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Revista Brasileira de Psicologia do Esporte

versão On-line ISSN 1981-9145

Rev. bras. psicol. esporte v.2 n.1 São Paulo jun. 2008

 

 

Imaginação e criação de estados mentais

 

Imagery and visual imagery creation

 

Imaginación y creación de estados mentales

 

 

Kátia Rubio

Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Há um consenso entre atletas e equipes técnicas sobre a utilização de treinamento mental para a obtenção de ótimos níveis de rendimento. Isso porque tanto a literatura, como a experiência prática dos atletas têm demonstrado o quanto se pode aperfeiçoar um gesto técnico ou realizar um prova com perfeição desde que ele tenha sido exaustivamente ensaiados anteriormente. O objetivo desse trabalho foi analisar como um atleta medalhista olímpico, de uma modalidade individual, assimilou e organizou o treinamento mental ao longo de sua carreira esportiva, tanto em situações de treino como de competições. A coleta de dados se deu por meio de sua história de vida, em um modelo clínico-analítico obtidas por meio das impressões do atleta a respeito de sua carreira e dos momentos em que ele experimentou emoções ímpares a respeito dessas vivências.

Palavras-chave: Treinamento mental, Flow feeling, Imaginação, Psicologia do esporte.


ABSTRACT

It has a consensus between athlete and teams techniques on the use of mental training for the attainment of excellent levels of income. This because as much literature, as the practical experience of the athletes has demonstrated how much if it can perfect a gesture technician or carry through one test with perfection since that it has been exhaustingly assayed previously. The objective of this work was to analyze as a Olympic medalist, of an individual modality, assimilated and organized the mental training throughout its sportive career, as much in situations of trainings as of competitions. The collection of data if gave by means of its history of life, in an physician-analytical model gotten by means of the impressions of the athlete regarding its career and the moments where it tried emotions uneven the respect of these experiences.

Keywords: Mental training, Flow feeling, Imagination, Sports psychology.


RESUMEN

Hay un consenso entre deportistas y equipos técnicos sobre la utilización del entrenamiento mental para la obtención de niveles óptimos de rendimiento. Eso porque tanto la literatura, como la experiencia práctica de los deportistas tienen apuntado para el cuanto se puede mejorar un gesto técnico o realizar una prueba con perfección desde que él tenga sido exhaustivamente practicado anteriormente. El objetivo de esto trabajo fue analizar como un deportista medallista olímpico, de una modalidad individual, asimilo y organizo el entrenamiento mental a lo largo de su carera deportiva, tanto en situaciones de entrenamiento como de competiciones. La coleta de datos se sucedió por medio de la investigación de su historia de vida, en un modelo clínico-analítico obtenido por medio de las impresiones del deportista sobre su carera y los momentos en que él experimento emociones impares a respeto de estas vivencias.

Palabras-clave: Entrenamiento mental, Flow feeling, Imaginacion, Psicologia del deporte.


 

 

Introdução

Nenhuma outra função, senão a capacidade de imaginar, nos torna mais humanos do que qualquer outro ser animado. Analisar e avaliar o passado, planejar o futuro e atuar no presente a partir de experiências vividas é uma prerrogativa humana que permitiu à espécie chegar ao nível de desenvolvimento conhecido até o momento.

Tema que intrigou filósofos na Antiguidade e os mais destacados cientistas da Idade Média até o contemporâneo, os limites da mente permanecem ainda intangíveis às mais variadas especialidades das ciências, porém psicólogos, neurologistas, psiquiatras e outros especialistas continuam determinados a entender alguns processos cerebrais, inexplicáveis mesmo em um momento da história em que os horizontes do conhecimento se ampliam na busca da compreensão do ser humano.

Superada a cisão cartesiana entre corpo e mente que perdurou até meados do século XX observa-se na atualidade uma busca por explicações para as possíveis relações entre os estados mentais sobre reações corporais, não mais em uma relação de causa e efeito, mas de interação e interdependência. Embora o conhecimento pareça caminhar na direção desse entendimento, a procura por esse estágio não é nova.

Para a fisiologia e a neurologia do século XIX, que tinham nas máquinas de então o modelo ideal para uma analogia a respeito do funcionamento humano, os comportamentos, as ações, os sentimentos e os pensamentos humanos eram originários e produtos de um sistema não menos enigmático do ponto de vista funcional do que do comportamental. Portanto, para que se pudesse compreender o psiquismo humano era preciso desvendar os mistérios da engrenagem cerebral. Grande parte desses estudos buscava determinantes de ações e comportamentos que pudessem ser generalizados na relação pensar e agir. Descobriu-se, por exemplo, que a atividade motora não estava relacionada, necessariamente, à consciência, e portanto ao sistema nervoso central, mas podia ser uma manifestação de outra ordem originando o chamado ato reflexo (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 2000).

Ainda assim as pesquisas continuavam em busca de evidências que pudessem dar aos chamados fenômenos psíquicos o status de eventos científicos, ou seja, que fossem passíveis de mensuração. Isso porque todas aquelas manifestações, principalmente as patológicas, que não podiam ser explicadas fosse do ponto de vista clínico, ou ainda a partir do referencial biológico, constituindo-se então como um enigma, principalmente, para a medicina, ganharam a condição de desordens emocionais.

Quem muito colaborou com esses estudos foi Sigmund Freud, que ao longo de sua formação em medicina trabalhou por vários anos em laboratório de fisiologia, e depois de formado especializou-se em neurologia, disposto a compreender os mecanismos de funcionamento do cérebro e seus desdobramentos motores e comportamentais. Sua prática clínica o colocou em contato com pessoas acometidas de 'problemas nervosos', mais tarde denominados por ele de manifestações histéricas, cujos sintomas eram paralisias e anestesias de regiões específicas do corpo, que a neurologia não conseguia responder ou explicar. Diante do desconhecimento de uma lesão orgânica comprovada era negada a existência da doença, independente dos sintomas ou sofrimento que apresentasse (FREUD, 1997). E assim os estados emocionais foram alocados no território da patologia, distanciando-se de manifestações saudáveis, muitas vezes relacionadas com o sujeito romântico do século XIX.

Da cisão mente-corpo à busca da unidade psicofísica as emoções voltaram a ocupar lugar de estaque no mundo cotidiano e da ciência, tanto a partir dos indícios dessa relação, conforme demonstrou a psicossomática (GRODDECK, 1991) ou mais recentemente a teoria da complexidade (MORIN, 2003). A criação mental na forma de antecipação de situações passíveis de acontecimento ou de simulação de fatos desejados, mais que uma criação ficcional passou a ser analisada como uma manifestação humana que necessitava metodologia inédita.para ser compreendida.

Considerando a imaturidade científica da Psicologia não é de se estranhar como as abordagens sobre esse tema sejam tão diversas. Os estudiosos de linha psicodinâmica, como Freud e Jung, tomaram os estados mentais dentro de um contexto que considera a existência do inconsciente e sua autonomia. Os psicólogos de orientação social consideraram-nos como um tipo de manifestação humana que está diretamente relacionada com a história de vida e o contexto cultural no qual o ser humano se desenvolve. Já os behavioristas tomam os estados metais e a imaginação como uma modalidade singular de comportamento ao qual denominaram de comportamento encoberto e para o qual desenvolveram diferentes estratégias de acesso e investigação.

No esporte a compreensão dos estados mentais e das emoções, bem como a possibilidade de intervenção sobre eles no sentido de seu controle, tornou-se fundamental para a vida de um atleta ou equipe esportiva, principalmente depois que se descobriu e provou a relação entre dos estados mentais e o rendimento esportivo (MARTIN, MORITZ & HALL, 1999).

Para os atletas que chegam ao mais alto nível de competição esse pode ser o grande diferencial que irá distinguir o primeiro do segundo colocado em momentos de decisão ou ao longo da preparação nas diferentes etapas da periodização do treinamento.

O objetivo desse trabalho foi analisar como um atleta medalhista olímpico, de uma modalidade individual, assimilou e organizou o treinamento mental ao longo de sua carreira esportiva, tanto em situações de treino como de competições. Esse atleta participou de 3 edições olímpicas e conquistou duas medalhas. A coleta de dados se deu por meio de sua história de vida, em um modelo clínico-analítico (BOSI, 2003; RUBIO, 2006; QUEIROZ, 1988) ou como entende Jackson (1999) dentro de um modelo qualitativo, uma vez que as informações foram aqui obtidas por meio das impressões do atleta a respeito de sua carreira e dos momentos em que ele experimentou emoções ímpares a respeito dessas vivências.

A utilização da história de vida como instrumento de pesquisa se justifica pelo entendimento de que o relato em si traz o que o narrador considera importante em sua trajetória dando uma idéia do que foi sua vida, do que ele mesmo é nesse momento e, no caso específico desse estudo, o que representou a experiência com a dor.

A história de vida é uma forma particular de história oral que interessa ao pesquisador por captar valores que transcendem o caráter individual do que é transmitido e que se insere na cultura do grupo ao qual o ator social que narra pertence. Considerada uma modalidade de história oral ela opera com os acontecimentos registrados na memória, que não obedecem a um fluxo ditado pela oficialidade do calendário, mas a importância atribuída a episódios significativos (QUEIROZ, 1988). Além disso, a história oral é também um campo privilegiado de encontro entre a história, a psicologia e a antropologia, na busca das categorias culturais, individuais e no controle disciplinado dos registros escritos (CRUIKSHANK, 2002; MEYER, 1998).

O emprego de testemunhos como representação da memória, a confrontação entre um relato e uma recordação pessoal ou coletiva, sejam estes entendidos como elaboração natural ou como construção política, em determinados momentos ou circunstâncias, são responsáveis por uma série de condições, opções ou intenções e também de necessidades ordenadas e codificadas a partir de interesses específicos. O que se busca então é encontrar a origem e o fio condutor dessas representações com a finalidade de compreender ou descobrir as razões ocultas ou mazelas do processo.

Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo e contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O sujeito assinou o termo de consentimento para utilização e divulgação dos dados.

 

O uso da imaginação e sua importância para o esporte

Atletas fazem uso de imagens mentais e da imaginação para diferentes finalidades. Desde a criação de um ambiente tranqüilo e relaxante ao final de extenuantes sessões de treinamento até a simulação em seus detalhes mais espetaculares de uma prova de nível olímpico e mundial. Ter controle sobre os pensamentos e as emoções é uma das características que marca a história de atletas vencedores (Rubio, 2006).

De acordo com Gregg, Hall & Nederhof (2005) o uso extensivo de imagens pode representar sua efetividade em uma grande variedade de circunstâncias e o potencial de Èsua aprendizagem pode variar conforme a capacidade de utilização da imaginação e expectativas em relação a ela.

É importante ressaltar que o termo imaginação é aqui utilizado como a capacidade de criação de imagens mentais relacionadas com a prática esportiva, tanto naquilo que se refere a simulação mental de habilidades motoras como também na criação de situações que o atleta pode experimentar tanto em momentos de treinamento como de competição.

O termo mentalização está associado à criação ou recriação mental de uma situação já vivida ou desejada para o futuro. Para Weinberg & Gould (2001) esse processo busca recriar fragmentos de informações já experienciadas retidas na memória.

É importante ressaltar que durante muito tempo a questão relacionada com o uso da mentalização estava coberta de preconceito por ser confundida com situações místicas e esotéricas de uma forma geral. As religiões se apropriaram por séculos da capacidade de utilização do pensamento para criação de estados de transcendência que objetivassem a busca de bem-estar fora de um plano material. Diante disso é comum encontrarmos situações onde a mentalização é proposta com a finalidade de construir estados mentais que reproduzam situações que podem ser vividas, mas que diante do preconceito relacionado com essa atividade a proposta seja rechaçada como alternativa de trabalho.

Superado o preconceito na utilização das imagens é necessário que sejam traçados alguns critérios para a sua elaboração e utilização.

É cada vez maior o número de atletas que fazem uso da mentalização de forma intuitiva ou sistemática. O que os diversos estudos apontam é sua e efetividade na preparação de diferentes atletas, de variadas culturas, ao redor do mundo.

Conforme Weinberg & Gould (2001) as imagens que registramos em nossa memória de experiências vividas são experimentadas externamente pela recordação e reconstrução de eventos anteriores. Além disso, nossas mentes podem imaginar e criar situações que ainda não ocorreram.

É importante ressaltar que a memória opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente, mas porque se relacionam por meio de índices comuns. Toda memória pessoal é também social, familiar e grupal, e por isso ao recuperá-la é possível captar os modos de ser do indivíduo e da sua cultura.

Simons (2000) aponta que os atletas devem aprender sobre suas imagens e sobre como aplicá-las. Isso porque sendo produzidas de forma singular, e portanto variável de pessoa para pessoa, não há um modelo pré-estabelecido e pronto para ser aplicado em diferentes contextos.

Isso justifica a afirmação do atleta olímpico aqui estudado sobre suas expectativas em relação à sua participação nos Jogos Olímpicos de 1984.

No início da temporada eu sentia que algo de bom ia acontecer, eu sentia necessidade de falar pra alguém, mas eu não queria deixar aquilo escapar. Sei lá o que era, uma chama, uma força, eu mantinha dentro de mim.

Considerando que as imagens são concebidas e reproduzidas dentro de um referencial ditado pela história de vida do atleta, quanto mais experiências exitosas forem experimentadas, maior o repertório referencial do atleta para a construção de imagens inéditas e superação de novas situações.

Nos anos 1990 Hall com diferentes colaboradores (BARR & HALL, 1992; HALL, RODGERS & BARR, 1990; RODGERS, HALL & BUCKOLZ, 1991) investigou o use de imaginação em diferentes modalidades esportivas com a intenção de desenvolver intervenções mais efetivas junto aos atletas. Daí surgiu o modelo denominado W's: where, what , when e why e que pode ser traduzido para onde, o que, quando, por que usar imaginação.

Em trabalho mais recente Munroe, Giacobbi Jr., Hall & Weinberg (2000) respondem à primeira questão: Onde os atletas usam a imaginação? A resposta aparente é que os atletas usam imaginação em treinos e competições. Mas, a partir de estudos realizados pela equipe os autores constataram que a maioria das pesquisas aponta que a imaginação está dirigida para situações práticas os atletas relatam o uso de imaginação mais em competições do que em treinos o que acarreta melhora na performance ou na execução de um movimento, mas não altera, necessariamente, a aprendizagem da habilidade motora. Além disso, os atletas relatam fazer uso da imaginação em diferentes ambientes, como em casa, na escola ou no trabalho, e momentos da vida.al

O quando usar a imaginação é outra questão a ser respondida. Como visto os atletas preferem utilizar imaginação no momento da competição. Além disso optam por fazer uso da imaginação durante as competições mais do que antes ou após. Fora das competições os atletas relatam que fazem uso da imaginação em momentos do dia em que estão no intervalo de alguma atividade ou à noite, antes de dormir.

Por que usar imaginação? A utilização da imaginação é utilizada para diferentes fins. O importante, conforme os autores, é distinguir entre a função da imaginação (por que fazer uso dessa atividade) e seu conteúdo (o que é imaginado).

Pavio, apud Munroe, Giacobbi Jr., Hall & Weinberg (2000) propõe uma estrutura para entender como a imaginação influencia a ação motora humana. Ele sugere que o uso de imagens mentais serve a duas funções básicas e essas funções operam tanto em nível específico como e nível geral. A função cognitiva envolve a tentativa e a repetição da habilidade (imagem cognitiva específica) e estratégias de copetição (imagem cognitiva geral). A função motivacional, no nível específico, envolve metas de imaginação e as atividades necessárias para alcançar essas metas (imagem motivacional específica). Em um nível geral (imagem motivacional geral) as imagens relatam o nível fisiológico de ativação e capacidade de realização.

No relato do atleta aqui analisado pode-se perceber quando e como fazer uso da imaginação.

Eu tinha o hábito de pensar que eu não podia dormir antes das competições pra não relaxar muito o meu corpo! Então, achava uma posição confortável. Quase sempre eu deitava no chão com as pernas estiradas, ouvia música e ficava visualizando a competição. Não muito, só flashes da competição. Ficava ali até quase pegar no sono, mas não dormia. Essa era minha rotina antes das provas. Toda vez que eu tinha um treinamento difícil, eu também fazia esse tipo de preparação psicológica.

O que se observa no relato do atleta é a relação entre diferentes estímulos sensoriais para a criação da cena desejada. A música, o ambiente físico e a busca das imagens que representam a situação que será vivida são pontualmente escolhidos para se chegar ao clima ideal tanto em relação ao relaxamento necessário para suportar a pressão da competição, como a ativação obrigatória para o momento de enfrentamento dos adversários na pista.

Williams, Davids & Williams (1999) observam a partir de sua experiência com atletas de diferentes modalidades esportivas que a eficiência da ação desses atletas está relacionada com as demandas ambientais imediatas. Esses atletas sentem-se capazes de reproduzir de forma consistente padrões estáveis de ações diante de altas demandas competitivas e essas ações não podem ser descritas como estereotipadas. Ou seja, há uma relação próxima entre persistência e alteração na habilidade de realizar seus movimentos.

Alguns estudos apontam o caráter multi-sensorial da imaginação, ou seja, esse processo não se dá apenas por imagens, mas pode também ser desencadeado pela ativação da audição, do olfato, do tato ou do paladar. O número de modalidades sensoriais utilizadas para criar representações mentais de informações ausentes é o resultado de outras experiências mentais. Richardson (1995) afirma que as imagens diferem umas das outras não apenas em sua capacidade de parecer real, mas principalmente na possibilidade de ser controlada.

No entender de Weinberg & Gould (2001) a mentalização pode e deve desenvolver o máximo possível de sentidos. O uso de todos eles é fundamental para criação mais real possível da situação que se pretende criar. E afirmam que o sentido cinestésico para os atletas é particularmente importante por envolver a sensação do gesto motor que surge da estimulação nervosa, ditada pelo sistema nervoso central, nas articulações e nos tendões.

O sentido cinestésico é a sensação que envolve o corpo humano que se move e que se completa com a simbolização e atribuição de significados ao movimento. Não é apenas o gesto mecânico, mas toda a produção mental sobre a realização desse movimento. Daí a função da memória, uma vez que a lembrança armazenada de diferentes situações vividas relaciona-se com o grau de afetividade depositada na situação relembrada. Por isso nos lembramos de detalhes ínfimos de nossa existência e deixamos de registrar coisas que aos olhos da sociedade são fundamentais para a história.

Embora vários autores apontem que é cada vez mais raro que estratégias mentais sejam elaboradas de forma intuitiva, uma vez que é muito tênue o limiar que separa um atleta primeiro colocado do segundo (Buceta, 1998; Dosil, 2004; Moran, 2004; Weinberg & Gould, 2001) o que se observa no caso do atleta aqui estudado é um nível de sensibilidade fora da média para criar suas próprias estratégias. A preparação psicológica ao longo de sua carreira foi realizada de forma intuitiva por vários anos e aperfeiçoada com a maturidade atlética. Como e quando aplicar essas estratégias, de que maneira suportar as demandas dos diferentes ambientes competitivos, como manter o foco no objetivo e superar as inúmeras adversidades são o grande mérito, que não por acaso, o fizeram um campeão olímpico.

 

O Treinamento de Habilidades Mentais

O Treinamento de Habilidades Psicológicas _ THP é considerado uma das habilidades essenciais para todos os atletas em diferentes níveis de preparação (Weinberg & Gould, 2001), o pilar central da psicologia do esporte aplicada (Holmes & Collins, 2002), uma ferramenta cognitiva que auxilia o atleta a se tornar um campeão (Moran, 2004) ou ainda uma estratégia psicológica para que o atleta tenha o poder de enfrentar treinamentos e competições da melhor forma, aumentando seu rendimento e seu bem-estar (Dosil, 2004).

Simons (2000) considera uma habilidade básica por formar a base dos conhecimentos em psicologia que o atleta contemporâneo pode por em uso para buscar a excelência. A imaginação ativa, juntamente com outras habilidades mentais como o estabelecimento de metas, a visualização de situações de competição ou de estágios de preparação que deseja atingir, a concentração em estímulos específicos, bem como o controle da ansiedade ou do estado ótimo de ativação formam a base da preparação psicológica do atleta.

Vale ressaltar a importância de se distinguir entre habilidades psicológicas e estratégias psicológicas. Cox (2002) aponta que métodos, estratégias ou técnicas psicológicas referem-se à prática que possibilita a aquisição de uma determinada habilidade psicológica que incluem desde a visualização de uma atividade ao estado hipnótico ou o relaxamento até o estabelecimento de metas e a auto-fala. Por outro lado as habilidades psicológicas são as características próprias do atleta que o levam ao êxito em sua atividade esportiva como autocontrole e autoconfiança que se confundem com a motivação intrínseca.

Não há dúvidas entre atletas, técnicos e preparadores físicos sobre a importância do treino das habilidades físicas para se alcançar os resultados desejados. Somente por meio de sessões intensivas de treinamentos e inúmeras repetições do gesto motor se pode alcançar as melhores marcas. Não há sorte no esporte de alto rendimento! Todo resultado é fruto de muito trabalho e uma enorme dose de esforço. Do mesmo modo se dá o desenvolvimento das habilidades psicológicas. Não se pode dizer que a concentração, o relaxamento, a regulação da ativação, a autoconfiança ou mesmo a motivação sejam processos naturais em qualquer ser humano, principalmente em atletas. Todas essas características fundamentais aos atletas de alto rendimento são desenvolvidas de forma sistemática seja em um processo individual, desencadeado pela necessidade do atleta de alcançar níveis superiores de preparação, ou acompanhado de um profissional que colabore nesse processo oferecendo diferentes modalidades de treinamento mental.

Weinberg & Gould (2001: 250) afirmam que o treinamento de habilidades psicológicas é frequentemente negligenciado devido à falta de conhecimento, à percepção da falta de tempo ou à crença de que habilidades psicológicas são inatas e não podem ser ensinadas,

É possível observar na fala do atleta aqui analisado a necessidade de se desenvolver estratégias mentais para suportar a ansiedade dos momentos que provocam maiores níveis de ansiedade, como é o caso de uma competição internacional.

Eu sentia que no aquecimento eu já estava novamente fazendo o melhor. Então entrei na pista. Eu não conseguia ouvir nada. O povo parecia que estava derramado naquele estádio. Ficava só um barulho como se fosse abelha no meu ouvido, mas, mesmo assim, eu me sentia enorme ali dentro.

Por parecer algo natural, que não exige aprendizagem, a concentração é muitas vezes exigida dos atletas para o uso imediato em treinos e competições. Diante da incapacidade de responder à demanda que se apresenta o técnico sobrecarrega o atleta exigindo um esforço incapaz de ser realizado e o atleta se frustra por não poder (e não saber) como responder àquela exigência.

Exigir que nos momentos da competição o atleta se concentre ou relaxe é o mesmo que desejar que um corredor faça 100 metros em 9 segundos apenas por uma solicitação do técnico.

Se afirmamos que as habilidades psicológica são desenvolvidas tanto quanto as atividades físicas é preciso um processo de reconhecimento e treinamento dessas habilidades.

Gould, Medbery, Damarjian e Lauer (apud Weinberg & Gould, 2001) realizaram um estudo em que demonstram como atletas, mesmo diante da ausência de um psicólogo, desenvolvem habilidades mentais para enfrentar as solicitações da modalidade praticada. Isso porque seus técnicos se apegavam a experiências reais a partir da focalização no desenvolvimento de exercícios concretos, na busca de outros recursos de treinamento de habilidades mentais, fazendo uso inclusive de multimídia e no envolvimento direto dos técnicos no treinamento real das habilidades mentais.

No dia da final eu fui pro meu cantinho e consegui controlar minha emoção, meu corpo. Quando comecei a aquecer aquela sensação gostosa de estar ali novamente, voltou. Novamente minha mente conseguiu parar. Eu pude transformar aquela ansiedade, aquele nervosismo numa energia positiva.

A efetividade de um programa de treinamento de habilidades psicológicas depende de vários fatores como a observação e controle de situações de treinamento e competições e não se realiza sem a firme participação do atleta e do técnico em seu desenvolvimento.

Para Buceta (1998) o treinamento de habilidades psicológicas pode começar com um programa formativo básico e continuar com um trabalho mais especializado em função das necessidades dos atletas. E assim que essas técnicas vão sendo dominadas elas devem ser incorporadas aos treinamentos, segundo os objetivos a serem alcançados como a aquisição ou desenvolvimento de um gesto técnico ou habilidade específica.

No entender de Weinberg & Gould (2001) um programa de treinamento de habilidades psicológicas desenvolve-se em três momentos. O primeiro é chamado de fase de educação, uma vez que muitos atletas não conhecem o modo como as habilidades mentais podem melhorara sua performance. Nesse momento são explicadas as vantagens e a importância de um trabalho voltado para o desenvolvimento das habilidades mentais, suas vantagens e aplicações. O segundo refere-se a fase de aquisição, momento em que são focalizadas as estratégias e técnicas para a aprendizagem das diferentes habilidades psicológicas, que podem se dar em ambientes formais ou informais. E por fim a fase de prática, quando o atleta experimentará os conteúdos aprendidos em situações reais e tem por objetivo automatizar as habilidades aprendidas, ensinar a integração sistemática de habilidades psicológicas em situações de desempenho e simular as habilidades aprendidas em situação de competição.

A mentalização é uma das técnicas mais utilizadas por atletas para buscar uma boa preparação psicológica como o estado ótimo de ativação ou relaxamento necessário em momentos de maior tensão.

 

A fluidez (flow feeling)

A história tem nos mostrado, principalmente no esporte brasileiro, que o atleta campeão olímpico é uma mescla de determinação e esforço, individual e social, e que longe de usufruir das melhores condições de treinamento desenvolve uma imensa capacidade de criar diante das dificuldades e de superar as muitas adversidades. A essa disposição para o trabalho, mesmo mediante inúmeras dificuldades, costuma-se nomear de motivação intrínseca, ou a ausência de estímulos externos para a realização de tarefas, condição fundamental para um atleta de alto rendimento.

Um dos estados especiais de motivação intrínseca foi denominado por Csikszentmihalyi (1990) de fluidez (flow feeling), onde o atleta participa da atividade de forma natural, com o controle de sua ansiedade, permitindo que sua ação transcorra de maneira plena e sem esforço. Para o autor esse estado é alcançado quando o atleta percebe suas habilidades no mesmo nível de seus desafios e que a motivação intrínseca está em um estágio mais elevado do que o desafio a superar.

Conforme Jackson (1999) a fluidez é um estado psicológico ótimo onde o atleta está plenamente absorvido pela tarefa que o leva a um grande número de experiências positivas. É um constructo que se define a partir de experiências positivas ou ótimas no esporte. Enquanto um estado psicológico ótimo a fluência é um precursor da alegria e está associada a outras experiências como a felicidade e a satisfação.

Esse estado de bem-estar muitas vezes confunde-se com a felicidade e a euforia. Entretanto, principalmente a euforia, é vista como preocupante ao atleta por retirá-lo de um estado de concentração na tarefa e colocá-lo em uma situação de irrealidade que interfere em sua avaliação das ocorrências do presente.

No entender de Csikszentmihalyi (1997) é a fluidez e não a felicidade a condição básica de uma vida plena. Afirma o autor que quando se está em um estado de fluidez não se está necessariamente feliz, isso porque a experiência da felicidade nos leva a focar em nossos estados internos. Apenas ao final da tarefa é que se experimenta o prazer do ocorrido e então se sente a fluidez com a gratificação da experiência de excelência, e com isso a felicidade.

Aquela foi a corrida mais fluída que eu fiz. Eu não tive que gastar muita energia durante o percurso. Eu passei o tempo todo olhando e perguntando sobre meu principal adversário. Na verdade eu me sentia como que estivesse correndo com um monte de crianças e estivesse sob controle delas. Quando eu passei os 700 metros, antes do finalzinho da curva, parece que a pista se abriu e eu me senti enorme. Foi uma sensação esquisita porque é ali onde você sente mais cansaço. Eu senti como se eu estivesse voando!.Voei durante 11 segundos, 12 segundos e aí cruzei a linha de chegada.

Nesse caso o estado de fluidez aproxima-se daquilo que alguns autores têm denominado como paixão (VALLERAND, BLANCHARD, MAGEAU, KOESTNER, RATELLE, LÉONARD, GAGNÉ & MORSALIS, 2003). Embora escassa há alguns anos, a literatura sobre paixão no esporte vem se multiplicando nos últimos anos, ganhando a atenção de pesquisadores e psicólogos. Isso porque é inegável a manifestação dessa emoção essencialmente humana entre aqueles envolvidos com a ação esportiva.

Tomada como um sentimento de caráter reprovável na cultura ocidental a paixão foi relacionada durante séculos com vários dos pecados capitais. Sendo assim, havia que ser reprimida e desencorajada. Com a ascensão do racionalismo e a afirmação da função do pensamento agir com emoção e permitir a manifestação da paixão passou a ser uma prerrogativa admitida àqueles cuja atividade relacionava-se basicamente com as artes, território de apaixonados.

Recentemente esse tema passou a conquistar espaço no âmbito acadêmico, na psicologia e também no esporte. Vallerand, Blanchard, Mageau, Koestner, Ratelle, Léonard, Gagné & Morsalis (2003) identificam a paixão como uma poderosa inclinação para uma atividade que a pessoa gosta, que ela atribui significado e na qual ela investe tempo e energia.

Gostar e atribuir significado explicam não só a paixão, mas também toda a dedicação que alguém investe em uma atividade que mobiliza um nível investimento emocional fora da média, que no esporte pode ser também denominado motivação. Isso quer dizer que gostar de fazer algo, organizar a vida para tê-lo, mobilizar esforços para mantê-lo e tirar prazer dessa realização pode ser nomeado como uma atividade que mobiliza paixão e é identificada pelo protagonista como vital a sua existência.

Deci & Ryan (2000) afirmam que certas atividades são definidas pelo individuo como central à sua identidade e conquistam essa posição a partir de uma condição inata do ser humano de categorizar o organizar as prioridades em sua vida.

A impossibilidade de mensuração da paixão, emoção que subjaz a necessidade vital de realização, levou à sua negação com argumentos como sentimento fútil ou de menor importância para a existência. O esporte de maneira geral também pertenceu à essa lista até meados do século XX, isso porque era identificado como uma prática de tempo livre de pessoas abastadas, que não precisavam exercer atividade produtiva remunerada ou então de vagabundos que não gostavam de trabalhar.

Para aqueles experimentaram a paixão pelo esporte e identificaram nele a razão de sua existência precisaram desenvolver um esforço duplicado, tanto no que se refere a dedicação a treinos e competições, como também na superação do preconceito, tanto do ponto de vista da família como da sociedade de forma geral, que identificavam naquela prática uma atividade para quem não deseja o empenho e o compromisso do mundo do trabalho.

O treinador de uma universidade americana foi a minha cidade para dar uma clínica de basquetebol fez amizade com meu técnico e me chamou para participar na condição de demonstrador. E aquele senhor gostou tanto do meu jeito, do meu basquete que ao final da clínica ele me deu o par de tênis dele e me fez a promessa de que quando eu terminasse o segundo grau ele me daria uma bolsa de estudo para jogar nos Estados Unidos. Uau! Jogar basquete nos Estados Unidos... aquilo me fez rachar nos livros e jogar basquetebol. Foi então que passei a estudar mais e comecei a sonhar com a ida para os Estados Unidos.

Conforme Vallerand & Miquelon (2007) a paixão no esporte pode ser de duas ordens: a obsessiva e a harmoniosa.

A paixão obsessiva refere-se a uma força motivacional que atrai o individuo para a atividade. Entretanto, quando essa emoção esta relacionada com a prática esportiva o que se observa é uma força interna incontrolável que impele o sujeito a realizá-la. É como se a paixão impulsionasse o sujeito, retirando dele o controle sobre sua realização. Pessoas com uma paixão obsessiva pelo esporte não são capazes de se verem realizando outra atividade que não essa, tornando-se altamente dependentes, do ponto de vista emocional, de sua prática. Isso porque o engajamento nessa atividade está fora do controle do sujeito, ganhando um espaço desproporcional em sua identidade, causando um sério conflito entre a atividade esportiva em si e outros aspectos de sua vida pessoal.

Por outro lado, a paixão harmoniosa refere-se a um estado motivacional que leva a pessoa a se engajar na atividade esportiva de forma responsável e efetiva, porém com fluidez e leveza. Isso porque ela escolheu fazer assim, ou seja, a atividade está sob seu controle. Atletas nessas condições relatam uma grande variedade de sensações vividas durante os treinamentos e competições e em outras situações de sua vida cotidiana, mas não se anulam diante da importância do esporte em si. Aqueles atletas que vivem esse tipo de paixão não têm sua identidade invadida pela prática do esporte e são capazes de realizar outros feitos, além dos esportivos.

Sendo o esporte uma atividade diretamente relacionada com a superação de limites é possível entender a dimensão da paixão na realização das tarefas envolvidas com treinamentos e competições, considerando todo o esforço necessário para a realização de atividades incomuns à média da população.

Os anos de 1983 e 1984 foram os melhores anos da minha vida. Tudo o que eu fazia estava cercado por um clima mágico, positivo. Eu vivia um estado de paixão: pelos treinos, pela universidade e finalmente pela mulhere que seria minha esposa que surgiu em minha vida em 1984.

Vallerand & Blanchard (2000) apontam que as emoções ocorrem influenciadas por diferentes fatores e desempenham um importante papel na superação de limites. Afirmam os autores que principalmente a paixão harmoniosa leva o executante a se envolver positivamente em uma ação. Isso porque a internalização autônoma de uma atividade prazerosa é facilmente aceitável pelo executante, muito mais do que uma tarefa obrigatória ditada por uma ordem externa.

Estudos realizados por Vallerand et al (2003) confirmam a hipótese de que a paixão harmoniosa foi positivamente relatada como foco da tarefa, sensação de flow (estado de bem-estar e fluidez total durante a realização da atividade [Csikszentmihalyi, 1985; Jackson & Csikszentmihalyi, 1999)], contribuindo para uma experiência de efeito positivo, minimizando a experiência e efeito negativo após a adesão às atividades. Isso porque na paixão harmoniosa as pessoas estão no controle da atividade, elas aderem a atividades consideradas apropriadas para si o que repele uma experiência conflitiva.

Sendo assim é possível identificar a paixão relacionada com o estado de fluidez.

O estado de fluidez no esporte é visto como de fundamental importância, principalmente nos momentos de grandes decisões. Isso porque nas finais das grandes competições não espaço para empate. As decisões pressupõem um vencedor, mesmo que para isso se faça uso de instrumentos de mensuração, cada vez mais precisos, para que se ateste quem de fato foi capaz de realizar a máxima: citius, altius, fortiu.

A fluidez pode ser entendida e interpretada como uma forma de estado ótimo de ativação porque, durante sua experimentação tudo parece perfeito. Conforme aponta (1999) há uma total integração entre mente e corpo, o que impede que pensamentos negativos ou dúvidas a respeito de si interfiram em uma boa execução da atividade. A obtenção desse estado não é tarefa fácil, nem natural e afirma a autora que aqueles atletas que conseguem chegar a esse estado têm a clareza de sua singularidade e relacionam-na com suas melhores performances. Daí a busca desse estado e das estratégias para desenvolvê-lo.

O que se pode observar entre aqueles atletas que já usufruíram desse estado de fluidez é que há uma alteração no conjunto das percepções, ou seja, há o rebaixamento de algumas e a exacerbação de outras. Pode-se elencar entre as exacerbadas a atenção seletiva de estímulos específicos, tanto visuais como sonoros, o que os leva a referir sobre a indiferença para com o público ou adversário em específico. É sabida a presença do público, entretanto, sua manifestação não gera qualquer mudança de comportamento. Isso que nos leva a pensar sobre o nível de concentração entre os atletas que buscam o apoio da torcida durante a execução de sua atividade.

Aquele dia foi tão longo, eu estava super sereno na parte da manhã. Eu estava tranqüilo, descansado, tava em paz. Minha mente parou por algumas horas. Antes da competição eu sentei na arquibancada e comecei a me envolver na competição. Quando entrei na pista pra dar aquele tiro tava tão envolvido emocionalmente que eu não tinha controle... parece que não tinha controle nenhum de meu corpo, tava tudo super sedado. Eu não sei como que eu corri os últimos 100 metros, mas falaram que eu corri muito, muito, muito os últimos 200 metros.

Csikszentmihalyi (1996) aponta nove dimensões para o estado de fluidez experimentado nos picos de rendimento: o equilíbrio entre o nível de habilidade e o desafio a ser superado; a clareza dos objetivos estabelecidos; concentração absoluta na tarefa; senso de absoluto controle sobre a ação; perda da noção de tempo; alto nível de motivação para a realização da tarefa; perda de auto-consciência; fusão entre ação e concentração; feedback objetivo. Vale ressaltar que esse estado pode não ser sentido apenas em situações de competição, momento de coroação de um processo que dura meses ou anos, mas pode e deve ser construído ao longo do processo de treinamento. Todas essas dimensões podem ser sintetizadas no conceito de divertimento.

Quando eu entrava na pista para competir eu já tinha realizado aquela prova incontáveis vezes, em todos os seus detalhes. Ou seja, eu vinha cumprir um programa, inclusive com a cena da chegada. Todas as sensações e emoções eram minhas conhecidas.

Diante dos resultados obtidos pelo atleta ao entrar no estado de fluidez Jackson (1999) caracteriza essa situação como experiência de pico, momento em que o atleta atinge seu rendimento ideal. Nesse momento o atleta atinge sua plena capacidade de realização da tarefa, obtendo um desempenho ótimo na atividade. De acordo do (Garfield & Bennett, 1984) esse estado é marcado por alguns fatores como relaxamento físico e mental, excesso de confiança, foco no presente, sensação de alto nível de energia, concentração extraordinária, sentimento de controle absoluto da situação e sensação de proteção em um estado emocional criado que impede qualquer estímulo externo de intervir negativamente sobre aquela situação. Parece evidente que a definição dessas características estão associada com um desempenho ótimo no esporte, levando a uma afirmação sobre sua relação com o estado de fluidez.

 

Considerações finais

Nas diversas passagens relatadas pelo atleta aqui analisado pode-se encontrar dados para serem analisados especificamente sob a luz do treinamento de habilidades psicológicas. Embora aqui tenha sido feito um esforço no sentido de recortar essas impressões no sentido de permitir uma análise específica do tema estudado há que se esclarecer que esse esforço teve uma finalidade didática, visto que em muitas circunstâncias não se distingue o treinamento mental, do estado ótimo de ativação, da motivação intrínseca ou de outros conceitos caros à Psicologia do Esporte.

O que marca de fato o registro dessas experiências é a clareza com que elas são rememoradas e relatadas pelo atleta e que podem trazer luz à reflexão realizada por psicólogos do esporte e demais profissionais que lidam com o cotidiano de treinamentos e competições. Diante da literatura consultada o que nos resta é a certeza da necessidade do desenvolvimento de muitos outros trabalhos, principalmente dentro da realidade do esporte e do atleta brasileiros, para um melhor entendimento desse quadro.

Isso porque diante do que foi aqui exposto fica evidente a influência dos fatores ambientais e sociais, de menor controle por parte dos profissionais envolvidos com a preparação do atleta, mas que se mostram determinantes, principalmente, nos momentos de decisão.

 

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Endereço para correspondência
Escola de Educação Física e Esporte - USP
Av. Mello Moraes, 65 - Cidade Universitária
CEP 05508-900 - São Paulo - SP
Endereço eletrônico: katrubio@usp.br

 

 

Sobre a autora

Dr. Kátia Rubio
Professora da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo

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