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Revista Brasileira de Psicologia do Esporte

versión On-line ISSN 1981-9145

Rev. bras. psicol. esporte v.2 n.2 São Paulo dic. 2008

 

 

O posicionamento existencial frente à dor: uma aproximação fenomenológica às experiências de atletas lesionados em tratamento

 

The existencial position in the facing of the pain: a phenomenological approach to injuried athletes’ experiences in treatment

 

La situación existencial frente al dolor: una aproximación fenomenológica a las experiencias de atletas lesionados en tratamiento

 

 

Giovanna Ottoni; Leandro Penna Ranieri; Cristiano Roque Antunes Barreira

Universidade de São Paulo - USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta investigação abordou facetas dos desdobramentos psíquicos relativos à dor enquanto fator desencadeante do impedimento/afastamento temporário da prática esportiva, durante o período de tratamento fisioterápico em atletas de alto-rendimento. Sete entrevistas foram realizadas em dois diferentes grupos e, através de uma perspectiva fenomenológica, enfocou-se aquilo que tange ao modo como os próprios atletas percebem sua condição. Nos resultados, categorias representaram pontos comuns que emergiram a partir dos relatos. A adoção de um discurso genérico em terceira pessoa, comum a um dos grupos, revelando certo impedimento em considerar e problematizar a contingência da dor e sua ameaça à meta definida própria ao contexto esportivo de alto-rendimento, concomitantemente à presença de auto-discursos de força, generalização e normatização da experiência vivida, são elementos vistos como potencial foco de atuação profissional em psicologia do esporte levando ao questionamento sobre a relação entre objetividade e posicionamento subjetivo neste processo interventivo.

Palavras-chave: Esporte, Dor, Atletas lesionados, Fenomenologia.


ABSTRACT

This research addressed facets of psyquic developments relating to pain as a triggering factor of the obstacle temporary removal of sports practice, during the period of physiotherapy treatment in high-performance athletes. Seven interviews were conducted in two different groups, and through a phenomenological perspective, focused on how the athletes realize their own condition. In the results, categories accounted for common points that emerged from the reports. The adoption of a generic speech in the third person, common to one of the groups, revealing a hindrance to consider and question the contingency of pain and its threat to the target set the sporting context of high-performance, concurrently the presence of self-discourse of strength, generalization and standardization of experience, these are elements seen as a potential outbreak of professional performance in the psychology of sport leading to the questioning about the relation between objectivity and subjective positioning in interventional procedure.

Keywords: Sport, Pain, Injuried athletes, Phenomenology.


RESUMEN

Esta investigación aborda las facetas de los acontecimientos psíquicos relacionados con el dolor como un factor desencadenante en la eliminación temporal de la práctica deportiva, durante el período de tratamiento de fisioterapia en atletas de alto rendimiento. Siete entrevistas se llevaron a cabo en dos grupos diferentes y, a través de una perspectiva fenomenológica, se centró en qué se refiere a cómo los atletas darse cuenta de su propia condición. En los resultados, categorías representaron puntos en común que surgieron de los informes. La adopción de un discurso genérico en tercera persona, común a uno de los grupos, revelando un obstáculo para considerar la cuestión y la contingencia de dolor y su amenaza para la meta se fijó el contexto deportivo de alto rendimiento, la presencia simultánea de libre discurso de la fuerza, la normalización y generalización de la experiencia, son elementos visto como potencial brote de desempeño profesional en la psicología del deporte conduce a preguntas acerca de la relación entre objetividad y posicionamiento subjetivo en el procedimiento de intervención.

Palabras clave: Deporte, Dolor, Atletas lesionados, Fenomenología.


 

 

Introdução

A presente investigação pretendeu abordar facetas dos desdobramentos psíquicos relativos à dor, enquanto fator desencadeante do impedimento e do afastamento temporário da prática esportiva, durante o período de tratamento fisioterápico em atletas de alto-rendimento, profissionais ou almejando a sê-lo. Este é um tema vasto com implicações consideráveis para a psicologia do esporte, tanto no que diz respeito à especificidade da produção de conhecimento e dos modelos e modos de pesquisar, quanto à sua aplicabilidade e modos práticos de intervir. Nesse sentido, esta investigação cumpre um recorte temático inspirado pela perspectiva fenomenológica enfocando aquilo que tange ao modo como os próprios atletas lesionados percebem sua condição. Mais precisamente, interessou explorar as decorrências existenciais da dor enquanto potencial fator de ameaça à realização dos projetos de vida destes atletas. A abordagem, análise e resultados permitem compreender facetas e sugerir direções de apoio psicológico, deixando uma incitação a se pesquisar mais sob tal perspectiva; nem por isso, contudo, deixa de constatar elementos essenciais à condição examinada dirigindo as discussões ao território das experiências vivenciais individuado pela fenomenologia (Ales Bello, 2005).

 

Psicologia do esporte e o atleta lesionado

A afirmação de que a lesão está inserida de forma natural na vida de um atleta de alto-rendimento tem se validado cada vez mais com o passar do tempo. Kraus and Conroy (1984) estimaram que nos Estados Unidos, 3 a 5 milhões de lesões ocorriam por ano em práticas esportivas e de recreação. Em colaboração com esse dado epidemiológico, Waddington, Loland and Skirstad (2006) apontam para os motivos do início do crescimento da preocupação de pesquisas que tinham por objeto a lesão no esporte. Segundo os autores, a lesão era objeto de estudo predominantemente da área biomédica e, com as “revoluções esportivas” &– comercialização, patrocínio, ênfase na performance e no alto rendimento &– o número de lesões tornou-se um fator preocupante. Enquanto a prática esportiva proporcionava saúde e bem-estar para adultos de meia idade (mais de 45 anos), o esporte era um risco para populações mais jovens, alertando e preocupando as perspectivas estatísticas em saúde pública. Com a emergência de novos desafios frente ao estudo da lesão como elemento complexo, os autores apontam o crescimento do interesse em áreas não tão presentes anteriormente no estudo da lesão, como a sociologia e a economia e, posteriormente, as comunicações com a área do esporte (por exemplo, sociologia do esporte). Portanto, nas últimas três décadas, o interesse e a tomada de consciência sobre o papel de fatores psicossociais envolvidos na lesão esportiva têm crescido como assunto de pesquisa na área (Podlog & Eklund, 2007).

Segundo Weinberg e Gould (2001, p. 420), as lesões esportivas possuem suas causas primeiras em fatores físicos, ou seja, a lesão esportiva pode ser entendida como dano ou trauma. Entretanto, como já argumentado, a complexidade do fenômeno lesão no esporte demandou o posicionamento científico de outras áreas e, neste ponto, segundo os mesmos autores, há a influência de fatores psicológicos na lesão no esporte.

Alguns dos estudos inicialmente revisados sobre este tema estão voltados para comportamentos pré-lesão, como possíveis fatores desencadeantes da lesão e as possíveis contribuições da psicologia das lesões esportivas como intervenções preventivas.

Weinberg e Gould (2001) apontam para a contribuição de Andersen and Williams (1988, 1998) sobre o esclarecimento do papel que fatores psicológicos desempenham em lesões esportivas, sendo tal relação vista a partir de situações esportivas estressantes. Os autores ressaltam que é cabível complementar que “o estresse entretanto não é o único fator que influencia lesões esportivas”, mas também “fatores de personalidade, história de estressores e recursos de controle influenciam o processo de estresse e, por sua vez, a probabilidade de lesão”(Weinberg & Gould, 2001, p. 420).

Se por um lado as pesquisas apontam para o interesse dos aspectos antecedentes à lesão, seja a partir de uma perspectiva fisiológica, como a ocorrência de um trauma, seja por fatores psicológicos, por outro lado, revelam também ser possível encontrar fontes específicas de estresse durante a fase de reabilitação. Essas fontes, mencionam Weinberg e Gould (2001), são consideravelmente mais presentes como respostas psicológicas do que como aspectos físicos inerentes à lesão propriamente dita; por exemplo, “medo de nova lesão, sentir que esperanças e sonhos foram despedaçados, assistir os outros atuando e também preocupações sociais como falta de atenção, isolamento, relacionamentos sociais” (Weinberg & Gould, 2001, pp. 421-422).

Dentro da fase de reabilitação, Brewer (1994) aponta para duas formas predominantes de tratamento e entendimento envolvendo reações psicológicas à lesão. Primeiro, o modelo proposto por Kubler-Ross (1969, citado por Brewer, 1994) que circulava no tratamento de doentes terminais partindo do momento em que eram informados do diagnóstico, e o qual, adaptado a atletas lesionados, defendia a existência de um padrão de respostas emocionais seqüenciadas em 5 estágios: 1. negação; 2. raiva; 3. negociação; 4. depressão; 5. aceitação. Este modelo de estágios tinha, naquele momento, enorme apelo clínico, mas para o autor “contrariamente a crença popular, não parecem prever um fundamento promissor para pesquisas futuras” (p. 96). Em consonância e complementação, Wiese and Weiss (1987) consideram que“pensamentos e emoções podem estar constantemente alterando no curso do cíclico de reabilitação da lesão”(p. 93).

O segundo modelo apresentado por Brewer (1994) é o modelo de avaliação cognitiva, consistindo na avaliação psicológica desenvolvida para explicar as diferentes respostas emocionais entre os atletas lesionados. Dentro desse modelo, pesquisas encontraram importantes aspectos a serem considerados, entre eles “o modo como a lesão é percebida, interpretada pela pessoa, sendo determinante em sua resposta emocional. Da mesma forma, fatores pessoais como ansiedade, auto-estima, auto-motivação, neuroticismo e histórico de lesão”(Brewer, 1994, p. 90, tradução própria). Brewer conclui:

Uma abordagem teórica que maximiza a atenção às diferenças individuais em lidar com as lesões atléticas é essencial. Modelos de avaliação cognitiva são destinados a encontrar tais necessidades e estimular mais investigações de fatores que influenciam o tratamento psicológico frente à lesão atlética. Uma crescente compreensão destes fatores permitirá pesquisadores e médicos a desenvolver e avaliar intervenções para atletas lesionados (Brewer, 1994, p. 97, tradução própria).

Nesse sentido, outros modelos conceituais têm buscado compreender o contexto da lesão esportiva, sejam os fatores que a ocasionam (Uitenbroek, 1996), a resposta psicológica à lesão (Vergeer, 2006; Wiese-Bjornstal, Smith, & LaMott, 1995; Wiese-Bjornstal, Smith, Shaffer, & Morrey, 1998; Leddy, Lambert, & Ogles, 1994; Evans & Hardy, 1995; Tracey, 2003) &– incluindo o processo de reabilitação &–  e os fatores psicossociais envolvidos com o retorno à prática após a lesão (Podlog & Eklund, 2007). Além destes modelos conceituais, o papel da dor dentro da psicologia das lesões esportivas também tem sido discutido (Rubio & Godoy Moreira, 2007; Godoy Moreira & Rubio, 2008; Tripp, Stanish, Coady, & Reardon, 2004), sendo a dor geralmente considerada como um fator limitante para organismo realizar uma atividade e como um sinal protetor, pois pode estar associada a uma lesão ou patologia.

 

A perspectiva fenomenológica no estudo da dor no esporte

O aspecto crítico relativo ao modo de se pesquisar em psicologia do esporte, aludido acima por Brewer (1994) e por outros autores orientados por modelos conceituais específicos (Podlog & Eklund, 2007), pode ser estendido e incitar a exploração, consoante, por exemplo, às reflexões de Safra (2008) e Barreira (2007), pelas questões de ordem propriamente existenciais que se fazem presentes à pessoa, nesse caso especificamente ao atleta lesionado. Assim, o acesso àquilo que é individual (French, 1996), àquilo que é referente à experiência da pessoa com dor também tem sido objeto de estudo e, sobretudo, tomado como um caminho para se chegar à compreensão das emoções e experiências presentes ao estar com dor (Collinson, 2003 e 2005; Roderick, Waddington, & Parker, 2000; Tracey, 2003; Wainwright & Turner, 2004).

Nesse sentido, embora tal exploração informe também a prática e intervenção do psicólogo ou outros profissionais da área, não se trata apenas de um desenho de manejo técnico como sugere Brewer (1994) no momento em que trata de intervenções, ou seguindo os modelos de estudo da lesão esportiva, como Wiese-Bjornstal, Smith and LaMott (1995). No que se refere ao tipo de perspectiva adotada por esta investigação, comunga-se com a potencialidade da orientação fenomenológica, tanto para o estudo da prática esportiva (Kerry & Armour, 2000; Hockey & Collinson, 2007), como para o estudo da dor no esporte (Loland, 2006; Lurie, 2006; Roessler, 2006), visando tomar a dor como a condição de partida no propósito de acessar e compreender a percepção de atletas durante sua reabilitação fisioterápica.

Na tentativa de se atentar para aspectos anteriores, de um ponto de vista fenomenológico, ao valor das aplicações interventivas e da crítica contextual (Loland, 2006), busca-se aquilo que se refere a como o sujeito vive, ou seja, à experiência subjetiva formada pela alteração de horizonte dada pela dor e como esta se configura na atualidade existencial, já que:

De acordo com o modelo fenomenológico, ser um atleta tem a ver com uma forma inteiramente diferente de encontrar o mundo e, deste modo, uma lesão esportiva não é meramente algo que atrapalha um atleta a cumprir um objetivo ou satisfazer uma aspiração (...). Uma lesão esportiva é responsável por alterar o caminho que um paciente-atleta encontra seu mundo, freqüentemente no contexto das suas mais importantes e significativas experiências (Lurie, 2006, p. 208, tradução própria).

Portanto, o recorte do objeto aponta ao interesse fenomenológico pela sua dinâmica subjetiva, isto é, aquela configurada pela intervenção da dor no projeto de vida dos atletas lesionados. Esta investigação parte da definição do objeto dando um passo atrás em relação às pesquisas predominantes em psicologia da lesão no esporte, as quais procuram fatos ou fatores objetivos (por exemplo, tipo e nível da lesão) para mensurá-los enquanto efeitos ou causas relacionadas à outra objetividade, isto é, partindo de critérios metodológicos originados nas ciências naturais.

Loland (2006) aponta para a hegemonia da abordagem médica &– clássica, segundo o autor &– no estudo sobre a dor, enfocando que esta perspectiva se constrói a partir da objetificação do corpo e pela intervenção baseada na relação causa-efeito. Tal perspectiva entende adequadamente e responde precisamente às reações orgânicas do tipo traumáticas, mas, de acordo com as críticas a esta abordagem, diluem-se, quando a dor não se manifesta à observação clínica e interventiva em sintomas patológicos e fisiológicos. Nesse sentido, para este autor, é preferível falar em dor (pain), em vez de lesão (injury) ou doença (illness), “porque dor é um caso borderline [no limite] entre o que pode ser fisicamente localizado e medicamente diagnosticado e o que é visto pertencendo ao subjetivo, a esfera experiencial que deve ser explorada por outros significados” (p. 49, tradução própria). Seguindo tal perspectiva, a dor não é tomada como um elemento primeiro de uma relação causa-efeito, mas como uma experiência presente e latente na vida da pessoa, neste caso o atleta lesionado. Assim, a dinâmica subjetiva não é considerada como um elemento que escapa do diagnóstico comprobatório objetivo-interventivo, mas como elemento existencial, ou seja, aquilo que é vivido e posto em foco na vida do sujeito. Segundo Rubio e Godoy Moreira (2007), “se a dor é um estado, é uma constante na vida do atleta de alto rendimento, faz-se mister a apropriação, tanto por parte do atleta como da equipe que o acompanha, dos vários significados atribuídos a essa sensação” (p. 932).

Estes autores também apresentam momentos distintos do estar com dor &– treinamento e o impedimento da prática &–, juntamente com outros autores que situam a lesão e a dor como processos vividos pelos sujeitos (Roderick, Waddington, & Parker, 2000; Wainwright & Turner, 2004). Atentando para as concepções no âmbito da psicologia da lesão esportiva, tendo como foco a dor no esporte, a dor é tomada aqui, portanto, como fenômeno subjetivo (Howe, 2004; Loland, 2006; Lurie, 2006) e que é um potencial elemento para a modificação no horizonte presente vivido por atletas lesionados.

 

Objetivo

Esta investigação teve como objetivo identificar e compreender as experiências decorrentes da alteração do modo de estar no mundo imposto pela dor de uma lesão esportiva em atletas em processo de reabilitação fisioterápica com ênfase em seus projetos de vida, potencialmente ameaçados por esta condição, ou seja, pretendeu mapear o horizonte existencial modificado pela lesão.

A alteração do modo de um atleta encontrar o mundo de que é responsável uma lesão (Lurie, 2006), corresponde a uma modificação da consciência do mundo deste atleta. Assumir a dor como o ponto de partida desta modificação, redefine o objeto não em função de qualquer gradação médica da lesão, mas em função de um componente essencial à lesão e, contemporaneamente, em função das implicações à subjetividade decorrentes da dor que serão levantadas através dos resultados e ao longo da discussão. As experiências decorrentes da dor são aquelas manifestas pelo atleta, isto é, aquelas que lhe surgem com mais intensidade diante das perguntas que se dirigem interpelando seu horizonte existencial, isto é, à consciência panorâmica que têm de sua vida relativamente ao momento presente. Horizonte, no sentido fenomenológico, refere-se ao que rodeia uma pessoa, àquilo que está em torno desta pessoa implicando-a subjetivamente, sendo mais do que aquilo que está ao alcance presente, mas comportando justamente a característica de ser aberto, temporalmente aberto, com seu devir podendo lançar-se para frente ou para trás, ao futuro ou ao passado. Aquilo que um horizonte dá a ver, contudo, não se encerra aí, mas se excede, dá-se como transcendente e cada movimento de quem o vive revela facetas e aspectos sob nova perspectiva. Assim, considerar a perspectiva incorre na dimensão existencial que se refere ao sujeito da experiência e ao modo como este se põe e dispõe neste horizonte.

Pretendeu-se estabelecer uma consideração focada no horizonte (passado, presente, futuro) destes atletas &– que, embora tenha sido tangenciado nas referências outrora citadas, não foi objeto daquelas pesquisas predominantemente voltadas aos antecedentes da lesão e ao estresse presente &– correlacionando suas experiências atuais, memórias e expectativas no modo como são percebidas pelo próprio atleta.

Esta compreensão geral pode também ser traduzida em expressões husserlianas, onde “os conceitos de ego e de mundo ambiente estão inseparavelmente em relação um com o outro”, em que “toda pessoa implica seu mundo ambiente” (Husserl, 2004, p. 262, tradução própria) e que

é o mundo que a pessoa, no seio de seus atos, percebe, do qual ela se lembra, que ela apreende pelo pensamento, que ela presume ou que ela infere a partir disto ou daquilo, o mundo do qual este ego pessoal está consciente, que está lá para ele, com respeito ao qual ele se comporta de tal ou tal maneira, por exemplo pela experiência e a teorização temáticas se relacionando às coisas que lhe aparecem, ou pelo afeto, pela avaliação, a ação, a abordagem técnica, etc (Husserl, 2004, p. 262, tradução própria).

Essa consideração pode ser reconduzida ao princípio fenomenológico de que a consciência é sempre consciência de alguma coisa e, como tal, só há mundo ambiente para um ego, não há mundo “em si”, a não ser enquanto categoria abstraída, enquanto idealização. É contra o fato de o conhecimento filosófico e científico ter-se edificado sobre uma conceituação abstraída acerca de um suposto mundo em si mesmo, cujo conhecimento seria independente da consciência, de sua relação de implicação com o sujeito do conhecimento, que Husserl dedicou seu trabalho de busca incessante sobre como o conhecimento se dá à consciência.

Outra consideração relevante pode ser depreendida do momento em que Husserl discorre acerca do aspecto “horizontal” inerente a toda experiência, no §8 do livro Experiência e Julgamento. À imediatez da experiência dada em “carne e osso”, argumenta Husserl, há uma possibilidade extensiva de abertura ao infinito de entendimento de determinações da mesma, seu horizonte interno. Paralelamente, há um “horizonte de segundo grau” (Husserl, 2006, p.38), um plano de fundo ao qual não se está voltado na atualidade, porém ao qual é possível voltar-se, dirigir-se a qualquer momento. Este seria o horizonte externo ao núcleo da experiência. Esta diferenciação é matizada na presente pesquisa, já que o horizonte existencial contempla aqueles aspectos significativos da abertura da pessoa à própria experiência de vida, tornando difícil ou pouco interessante contar com o uso desses conceitos como pré-categorizações.

É nesse sentido que este trabalho parte de uma condição de experiência atual, presente, mas interessa-se pelos modos típicos com que tal fenômeno é visado existencialmente, isto é, no contexto de vida do sujeito e de seus desdobramentos intencionais.

 

Metodologia

Como já apontado, esta investigação de tipo qualitativo valeu-se de uma inspiração em fundamentos fenomenológicos, pretendendo alcançar a experiência vivida pelos atletas em tratamento fisioterápico após terem sofrido algum tipo de lesão, impossibilitando estes sujeitos de continuar, momentaneamente sua prática esportiva. Não tomou parte das preocupações da pesquisa, conforme se justifica pelas considerações introdutórias, definir os tipos de lesão ou prognóstico, nem acompanhar o andamento e finalização do tratamento.  O enfoque da pesquisa limitou o interesse às percepções dos entrevistados, posteriormente dedicando-se a cumprir análises intencionais.

Os 7 (sete) atletas que compuseram a amostra intencional foram acessados a partir da identificação daqueles que freqüentavam centros de reabilitação dentro do “Projeto Futuro”1 e dentro do clube do time de futebol profissional contatado, ambos situados na cidade de São Paulo. Embora os sujeitos da amostra sejam todos atletas &– entre eles, jogadores de futebol, praticantes de variadas modalidades de atletismo, como as modalidades de campo e judocas &–, ao longo do texto, para fins de diferenciação, são utilizadas as expressões jogadores e atletas fazendo referência respectivamente aos futebolistas e aos componentes do Projeto Futuro. Tal opção visa atender a uma caracterização que se impôs nos resultados, como será visto, de acordo com o agrupamento entre jogadores e atletas em modos menos ou mais típicos de visar sua condição. Esta caracterização não foi previamente definida pela escolha da amostra e das instituições, mas foi revelada de maneira significativa a partir dos relatos.

A intenção do uso desse tipo de método é alcançar as facetas mais emergentes da percepção do atleta diante da dor como parte de sua realidade no momento vivido. Com o intuito de acessar as experiências vivenciais destes sujeitos, realizaram-se entrevistas com roteiro semi-estruturado, abertas e em profundidade que visa desprender-se de teorias, conceitos ou expectativas do pesquisador, desenvolvendo-se preferencialmente na possibilidade de diálogo e de testemunho. As questões norteadoras faziam referência ao início das atividades esportivas (Como o esporte surgiu em sua vida?) e, com a intenção de acessar conteúdos específicos do estado de lesão e do projeto de vida dos atletas, duas outras questões visavam direcionar o sujeito a tais elementos: Como foi o momento que sofreu a lesão? e Um sonho hoje...?. A partir dessas questões, buscou-se acessar a experiência trazida pela dor e os desdobramentos entendidos como próprios ao horizonte existencial dos atletas, com o constante cuidado de aprofundar o relato em benefício do esclarecimento intersubjetivo recíproco entre entrevistador e entrevistado. Dessa maneira, a entrevista se desenvolve como um momento oferecido ao atleta de expor suas experiências e de proporcionar, pela relação processada com o entrevistador, o contato e a abertura às próprias vivências, ou seja, penetrar na subjetividade relativa às experiências, às expectativas e ao projeto de vida na presente condição de estar em tratamento de uma lesão.

Para favorecer que a coleta seja mais próxima da experiência, esta transformada em linguagem (Stelter, 2000), é imprescindível ao entrevistador notar sensivelmente, durante a entrevista, os “pontos fortes”, a fala autêntica (Amatuzzi, 2001), isto é, aquilo que está atrelado à experiência vivida e aos momentos significativos, voltando-se aos mesmos e buscando aprofundamento e a interação com o “mundo privado” do sujeito.

Para tanto, os procedimentos de seleção dos sujeitos se basearam em contatar a instituição responsável pela reabilitação de atletas e posteriormente selecionar os colaboradores da pesquisa, estes informados sobre as intenções e objetivos da mesma. Depois de cumpridas as entrevistas, gravadas e transcritas na íntegra, foi realizada uma leitura buscando uma visão do todo, reconhecendo os elementos significativos da experiência utilizados para evidenciar categorias referentes ao fenômeno, ou seja, ao posicionamento existencial em relação à condição modificadora da lesão.

A análise desta pesquisa debruçou-se constantemente sobre as experiências vividas e o modo como estas são percebidas e valoradas. Portanto, a análise desenvolvida é do tipo intencional, partindo daquilo que se manifesta pelo relato.

Após a leitura, a qual possibilitou a sistematização em forma de síntese das entrevistas, permitindo um primeiro estágio em direção às experiências, buscou-se extrair e compreender a dinâmica e os modos típicos relativos ao fenômeno tomado como objeto deste estudo.

 

Resultados

O trabalho realizado passou por etapas metodológicas como a realização das entrevistas, leituras iniciais (coletivas, dentro das primeiras reflexões sobre o tema desenvolvido)2, as quais foram aprofundadas em (re)leituras posteriores, as sínteses das entrevistas e as análises, que ora se desenvolvem, permitindo o reconhecimento de categorias que representam pontos comuns que emergiram a partir de sentidos presentes nos relatos. As categorias, de um ponto de vista fenomenológico, correspondem a unidades de sentido presentes no fenômeno estudado, como algo interior às experiências e que têm, em várias entrevistas, um sentido comum. A tematização e a modalização que acomunam estes pontos permitem a formação de diferentes categorias, as quais precisam, contudo, ser compreendidas na unidade do horizonte das percepções acessadas, isto é, em sua dinâmica e não como partes isoladas do todo.

É importante ressaltar que as categorias, ou unidades de sentido, visam destacar aspectos definidores do fenômeno conforme o mesmo se dá na coleta de dados, portanto, procuram evitar inflacionar ou deflacionar estes aspectos. Assim, partem das singularidades das entrevistas, mas não correspondem integralmente a nenhuma delas, já que cumprem contextualizações e especificações por meio de reduções eidéticas que permitem identificar tipos com elementos essenciais comuns. Eventualmente, porém, na discussão, aspectos singulares são postos em relevo, porém, desde que se compreenda que estas singularidades aprofundem aspectos apenas superficialmente tangenciados, latentes, mas claramente sugeridos ou evocados em mais de uma entrevista.

Situação

Correspondendo à faixa etária &– os jovens entrevistados tinham entre 17 e 19 anos, tendo apenas um jogador 25 anos &– e à saída de casa ocasionada pela opção de dedicação ao esporte, notou-se uma dificuldade inicial de adaptação à vida esportiva, caracterizada por fatores como conciliação de tarefas (treino versus estudos), harmonia no convívio coletivo e distância dos familiares. Estas características são relevantes no que diz respeito à condição desses atletas em seu contexto social, sinalizando para os aspectos afetivos e objetivos presentes em suas vidas. Dentro desses aspectos objetivos, destaca-se de forma essencial para a tipologia jogadores e atletas a diferença de estrutura material, testemunhada pelos pesquisadores e relatadas pelos entrevistados, no processo de reabilitação entre os grupos. Para o primeiro há uma equipe de profissionais especializados que acompanha todo o processo, desde a incidência da dor até a recuperação total, apoiados numa infra-estrutura adequada, que propicia prognósticos definidos, conta com aparelhos para exames, acompanhamento e demonstração contínua de interesse por parte da equipe médica, o que também é sugerido na convicção no tratamento vista na análise dos relatos dos jogadores. O mesmo não ocorre para os atletas do Projeto Futuro3. Em alguns relatos é possível observar a presença de dores suportadas em silêncio, pois não requeriam do atleta (segundo eles) parar, não eram insuportáveis a ponto de contê-los ou limitar de forma considerável suas capacidades dentro do esporte:

eu já tenho algumas dores assim, deixa pra lá, tá doendo, mas isso de boa não dá nada, isso não me faz parar, mas essa dor que tá no pé me faz parar, então aí me desestimula. Mas se fosse uma dor de coluna, sei lá, mas que só tava ali e não aumentasse, eu não tava nem aí, eu até acostumava, mas o pé na hora que tá parado tá sem dor, a hora que começa dói, dói demais. (F.)

Estas condições objetivas, em termos de recursos humanos e materiais, têm ressonâncias em suas subjetividades, melhor abordadas abaixo, quando se destaca, no caso dos jogadores, uma subjetividade portadora de uma segurança atrelada às boas condições de tratamento médico e no caso dos atletas, um lidar com a dor que corresponde a uma consciente relação entre o momento de tratamento/afastamento e suas próprias vidas, observada em narrativas predispostas a se desenvolverem biograficamente.

De modo geral, todos os entrevistados são de origem social humilde, o que fortalece um relacionamento com o esporte que é de necessidade profissional e desejo de cumprir expectativas familiares. Nesse sentido, o vínculo familiar manifesto nos relatos toma parte fundamental na força para suportar a distância e a carência afetiva ocasionada pela ausência dos familiares.

Convívio

Há consideráveis diferenças entre os dois grupos de entrevistados. Os atletas do Projeto Futuro se vêem num convívio muito próximo entre si e ao mesmo tempo difícil, por exemplo, compartilhando quartos com colegas com quem disputam e competem:

porque aqui você tem que saber lidar com as pessoas, porque é um convívio coletivo, por mais que a pessoa não tiver bem, a gente tem que respeitar o espaço da pessoa né... tem que aceitar o espaço dos outros tipo os conflitos que tem, por mais que todo mundo seja amigo, um compete contra o outro (A.C.S).

Ainda que esta situação e dificuldade possam ser enfrentadas também pelos jogadores de futebol, em nenhum momento foi manifestada qualquer consideração a este fato pelos entrevistados. Pode-se compreender que a situação própria aos esportes individuais influencie diretamente a ênfase da percepção dessa dificuldade que, mesmo se também vivida no esporte coletivo, parece não ser objetivada da mesma forma e talvez se dilua ou, mais provavelmente, encubra-se na cultura de grupo por eles compartilhada. A segurança para tal distinção se fortalece pela expressão de outras características que sinalizam dois modos típicos de enfrentamento das dificuldades, um mais pré-disposto a correlacioná-las com as próprias narrativas de vida, os atletas, e outro pronto a objetivá-las num discurso genérico em terceira pessoa. Este último, o modo típico dos jogadores acentua um enfrentamento em acordo com determinado consenso coletivo.

Metas

Do ponto de vista das metas, possuindo a característica de ser uma aspiração objetiva, ou seja, bem definida, foram encontradas similaridades relativas à ascensão econômico-social, especialmente com a preocupação de ajudar a família e ter sucesso no esporte. No caso dos jogadores e no caso dos atletas, essa ascensão corresponde a tornar-se independente financeiramente e, no limite, alcançar o auge da carreira, respectivamente, a seleção brasileira de futebol e índices olímpicos nas modalidades: “chegar em uma seleção, acho que é o que todo jogador pensa né” (J.F.). Tais similaridades entre os grupos destoam novamente, no que diz respeito ao envolvimento narrativo com a própria história de vida e, então, com as possibilidades abertas a partir da obtenção das metas, o que se explora em sonhos.

A dor como restrição: reação inicial

Observa-se que a dor surge como potencial impedimento à continuação da carreira, trazendo como reflexo inicial, momentos de dificuldades pontuadas por tristezas e pensamentos, repentinos e breves ou mais intensos e constantes, acerca do futuro, revelando, predominantemente de forma tácita, incerteza (como exemplo a dúvida quanto à volta ao esporte). Ao reverem estes momentos iniciais de reação à dor vivida como restritiva da carreira esportiva, os entrevistados mencionam conceberem a alternativa de desistência acompanhada pelo estado dedesânimo: “não quero mais saber do futebol, vô largar, num agüento mais!” (J.F). Sentimentos de inconformidade também se fizeram visíveis, ladeados por certa recusa a contatos inter-pessoais, traduzida pela vontade de ficar só, sumir e não falar com ninguém.

Se os jogadores “se permitem” relatar estes estados e pensamentos ocorridos logo após a ocorrência da lesão e início do tratamento, é para em seguida, como será descrito adiante, rejeitarem categoricamente tal condição psíquica, “devaneios” de desistência e isolamento, como se estes de fato formassem um mal maior do que a própria dor, mal ao qual parece se atribuir o risco de contaminar o tratamento impedindo a recuperação da condição.

No caso dos atletas, chega a haver uma problematização acerca de suas condições no momento de abandono temporário ao esporte. Ao mesmo tempo que é possível identificar a presença de relatos de muita dor física e tristeza, não há um afastamento da experiência, mas um olhar direto sobre a dor e o tratamento fisioterápico  naquele momento de suas vidas. Nota-se que o reconhecimento destas experiências e a eventual problematização não parecem abalar suas metas bem definidas e, na verdade, acabam por ser uma possibilidade de alavancar a reafirmação dessas metas com novo vigor, como ilustra esta conclusão: “mas depois fiquei pensando... 'não, isso é o que eu quero mesmo’ ”  (M.S.M). Já no caso dos jogadores o mesmo não ocorre, parecem demonstrar um receio em se colocarem em questão, no sentido de acabarem perdendo de vista a meta que já é tão assegurada em suas vidas no contexto esportivo. O estabelecimento das convicções nas metas esportivas encontra reflexos na forma de lidarem, ou “não lidarem”, com a dor e experiência presentes, sempre focando no auto-incentivo e na coerção moral que ainda serão referidos mais detalhadamente abaixo.

Apoio

Quando se identifica a relação de apoio, é possível perceber outra diferença notável que separa jogadores e atletas em dois agrupamentos de percepção nas entrevistas. Por um lado, os jogadores de futebol mostraram-se apoiados em familiares, amigos, confiança nos profissionais envolvidos e também em Deus. Toda tristeza do momento, dúvida e desestímulo eram convertidos em uma segurança sintetizada na fé cristã, várias vezes citada como motivo de não-desistência: “mas os amigos, familiares, todo mundo dando o maior apoio, e o tratamento aqui também é excelente e tenho certeza que dessa vez vou voltar bem se Deus quiser num vai acontecer mais nada” (J.F.). Por outro lado, o grupo de atletas não faz, em momento algum, referência a amigos ou familiares como forma de apoio. Entre as quatro entrevistas, apenas uma cita de forma breve o apoio do pai. Os atletas do Projeto Futuro manifestaram-se mais independentes e muitas vezes sozinhos no confronto com a dor, sua ameaça e a recuperação.

 

Contingência e resistência

Em muitos momentos durante a reabilitação, os atletas se deparam com situações paradoxais, de diferentes sentimentos e desejos para suas vidas. Identificam-se em algumas entrevistas planos para uma futura tomada de decisão, caso a resposta da recuperação não seja positiva. Reflexões sobre o futuro também podem ser identificadas quando parecem ter a meta central de suas vidas profissionais ameaçada, dão ênfase ao tempo perdido durante o tratamento e de forma predominante relatam a sujeição à contingência da dor física através de lesões no esporte, testemunhando momentos de superação de resultados e performance, atravessados pela dor que eventualmente os incapacite e finde suas possibilidades. Reitera-se porém a tipologia dos grupos, já que os jogadores não desenvolvem tais reflexões, predominando o recurso imediato às certificações dadas pela adesão aos discursos médicos ou através da fé em Deus. Por outro lado, os atletas seguem com o pôr em questão o projeto de vida: “se eu vou gastar anos da minha vida, dez, quinze anos da minha vida e não virar nada ou se eu gastar dez, quinze anos pra ser alguma coisa... (F.)”.

 

Autocoerção moral

Na seqüência, emerge a necessidade de pensamento positivo, esperança de bons resultados e rejeição da negatividade &– no que se supõe como o correspondente ao fortalecimento psicológico &– aparecendo de forma preponderante nas narrativas desenvolvidas pelos jogadores. Se por um lado o relato dos atletas chega a colocá-los a si próprios em questão - “me abalou, assim, no começo (...) pensei (...) vou esquecer o esporte, mas depois fiquei pensando... 'não, isso é o que eu quero mesmo” (M.S.M) &– diante das mesmas perguntas e do mesmo gênero de entrevista, os jogadores de futebol adotam um discurso moralizador acerca de um modo pelo qual se deve lidar com a lesão: “a gente tem sempre que pensar na frente, sempre pensar positivo, então, é isso que eu sempre pretendo fazer, pensar positivo e confiar em Deus (...) porque vai dar tudo certo” (T.R.).

O auto-incentivo no lidar com a lesão surge em ambos os grupos, contudo, os jogadores têm um modo particular de fazê-lo que por sua característica impessoal e reincidente entre os entrevistados, pode ser compreendido como uma autocoerção moral. Tal processo caracteriza-se pelo já mencionado relato em terceira pessoa, bem como pela generalização de seu caso, pela normatização e fixação da atitude a ser assumida que respectivamente são exemplificadas abaixo:

Mas essa é uma coisa normal do futebol, todo mundo passa por isso (T.R).
Não é fácil mesmo, tem que ter a cabeça no lugar, tem que ter força.(G.P)
Na profissão então, tem que colocar na cabeça que todo jogador tá sujeito. (T.R.)

 

Sonhos

Num dado momento, o que se definiu como a categoria sonhos parece se mesclar e submeter à categoria metas tal é a similaridade entre os conteúdos. Pode-se assumir que isto se deve à própria característica delas de estarem voltadas àquilo que está por vir, ou seja, pelo fato de que os conteúdos são atrelados às aspirações na vida dos sujeitos. No entanto, há uma importante diferenciação entre elas. Enquanto metas se configura na definição objetiva do que se busca e se quer (Olimpíadas, Seleção Brasileira de Futebol), sonhos assume uma forma menos claramente definida na sua objetividade, mas que também aponta, como em metas, para as realizações de desejos, por exemplo, ascensão financeira, ajudar a família, entre outras, que são aspectos com contornos menos bem delineados no que se refere ao modo de se realizar e  suas conseqüências.

Quando depreendidos todos os sonhos contidos nas respostas, constatou-se uma mudança no decorrer da carreira, por exemplo quando relata-se um início esperançoso pautado no desejo de se tornar um “Ronaldo Fenômeno”, de ser reconhecido, transformado na pretensão de conseguir apenas dar o retorno para a família, seja no aspecto financeiro ou nas expectativas de ascensão social. Há um aspecto adaptativo, uma forma maleável que não perde ainda uma direção e a presença de um desejo que, no fundo, permanece alí.

Em um dos relatos, pode-se perceber bem estas características propriamente subjetivas do sonho:

... eu quero trabalhar, eu quero ter as minhas coisas, mas eu não quero ter a vida que eu tinha lá [Minas Gerais]. Poxa, se eu voltar pra lá não vou ver o mundo girar, aqui em São Paulo eu vejo o mundo girar, só o atletismo tá me dando isso (...) hoje em dia não sei nem mais o que eu quero da vida, é sério! Porque às vezes eu falo ‘eu quero ir,eu quero ir pra olimpíada tal não sei o que’, mas num outro dia eu falo assim ‘cara, depois que sair do projeto eu vou cair no mundo, cara, vou fazer uma revolução, virar a cabeça, entende’ (...), mas eu gosto mesmo é de treinar, competir, ir pra esses lugares, pô! Eu acho que o atletismo pode me levar para esses lugares, mas se o atletismo não levar eu vou ter que ir a pé mesmo, que seja num cargueiro aí pra me levar, sei lá... (F.)

Os sonhos entre os atletas diferiram-se quanto aos âmbitos contidos, que variaram entre retribuição familiar, conquista pessoal, auto-realização advinda de realizações de desejos dos pais e uma busca de tornar-se no futuro um exemplo para as pessoas. Ex. “tá realizando um sonho de meu pai e da minha mãe de chegar a jogar num time profissional e é... isso aí é felicidade. (J.F.)”. Entre os jogadores, por seu turno, aquilo que se manifesta como sonho tende a se restringir às já mencionadas ascensão profissional e o auxílio à família, sendo aspectos que guardam certa sobreposição com as características de metas.

 

Discussão

Através dos processos metodológicos e da interpretação à análise dos resultados, foi possível notar no grupo de futebolistas de forma geral, a adoção de um discurso genérico em terceira pessoa, comum a todos eles, demonstrando certo “afastamento” da experiência vivida naquele dado momento, o que poderia parecer, a priori, caminhar em sentido contrário às intenções de cunho fenomenológico. Com efeito, o que se reconhece fenomenologicamente é que este “afastamento” é ele mesmo um modo de viver a experiência. Se por princípio a fenomenologia incita à busca pelo que se manifesta, pelo que há do modo como há ao sujeito da experiência &– portanto, pela positividade do fenômeno &–, ela não impede, contudo, o reconhecimento crítico de que haja certo embotamento subjetivo no que tange à apreensão e elaboração de dado fenômeno no horizonte do sujeito, isto é, certa limitação no relacionamento desses jogadores com suas próprias experiências, o que se constata pela generalização.

O que foi chamado autocoerção moral, refere-se a um modo de adesão a essa generalização, à impessoalidade de suas respostas durante as entrevistas, ou seja, no distanciamento pessoal há um impedimento à construção de suas próprias visões, a uma elaboração particular sobre aquele momento de suas vidas. Tem o significado de expressar uma fala que parece advir do entrevistado como se estivesse sendo coagido pela situação, pelo contexto esportivo em que se encontra, como se quisesse o que todos querem ou visse como todos vêem. A objetivação e generalização impessoal da experiência de dor que atravessa seu caminho, parece ser encontrada já pronta e, desse modo, é como se não fosse fonte de qualquer subjetividade que não aquela previamente estabelecida como fator comum à objetividade da condição de atleta.

Na identificação de discursos de auto-incentivo, auto-convicção, uma conseqüência dos valores existentes e constatados pelas entrevistas com o grupo do futebol é revelado ao encontrarem-se respostas prontas e um auto-discurso de força, que acabam por contrapor qualquer sentimento que denote sensibilidade própria, já que este por sua vez, parece não corresponder, dentro da cultura presente no contexto de vida de jogadores de futebol, ao que eles assumem como uma qualidade que traga benefícios, pelo contrário, o que fica claro é uma necessidade de se mostrar inabalável.

É preciso constatar a importância que a determinação da vontade tem no mundo esportivo de alto-rendimento. Aqui a objetividade joga um papel relevante, pois sem ela o estabelecimento de metas é simplesmente impossibilitado. Há uma íntima relação entre esporte de alto-rendimento, metas e a idéia de progresso (Queval, 2004) que acompanha todo o treinamento e carreira atléticos. Contudo, pode-se questionar se a manutenção do espírito esportivo aguerrido às suas metas objetivas a todo momento e em qualquer situação não é contraproducente seja em relação aos aspectos especificamente esportivos, seja àqueles pessoais de realização de uma vida plena.  O que os relatos deixam entrever é que há uma aplicação cega daquilo que seria virtude no contexto de treinamento e competição esportiva – convicção, objetividade, auto-confiança – ao contexto de suspensão e tratamento imposto pela dor. Não corresponder a tais virtudes, mostra a tonalidade dos relatos dos jogadores, se assemelha a ser fraco, não competitivo, para usar uma palavra cara à eficácia esportiva. Assim, encontrar apoio num repertório de sentido já pronto soa como o meio mais seguro para enfrentar a ameaça – potencialmente mortífera para a carreira de atleta – da dor e da não aceitação de si mesmo como membro do grupo. A alteração do caminho de que é responsável a lesão, como lembra Lurie (2006), faz pensar nos recursos escassos que a ameaça promove quando não há companhia aberta para elaborá-los, mas apenas companhia fechada na oferta de sentidos prontos para o enfrentamento. É curioso mencionar um aspecto pontual da reflexão de Hannah Arendt sobre o tema do mundo privado e da dor:

a dor, que é realmente uma experiência limítrofe entre a vida, no sentido de estar na companhia dos homens, e a morte, é tão subjetiva e alheia ao mundo das coisas e dos homens que não pode assumir qualquer tipo de aparência (Arendt, 1958, p. 60-61).

A impossibilidade de assumir aparência não é equivalente à impossibilidade de assumir um sentido, porém este, sobretudo na fragilidade do sofrimento, é favorecido pela companhia aberta. Em todas as entrevistas é possível identificar expressões de subjetividade encontrada neste contexto como uma abertura a novas possibilidades ou a uma abertura de si mesmo perante a interrogação feita por meio das entrevistas acerca de suas experiências vividas. O que parece ficar claro é que a fonte para essa subjetividade é diversificada. A maioria buscou uma fonte generalizada em suas respostas. A lesão obscurece os horizontes, as possibilidades outrora estrategicamente bem definidas parecem desconectar o esportista de seu eixo. No caso dos atletas, há uma busca de sentidos alternativos perante a dor e suas eventuais conseqüências, mostram-se cientes das possibilidades de resultado negativo ou positivo, ou seja, aludem a ambas as situações. No caso dos jogadores essa obscuridade dura apenas nos primeiros momentos, até se converter nesse discurso acima referido, genérico, distante de si mesmo, certificado por um outro, o outro do discurso médicoatlético.

Entre todas as entrevistas realizadas, há um momento específico de uma delas em que &– passadas as respostas genéricas, objetivas e normativas, tipificadas com os jogadores &– o confronto com o si mesmo decorrente do aprofundamento dialógico esbarra quando o entrevistado é interpelado acerca de um sonho naquele momento de sua vida e responde que desejava ser um jogador de futebol. Imediatamente a entrevistadora, consciente de que ele já era um jogador, perguntou o que ele se considerava, como se via então naquele momento. Sua resposta é a emergência aguda da impossibilidade de acessar esta dimensão pessoal. De modo seco e vacilante responde: “Não vejo nada! Nada!”. Abrem-se margens à constatação de uma inacessibilidade emocional, semelhante àquela descrita por Gilberto Safra (2008, p.202): “a pessoa encontra-se aprisionada em uma situação que o encarcera em uma experiência confusional”. No caso desta entrevista, tal experiência se evidenciou pela incapacidade de se transpassar essa fronteira entre generalização e própria subjetividade diante de uma presença que solicitou que sua atenção pousa-se em si mesmo. Assim, o sentido pré-estabelecido demonstra toda sua insuficiência, mesmo diante de um breve contato dialógico, indicando ao risco e à fragilidade da suposta força das virtudes a que cegamente aderiu: “o que para um outro ser humano é experiência de ser, para essas pessoas é verdadeiro buraco negro sem sentido (...) o que provoca uma fenda, uma fratura no sentido de si”(Safra, 2008, p. 200). A fragilidade da suposta força das virtudes atléticas objetivas e reificadas na condição aqui tematizada, reside no “verdadeiro abismo que separa todas as sensações corporais, prazer ou dor, desejos e satisfações – sensações tão privadas que não podem ser adequadamente expressas, e portanto absolutamente impossíveis de reificação” (Arendt, 2008, p.154). O que se quer afirmar é que a impossibilidade de reificação não pode ter como resposta uma reificação, mas precisa buscar constituir um sentido próprio, existencialmente articulado. Os relatos dos jogadores são aversivos quanto a lidarem com algo “tão” subjetivo e íntimo como as sensações advindas da dor corporal. A valoração de aspectos reificados vista na ênfase performática, por exemplo, quando se trata de reabilitar um ligamento, tratar um músculo e devolver ao atleta suas habilidades primordiais no esporte, aparece de forma bem definida, analogamente às metas, testemunhadas como sonhos por esses jogadores. Os sonhos, porém, quando autênticos, portanto não objetividades fixas, reificados como as metas, mas portadores de contornos lábeis, abertos a mudanças e continuidade, são realistas em relação à incerteza do devir e, ao mesmo tempo, contêm a presença de um desejo direcionado a este devir. Ressalta-se a intenção de explicitar a funcionalidade existente na crença de que é melhor objetivar sempre, sem se permitir qualquer abertura à subjetividade, já que esta parece fragilizar e até mesmo se tornar um risco à carreira de um atleta. A funcionalidade da objetivação aqui tratada acontece pela certificação do devir positivo da recuperação física.

Apenas no grupo dos atletas é possível ver sinais de ultrapassagem disso que chamamos de relato genérico contido nas entrevistas, desdobrando assim, a experiência de ser aludida por Safra (2008), sua própria experiência de subjetividade. Para um dos entrevistados por exemplo, sua vida não era limitada a um sonho, mas a vários, além de relatar muitas formas de alcançá-los além do esporte. Este sujeito particularmente, demonstra grande conscientização sobre o momento vivido, sobre suas possibilidades, sobre as responsabilidades, uma consciência do risco que a improdutividade causada pela lesão coloca em sua vida. Não há um relato de auto-incentivo propriamente, mas de abertura, de visão mais ampla sobre as possibilidades decorrentes da lesão em sua vida. De modo geral, entre os dois grupos apenas um dos atletas revela de forma manifesta, e em vias de elaboração, uma consciência das dificuldades e de como elas abrangem momentos de instabilidade emocional. Em cima dessa consciência dos sofrimentos que acabam passando, parecem fortalecer seus desejos, desenham seus sonhos como uma recompensa, percebem-se descobrindo mais sobre si mesmos e, eventualmente, interrogam-se, problematizam-se.

Quando se relaciona o apoio externo durante a fase de reabilitação, como comentado nos resultados, há uma enorme diferença entre atletas e jogadores. Dentro dessa discussão acredita-se ser importante ressaltar o relato de uma atleta que conclui a lesão como um momento de aprendizagem, acrescentando pensar que nunca precisaria de ninguém. Se “o sofrimento humano veicula mensagens, que necessitam ser significadas em uma experiência inter-humana” (Safra, 2008, p.202), esta necessidade é expressa como algo atendido na experiência da atleta. Em sua fala, nota-se uma vulnerabilidade, uma sensibilidade propiciada pelo momento presente, há o reconhecimento subjetivo da necessidade do outro.

A existência de um discurso funcional usado pelos técnicos, formado na objetivação de metas no esporte como meio de mobilizar os atletas para uma auto-superação, dedicação total e alcance de bons resultados, participa de um valor objetivo de competitividade que parece limitar relacionamentos sociais no contexto que os atletas vivem, nesse caso, do Projeto Futuro, onde &– como categorizado em Situação &– há um convívio diário e próximo com os próprios adversários.

É possível também encontrar um ponto nodal entre o discurso funcional e a objetivação da dor e das incertezas trazidas pela lesão. Os sonhos parecem se cristalizar à medida que metas são objetivadas, à medida que esse discurso define horizontes na vida desses atletas. A ameaça, já tratada nessa discussão, que a lesão pode trazer para esse discurso funcional parece mais uma vez ser revertida agora em relatos de auto-convicção, auto-incentivo, pensamentos positivos, fé, familiares, amigos, enfim, em estabilidade, confiança, certeza. Portanto o discurso funcional se traduz perfeitamente para a finalidade esportiva especificada pelo progresso rumos às metas (Queval, 2004). O que se coloca em questão é a exteriorização de experiências que poderiam possibilitar a densidade da formação interior destas subjetividades, isto é, que permitissem o acesso, a consideração e a transformação da subjetividade rumo a dimensões significativas de seu viver (Safra, 2008).

Quando os jogadores demonstram se abster dos sofrimentos ou ativamente esquivar-se dos mesmos; sofrimento esse referido por Safra (2008, p.199) como o “encontro entre a sua experiência do passado e do seu anseio em direção ao futuro”, não permitem o encontro com suas experiências presentes, isto é, voltam-se a uma expectativa determinada e segura de futuro. Não articulam com seus passados experiências “verdadeiramente” vividas, mas assumem a atitude de apoiarem-se na suposição de certeza do futuro, o que faz seu anseio objetivado, tratado de forma direta, estável, reificando o caráter transcendente do tempo.

É, portanto, importante que se faça uma pausa para estender a reflexão citada acima. Um jogo de temporalidades é articulado no ponto onde se extrai das respostas dos jogadores uma negatividade existencial que contrapõe uma positividade. Esta última, formada quando objetivam suas dores – objetivam o tratamento, quando encontram-se autocoagidos, certos do futuro, fechados contra as incertezas do momento – desvincula de suas esferas de vida as ameaças que podem ser trazidas por um sofrimento repentino que abale seus eixos, como menciona Safra (2008). Por outro lado, negatividade existencial naquilo que é conseqüência dessa atitude, já que a experiência vivida torna-se o distanciamento de si. A saída do presente, apoio exclusivo no futuro e a não articulação biográfica formam esse distanciamento. O passado fica desconsiderado, o presente de incertezas soa tão ameaçador que os faz recorrerem àquela estabilização cega do devir, normalmente garantida pela adesão às palavras de um outro, médico, técnico, companheiros ou familiares. Há pouco trabalho de memória, “memória, que é registro da historicidade constitutiva do ser humano” (Safra, 2008, p. 203). Esta se “perde”, torna-se quase irrelevante quando se faz o presente unicamente sustentável pelo futuro, não há visão do passado se o presente não passa da suposição de certeza do futuro. Dessa forma, o indivíduo encontra-se “sem ligação com a história, sem a face do humano” (Safra, 2008, p.203),significando o mesmo que ter o passado (formador da história) colocado ao lado do homem como descartável e desfavorecendo “ao ser humano fazer relações com as questões fundamentais do destino humano” (Safra, 2008, p.203).

 

Conclusão

Os posicionamentos existenciais descritos nos resultados e acima discutidos permitem refletir acerca do gênero de responsabilidade da atuação do psicólogo do esporte em momentos de suspensão das atividades efetivamente esportivas como pode ser aquela decorrente de lesões. Por responsabilidade entende-se algo diferente da reatividade, algo diferente de simplesmente reagir com o uso exclusivo dos recursos previamente disponíveis.

A objetividade genérica e normativa que caracterizou o relato dos jogadores é um exemplo claro de reatividade. Mais ainda, é um exemplo de como tal reatividade pode ser assumida como um dado de valor pessoal e institucional que é visto, preferencialmente, como não devendo ser explorado, mas talvez adestrado. Observou-se a relevância das presenças de apoio junto aos jogadores, mas este apoio também guarda a característica reativa do dar força. Já entre os atletas do Projeto Futuro, ao mesmo tempo em que escassearam os relatos de apoio, houve uma tendência um pouco mais acentuada a ultrapassar a camada objetiva do discurso de força com abertura à exploração da situação vivida, isto é, com tendência a efetivamente responder à condição presente. Ambas as posições, reativas ou responsivas, podem ser favorecidas pela atuação do psicólogo, a depender justamente da perspectiva de atuação. É nesse terreno comum entre esportista e psicólogo, terreno que se pode chamar de espaço intersubjetivo, que se encontra a possibilidade de um estímulo mais reativo ou mais responsivo &– havendo, portanto, a necessidade de serem conhecidas ambas as possibilidades para que se paute conscienciosamente a orientação numa ou noutra direção.

A análise fenomenológica do ser humano encontra sua estrutura intencional aberta em diferentes qualidades de atos, entre os quais interessam aqui fundamentalmente os psíquicos e espirituais (Ales Bello, 2004, 2005 e 2006 e Barreira, 2007), embora não se desconsidere a implicação necessária da presença da dor como ato corporal. Grosso modo, pode-se associar a reatividade aos atos psíquicos e a responsividade aos atos espirituais que são aqueles intelectivos e voluntários. Mesmo se a reação se vale de uma objetividade, portanto de um produto espiritual, pode-se reconhecer nela a predominância afetiva que gera o uso deste produto &– num funcionamento equivalente ao que se manifesta nos preconceitos. Assim, ao definir um ato como psíquico a análise intencional não elimina a atividade espiritual, apenas individua aquele elemento forte que o move. A própria psicologia carrega ambas as dimensões de atos em sua denominação, a psique e o logos. A atividade do logos, contudo, pode eventualmente se definir como atividade instrumental, fundamentada na ciência como recurso técnico. Isto quer dizer que ela pode simplesmente se sedimentar e, mais uma vez, obedecer como um produto a serviço da reatividade psíquica, sendo reprodutiva e perdendo seu sentido originário. Este é o caso da autocoerção moral encontrada entre os jogadores e seria o caso de uma atuação profissional em psicologia que focasse sua intervenção em atividades de motivação, mesmo se a dor e a lesão esportiva põem em suspenso as metas a que a motivação esportiva se dirige. Aqui a autocoerção ou as técnicas de motivação passam ao largo do alvo. Responder esclarecidamente à situação de tratamento exige reconhecer as condições que a definem e verificar a insuficiência da resposta esportiva competitiva próprias ao treinamento e à disputa. Note-se bem que a insuficiência se dá porque, embora possa ser útil, este esforço de motivação não é verdadeiramente apropriado à condição de lesão, já que esta suspende, mesmo que temporariamente, o próprio alvo da motivação esportiva. Fixar a visão num alvo suspenso (ausente) é, portanto, ilusório e um impedimento ao direcionamento da visão ao momento presente. De fato, o produto objetivo de focar a meta e acreditar, no caso da suspensão imposta pela dor, lesão e tratamento, pode ter neste momento uma oportunidade para reencontrar seu processo constitutivo, seu sentido de ser presente no horizonte existencial do esportista. Portanto, duplo trabalho de esclarecimento fenomenológico: reconhecer quando é o caso a suspensão da efetividade esportiva imposta pela dor e resgatar as fontes motivacionais na experiência biográfica singular do esportista.

Tal atuação, mobilizada pela imposição do limite da dor, poderia proporcionar um olhar mais realístico sobre o caráter também limitado da existência e, a partir disto, do valor do engajamento no tratamento e na carreira esportiva como componente de seu horizonte pessoal. Apropriar-se desse valor, seja ele como for, e da abertura de possibilidades do horizonte &– mais equivalente ao caráter lábil do sonho do que à rigidez da meta &– amplia e fortalece o repertório existencial e as condições psíquicas de lidar com as contingências próprias à vida e ao esporte.

O questionamento que emerge no presente estudo, primeiramente incitando a se pesquisar mais por esta abordagem, é se o olhar para a própria subjetividade seria de fato um risco ao bom desempenho na vida de um atleta? Isto é, se &– para aquele que deve ser forte, seguro, determinado frente aos obstáculos no caminho em busca da meta &– tal contribuição de um posicionamento atento para esferas subjetivas seria abstê-lo dos recursos instrumentais típicos de seu trabalho e, no limite, prejudicial a seu rendimento?

Acredita-se que a dor em sua totalidade lembra questões fundamentais da existência humana quando trata de uma contingência, dos confins da vida e do destino. E quem, que não seja psicólogo do esporte, estaria mais apto ao esforço de subjetivação que lançasse o terreno da articulação das experiências biográficas com a meta bem definida, a objetivação, importantíssima e necessária, sem dúvida, ao enraizamento da vitória dentro do esporte?

 

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Endereço para correspondência
1Rua Pamplona, 328, ap. 84, CEP 01405-000, Bela Vista - São Paulo/SP
Email: giovanna.ottoni@usp.br
2Avenida Celso Garcia, 5706, ap 33, CEP 03064-000, Tatuapé &– São Paulo/SP
Email: owen@usp.br
3Rua Maracanã, 109, CEP 05054-040, Vila Ipojuca &– São Paulo/SP
Email: crisroba@usp.br

 

 

1O Projeto Futuro foi criado no ano de 1984 com o intuito de proporcionar condições aos atletas de talento, oferecendo infra-estrutura necessária para potencializá-los e ajudá-los a alcançar um objetivo comum, que seria a participação em seleções estaduais e nacional, tornando-os atletas de alto rendimento bem sucedidos em suas carreiras. Esse projeto ocorre na cidade de São Paulo, mais especificamente no parque Ibirapuera, por iniciativa do Governo do Estado, através da antiga Secretaria de Esporte e Turismo, hoje a SEJEL (Secretaria da Juventude, Esporte, Lazer e Turismo). Atualmente oferece as modalidades judô, atletismo e nado sincronizado, dentro de uma faixa etária de 14 a 18 anos, podendo ser estendida aos 22 anos desde que o atleta se mantenha entre os 5 primeiros da classificação nacional. Além dessa condição, para continuar dentro do Projeto, é preciso freqüentar e ser aprovado em cada ano escolar. Para contribuir para o melhor rendimento dos atletas e, assim, atender os objetivos da proposta, o Projeto conta com recursos humanos (profissionais) e materiais, como psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, planos odontológicos, alimentação, moradia, academia, farmácia, biblioteca e um computador, possuindo também uma área específica determinada para o treinamento dos atletas de cada modalidade.
2Tiveram início no cumprimento da disciplina Resolução de Problemas, do curso de Ciências da Atividade Física na Universidade de São Paulo, durante o primeiro semestre de 2008, compartilhadas inicialmente com o grupo formado por 6 integrantes mencionados em nota de agradecimento.
3Quando, paralelamente a essa pesquisa, outro grupo da disciplina Resolução de Problemas se dedicou a pesquisar a percepção dos atletas em relação a suas vidas no Projeto, evidenciaram-se frustrações em relação ao apoio às suas necessidades de saúde esportiva, demonstrando que muitos se ressentem de carecerem de infra-estrutura propícia e de tratamento acompanhado e assíduo por parte dos profissionais especializados.

 

Sobre os autores

Giovanna Ottoni1
Estudante do curso de Ciências da Atividade Física Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP)

Leandro Penna Ranieri2
Graduado em Ciências da Atividade Física da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP), Mestrando em Educação Física pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP)

Cristiano Roque Antunes Barreira3
Professor Doutor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP)

Sobre o trabalho

Agradecemos à valiosa contribuição dos participantes das reflexões iniciais Onicelma da Rosa, Ivanildo Soares, Eric Marcondes, Renato Augusto dos Santos e Cheyenne Marinho, que estiveram conosco nas preparações iniciais da pesquisa, assim como em parte da coleta de dados.

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