sofrimento e atingir o gozo consiste na intoxicação química.

O serviço prestado pelos agentes intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento do infortúnio é tão apreciado como um benefício que “tanto indivíduos como povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido” (FREUD, 1930/1974, p.97). No entanto, é justamente no bem imediato trazido pelo tóxico que repousa seu dano. Prazeres obtidos facilmente tornam-se prazeres baratos.

O mesmo ocorre no campo da sexualidade em geral. Sabe-se dos prejuízos decorrentes do impedimento da satisfação sexual. Contudo – e aí encontra-se o paradoxo – “o valor psíquico das necessidades eróticas se reduz, tão logo se tornem fáceis suas satisfações” (FREUD, 1912/1970, p.170). Por estranho que possa parecer, para que a libido seja impulsionada se requer um obstáculo. Em geral, a importância psíquica da pulsão “cresce em proporção a sua frustração” (FREUD, 1912/1970, p.171). Há algo na natureza da própria pulsão sexual que é desfavorável à realização da satisfação completa.

Sendo assim, quanto mais a ciência e a tecnologia pretenderem preencher essa falha estrutural através da oferta de bens e artefatos que remedeiem as imperfeições humanas, mais conduzirão o homem ao sacrifício de seu gozo no consumo de seus bens.

Para Tarrab (2004: p.56), “o consumo consiste em fazer de um objeto do mundo, de um objeto produto da cultura, a resposta ao vazio de gozo do ser falante”. Resposta, diga-se de passagem, que não faz mais que intensificar esse vazio de gozo. A promessa ostentada pela “droga da felicidade” revelou, num curto espaço de tempo, o seu engodo.

Eis aí o princípio do capitalismo: “a produção extensiva, portanto insaciável, da falta-de-gozar [manque-à-jouir]” (LACAN, 1970/2003, p.434). A acumulação dessa falta, por um lado, aumenta os meios dessa produção como capital. Por outro, amplia o consumo, “sem o qual essa produção seria inútil, justamente por sua inépcia para proporcionar um gozo com que possa tornar-se mais lenta” (LACAN, 1970/2003, p. 434).

Revela-se, então, a dupla vertente do mal-estar na cultura antecipado por Freud: o sujeito não apenas sofre ao se ver impedido de gozar irrestritamente de seus bens em favor da cultura. Seu mal-estar maior reside no próprio consumo dos bens trazidos pela cultura. Isto porque todo consumo irrestrito resulta na destruição do bem gozado.

 

Eu consumo, eu devoro

Segundo Freud, são as pulsões agressivas que, acima de tudo, tornam difícil a vida do homem em comunidade e ameaçam sua sobrevivência. A restrição à agressividade do indivíduo “é o primeiro e talvez o mais severo sacrifício que dele exige a sociedade” (FREUD, 1933/1976, p.137).

Se o mal-estar na civilização resulta, numa primeira leitura, da restrição das pulsões sexuais, é no tocante à sua satisfação desmedida que ele atinge sua pujança. É pelo excesso que Eros dá lugar a Thánatos.

Consumir seu bem implica em destruí-lo. Essa é a base da oralidade, em que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão e aniquilado como tal. O canibal “tem afeição devoradora por seus inimigos e só devora as pessoas de quem gosta” (FREUD, 1921/1976, p. 134).

Voltamos, assim, ao início: meu próximo, meu bem... meu mal – motivo “do dilema ’comer ou ser comido’ que domina o mundo orgânico animado” (FREUD, 1933/1976, p.138). A questão fatídica para a espécie humana é, conforme Freud, saber se seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pela pulsão de agressão e autodestruição.

As criações humanas são facilmente destruídas, “e a ciência e a tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação” (FREUD, 1927/1974, p.16). Sendo assim, os cientistas têm motivos de sobra para se angustiarem. Ouçamos Lacan (1975/2005):

“Eles começam a ter uma pequena idéia de que seria possível fazer bactérias resistentes a tudo, que não pudessem mais ser detidas. Isso talvez limpasse a superfície do globo de todas essas coisas de merda, em particular humanas, que o habitam” (LACAN, 1975/2005, p.161).

A psicanálise na cultura

Soler, em “O sintoma na civilização”, pergunta se é possível aplacar, com as latusas, o imperativo do supereu que empuxa à renúncia a gozar mas, ao mesmo tempo, mantém o gozo. Em outros termos: “podemos pensar um instante em que a ciência e seus produtos chegarão a reduzir o sintoma?” (SOLER, 1998, p.169).

Por outro lado, qual é o lugar e a possibilidade de ação do psicanalista na cultura? Questão delicada, pois o próprio psicanalista é um objeto do mercado. No grande mercado das latusas “surge o psicanalista, que pretende ser um objeto novo, um objeto singular, um objeto não integrado ao mercado” (SOLER, 1998, p. 173).

Tal pretensão nos parece por demais ambiciosa. Afinal, a psicanálise não deixa de ser um produto do discurso da ciência. Entretanto, a ambição de Lacan – segundo Brodsky (1998) – era que a psicanálise, produto da ciência, fosse, ao mesmo tempo, o que demonstrasse seu limite; ou seja, “ali, onde a ciência encontra saber no real, a psicanálise deve verificar o saber que falta” (BRODSKY, 1998, p.144).

Freud (1927/1974), por seu turno, – diante da assertiva de seu interlocutor imaginário de que o homem não pode passar sem religião – responde argumentando que o efeito das consolações religiosas pode ser igualado ao de um narcótico e, como tal, não pode ser eliminado de um só golpe. Evocando a experiência americana do final dos anos 20 – a tentativa de privar o povo de todos os estimulantes, intoxicantes e drogas produtoras de prazer para, a título de compensação, empanturrá-lo de devoção –, Freud, queiramos ou não, faz um paralelo entre o discurso científico e o discurso religioso. Isso lhe dá a oportunidade de operar um corte e aí marcar a posição da psicanálise:

“Os que não padecem da neurose talvez não precisem de intoxicante para amortecê-la. Encontrar-se-ão, é verdade, numa situação difícil. Terão de admitir para si mesmos toda a extensão de seu desamparo e insignificância na maquinaria do universo; não podem mais ser o centro da criação, o objeto de terno cuidado por parte de uma Providência beneficente” (FREUD, 1927/1974, p. 63).

 

 

Referências

BRODSKY, G. “A psicanálise como sintoma”. in: O sintoma-charlatãoFUNDAÇÃO CAMPO FREUDIANO. . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

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LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.        [ Links ]

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Recebido em: 14/06/2007
Aprovado em: 30/06/2007

 

 

Sobre o autor:
Psicanalista • Doutor em Psicologia pela UFRJ • Professor do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Belo Horizonte, Brasil • Endereço eletrônico: wsbernardes@pucminas.br

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