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Revista Brasileira de Psicologia do Esporte

versão On-line ISSN 1981-9145

Rev. bras. psicol. esporte v.2 n.1 São Paulo jun. 2008

 

 

Recortes da transição na carreira esportiva

 

Clipping of sport career transition

 

Recortes de la transicion en la carrera deportiva

 

 

Keila Sgobi de Barros

ADC Finasa Esportes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A transição de carreira ocorre nas mais diversas profissões. Por transição na carreira esportiva compreendemos desde a transição entre as fases de desenvolvimento do atleta no esporte, até o encerramento da carreira esportiva. Este trabalho de revisão bibliográfica pretende compreender como a Psicologia do Esporte aborda este tema. Para isso, buscou-se definir o processo de transição de carreira esportiva, suas fases e como os atletas percebem e enfrentam cada momento. Foram expostos alguns modelos conceituais que têm como objetivo preparar o atleta para cada fase, valorizando seu conhecimento prévio e buscando fortalecê-lo. O trabalho proporcionou verificar que a atuação do psicólogo do esporte é ainda pouco desenvolvida, encontrando-se escassa referência bibliográfica, especificamente no Brasil, onde foram relacionadas somente duas revisões de literatura a respeito do tema. Pode-se concluir que o psicólogo do esporte brasileiro necessita atuar neste campo para a compreensão da realidade nacional, considerando características econômicas, sociais e culturais do contexto esportivo e a especificidade de nosso atleta, suas necessidades e dificuldades para que programas específicos sejam desenvolvidos a fim de enfrentar as adversidades resultantes de transições que ocorrem durante a carreira esportiva.

Palavras-chave: Psicologia do esporte, Transição na carreira esportiva.


ABSTRACT

The career transition occurs in the most diverse professions. We call sport career transitions since the phases of development of the athlete in the sport, until the closing of the sport career. This bibliographical revision intends to understand as the Sport Psychology approaches this subject. For this, we searched to define the process of sport career transition, its phases and how the athletes perceive and face each moment. Some conceptual models had been displayed that have as objective to prepare the athlete for this phase, valuing its previous knowledge and searching to fortify it. The work provided to verify that the performance of the sport psychologist must be developed, meeting scarce reference bibliographical, specifically in Brazil, where just two revisions of literature regarding the subject had been related. It can be concluded that the sport psychologist needs to act in this field for the understanding of the national reality, considering economic, social and cultural characteristics of the sport´s context and the individuality of our athlete, its necessities and difficulties so that specific programs has been developed in order to face the resultant adversities of transistions that occur during the sport career.

Keywords: Sport psychology, Sport career transition.


RESUMEN

La transición de carrera se produce en las más diversas profesiones. Nomeamos transicion en la carrera deportiva desde las fases de desarrollo del atleta en el deporte, hasta el cierre de la carrera deportiva. Esta revisión bibliográfica pretende entender como la Psicología del Deporte aborda este tema. Para ello, se realizaron búsquedas de definir el proceso de transición de carrera deportiva, sus fases y la forma en que los atletas perciben y enfrentan cada momento. Algunos modelos conceptuales han sido exhibidas que tienen como objetivo preparar a los atletas para esta fase, la valoración de sus conocimientos previos y la búsqueda de fortalecerlo. Los trabajos permitio verificar que el desempeño del psicólogo del deporte debe ser desarrollado, reuniendo escasa referencia bibliográfica, específicamente en el Brasil, donde sólo dos revisiones de la literatura sobre el tema había sido relacionadas. Se puede concluir que el psicólogo del deporte debe actuar en este campo para la comprensión de la realidad nacional, considerando aspectos económicos, sociales y culturales del deporte del contexto y de la individualidad de nuestro atleta, de sus necesidades y dificultades específicas a fin de que los programas de Se ha desarrollado para hacer frente a las adversidades resultantes de transiciones que se produzcan durante la carrera deportiva.

Palabras-clave: Psicología del deporte, El deporte de transición de carrera.


 

 

Introdução

Todos, um dia, sonharam com uma futura profissão. Inicialmente, não se pensa muito em como isso vai acontecer. Estes sonhos só começam a se estruturar entre o final da adolescência e início da idade adulta, quando é minimamente possível discernir entre diversas possibilidades de atuação e sobre como atingir da melhor maneira possível os objetivos.

Este processo ocorre de maneiras diversas em cada uma das profissões. A profissão de atleta exige um planejamento que pode começar muito cedo, quando, por exemplo, o iniciante ingressa na escolinha de futebol aos 4 anos de idade, como promessa de ser futuro destaque da seleção nacional. Neste momento, supõe-se que a criança faça o que gosta: jogar futebol. Sua preocupação é a bola e o jogar-brincar, nada mais, enquanto pais e professores já se "pré-ocupam" com sua carreira no esporte.

Como é esta preocupação? O quanto se conhece sobre os recursos que estas crianças têm para lidar com o processo da carreira esportiva? Que consciência os envolvidos neste processo têm das variáveis emocionais, sociais, cognitivas, físicas e motoras participantes das diversas fases e das necessidades para enfrentar cada período de transição? O quanto o atleta está instrumentalizado para lidar com as novas exigências da especialização, profissionalização ou fim de uma carreira que exigiu todo o seu tempo e dedicação?

Esta revisão busca compreender o que o psicólogo do esporte tem feito a este respeito e como pode auxiliar o atleta a enfrentar estes processos de mudança constantes durante a carreira. Ao conhecer um pouco mais sobre como o atleta vivencia estas situações, foram citadas propostas que têm como objetivo preparar o atleta, valorizando seu conhecimento prévio e buscando fortalecê-lo. Com este enfoque, questiona-se como os psicólogos do esporte brasileiros descrevem e lidam com a transição na carreira esportiva e considerações são tecidas a partir da compreensão da pesquisa bibliográfica realizada, com propostas de discussão e atuação do psicólogo do esporte no contexto nacional.

 

1. Por que estudar transição na carreira esportiva?

Por transição na carreira esportiva compreendemos as fases de desenvolvimento do atleta no esporte, definidas pela idade ou pelo grau de especialização esportiva (Stambulova, 1994).

Estas situações de transição despertam no atleta diversos sentimentos e estratégias de enfrentamento que podem contribuir com uma melhor vivência de circunstâncias semelhantes ou com seu declínio no esporte e possível abandono (Brandão et al, 2000).

Por este motivo, faz-se necessário que profissionais da psicologia do esporte conheçam este cenário e atuem com o atleta desde o primeiro momento que vivencia uma transição em sua carreira, para que consiga identificar seus sentimentos relacionados à situação, compreender suas possibilidades de atuação e desenvolver estratégias de enfrentamento saudáveis.

A produção de literatura específica sobre o assunto se mostra escassa, principalmente no Brasil, onde temos como referência um capítulo escrito por Martini (2003) e a revisão de literatura realizada por Brandão et al. (2000), que abordam somente a transição de carreira (encerramento da carreira como atleta).

Por este motivo, foi realizada busca por publicações referentes à transição na carreira esportiva abrangendo desde artigos de revisão de literatura em periódicos como a Revista Brasileira Ciência e Movimento, anais de Simpósios e Congressos, The Sport Psychologist, International Journal of Sport Psychology, International Review for the Sociology of Sport, Journal of Sport and Exercise Psychology, e capítulos específicos em livros nacionais e norte-americanos sobre Psicologia do Esporte.

 

2. Transição de carreira esportiva ou transição na carreira esportiva?

Segundo Stambulova (1994), o termo carreira esportiva se refere a uma multiplicidade de atividades esportivas do indivíduo que pretende aperfeiçoamento e reconhecimento no esporte.

As transições podem ser positivas, quando existem precondições para a adaptação permitindo um rápido desenlace; ou negativas, quando há muito esforço para se adaptar com sucesso às novas exigências ou até mesmo falta de habilidade de adaptação, gerando sintomas e configurando uma situação de declínio (Brandão et al, 2000).

A seguir, trataremos da transição na carreira esportiva, foco deste trabalho, a partir do modelo de compreensão proposto por Stambulova (1994) e posteriormente discutiremos a transição de carreira esportiva, conhecendo alguns modelos de compreensão, suas causas, conseqüências e estratégias de enfrentamento. Esta etapa será tratada por se configurar como mais um momento crítico e definitivo desta carreira. O modo como o atleta enfrentou transições anteriores influenciará a forma como vivenciará as futuras fases.

 

3. Transição na carreira esportiva

A transição na carreira esportiva é compreendida como transição entre as diversas fases que a compõem (Bloom, 1985; Salmela, 1994 apud Alferman D,. Lavalle, D & Wylleman, P. 1999). Stambulova (1994) elaborou um modelo em que este processo é considerado como acontecimento crítico da vida que o atleta deve enfrentar. Propõe duas maneiras de descrever a carreira esportiva:

Modelo de descrição sintético

Inclui quatro conceitos: tempo, espaço, informação e energia que definiram quatro características objetivas da carreira esportiva:

Período da carreira (tempo): número de anos devotados ao esporte;

Generalização e especialização (espaço): número de eventos dos quais o atleta participou e funções desempenhadas no esporte;

Nível de conquistas (informação): resultado das atividades esportivas (qualificação esportiva, títulos, recordes), inclusive no desenvolvimento do atleta (experiência de vida e no esporte, relações sociais, o que adquiriu com o esporte, etc);

Custo da carreira (energia): "preço" pago pelas conquistas no esporte (tempo de preparação, energia, dinheiro, relações, atividades de lazer, etc.).

Estas características objetivas estão diretamente ligadas às características subjetivas do atleta, a sua satisfação com a carreira e ao sucesso como marca da reputação que conquistou durante a carreira.

Modelo de descrição analítico

É baseado na análise do curso da carreira esportiva como processo, que é expresso em estágios de desenvolvimento. Estão eles na Tabela 1.

 

 

Os estudos da autora sobre Modelos Psicológicos têm como base a Abordagem de Sistemas que considera o objeto de pesquisa como um sistema composto de elementos, estrutura, funções e desenvolvimento determinados (Stambulova, 1997a; 1997b; 1999 apud Brandão et al, 2000). A partir da sobreposição destes modelos, a autora elabora o Modelo Estrutural em que se considera a dinâmica dos resultados esportivos juntamente com a dinâmica da evolução do atleta durante a carreira. Para este modelo há direções no desenvolvimento do atleta (motivação, qualidade e estilo) e níveis de determinantes psicológicos (nível operacional - objetivos, processos psíquicos, operações motoras; nível situacional - motivos, estados psíquicos, atividades/comportamento; nível cultural - necessidade, qualidade, estilo).

3.1. Fases de transição na carreira esportiva

Como apontado por Stambulova (1994), a transição na carreira esportiva compreende diferentes fases. Bloom (1985) e Salmela (1994) as descrevem como iniciação, desenvolvimento das diferentes habilidades requisitadas no esporte, especialização e pós-carreira (apud Alfermann et al, 1999).

Para Stambulova (1994), quando os atletas não conseguem lidar com a transição, com novas dificuldades e problemas, abandonam o esporte prematuramente. Conseqüentemente, este é um dos períodos em que o atleta pode precisar de assistência psicológica. O psicólogo do esporte atua em cada crise de acordo com as características, peculiaridades e reações específicas do atleta.

Em pesquisa com 213 atletas russos de diferentes esportes, a autora (1994) apresentou sete categorias que representam as características gerais de crises na carreira esportiva:

1) A origem da crise: aparecimento de novas contradições e problemas no desenvolvimento do atleta no esporte e atividades correlatas;

2) Sintomas: características subjetivas de como compreende e sente as experiências contraditórias (dúvidas, desorientação para tomar decisões);

3) Circunstâncias que podem reforçar a crise: obstáculos; pressão autoritária daqueles que se relacionam com o atleta em detrimento de apoio social; passividade; dependência;

4) Modos de sair da crise: dependem do tipo de esporte, dos problemas em questão, circunstâncias da vida, gênero e peculiaridades emocionais individuais;

5) Influência da crise nas conquistas: o início de uma fase crítica está geralmente associado a um platô ou declínio no rendimento e a saída da crise em sua melhora;

6) Assistência psicológica ao atleta: assistência profilática e assistência corretiva (visando melhora dos sintomas e resolução do problema);

7) Formas previsíveis de se "castigar" pela dificuldade para sair da crise: abandono precoce do esporte; mudança de esporte ou função; lesões, doenças somáticas e psicossomáticas; abuso de drogas, etc.

Porém, autores assinalam que a falta de rigor metodológico na literatura esportiva relatada impede a afirmação da prevalência de dificuldades de enfrentamento em atletas pós-carreira esportiva, como constatado nesta revisão (Curtis & Ennis, 1988; Greendorfer & Blinde, 1985 apud Alfermann et al, 1999). A autora ainda pontua as principais dificuldades enfrentadas por atletas em cada transição por ela descrita:

1. Início da especialização esportiva: adaptação às demandas de cada esporte, técnico, equipe e novo estilo de vida. As principais dificuldades são:

a) Decepção (diferença entre o que esperava do esporte e o que ele é);

b) Especializar-se rapidamente nas técnicas básicas, que dependem do desenvolvimento motor e cognitivo;

c) Realizar boa apresentação ou rendimento nas primeiras competições.

2. Especialização na prática esportiva: início do trabalho visando resultados. Os desafios básicos do atleta são:

a) Adapta-ser à nova carga de treinamento, o que pode levar a overtraining;

b) Reestruturação da técnica de exercícios, re-automatização e desenvolvimento de repertório motor;

c) Crescimento da competitividade (preocupação com o rendimento esportivo);

d) Demonstrar alto nível de resultados;

e) Equilibrar atividade esportiva, estudo e outros interesses.

3. Transição do esporte de massa para o esporte de alto rendimento;

4. Transição da categoria Junior para Adulto: assim como na fase anterior, para os atletas de elite, este é o auge da carreira, onde seu estilo de vida fica ainda mais subordinado ao esporte. Neste momento, os atletas precisam:

a) Equilibrar a carreira esportiva e seus objetivos a outras áreas da vida, mudando seu estilo de vida com a introdução de algumas restrições;

b) Aprimorar seus conhecimentos sobre biomecânica, fisiologia, bioquímica e habilidades psicológicas aplicadas ao esporte que pratica;

c) Criar diferentes estratégias para aprimorar sua performance;

d) Conquistar prestígio em sua equipe, torcida, meio esportivo em geral;

e) Enfrentar crises nos relacionamentos interpessoais (técnico, equipe, iniciantes na carreira, veteranos e familiares).

5. Transição do esporte amador para o profissional: ligada à adaptação a demandas específicas do esporte profissional: competidores no mesmo nível; necessidade de não somente ganhar, mas de realizar uma apresentação atrativa e emocionante aos espectadores e necessidade de treinamento independente. Quando o atleta é contratado por equipes de outros países, soma-se a estes fatores a proficiência no idioma do país de destino e as adaptações culturais e sociais.

6. Transição do Auge para o final da Carreira Esportiva: os resultados começam a decair devido a diversas razões (fadiga crônica, lesões, doenças, oponentes jovens, etc.). Os principais esforços são para:

a) Encontrar força interna para realizar a manutenção dos resultados de alto nível, utilizando toda a sua experiência emocional e esportiva;

b) Preparar-se para deixar o esporte (busca de novas possibilidades de carreira profissional).

7. Encerramento da Carreira Esportiva: relacionada à adaptação a um novo estilo de vida, onde o esporte deixa de ocupar o "espaço central" para se tornar sua "memória" e registro de sua "história". Os principais desafios são:

a) Adaptar-se a um novo estilo de vida e de relacionamentos;

b) Começar uma nova carreira profissional;

c) Iniciar sua própria família ou procurar novos fundamentos para fortalecê-la.

Porém, autores assinalam que a falta de rigor metodológico na literatura esportiva relatada impede a afirmação da prevalência de dificuldades de enfrentamento em atletas pós-carreira esportiva, como constatado nesta revisão (Curtis & Ennis, 1988; Greendorfer & Blinde, 1985 apud Alfermann et al, 1999).

3.2. O atleta colegial ou universitário

Segundo Greenspan & Andersen (1995), o primeiro psicólogo a trabalhar especificamente com atletas estudantes norte-americanos na clínica ou em aconselhamento foi Bruce Ogilvie na década de 60. Poucas universidades norte-americanas contratam psicólogos para tratar da saúde emocional dos atletas e os profissionais têm como foco transtornos alimentares e educação antidrogas, temáticas recorrentes entre jovens estudantes (Hellstedt, 1987; Hughes,1990 e Smoll & Smith,1997 apud Greenspan & Andersen, 1995).

Segundo Alfermann et al (1999), o atleta-estudante enfrenta as mesmas dificuldades que aqueles de alta performance, além de situações como ter de escolher entre o esporte e os estudos, por exemplo, pelo fato dos técnicos não acreditarem que consiga manter-se concentrado e motivado à carreira esportiva se estiver envolvido na carreira acadêmica. Esta situação induz a dificuldades no planejamento da utilização do tempo, restrição nos relacionamentos e falta de motivação tanto na vida acadêmica quanto na esportiva.

Os atletas colegiais norte-americanos vivenciam as seguintes transições quando iniciam sua carreira no esporte universitário:

Ingresso em uma equipe universitária (necessidade de lidar com diferenças étnicas e culturais);

Transição da fase de desenvolvimento (da adolescência para a fase adulta);

Vivência de conflitos entre as tarefas de estudante e de atleta;

Transição para a saída do esporte competitivo (por escolha, lesões, etc).

O sucesso de um ex-atleta não está somente ligado ao seu desempenho acadêmico e a uma formação profissional além da esportiva, mas ao modo como ele enfrenta o encerramento de sua carreira esportiva para o ingresso em uma nova área profissional e em uma nova fase de sua vida, como aponta Coakley (1983 apud Ogilvie & Taylor, 1993).

Atletas com dificuldades emocionais apresentam dificuldades financeiras, abuso de drogas (Koukouris, 1991; Mihovilovic, 1968 apud Alfermann et al, 1999; Sinclair e Orlick, 1993; Roffé, 2000; Newman, 1991 apud Olgivie & Taylor, 1993), tentativas de suicídio (Beisser, 1967; Hare, 1971; Vinnai 1973 apud Olgivie & Taylor, 1993) e atividade criminosa (Hare, 1971; McPherson, 1980 apud Ogilvie & Taylor, 1993).

Greendorfer e Blinde (1985 apud Ogilvie & Taylor, 1993) apontaram dificuldades de adaptação em grande amostra de ex-atletas universitários competitivos. Eles indicaram que 90% dos sujeitos projetaram suas vidas após a faculdade e 55% estavam muito ou extremamente satisfeitos quando sua carreira de atleta terminou. Apesar disso, os autores pontuam que um terço dos atletas indicaram que estavam muito ou extremamente infelizes com o fim da carreira e 38% dos homens e 50% das mulheres responderam que sentiam muita ou extrema falta do envolvimento com o esporte.

 

4. Transição de carreira esportiva uma análise pertinente

O encerramento da carreira esportiva começou a ser compreendido como um importante fenômeno nos últimos 20 anos. A divisão social entre atletas de elite e a população geral começou a crescer na década de 90. A exposição na mídia e, conseqüentemente, contratos publicitários, contribuíram para que a remuneração dos atletas de elite, amadores ou profissionais, aumentasse, provocando um distanciamento das "pessoas comuns" (Newman, 1988 apud Ogilvie e Taylor, 1993). Por este motivo, pesquisas sobre este assunto começam a surgir, ainda que em pequena escala.

Para Schlossberg (apud Alferman et al, 1999, p. 7), a transição de carreira esportiva pode ser definida como "um evento ou não evento que resulta em uma troca nas suposições sobre si mesmo e o mundo, e assim, requer uma mudança correspondente nos seus relacionamentos e comportamentos" , o que corresponde a vivenciar algo que afeta diretamente questões de identidade, da visão que o atleta tem de si e do mundo, solicitando dele uma adaptação do modo de ser e de se relacionar. Segundo Brandão et al (2000), é resultado da combinação de inúmeros fatores individuais e influências sociais (idade, novos interesses, fadiga psicológica, dificuldades com a equipe técnica, performance em declínio, problemas físicos, etc).

4.1. Modelos Conceituais

Modelos teóricos para explicar a transição de carreira esportiva tradicionalmente se originaram da gerontologia social (estudo do processo de envelhecimento) e da tanatologia (estudo da morte e dos processos de morrer, de Kübler-Ross, 1967).

Martini (2003) descreve e questiona tais modelos. Segundo o autor, estes modelos possuem limitações: considerar o término de carreira como um evento único; ter foco limitado ao desenvolvimento de vida dos atletas; não considerar a possibilidade de desenvolvimento de identidade fora do esporte; supor que o processo de término de carreira esportiva é um evento inerentemente negativo.

Para Alfermann et al (1999), os Modelos de Transição que se tornaram populares na década de 1980 consideram a transição de carreira como um processo. Citam o Modelo Analítico de Sussman (1972) e o Modelo de Adaptação Humana à Transição, de Schlossberg (1981). Neste, três fatores principais devem ser considerados: a) características da experiência individual com transições similares, b) percepção da transição; c) características do ambiente pré e pós-transição.

Outra proposta é o Modelo de Saída de Papel de Helen Ebaugh (1977, 1988 apud Martini, 2003) que argumenta a existência de três características básicas:

1º. Afiliação passada com papel torna-se parte da identidade presente e futura do ex-atleta (identidade remanescente);

2º. Freqüentemente, a sociedade não desistirá da identidade anterior da pessoa;

3º. Impactos da saída de papel não se restringem ao indivíduo (Drahota e Eitzen, 1998 apud Martini, 2003).

Segundo Drahota & Eitzen (1998 apud Martini, 2003), este processo está dividido em estágios: primeiras dúvidas (duvidar compromissos e papéis existentes); buscando alternativas (procura e comparação de alternativas); ponto de virada (identificação com novos grupos de referência, análise da mudança de papel, decisão); criando ex-papel (identificação do papel prévio de si é levada em conta e incorporada na direção de uma futura identidade).

Segundo os autores (1998 apud Martini, 2003), para uma melhor adequação do modelo de Ebaugh à população de ex-atletas profissionais, são necessárias algumas modificações: adição do estágio de dúvidas originais para alguns atletas ao invés do estágio de primeiras dúvidas; diferença de época na qual o atleta praticava; significado do tipo de saída; afastamento e comportamentos associados com sair do esporte.

4.2. Instrumentos de avaliação

Existem instrumentos utilizados para conhecer estratégias de enfrentamento durante transições na carreira, as causas de seu encerramento e identificar atletas que venham a ter problemas com transições. São questionários de análise quantitativa que, em alguns casos, consideram questões qualitativas (Sinclair, 1990 apud Alfermann et al, 1999). Dentre eles, destacam-se:

Athletic Identity Measurement Scale (AIMS; Brewer, Van Raalte, & Linder, 1993): avalia como o atleta se define atleticamente;

Sport Interpersonal Relationships Questionnaire (SIRQ; Wylleman, Vanden Au Weele, De Knop, Sloore, & De Martelaer, 1995): avalia qualidade dos relacionamentos do atleta;

British Athletes Lifestyle Assessment Needs in Career and Education (BALANCE) (Lavallee & Wylleman, 1999): escala para identificar atletas que possam vir a ter dificuldades na transição de carreira;

Athlete Retirement Questionnaire (ARQ; Sinclair, 1990): identifica estratégias de coping utilizadas pelos atletas para lidar com a transição de carreira.

4.3. Causas do encerramento da carreira esportiva

Dentre os autores que estudam o fenômeno do encerramento da carreira esportiva, Ogilvie e Taylor (1993), Murphy (1995) e Roffé (2000) apontam causas do término da carreira:

Declínio da performance devido ao avanço da idade (fatores fisiológicos e implicações psicológicas);

Lesões (que podem resultar em distress manifestado em depressão, abuso de substâncias, ideação e tentativa de suicídio (Ogilvie & Howe, 1982), crise de identidade (Elkin, 1981), afastamento social (Lewis-Griffit, 1982), medo, ansiedade e perda da auto-estima (Rotella & Heyman, 1986) (apud Ogilvie e Taylor, 1993));

Modo como se dá o processo de seleção de atletas;

Livre escolha (busca de novos desafios e satisfações em outras áreas da vida; mudar o círculo social; problemas com a rede social e dificuldades financeiras).

Segundo o Modelo Conceitual de transição de Stambulova (1994) e pesquisa realizada por Sinclair e Orlick (1993) com atletas canadenses, estas causas para o encerramento da carreira podem ser classificadas de acordo com o tipo de transição: voluntária ou involuntária.

Agresta M., B., M. R. F., Rebustini, F., Cipriano, S. P., Rogov & Barros Neto, T. L. (2002) entrevistaram 10 ex-jogadores brasileiros de futebol de salão que disputaram campeonatos nacionais e internacionais e encerraram a carreira esportiva há no máximo 2 anos. Através de questionário (Questionário ORPUS de Transição de Carreira, elaborado por Brandão et al, 2000), 70% afirmaram que não saíram do esporte espontaneamente e as principais causas foram trauma físico e relacionamento com os dirigentes, ambos com 30%. Com relação às emoções experienciadas após o fim da carreira, 40% dos atletas relataram ter sentido tristeza. Destes, 40% relataram alguns êxitos e 20% ainda não conseguiram se ajustar ao novo estilo de vida.

Em pesquisa com 140 ex-atletas brasileiros adolescentes de futsal, Hallal, P. C.; Hackbart, L., Nascimento, R.R. & Rombaldi, A. J. (2004), indicaram as causas mais comuns de abandono deste esporte pelos entrevistados. As principais variaram de acordo com a idade dos ex-atletas. Em geral, foram falta de apoio do técnico (31%), prejuízo nos estudos (36%), intensidade dos treinamentos/cansaço (22%), preferência do treinador por outros colegas (21%), dificuldade de relacionamento com o técnico (21%). A partir destes dados e com base na literatura internacional, os autores afirmam que "treinadores têm papel decisivo na trajetória esportiva dos atletas" e que os atletas "estão expostos a cargas de treinamento mais intensas que nem sempre são compatíveis com suas possibilidades".

Martini (2003) ainda cita três importantes causas para o encerramento da carreira: o Dropout: (desistência do esporte antes que tenha alcançado seu potencial máximo); o Atrittion (lento processo de exaustão física e psicológica) e o Burnout (sentimentos de exaustão emocional conduzindo o atleta a uma falta de habilidade em continuar no esporte).

4.4. Conseqüências do fim da carreira esportiva reações emocionais e estratégias de enfrentamento

O encerramento da carreira esportiva não é, necessariamente, um momento doloroso para o atleta (Brandão et al, 2000). Suas reações emocionais e o significado deste momento dependem de vários fatores.

Hinitz (1988 apud Martini, 2003), em investigação com ex-ginastas competitivos, descobriu que eles eram fortemente identificados com o papel de "ginastas" e seu envolvimento nos esportes os autodefinia; assim, experimentavam dificuldade de adaptação ao encerramento da carreira. Em outro estudo feito com ex-atletas olímpicos canadenses, Werthner & Orlick (1986 apud Martini, 2003) descobriram que indivíduos com uma atividade alternativa para se comprometerem e investirem energia fizeram transições mais tranqüilas do que aqueles que não tinham atividades desvinculadas do esporte. Entretanto, a identificação com novos papéis não garante que o atleta ficará livre de problemas no encerramento de sua carreira (Linville, 1985; Brewer et al, 2000 apud Martini, 2003).

Para Sinclair e Orlick (1993), uma segunda carreira geralmente requer modos diferentes de lidar com as situações em relação aos aprendidos e aperfeiçoados como atletas. Conseqüentemente, esta transição, quando ocorre relativamente cedo, engendra crises de identidade e de enfrentamento (Orlick & Howe, 1986; Orlick & Werthner, 1987; Sinclair, 1990 apud Sinclair & Orlick, 1993).

Sinclair e Orlick (1993) indicaram como melhores estratégias de enfrentamento desta transição encontrar outro foco de interesse, manter-se ocupado, treinar e se exercitar.

Como apontado, a qualidade da adaptação do atleta após o fim da carreira no esporte competitivo é mediada pelas características individuais do atleta, pelo seu envolvimento, bem como pelo tipo de transição. Fatores de desenvolvimento e psicossociais vividos pelo atleta também desempenham uma importante função ao término da carreira (McPherson, 1980; Pearson & Petitpas, 1990; Taylor & Ogilvie, 1994 apud Alfermann et al, 1999).

Segundo Brandão et al (2000), as estratégias que parecem melhor influenciar a adaptação ao encerramento da carreira são as redes de apoio social e as estratégias de enfrentamento (coping). No entanto, as duas podem estar fadadas ao fracasso, dependendo do modo como se desenvolvem.

Para os autores que acreditam na possibilidade desta transição não necessariamente causar distress (Coakley, 1983; Greendorfer & Blinde, 1985 apud Ogilvie & Taylor, 1993), há uma série de fatores individuais que influenciam o modo como o atleta enfrentará o processo de transição.

Identidade: atletas de elite que estiveram imersos no esporte exclusivamente terão sua identidade composta pelos seus envolvimentos esportivos (McPherson, 1980 apud Ogilvie & Taylor, 1993). Sem o esporte, ele terá pouco suporte para reconhecer suas qualidades (Pearson & Petitpas, 1990 apud Ogilvie & Taylor, 1993);

Percepção de controle: a percepção de ter tudo sob controle pode influenciar a sensação de abandono, desmotivação, mudanças fisiológicas, autoconceito;

Identidade social: atletas cujo processo de socialização aconteceu principalmente no meio esportivo, podem ser caracterizados como com "funções restritas" (Ogilvie & Howe, 1986 apud Ogilvie & Taylor, 1993). Como resultado, suas habilidades para desenvolver novas funções sociais estão limitadas (Greendorfer, 1985 apud Ogilvie & Taylor, 1993);

Suporte Social: a rede social na qual o atleta está inserido se compõe basicamente de pessoas do meio esportivo. Segundo Werthner e Orlick (1986 apud Ogilvie & Taylor, 1993), atletas Olímpicos canadenses que receberam considerável apoio da família e amigos tiveram uma transição tranqüila. Gorbett (1985 apud Ogilvie & Taylor, 1993) recomenda que o atleta também receba apoio institucional (incluindo recursos materiais);

Lacuna entre o nível de aspiração e nível de habilidade;

Pouca experiência com esta transição ou similares;

Déficits emocionais e comportamentais que limitam a habilidade para se adaptar a mudanças;

Plano prévio de transição final da carreira.

Baillie (1992 apud Murphy, 1995), em estudo com atletas profissionais, propõe como variáveis para o enfrentamento desta transição final o nível de dificuldades familiares, sentimento de perda, aceitação, valoração de novas atividades e auto-satisfação com o processo de transição. Com estes critérios, Baillie avaliou que os atletas tendem a enfrentar melhor a saída do esporte competitivo quando:

Saíram por escolha;

Atingiram seus objetivos (como proposto por Sinclair e Orlick em 1993);

Estão prontos para continuar envolvidos no esporte enquanto desejarem;

Possuem graduação/pós-graduação;

Estão prontos para se desligarem de seu esporte após o ápice de suas carreiras.

 

5. Programas de suporte psicológico para atletas em transição na carreira

Na visão de Stambulova (1994), o sistema de suporte psicológico na carreira esportiva é um complexo de técnicas que proporcionam a resolução de diferentes problemas e dificuldades enfrentados pelos atletas em todos os períodos e crises da carreira. Este sistema pode ser constituído em cinco fases:

Psicodiagnóstico: determinando objetivos que orientam o esporte, o processo de seleção e individualização dos aspectos da preparação esportiva;

Psicoprofilaxia: prevenção de estados emocionais negativos, barreiras emocionais, conflitos pessoais destrutivos entre outros;

Trabalho especial de desenvolvimento de jovens atletas: promoção da motivação, características do esporte, estilo individual de atividades, etc.;

Reestruturação cognitiva: reformulação de aspectos que prejudicam o atleta como desmotivação, barreiras emocionais, etc.;

Educação emocional e consultoria: para atletas, técnicos e familiares.

Baseado em pesquisa de formação de atletas de elite gregos e franceses, Chamalidis (1995 apud Alfermann et al, 1999) sugere para o aconselhamento de atletas em transição sessões individuais de análise de previsões pessoais e conflitos de identidade durante e/ou após a transição de carreira; grupos de discussão que habilitem os indivíduos a compartilhar seus problemas e questões e psicodrama como um meio de atuar e elaborar os conflitos que se apresentem.

Em texto dirigido a tenistas juvenis, Samulski (2006) sugere formas de agir na fase de transição para a carreira profissional, quando muitos atletas acabam abandonando o esporte. Estas direcionam-se à melhora da relação com a rede de apoio, desenvolvimento de estratégias de enfrentamento a situações de estresse, conhecer o tênis profissional, preparo educacional e preparo para o fim da carreira.

Segundo Murphy (1995), para auxiliar atletas que estão deixando o esporte competitivo é necessário entender o que significa esta transição para eles e o que eles sentem que perderam; a natureza deste processo; os cenários que se apresentam e a apresentação dos fatores relacionados a uma transição ótima. Deixar o esporte competitivo significa se adaptar a se ver realizando outras atividades que não o identificam como atleta, desenvolvendo a longo prazo a identidade de ex-atleta.

Se o esporte satisfaz por habilitar o atleta a desenvolver e demonstrar competência, pois promove alto nível de motivação intrínseca, recompensa social e oportunidades de desenvolver satisfatoriamente relacionamentos sociais, é provável que o atleta procurará satisfazer estas necessidades quando cessar a carreira competitiva, o que causa mais dificuldade em enfrentar a transição (Murphy, 1995).

O primeiro passo para otimizar este processo é possibilitar que familiares e técnicos envolvidos compreendam que o desenvolvimento pessoal e social do atleta a longo prazo é mais importante do que seu sucesso a curto prazo (Ogilvie, 1987 apud Ogilvie & Taylor, 1993). É importante que as habilidades desenvolvidas no esporte sejam transmitidas para a vida e que o desenvolvimento do atleta seja cuidado (Scanlan, Stein & Ravizza, 1989 apud Ogilvie & Taylor, 1993).

Participar de workshops e dedicar-se aos estudos faz parte do processo de preparação para o final da carreira. O psicólogo do esporte pode assistir o atleta na identificação de seus valores, interesses e objetivos, compreensão de sua identidade social, aumento de seu repertório e em experienciar sentimentos de valor e competência (Ogilvie & Taylor, 1993).

Bramer e Abrego (1981 apud Ogilvie & Taylor, 1993) propõem um modelo interativo de coping, adaptado de Moos e Tsu (1977). Este modelo pressupõe a necessidade de intervir em diversos fatores, incluindo a avaliação do processo, sistemas de suporte social, sistemas de suporte interno, distress emocional e físico e planejar e implementar mudanças.

Wolff e Lester (1989 apud Ogilvie & Taylor, 1993) propõem três estágios terapêuticos: escuta e confrontação, terapia cognitiva e orientação vocacional para auxiliar atletas no reconhecimento de sua identidade.

Alfermann et al (1999) citam a proposta de Bardaxoglou (1995,1997) e Chamalidis (1995) que desenvolveram métodos de aconselhamento interventivo a atletas e técnicos em transição de carreira. Bardaxoglou apresenta uma intervenção que diz respeito a:

a) como a linha da vida do atleta é vista, como ele projeta sua percepção dela;

b) listagem dos 10 eventos mais importantes de sua vida que se refiram aos seus valores e crenças e como se relacionam a cada evento.

Num segundo momento, o atleta é convidado a pensar em seu futuro:

a) completando uma nova linha de vida, traçada em espiral, simbolizando experiências que serão o fundamento de um novo ciclo de vida (orientado pelo esporte ou não);

b) imaginar 10 eventos futuros importantes.

Segundo Ogilvie e Taylor (1993) ainda há muito espaço a ser conquistado nos EUA (realidade similar à brasileira). Até pouco tempo, a equipe de psicólogos associados a um corpo administrativo, um time colegial ou organização profissional raramente tinha a oportunidade de desenvolver uma relação com os membros destas equipes. De fato, poucos psicólogos do esporte têm a chance de estabelecer e manter uma relação longitudinal com atletas (Ogilvie & Howe, 1986 apud Ogilvie & Taylor, 1993).

Na Europa Oriental equipes de psicólogos geralmente têm longos relacionamentos com os membros das equipes (Ogilvie & Howe, 1982 apud Ogilvie & Taylor, 1993). Além do acompanhamento e apoio em estratégias de enfrentamento das adversidades esportivas, aconselhamento educacional e vocacional são parte integrante do papel do psicólogo do esporte no desenvolvimento do atleta (Chatland & Lent, 1987 apud Ogilvie & Taylor, 1993).

Em 1989, o Comitê Olímpico dos Estados Unidos (USOC) desenvolveu um manual destinado a assistir atletas de elite na compreensão de questões importantes relacionadas ao fim da carreira esportiva e guiá-los na realização de um plano para sua carreira pós-competitiva (USOC, 1988 apud Ogilvie & Taylor, 1993). A Associação Nacional de Jogadores de Futebol e a Associação Nacional de Jogadores de Basquete norte-americanos têm desenvolvido programa similar para atletas que encerraram sua carreira (Ogilvie & Howe, 1982 apud Ogilvie & Taylor, 1993).

Atualmente, EUA, Canadá, Bélgica, Austrália e Holanda possuem programas que procuram auxiliar os atletas de elite de nível nacional em suas transições de carreira esportiva. Segundo Alferman et al (1999), estes programas estão descritos em Anderson (1993), Gordon (1995), e Lavallee, Sinclair e Wylleman (1998). Em geral, estes programas tratam das seguintes esferas (apud Alferman et al, 1999):

Aspectos sociais: qualidade dos relacionamentos;

Aspectos relevantes para um estilo de vida balanceado: auto-imagem, auto-estima e identidade, relações sociais, responsabilidades e prioridades, lazer;

Habilidade pessoal de administração: habilidade acadêmica, habilidades para uma outra ocupação profissional, planejamento financeiro, habilidade de transferir-se da carreira atlética; habilidades de enfrentamento;

Ocupação vocacional e profissional: orientação vocacional, conhecimentos sobre o mercado de trabalho, networking, aconselhamento de carreira;

Aspectos relevantes do fim da carreira: possíveis vantagens da saída, percepção de problemas, aspectos físicos e psicológicos do encerramento e diminuição das atividades atléticas.

Petitpas et al (1992 apud Murphy, 1995) formularam um modelo de assistência ao atleta em processo de transição de carreira que é oferecido nos Estados Unidos e se compõe de cinco fases:

Compreensão do processo da Carreira Esportiva;

Desenvolvimento de habilidades relevantes ao trabalho, com possibilidade de transferir habilidades desenvolvidas no esporte para outros campos de atuação;

Identificação das necessidades pessoais em diferentes carreiras;

Identificação de oportunidades de trabalho relacionadas;

Estabelecer metas.

O aconselhamento individual proposto por Murphy (1995) prevê algumas discussões importantes que, em parte, dialogam com Petitpas et al (1992 apud Murphy, 1995):

Expansão da identidade, identificando-se também às habilidades desenvolvidas durante a carreira e outras não diretamente associadas ao esporte;

Suporte emocional e social, sendo importante encorajar atletas a dividirem seus sentimentos e emoções com família e amigos;

Intensificação de habilidades de enfrentamento, identificando-as propondo outras

Desenvolvimento de Senso de Controle, explicando o processo de desenvolvimento da carreira esportiva e ajudando o atleta a desenvolver um plano para lidar com o processo de transição.

Na Argentina, Roffé (2000) aponta a existência de quatro instituições do futebol que se ocupam minimamente dos ex-jogadores e outros profissionais de futebol. A Asociación del Fútbol Argentino (AFA), a Asociación de Técnicos del Fútbol Argentino (ATFA), Futbolistas Argentinos Agremiados (FAA) e Mutual del Futbolista (Casa del Futbolista). Segundo ele, a AFA investe financeiramente em parte dos ex-jogadores da Seleção Nacional que precisam deste tipo de apoio e a ATFA proporciona capacitação e formação a ex-jogadores de futebol para que se tornem treinadores. Contudo, estes acabam por enfrentar o problema da carência de mercado de trabalho. A FAA atua com os atuais jogadores de futebol e a Casa del Futbolista em 2000 não apresentava qualquer ação voltada para os ex-jogadores do referido esporte.

 

6. Transição na carreira esportiva no Brasil

No Brasil, não foi encontrada literatura específica sobre transição na carreira esportiva. Foi possível acessar algumas pesquisas sobre os motivos da transição de carreira em atletas de futebol (Agresta et al, 2000; Hallal et al 2004); reflexões acerca do tema no tênis (Vasconcellos, D. I. C., Andrade, A., Lima, M. B. N. & Viana, R. P. M. S., 2005; Samulski, 2006); um estudo com jogadoras de voleibol (Oliveira, R., Polidoro, D. J. & Simões, A. C., 2003) e as já citadas revisões de literatura de Martini (2003) e Brandão et al (2000).

Oliveira et al (2003) entrevistaram quinze atletas atuantes de uma equipe de voleibol adulta de alto rendimento. Todas as atletas envolvidas tiveram pelo menos uma convocação para a seleção brasileira. Quando perguntadas sobre o que fazem atualmente além de jogar, 100% das entrevistadas responderam que apenas treinam e jogam e a maioria não sabe ou não pensou sobre o fim da carreira e jogará até quando for possível. Questionadas sobre planos futuros, a intenção de estudar apresentou maior porcentagem de respostas, seguida da opção de montar negócio próprio e apenas quatro das quinze atletas não possuíam nenhum investimento.

Vasconcelos et al (2005) pesquisaram os principais fatores determinantes na transição de tenistas juvenis brasileiros para o circuito profissional, momento em que muitos atletas desta modalidade são obrigados a abandonar o esporte. De acordo com o tratamento estatístico dos dados, o patrocínio destacou-se como grande fator facilitador da transição para o circuito profissional, apontado por 90,2% dos entrevistados, sendo 93,4% dos juvenis, 87,5% dos profissionais e 90% dos ex-atletas. Segundo os autores, é importante que sejam trazidos mais torneios profissionais para o país, que podem levar a um aumento das possibilidades de ascensão de brasileiros ao ranking mundial.

 

7. Discussão

O fenômeno da transição na carreira esportiva é um tema que ainda necessita de muitos estudos e atuações práticas dos psicólogos do esporte. Apesar da escassa literatura a respeito, existe consenso em alguns apontamentos e discussões realizadas por diversos autores.

O primeiro ponto importante a ser considerado é a ausência de artigos que tratem especificamente da transição na carreira esportiva em periódicos importantes para os psicólogos do esporte e educadores físicos em geral, como o International Journal of Sport Psychology, International Review for the Sociology of Sport e Journal of Sport and Exercise Psychology, desde o ano de 2000.

No Brasil, foram encontradas poucas referências fundamentais. Além das revisões de literatura sobre transição de carreira esportiva de Brandão et al (2000) e Martini (2003), os demais textos nacionais citados neste trabalho têm estes mesmos autores como referência.

A psicologia do esporte, em âmbito mundial, tem atuado no sentido de delimitar as fases de transição da carreira esportiva, o que ocorre em cada uma delas e quais os motivos para o encerramento da carreira esportiva, com a última recebendo mais atenção, sendo possível sintetizá-las a partir dos estudos de Stambulova (1994), Alfermann et al (1999), Bloom (1985) e Salmela (1994) em iniciação, especialização, profissionalização, auge da carreira e encerramento, uma vez que não necessariamente o atleta se desliga completamente do esporte.

As causas da transição na carreira esportiva são, em geral, a idade do atleta e seu desempenho no esporte. No caso do encerramento, encontra-se comumente, segundo os autores citados, a idade, lesões e o fato do atleta ter alcançado seus objetivos (Sinclair e Orlick, 1993).

Resumidamente, os fatores que mais influenciam a adaptação ao encerramento de carreira são: identificação com o esporte; suporte social; situação financeira e sua relação com o esporte; experiência adquirida em transições anteriores.

Infelizmente, muitos atletas não estão suficientemente preparados para transições, seja pela falta de apoio social, por limitações na habilidade de enfrentar mudanças ou por sua identidade estar exclusivamente ligada ao esporte (Pearson e Petitpas, 1990 apud Murphy, 1995). Sem recursos emocionais, enfrentam suas dificuldades com uso e abuso de drogas e alguns cometem suicídio (Roffé, 2000).

Alfermann et al (1999) citam diversos autores que apontam que a adaptação do atleta ao fim de sua carreira (e isso pode ser adaptado a todas as transições do processo) está intimamente ligada a suas características individuais, ao seu envolvimento com o esporte, como o vivencia, qual a importância em sua vida, como são seus relacionamentos sociais.

Atletas e autores indicam que se manter ocupado e planejar o final da carreira se constituem em importantes estratégias de enfrentamento (Sinclair e Orlick, 1993), mas estas devem ter direcionamento e objetividade para que não venham a se caracterizar como um momento de fuga da realidade para o não enfrentamento do problema.

Considerando os modelos que compreendem a transição na carreira como processo, um dos principais consensos é a importância da rede social e a experiência que o atleta teve com situações similares que lhe possibilitaram desenvolver diferentes formas de enfrentamento de crises (Drahota e Eitzen, 1998 apud Martini, 2003; Stambulova, 1994, 1996; Pearson e Petitpas, 1990; Schlossberg, 1981 apud Alfermann et al, 1999).

Ao contrário dos modelos tanatológicos e da gerontologia social, na proposta de Stambulova (1994) o atleta é compreendido em sua totalidade, levando em consideração suas características subjetivas (que influenciarão o modo como ele compreenderá e enfrentará cada fase de transição de sua carreira, aspectos motivacionais), os aspectos sociais que envolvem seu desenvolvimento (relações familiares, com a comissão técnica, etc.), o significado que o esporte tem em sua vida atrelado a suas conquistas sociais e esportivas e seu desenvolvimento motor, cognitivo e emocional.

Deste modo, o trabalho do psicólogo com o atleta estará centrado em compreender com ele suas características e peculiaridades, habilidades emocionais e sociais e estruturação de um plano que venha a possibilitar a otimização de seus recursos a partir de um projeto de vida pessoal com objetivos pré-estabelecidos que nortearão sua carreira, desenvolvida a partir de estratégias elaboradas com base no autoconhecimento.

Em suma, a importância do trabalho de Stambulova está na descrição complexa e objetiva que faz de cada fase voltada para as necessidades dos atletas e ao modo como são compreendidos, valorizando suas experiências anteriores com foco na possibilidade de enfrentar saudavelmente a transição e auxiliando-os na transferência de habilidades e competências desenvolvidas a partir do esporte para as diversas áreas de sua vida. Além disso, o sistema de atuação que a autora propõe amplia a possibilidade de atuação do psicólogo, pois informa diretrizes para a compreensão de pontos a serem observados, sem delimitar como deve ser a atuação do psicólogo do esporte, o que permite a ampliação e adaptação do sistema a diversas experiências do esporte em todo o mundo, uma vez que aspectos sociais, econômicos e culturais influenciam o modo como se dá cada transição em uma carreira esportiva.

Um número maior de psicólogos produzindo e trabalhando sobre a compreensão deste fenômeno pode proporcionar o aperfeiçoamento do modelo de compreensão e atuação de Stambulova (1994) de forma a adaptar para o esporte competitivo nacional, que se difere em cada modalidade esportiva.

Entretanto, é necessário apontar limitações deste estudo. Primeiramente, a pesquisa se restringiu às realidades brasileira, argentina, norte-americana e canadense, ignorando os estudos realizados na Europa. Estudos da área de Educação Física sobre este processo também foram ignorados por atentarem mais a aspectos do desenvolvimento físico e motor e aos processos de aprendizagem do que a aspectos emocionais propriamente ditos. Contudo, há o reconhecimento de que esta perspectiva se faz fundamental ao psicólogo do esporte que pretende atuar neste segmento.

 

8. Considerações finais

As fases de transição na carreira esportiva são vividas de maneira diversa pelos atletas. Como observado esta diversidade contribuirá para sua permanência no esporte ou abandono.

O atleta pode encerrar sua carreira ainda no período de especialização ou profissionalização. O que realmente precisa ser valorizado por profissionais de psicologia do esporte e pela rede social do atleta é o motivo da saída do esporte ou da variação nas transições, as características do atleta e o apoio social que ele pode receber de familiares, amigos e comissão técnica para enfrentar esta transição. Por este motivo, existe a necessidade, já apontada por Alfermann et al (1999), de estudos com maior rigor metodológico e mais produções a respeito do tema.

Ao identificar estas posições e compará-las aos estudos das transições na carreira esportiva, é possível apontar a necessidade de prevenção das dificuldades de enfrentamento destas fases na carreira e de seu encerramento através do apoio ao atleta desde seu ingresso na prática esportiva de rendimento. Para isso, os Modelos de Stambulova (1994) se mostram interessantes por sua abordagem ampla do processo, considerando todas as influências que um atleta pode sofrer (subjetivas, sociais, esportivas, de desenvolvimento) e pelo suporte à atuação do psicólogo do esporte, apontando as principais características de cada fase da carreira esportiva, como os atletas percebem e vivenciam suas crises no decorrer de seu processo de desenvolvimento e por nortear a atuação a partir de uma proposta ampla, complexa, mas concisa.

Por compreender a transição na carreira a partir do atleta (de sua percepção do esporte, de como o vivencia, sua relação com este), é possível vislumbrar uma possibilidade de atuação do psicólogo do esporte brasileiro a partir de Stambulova. Sendo assim, propõe-se que este profissional:

a) Conheça os aspectos sociais, culturais, emocionais e econômicos relacionados ao esporte e à modalidade esportiva;

b) Conheça as características organizacionais da modalidade (fases e as idades limites, importância de cada uma delas, política organizacional);

c) Compreenda as características emocionais e cognitivas do atleta em todo o seu desenvolvimento;

d) Atue diretamente com a comissão técnica e, se possível, com familiares para instrumentalizá-los no suporte social ao atleta em transição;

e) Esteja em contato com os atletas, identificando suas necessidades, conflitos e medos diante de situações de transição e proporcionando a eles identificar estas questões e lidar com elas, ampliando suas possibilidades de enfrentamento;

f) Elabore um Plano de Trabalho que identifique sua atuação, com embasamento e estratégias.

g) Divulgue o trabalho realizado, compartilhando suas experiências e ampliando a escassa produção acadêmica sobre o assunto.

Propor-se a esta nova empreitada significa assumir todos os riscos resultantes de nossa atuação. Significa, também, estar disposto a contribuir com a amplitude de atuação do psicólogo do esporte e ser responsável por uma nova compreensão sobre quem é a pessoa além do atleta e por sua emancipação.

 

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Endereço para correspondência
Keila Sgobi de Barros
Rua Chico de Paula, 295, ap 23
CEP 02926-000
São Paulo SP
Endereço eletrônico: keila_sgobi@hotmail.com

 

 

Sobre a autora

Keila Sgobi de Barros, psicóloga especialista em psicologia do esporte (Instituto Sedes Sapientiae) atua na clínica e no ADC Finasa Esportes.

 

Sobre o trabalho

Artigo baseado na Monografia de Conclusão do Curso de Especialização em Psicologia do Esporte do Instituto Sedes Saientiae (ano de 2007) sob o título: Recortes da Transição na Carreira Esportiva.

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