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Epistemo-somática

versão impressa ISSN 1980-2005

Epistemo-somática v.4 n.2 Belo Horizonte dez. 2007

 

ARTIGOS

 

A elisão do sujeito no "palavrório" tecnocientífico da medicina

 

The subject's suppression in the techoscience "idle talk" of the medicine

 

La elisión del sujeto en el "palabreado" tecnocientífico de la medicina

 

L'évacuation du sujet dans les " parlottes " techno médicales

 

 

Serge Lesourd *

Université Louis Pasteur - Strasbourg, France

 

 


RESUMO

O poder de dominação do discurso médico no mundo atual, construído com base no modelo do palavrório, transforma a relação do sujeito ao outro, ao laço social e à idealidade. Neste texto, tratamos de explorar, em exemplos da psicopatologia ordinária, os efeitos dessa dominação do "palavrório" (parlottes) tecnocientífico da medicina sobre a subjetivação.

Palavras-chave: Subjetividade, Palavrório, Laço social, Psicanálise.


ABSTRACT

The power of domination of doctors' discourses in the actual word built from a model of "idle talk", transforms the relation of the subject to an other, a social bond and an ideality. In this text, we explore, from examples of the ordinary psychopathology, the effects of this technoscience "idle talk" ("parlottes") domination of the medicine in the subjectivization process.

Keywords: Subjective, "Idle talk", Social bond, Psychoanalysis.


RESUMEN

El poder de la dominación del discurso médico a partir del modelo del palabreado, transforma la relación del sujeto al otro, al lazo social, y a idealidad. En este texto, tratamos de explorar, a partir de ejemplos de la psicopatología ordinaria, los efectos de esa denominación del" palabreado" (parlottes) tecnocientífico de la medicina sobre la subjetividad.

Palavras clave: Subjetividad, Palabreado, Lazo social, Psicoanálisis.


RÉSUMÉ

La domination du discours médical dans le monde actuel, discours construit sur le modèle des parlottes, transforme le rapport du sujet à l'autre, au lien social et à l'idéalité. Il s'agira d'explorer, à partir d'exemples de la psychopathologie ordinaire, les effets sur la subjectivation de cette domination des parlottes techno médicales.

Mots clés: Subjectivité, parlottes, Lien social, psychanalyse.


 

 

A cultura, no sentido freudiano do termo (Freud, 1929/1971), é uma construção, uma regulação dos desejos subjetivos por meio dos interditos estabelecidos pelas leis sociais, muitas vezes diferentes de uma cultura a outra, e das leis simbólicas, sempre as mesmas no tempo e no espaço. Lembremo-nos de que as leis simbólicas são as do interdito do incesto, que constrói a diferença das gerações, do interdito do assassinato, que interdita a destruição do outro, e do interdito canibal, que impede a devoração pelo outro. Esses interditos inventam o humano em sua relação ao desejo, sempre de falta. A função da cultura é dar modelos de respostas às duas questões fundamentais do sujeito humano em suas relações com os outros. Primeira pergunta: qual é o gozo esperado pelo Outro? Isto é, como posso satisfazê-lo, a fim de que ele não me destrua? Segunda pergunta: qual é o desejo do Outro, sua vontade em relação a mim, a fim de que eu possa obter, deslizando-me no seu desejo, a satisfação que espero?

Essas perguntas são fundamentais para o neóteno humano, esse sujeito que nasceu cedo demais, impotente diante das forças do mundo e fragilmente armado para sua sobrevida. O neóteno humano depende inteiramente desse Outro, esse grande Outro que, no início, é o Outro maternal (privativo de cada sujeito) e se torna em seguida o Outro social, o da cultura a que pertence. Essa questão do desejo do Outro permanece mais ou menos enigmática, sem resposta verdadeira; é aquilo que a psicanálise chamou de falta ou castração. Essa falta fundamental, e jamais preenchida, mina as trocas entre humanos tornando impossível o gozo absoluto. Para o parlêtre (o ser da fala), a linguagem vai se apropriar dessa parte de perda, no impossível de tudo dizer, na impotência do fazer falar totalmente o corpo e o gozo que lhe é consubstancial. Toda cultura humana, toda cultura do ser de linguagem (parlêtre), é uma tentativa de resolver essa impossível realização desejante. E, pois, por meio da troca linguageira que se transmitem as leis de regulações do desejo, como diz há muito tempo certa filosofia e como demonstrou cientificamente a psicanálise. A linguagem se torna, assim, para o humano, o próprio lugar da cultura, o lugar de sua humanização. É o que comenta Lacan (1970/1991) na sua teoria dos discursos, elegendo como motor de cada discurso o lugar excluído, o da verdade, que não pode nunca ser atingido pela produção discursiva.

Ora, atualmente, parece que o prato da balança pende para o campo da palavra e da linguagem que, apoiando-se nas tecnociências, quer fazer crer que o discurso poderia atingir a verdade e que o sujeito falante, então, poderia atingir o gozo pleno. Nosso mundo moderno se organiza com base na fé liberal, no sentido mais religioso do termo, que afirma que a realização de toda satisfação individual é possível e desejável. Só a lei do mercado vem regular essa organização do mundo, no qual o indivíduo existe pelo consumo do objeto. A lei do mercado baseia-se no "teorema" que diz que a regulação das trocas inter-humanas provém da lei da oferta e da procura, e unicamente dela. Nenhum interdito, seja ele moral, político ou religioso, pode vir entravar a livre troca dos objetos. Esse teorema é falso como o demonstra maravilhosamente bem Jacques Généreux, em sua última obra, La dissociété ("A dissociedade") (Genereux, 2000/2006). Para apoiar esse projeto social, tornado possível graças aos avanços das tecnociências, era necessário propor um novo modo de articulação linguageira, novas formas de "discursos", adequados ao projeto liberal. Esses novos modos discursivos, dos quais Lacan havia enunciado a estrutura (a do discurso do Capitalista), em sua carta aos italianos (Lacan, 1978), eu os chamei de parlottes (palavrório/conversa fiada) (Lesourd, 2006) .

 

O objetivo das parlottes (palavrórios)

A parlotte em francês é uma forma particular de discurso, no qual o sujeito fala para não dizer nada. O conteúdo de sua palavra não tem importância, o que conta é que o próprio fato de falar faz o sujeito existir, primeiramente para ele próprio, num movimento narcísico, em seguida, para o outro, que escuta seu blablablá. A parlotte, como canta Jacques Brel (1963), "é ela que verdadei-ramente se instala quando não se tem mais nada a se dizer", mas ela sustenta a possibilidade de um gozo. Assim, as parlottes pós-modernas são um modo linguageiro particular de organização das relações de gozo, que recusa o enigma no desejo do Outro. O objetivo das parlottes é não somente preencher a falta, causa do desejo, o que a fantasia já faz, mas também transformar esse objeto real e irrepresentável da falta em produto da realidade, capaz, pois, de incluir-se na troca inter-humana. O que o palavrório defende é que a relação entre sujeito e objeto, causa do desejo, é possível e, conseqüentemente, a realização da fantasia parece, se não assegurada, pelo menos realizável e muitas vezes prometida.

Pensemos aqui na invasão de nosso cotidiano pelos discursos publicitários, que tentam provar que tal objeto seria aquilo que viria não somente preencher a falta, mas também dar status ao sujeito que o possui. O exemplo seguinte fala maravilhosamente por si só. Trata-se de uma publicidade de um carro qualquer, no qual uma criança é filmada, primeiramente, num carrinho de bebê, ao lado de outro carrinho que ele ultrapassa, depois, num carro de pedal, correndo num passeio, enfim, ele chega perto de um verdadeiro carro, que ele acaricia dizendo: "Não há idade para se ter um belo carro". Aqui está um dos interditos fundamentais, o da diferença das gerações, que é denegado. Esse procedimento linguageiro de denegação das diferenças parece uma evidência do discurso publicitário, pois seu objetivo é justamente "fazer crer" no "é possível tudo" da realização desejante. Mas isso torna-se um pouco complicado, até mesmo perigoso, quando esse mesmo processo de denegação, aplicado aos interditos fundamentais, é veiculado pelos discursos políticos (Stiegler, 2006; Lebrun, 2006), ou pelos discursos médico-preventivos.

As leis de prevenção relativas à saúde (lei antitabaco, lei de prevenção do alcoolismo, relato sobre os distúrbios de condutas, etc.), que gerenciam a "saúde totalitária" (Gori & Del Volgo, 2005) pregando um desaparecimento dos distúrbios que estão encarregados de enquadrar, pertencem a esse registro. Trata-se de prevenir, para que a felicidade coletiva e individual seja oferecida a todos. Esse discurso é retomado de maneira mais insidiosa pelas diferentes mídias nos programas políticos, que reduzem a política a uma série de promessas de futuras satisfações, dirigidas individualmente a cada uma das categorias representadas. O programa político "100 perguntas para um canditado" da campanha eleitoral presidencial na França, que é construído a partir do modelo dos programas de jogos "perguntas para um campião" ou "muro", comprova bem isso. Esse programa, afinal de contas extremamente popular, não é senão a forma edulcorada do discurso corrente das mídias populares que estruturam seus programas em torno da mostração da realização de numerosas fantasias fundamentais (vamos voltar a esse assunto).

O gozo que o palavrório prega não é, pois, um gozo limitado, restrito, porque proibido em relação ao objeto fundamental, mas, ao contrário, um gozo sem restrições, ilimitado, capaz de recuperar o objeto perdido. O gozo prometido, pela estrutura das parlottes, seria, pois, um gozo total, um gozo pleno. Esse gozo total, a psicanálise, posteriormente, aliás, à filosofia, aprendeu a decodificá-lo como o gozo arcaico da mãe, o gozo da Coisa, que, no entanto, permanece um gozo proibido e impossível ao sujeito, em virtude de sua " amarração " subjetiva na linguagem. Pelo fato de ser submetido à linguagem, conseqüentemente, às representações, o ser humano é radicalmente separado de seu objeto primeiro, que ele não pode senão "reencontrar" (Freud, 1905/1987), sob outras formas não perfeitas. O objeto adequado ao gozo é, assim, vetor do desejo, mas não pode ser atingido, o que torna esse objeto real, retirando-o da realidade do mundo. O objeto causa do desejo está, pois, perdido desde sempre, mas eficaz para sempre. A castração, que humaniza o sujeito humano, tal como fala a psicanálise, repousa sobre essa base.

 

As modalidades modernas de mostração do gozo

O palavrório tenta contornar essa contradição lógica, que é a própria essência do humano, de maneira completamente sutil, propondo ao ser humano um catálogo das modalidades perversas do gozo.

Tomemos um exemplo do desvio de um dos interditos fundamentais, estruturando o desejo: o interdito da devoração e, conseqüentemente, do domínio sobre o outro, pelas parlottes modernas, lembra que numerosas psicopatologias modernas estão presas nesse domínio, essa devoração do outro. Para citar somente algumas, das mais leves às mais graves, todas em recrudescência: a violência contra o outro (conjugal, familial ou social, contra um professor, por exemplo, em nome do direito a si); o seqüestro, como instrumento político e econômico; o atentado, suicida ou não, como expressão de seu direito a ser.

Essas violências são tomadas num discurso social de negação do interdito da dominação do outro, que se propõe todos os dias como uma distração nos jogos televisivos. Um grande número de programas de televisão atuais representa a realização de uma fantasia perversa de dominação do outro para o maior gozo do espectador pós-moderno. A eficácia, e a audiência, dos reality-show ou dos programas de jogos, nos quais o candidato se submete aos sarcasmos do animador, repousa nesse funcionamento. Que nos mostram esses programas? A representação de uma realização fantasmática perversa de submissão do sujeito ao agente do discurso. O animador, ou o criador que o animador encarna, designa um significante com base no qual deve se realizar o programa (sex-symbol, no Loft, militar; na primeira seção; fazendeiro na "fazenda das celebridades", etc.). Baseando-se esse significante, o participante deve, então, produzir um saber sobre o ser que ele deveria ser nesse significante que o designa. Esse saber se revela, naturalmene, como um saber incompleto. O participante, assim, deve dar mostra de uma falta que vai fazer o animador "gozar", e o espectador, posto ele próprio no lugar de agente desse discurso. É a falta no participante que é visada nesse circuito, a fim de fazer gozar o agente. Pensar aqui, por exemplo, no programa Le Mailton faible, no qual se trata de, debaixo dos sarcasmos da animadora, designar os que deverão ser eliminados, mortos, para chegar, enfim, ao alvo.

Esse dispositivo no qual um sujeito (o animador) põe o outro na posição de objeto para tirar dele o seu próprio gozo é o que Freud e Lacan descreveram como o da estrutura perversa. Muitos outros modelos sociais funcionam nesse registro da mostração perversa no nosso laço social moderno. No registro sexual, a norma é a da narrativa pornográfica, que serve cada vez mais de modelo para a realização da relação sexual não somente para os adultos,1 mas também para numerosos adolescentes, que começam a "vida amorosa" pelas agieren sexuais, às vezes eminentemente hard. No registro do corporal, a mostração do corpo e suas inscrições ocupa hoje o lugar de norma, indo às vezes até a modificação do corpo para fazê-lo corresponder a seu desejo íntimo (pensemos aqui nos transexuais ou no performer Orlan). Enfim, no registro da identidade sexual, na qual o "tudo possível" regula o funcionamento social. A identidade sexual não é mais de maneira alguma determinada pelo real sexual de um indivíduo, mas pela sua posição pessoal diante do sexual, disposto a pôr o corpo de acordo com sua fantasia, tão necessária como no caso dos transexuais, e a lei ao serviço de sua realização, como no caso das "parentalidades homossexuais".

Nesses diversos registros, as mostrações dos modos possíveis de gozos perversos constituem o mais banal e clássico dos passatempos.

Qualificar essas modalidades de comunicação e de satisfação como gozos perversos exige que digamos um pouco mais sobre a maneira pela qual se concebe a perversão no quadro psicanalítico. A perversão, que Freud inscreve, desde 1905, na primeira parte de seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1987), sob o título de Aberrações sexuais, não tem nenhum ponto comum com o sentido comum da perversão, que traz com ele uma reprovação moral. A perversão é um modo particular de relação ao gozo, partilhado pelo conjunto da humanidade, que recusa o limite feito ao gozo. A perversão, em seu sentido psicanalítico, é a maneira pela qual um sujeito, num domínio preciso de sua relação a seu semelhante, recusa, nega, desaprova a impossibilidade do gozo pleno e total. É sobre essa recusa que se constrói a dinâmica fantasmática do sujeito e sua crença íntima numa felicidade enfim realizável. É essa recusa que se exprime na fantasia ($a) e na crença em sua realização. Freud dizia isso quando chamava a criança de perverso polimorfo; ele queria dizer com isso que a criança procura primeiramente a satisfação, e que ela a procura por todos os meios pulsionais possíveis (devoração oral, retenção anal, falicismo edipiano, devaneio latente, agir adolescente, domínio do outro, etc.). O papel do social é de frear, pôr em ordem, recalcar, proibir a expressão bruta da satisfação pulsional, para construir uma satisfação substitutiva tolerável para os outros e para o sujeito. A pulsão, realmente, como bem mostra a criança entregue a si mesma, acaba por destruir o objeto de satisfação, por anulá-lo, visando ao prazer do sujeito.

O laço social tecido pelo palavrório pós-moderno guardou bem uma das lições da psicanálise: a satisfação subjetiva é o objetivo egoísta de toda a vida humana. Mas ele se esqueceu da segunda: todo gozo não pode ser senão incompleto, visando preservar a coesão do grupo social. O modelo dominante do laço social, o liberalismo econômico (France, 2007), propõe ao ser falante (parlêtre) realizar seu objetivo, o gozo, contando com a regulação do mercado pela lei da oferta e da procura. Para isso ele faz ofertas, ele propõe ao sujeito ver, olhar as diferentes possibilidades da realização fantasmática. Da mostração do assassinato à mostração do domínio total do outro, passando pelas diversas modalidades da realização sexual, todas as expressões fantasmáticas adquirem lugar de direito nos diversos meios de comunicação à disposição dos humanos. Em nome do "direito à palavra e à diferença", nenhum modo de gozo pode ser proibido. Somente os gozos pedófilos e necrófilos provocam, ainda, oposições maciças, pois tocam no mais profundo da destrutividade inerente ao homem. Quanto aos outros, eles se tornaram não somente toleráveis, mas ainda reivindicáveis pelos sujeitos que os praticam.

No quadro geral, os discursos tecnológicos da medicina moderna ocuparam um lugar central, a medicina tendo a responsabilidade de buscar, como afirma a OMS, a saúde para todos. Saúde que não é mais definida, como fazia Bichat, como "um estado precário que não prevê nada de bom", ou, como dizia Claude Bernard, "por um conjunto de forças que resistem à morte", mas como "um estado de bem-estar físico, moral e social". Nesse deslizamento de definição, três elementos devem ser notados. O primeiro é o desaparecimento da morte (o nada de bom de Bichat, a resistência de Claude Bernard) e, conseqüentemente, a negação do elo consubstancial entre a vida e a morte; a negação de que não existe vida sem finitude, sem morte. Vamos voltar a esse assunto, falando dos programas de cuidados paliativos e das campanhas de prevenção. Notemos, porém, desde agora, que o palavrório tecnocientífico dos médicos recusa, não mais simbolicamente, como acontecia no caso nas religiões, mas na realidade, a função da morte como limite, de impossível necessário.

O segundo elemento importante da nova definição de Saúde é a promessa, diabolicamente liberal, de um estado de bem-estar, isto é, de um estado de gozo. Para a medicina moderna, não se trata mais de dar paliativo às falhas normais e inevitáveis de um organismo humano, mas, ao contrário, trata-se de construir um estado de saúde generalizado. De curativa, a medicina, sob o impulso das tecnociências biológicas e exploratórias, tornou-se preditiva. Tomemos como exemplo essa notícia publicada o ano passado (2006) nos jornais médicos. Um casal portador de uma doença hereditária genética recorreu à Fertilização in vitro (FIV) para que fosse implantado um embrião não portador da doença; tudo isso depois de triagem genética dos embriões (são necessárias pelo menos 16 células), e sem que o casal fosse estéril. A criança deve, pois, ser concebida de forma a corresponder, por um lado, às normas desejantes parentais de ter um filho ideal; por outro, respeitando as normas econômicas, uma vez que o custo da FIV era muito inferior aos dos tratamentos previsíveis, no caso de nascimento de uma criança com doença hereditária.

Esse exemplo, um entre numerosos outros, é estruturado segundo as modalidades modernas das parlottes, o da completude perversa entre sujeito e objeto. Ele não é, porém, senão a face mais aparente do iceberg das tecnociências biomédicas modernas.

O terceiro elemento notável está ligado à linguagem na qual se inscreve o discurso tecnocientífico da medicina, o da Ciência, que repousa nos enunciados demonstráveis e aleatórios, isto é, enunciados nos quais o lugar do enunciador desaparece -enunciados sem enunciação. Tomemos um exemplo.

Afirma-se, o que é verdadeiro e demonstrável, que a segunda causa de mortalidade na França é o câncer, a primeira sendo os AVC. Reduzir a mortalidade implica, pois, diminuir as causas de câncer, o que é sempre verdadeiro. O fumo como o álcool são causas importantes dos cânceres, o que é sempre demonstrável em certas circunstâncias. Logo, é preciso suprimir o uso do fumo. É aqui que a generalização científica, tomada como um diktat legalizante, suprime a dimensão do sujeito na sua singularidade, tanto biológica quanto psíquica. A Ciência, ou melhor, seus avatares tecnológicos, criam, assim, em nome da norma estatística, uma ditadura sanitária do "todos iguais".

Essa normalização subjetiva, patente nas novas leis francesas, não deixa de ter efeito sobre a própria subjetivação, pois ela atinge o fundo psíquico do ser falante (parlêtre), aquele que a psicanálise descobriu, a descrença na morte e a busca desenfreada da felicidade, que constituem o inconsciente. Se, como afirma Freud, a "busca da felicidade" é o objetivo do homem, então, as tecnociências médicas sustentam essa busca e podem ser consideradas "benfeitoras" da humanidade. Mas isso é esquecer a segunda lição freudiana, inseparável dessa busca da felicidade e que Jacques Lacan (1973/1993) pôs como lema de toda a sua obra: a realização plena da felicidade é impossível, o "gozo esperado é aquele que não se deve ter". E se não se deve ter esse gozo se ele deve ser interdito ao ser falante (parlêtre) é porque ele leva, num além do princípio do prazer, diretamente à morte, pela destruição do objeto e, logo, do sujeito. O Kultur Arbeit (Freud, 1929/1971) limita o gozo humano, transmutando-o em desejo, isto é, ligando a obtenção de seu prazer ao outro da relação, subjetivando o outro. As parlottes modernas e a parlotte tecno dos médicos, em primeiro plano, vêm prejudicar esse trabalho da cultura que constrói a subjetividade, em vários campos do socius; do lado da recusa da morte, que tenta fazer crer a uma imortalidade do sujeito. Essa descrença da morte é um traço do infantil no homem, um traço de seu poderio criador dos primeiors encontros com o mundo. Não é à toa que o romance La mécanique des tubes (Nothomb, 1998) tornou-se um grande sucesso, pois descreve esse todo poderio autístico da crianca, igualando-se a Deus. O que produz o poder biotecnólogico sobre o corpo é o não-recalque dos processos arcaicos do todo poderio e a manutenção ativa da função do eu ideal megalomaníaco da primeira infância.

Vemos os numerosos efeitos disso na nova relação do sujeito humano com seu corpo, que não é mais, como dizia Freud, um destino, mas um objeto a talhar, a construir, segundo seu desejo. As biotecnologias médicas permitem hoje não somente reparar um corpo destruído, mas também transformar um corpo vivido, não conforme ao ideal individual. Isso é verdadeiro quando se quer configurar o corpo segundo um modelo idealizado, que as diversas formas de regimes propõem, o body-building, ou a cirurgia estética. Isso é sempre verdadeiro na adaptação da forma do corpo a uma identidade de sexo autoproclamado como o transexualismo. Isso se torna possível na geração de um novo corpo perfeito, como no exemplo citado. Neste último exemplo, ocorreu um salto ético, pois não se trata mais de construir seu corpo segundo um modelo ideal, mas, ao contrário, construir o corpo do outro, o da criança, segundo o modelo ideal dos pais. Daí à ditadura do "bem do outro" é só um passo.

Faltam dois aspectos, presentes nos palavrórios das biotecnologias modernas, que evoco antes de concluir. O primeiro está ligado à promessa da felicidade, que prega o discurso médico. Certamente, todos os discursos sociais prometeram sempre ao homem um acesso à felicidade; chamava-se isso de paraíso. Havia uma única condição antes desse acesso à felicidade eterna: era preciso "deixar esse vale de lágrimas", era preciso morrer. A biotecnologia recusa essa passagem em direção à felicidade; é preciso que esta seja realizada aqui na Terra. Essa manutenção da promessa da felicidade, equivalente para o sujeito à promessa edipiana, bloqueia grandemente a passagem adolescente e a aceitação da castração que ela comporta (Lesourd, 2005). Os sujeitos ficam, então, presos numa eternização da latência, numa promessa eterna um tanto infantil.

Falta um último aspecto dos palavrórios que deve ser evocado, e não é o menor. Os palavrórios, em sua própria estrutura, implicam uma recusa da consistência do Outro como mestre da palavra e da enunciação. O apoio que eles recebem do discurso da demonstração e da prova científica pelos enunciados produz no sujeito "a incerteza do ser". Perante a ausência de um Outro consistente, capaz de garantir minimamente seu lugar e sua nominação, o sujeito procura desesperadamente um discurso ao qual se agarrar, um outro que viria encarnar o Outro, ao mesmo tempo protetor e severo, um Outro cujo desejo seja detectável. Nesse lugar, desfilam tanto os médicos que salvam, os psis de toda sorte que sabem, até mesmo os gurus. Os coachs (Gori & Le Coz, 2006), como os experts, são a expressão moderna dessa figura particular do grande Outro, que as parlottes modernas veiculam. Em nome do saber, eles vêm dizer ao sujeito o que ele deve fazer, o que ele deve ser, para ter acesso ao gozo. Nisso, médicos, coachs, experts, mas também dealers funcionam com a mesma palavra, a da promessa de felicidade, contanto que se sigam as vias que preconizam. Diante desse apelo ao Outro que sabe, a essa injunção, os sujeitos se acham aprisionados numa lógica, sempre infantil, de impotência. Eles aceitam, ou essa submissão, presos na rede do palavrório biomédico, esperando, assim, atingir a felicidade prometida, ou esse fracasso, diante dessa realização da felicidade.

Nesse caso, a maioria das vezes, eles retomam para si a carência do Outro, e é então o Eu que é afetado por essa impotência. A recrudescência dos distúrbios sob a forma depressiva é a conseqüência lógica dessa vacuidade do Outro, garantia da verdade que os experts substituíram. Essa depressão crônica do sujeito, que chamo, juntamente com O. Douville, de melancolização do sujeito, tem várias conseqüências possíveis.

Ou o sujeito toma sob a sua responsabilidade essa carência do Outro, e é então sobre o Eu que cai a sombra do objeto perdido, trazendo os efeitos da depressão verdadeira que são a inibição para pensar e agir, a tristeza desvalorizadora e, em casos extremos, a passagem ao ato suicida, por identificação com o objeto perdido.

Ou o sujeito tenta, desesperadamente, encontrar uma figura do Outro que aguente o golpe. É nesse ponto de pane do Outro que as parlottes modernas encontram seu ponto de ancoragem com a dinâmica subjetiva individual. A parlotte da tecnologia, pregando a direção da vida do sujeito com base em um saber científico, parece propor uma resposta adequada à pane do Outro. Entretanto, a carga desse saber não está de modo algum enraizada numa subjetivação; ela é produzida pelas demonstrações de enunciados. O sujeito fica, então, submetido ao saber da técnica, e não tem como solução senão conformar-se na prática às prescrições da ciência. Quando esta, como as tecnociências médicas, propõe, além disso, uma reparação da melancolização pelo medicamento, o círculo se fecha. O sujeito torna-se consumidor de antidepressivos, e a causa inicial da depressão, a "vacância" do Outro, se acha radicalmente elidida.

Mas o sujeito pode também achar uma outra falsa saída diante da pane pela falta do Outro nas parlottes modernas. Diante de sua queixa, o sujeito pode também acreditar que aqueles que constroem seu próprio saber, os gurus modernos, estejam substituindo a encarnação imaginária do Outro. O guru torna-se, assim, um novo modelo, uma nova figura da verdade, cujos ensinamentos é preciso seguir. A entrada numa seita é, aliás, pelo menos sintomatologicamente, uma maneira de "curar-se" da melancolização, ligada à pane pela falta do Outro. O saber do guru substitui o saber do Outro, o lugar da garantia. A seita torna-se, assim, para o sujeito melancolizado, um laço em que, por um lado, o Outro encarna uma figura identificável e admirável, por outro, um lugar onde o indivíduo pode ser reconhecido pelos seus pares e pela encarnação do Outro, se ele se submete às regras da seita. Nesse caso ainda, o círculo se fecha, e o sujeito alienado à parlotte do guru pode se achar curado da melancolia pela recriação do Outro completo. A depressão grave que se segue por ocasião do abandono, por seus adeptos, das diversas seitas, que florescem no laço social pós-moderno, é prova do efeito máscara que possui a seita, e sua organização sobre o funcionamento psíquico dos sujeitos que nela se engajam.

Os coachs, como certos psicólogos -e aqui penso naturalmente nos comportamentalistas, mas também em alguns ligados à psicanálise -, funcionam no mesmo registro, propondo ao sujeito um "saber ser" ao qual este deve se submeter para assegurar a felicidade.

Como se pode ver, as parlottes modernas, das quais a tecnociência médica é o paradigma, constroem um mundo material que o filme Matrix descreve perfeitamente. É, aliás, nesse filme que se pode detectar a última maneira de o sujeito se posicionar diante do desaparecimento do Outro e da ditadura dos experts tecnocientíficos: a resistência pela violência da agressividade. Quando ela é simbolizada, como no filme, ela é criação do sujeito; quando ela é puro ato, como em numerosos atos modernos, ela se torna destrutiva, seja do Outro (Lesourd, 2006), seja do próprio sujeito.

É nesse lugar que a psicanálise, e não somente no hospital, pode encontrar o seu lugar: o da resistência do sujeito a uma parlotte tecnocientífica médica que promete um sujeito sem subjetividade, um sujeito "matricial".

 

Referências

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Recebido em: 11/07/2007
Aprovado em: 20/07/2007

 

 

Sobre o autor:

* Psicanalista, professor de psicopatologia clínica e diretor da Unidade de Pesquisa em Psicologia: Subjetividade, Conhecimentos e Laço Social. Universidade Louis Pasteur. Strasbourg - France. Endereço eletrônico: serge.lesourd@psycho-ulp.u-strasbg.
1 A pletora de revistas de sexo ou de sites da internet cobrindo esse assunto.

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