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Revista Brasileira de Psicologia do Esporte

versión On-line ISSN 1981-9145

Rev. bras. psicol. esporte v.2 n.2 São Paulo dic. 2008

 

 

Ciência e futebol na pós-modernidade: por uma perspectiva crítica

 

Science and soccer in post-modernity: a critical perspective

 

Ciência y futeból en la pós modernidad: una perspectiva crítica

 

 

Adriana Bernardes Pereira

Universidade Católica de Goiás

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Diante da gama de possibilidades que o fenômeno esportivo e a ciência em geral apresentam para a sociedade, e especificamente o futebol na sociedade brasileira, optamos por realizar uma reflexão sobre a construção coletiva da ciência e do fenômeno brasileiro do futebol. A partir da sistematização de acontecimentos históricos da ciência e do futebol, foi possível refletir acerca da configuração social que permeia essa construção e entender os elementos especificadores, as relações sociais que são formadas, os atores envolvidos, as materialidades presentes, a ocorrência de jogos de força nas relações sociais, sua caracterização e entrelaçamentos inter e intracategorias do futebol.

Palavras-chave: Construcionismo, Futebol, Pós-modernidade, Sociedade do espetáculo.


ABSTRACT

Given the great variety of possibilities that the sports phenomenon and the science in general presents to society, and specifically soccer in Brazilian society, we have chosen to reflect the about collective construction of the science and Brazilian soccer. Through a systematization of historical elements in science and soccer it was possible to reflect on the social configuration that permeates this construction and to understand the specifying elements, the social networks that are formed, the actors involved, the materialities that are present, the occurrence of competitions for strength in the social network, their characterization, and the interweavings of inter and intracategories in soccer.

Keywords: Constructionism, Soccer, Post-modernity, Spetacle society.


RESUMEN

Frente a la gama de posibilidades que el fenómeno deportivo presenta a la sociedad, y específicamente el fútbol em la sociedad brasileña, optamos por realizar una reflexión sobre la construcción colectiva de la ciencia y del fenómeno brasileño Del fútbol. A partir de la sistematización de los acontecimientos históricos de la ciencia e del fútbol, fue posible reflexionar acerca de la configuración social que permea esa construcción y entender los elementos especificadores, las relaciones sociales que son formadas, los atores involucrados, las materialidades presentes, la ocurrencia de juegos de fuerzas em las relaciones sociales, su caracterización e entrelazamientos inter y intracategorias del fútebol.

Palabras clave: Construccionismo, Fútebol, Pos-modernidad, Sociedad del espectáculo.


 

 

Introdução

Para a psicologia social, a noção de conhecimento e sua transformação em ciência são determinantes de toda a sua existência, porque define como iremos entendê-la e com ela trabalhar. Para além, esta reflexão trata de esporte, especificamente de sujeitos que nascem, crescem e envelhecem sofrendo as influências do contexto do futebol, com o decisivo agravante de residirem no chamado “país do futebol”. Para pensar esse fenômeno cultural, iniciaremos falando da condição pós-moderna e, ao mesmo tempo, perguntando: o que é pós-moderno nesta reflexão sobre o esporte, o futebol e a construção social dos sentidos de ser jogador de futebol profissional?

Hoje se utiliza muito a expressão pós para se referir às características da sociedade contemporânea, tais como sociedade pós-moderna, pós-religiosa, pós-política; ao explicitar o que é pós-modernidade, fica evidente ser necessário, primeiramente, definir o que é modernidade, ou seja, estabelecer o seu referencial.

A modernidade, delimitada temporalmente, está situada no período entre os séculos XVII e XX. Uma de suas principais características foi o surgimento da ciência moderna, com o estabelecimento das primeiras correlações matemáticas entre os fenômenos naturais (Foucault, 1981; Rouanet, 1998).

Discussões teóricas e metodológicas caracterizam as diferentes abordagens da psicologia e esta se estabeleceu, e tem se mantido, como uma área plural que não dispõe de elementos para a definição de uma área específica como a melhor. É interessante citar que nem na matemática, ciência considerada mãe, existe consenso quanto às suas teorias. Gomes (2007, p. 333) nos diz: “A filosofia que se escolhe depende do homem que se é”. Dessa forma, escolhe-se, utiliza-se e acrescenta-se aos saberes existentes um pouco de cada um que por eles passa, de suas crenças e da forma como avança teórica e metodologicamente.

A medicina, como saber disciplinar, é um excelente exemplo da contribuição da ciência para a humanidade. Porém, apesar de todas as pesquisas feitas, até o presente momento ainda não se descobriu a cura de várias doenças e, como descreve Foucault (1997), a medicina ainda gera um sistema que se sobrepõe ao seu próprio saber como instância de poder. A crença utópica de que a ciência resolveria todos os problemas humanos tornou-se insustentável. O otimismo foi substituído pelo pessimismo. O ocidente, como diria Hobsbawm (1995), estava condenado à decadência e aos extremos. Eram guerras, grandes depressões, revoluções; eram “os tempos modernos”, alusão feita por Charles Chaplin, em sua sensível e visionária obra cinematográfica, na qual ele demonstra, de forma poética, a maquinização do homem (Modern times, 1936). Nesse intervalo de tempo está datado, originalmente, o nascimento da pós-modernidade.

Chegar até aqui para introduzir o que é pós-modernidade nos auxilia a contextualizar a origem do termo que, como expressão da filosofia, começou a se caracterizar no começo do século XX, com o trabalho de Ferdinand de Saussure (1857-1913), intitulado Curso de lingüística geral, originalmente publicado em 1916 (Saussure, 1995). O autor introduziu precisamente a noção de que a linguagem é uma estrutura dentro da qual existem importantes diferenças. Essa estrutura simbólica faz com que cada língua seja diferente de outra ou que haja diferentes sentidos na mesma língua, dependendo do contexto e, para isso, é necessário que ela tenha uma lógica interna pautada em sua estrutura e função. Posteriormente, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-) retomou, em 1958, em sua obra Antropologia estruturalista, a idéia de estrutura na acepção de que as culturas podem ser compreendidas como um sistema de relações fechadas, organizado e com regras próprias (Lévi-Strauss, 1989). A esse método de análise, a antropologia denominou estruturalismo.

A chamada filosofia pós-moderna tomou esse método a partir de releituras do estruturalismo feitas pelos então denominados pós-estruturalistas. Foucault (1981, 1986, 1987, 1994, 1995, 2006) é, provavelmente, o nome mais importante dessa fase e outros, como Deleuze (1974, 1985), Deleuze e Guattari (1995), Lyotard (1989) e Rorty (1988, 2000), seguiram desenvolvendo seus temas a partir dessa perspectiva. Gostaríamos de deixar claro que são vários os elementos que se encontram na base da pós-modernidade e que o estruturalismo, bem como as leituras dos pós-estruturalistas, são apenas alguns deles.

Pensando no que é pós-moderno, observamos que é uma característica comum entre os autores desta corrente (diferentemente do movimento dos autores na modernidade &– época de traçar fronteiras, traçar linhas entre antinomias) apagar linhas, destruir fronteiras, mostrar a fluidez presente na contemporaneidade, enfim, desconstruir para entender. Um ponto importante para eles é que, ao estudar a sociedade e suas diferentes culturas, deve-se pensá-las como um sistema de regras próprias, sem antinomias, tendo por pressuposto que, se existem fronteiras entre opostos que se completam, elas somente terão sentido dentro de um sistema cultural de referência. É nessa acepção que os filósofos pós-modernos quebram fronteiras, diluem os opostos e criam metáforas explicativas para a dissolução do humano, como faz Haraway (1991, 1995 e 2001) e Miah & Eassom (2002).

Resumindo, os tipos sociais são internos a cada sociedade/cultura e se configuram por relações de poder descritas em redes e matrizes sociais, tramas ou rizomas, dependendo de sua complexidade (Deleuze, 1974). É importante ressaltar que na filosofia pós-moderna não há o relativismo amplo, como fundamento de seus postulados. Para os pós-modernos, as antinomias não deixam de existir. Verdadeiro e falso não se diluem na incerteza de sua fusão; todavia, existem dentro de um contexto e não de forma universal. Não é impossível ver o certo ou o errado, o verdadeiro e o falso; porém, estes requerem um contexto, uma cultura para que possam ser analisados. Não é que não exista lógica, mas a lógica interna de uma cultura pode parecer ilógica aos olhos de indivíduos pertencentes a outra cultura.

Então, se as ciências humanas não cabem nos moldes das ciências naturais, como pensá-las fora dos padrões de certo/errado? Sabemos que a ciência é apenas uma entre as muitas maneiras de se conhecer o mundo e os seres humanos que nele habitam. A relatividade pós-moderna está exatamente em aceitar que os sentidos podem ser variados de acordo com as diferentes culturas e com as diferentes formas de aquisição do saber.

Para Jameson (1999), a pós-modernidade teve seu início em 1960 e a efervescência de sua problematização ocorreu em 1970. Foi descrita pelo autor como a racionalidade do capitalismo tardio, que veio questionar os conceitos modernos de sujeito, progresso, verdade, razão e legitimidade. Os sonhos advindos do projeto iluminista, que fundamentavam a modernidade, viraram pesadelo.

Em sua reflexão sobre a modernidade, Bauman (1999, 2004) a considera uma transformação, deixando de existir na forma sólida e passando a existir na forma líquida, metáfora representativa do tempo que deixava de ser estável para outro tempo, agora volátil, mutável, inconstante e instável. A partir daí, então, surgiram questões pontuando o que estaria acontecendo. Estaria decretada a morte, o fim da modernidade, ou de um período que, inserido na modernidade, estabeleceu uma nova condição, especificada por um novo conjunto de engrenagens ou formas de relações (perpassadas pelo desenvolvimento tecnológico e informacional), que se denomina pós-modernidade.

De acordo com Lyotard (1989), pensando a cultura contemporânea, a condição pós-moderna caracteriza-se exatamente pela incredulidade quanto aos mecanismos de legitimação do conhecimento na atualidade. Habermas (2000, p. 47) afirma ser a pós-modernidade “a modernidade diante de um projeto inacabado” e que “deveríamos aprender com os desacertos que acompanham o projeto”. Projeto inacabado, segundo o autor, refere-se à finalidade de promover igualdade social, independentemente das questões multiculturais que a modernidade, enquanto planejamento racional intersubjetivo havia começado a encetar.

Falar de esporte, cultura e sociedade na condição pós-moderna implica viajar no tempo e pousar na contemporaneidade. Dessa forma, para entender os processos sociais, as práticas discursivas e as redes de materialidades que são constituintes da matriz esportiva na atualidade, se faz necessário situar o que vem a ser condição pós-moderna. Assim, essa condição baseia-se na apropriação de uma lógica racional específica, globalizadora, individualista e reflexiva (Giddens, 2001, 2002; Spink, 2001).

Percebemos que existem alguns elementos que caracterizam essa construção social e que configuram o imaginário sobre o que é ser um jogador de futebol profissional: um atleta de alto rendimento, detentor de saúde, vigor, dinheiro, fama e disposição acima de qualquer suspeita. Problematizar essas idéias, geralmente recebidas como verdades, é uma maneira de entender como essas construções são feitas. Daí se amplia o olhar sobre o mundo e, por conseguinte, sobre nós mesmos (Ibáñez, 1993, 1994, 2001, 2004; Íñiguez, 2003).

O momento contemporâneo, como definido por alguns (Guareschi; Bruschi; Medeiros, 2003; Hall, 2001), ou pós-moderno, como desejam outros (Harvey, 2002; Jameson, 1999; Lyotard, 1989; Santos, 1989), é considerado uma mudança iniciada pelo modernismo e que se configura como outro contexto para análises sociais.

Por sua vez, Lyotard (1989) analisa a pós-modernidade em termos de condição do conhecimento nas sociedades mais desenvolvidas e desloca-a para o contexto da crise das narrativas, concebendo o pós-moderno como o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras do jogo da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX. Entende-se aqui a pós-modernidade não como conseqüência ou desdobramento do moderno, mas como um movimento de renovação interna inerente ao moderno. Assim, tendo o moderno como referência de partida, a condição chamada pós-moderna se desenvolveu e se atualizou dentro do próprio período denominado moderno, condição esta em que o conhecimento tornou-se a principal força econômica de produção. O ponto central, para Lyotard (1989), é o debate sobre a criação de um novo referencial epistemológico, capaz de responder às novas condições do conhecimento impostas pelas transformações sociais. O autor defende a tese de que o saber científico é uma espécie de discurso, e aponta o quanto as transformações tecnológicas afetam o saber e criam novas linguagens, alterando não apenas a produção do conhecimento, mas também o senso comum. E assim, tanto o saber científico como os avanços tecnológicos apresentam marcos de uma sociedade pós-industrial, terreno fértil no qual a condição pós-moderna se desenvolve. Embora necessária no momento contemporâneo, a discussão sobre a pós-modernidade está distante de ser consensual e se dispersa em diversas perspectivas teóricas.

Jameson (1999) preconiza que a pós-modernidade é o que se tem quando o processo de modernização é findo e a natureza iluminada se foi para sempre. Esse é um mundo mais que humano (no sentido de ganhos tecnológicos individuais e perda de valores coletivos), no qual a cultura se tornou uma segunda natureza. Sendo assim, a condição pós-moderna não é uma dominante cultural de uma ordem social totalmente nova, mas apenas um aspecto concomitante de mais uma modificação sistêmica do capitalismo. Nessa condição, a própria cultura e seus elementos se tornaram um produto; o mercado tornou-se seu substituto, isto é, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o constitui. A cultura, necessariamente, expandiu-se a ponto de se tornar praticamente co-extensiva à economia, como base sintomática de algumas das maiores indústrias do mundo e também de maneira muito mais profunda, uma vez que todos os objetos e serviços (materiais e imateriais) se tornaram, de forma inseparável, uma marca manipulável ou um produto vendável.

De maneira análoga, a cultura esportiva, e sobretudo do futebol, no Brasil e no mundo, constitui-se como inevitável tecido da vida no capitalismo avançado e apresenta-se como uma segunda natureza para os que dela fazem parte ou por ela se interessam. Cabe ressaltar que, por mais que sugira uma exaltação muitas vezes acrítica do uso das tecnologias, principalmente quando os objetivos são desempenho, rendimento e lucro, negando qualquer expressividade humana, a condição pós-moderna apresenta um potencial que, se for aproveitado, pode levar o atleta a possibilidades de ganho pessoal e coletivo. Conhecendo a sociedade e seus mecanismos articulares, o esportista pode fazer escolhas mais conscientes diante do que lhe é apresentado.

Para que isso ocorra, faz-se necessário saber que, nessa sociedade, sobressaem o espetáculo de superficialismo, a competição, os ganhos, a exaltação dos patrocinadores, a competição entre marcas tecnológicas que não visam o ritual nem tampouco qualquer celebração de mitos ou sentido superior de virtudes. Importante perceber que, nesse momento, há uma transformação dos valores presentes na Paidéia &– do corpo belo, da formação completa do humano, realizada por meio das experiências dos sentidos com a música e as artes, da cognição com a matemática e do corpo com os esportes &–, mas que ele não é massa de manobra dos interesses alheios. Na Paidéia, a espada era instrumento de luta e acompanhava o sentido coletivo das conquistas; atualmente, o corpo é moldado por técnicas de condicionamento físico calibradas por suplementos alimentares, acessórios high tech, interfaces de controle e câmeras que o focam, moldam e inventam, sem, porém, formá-lo ou emancipá-lo.

Se, por um lado, a exacerbação dos valores físicos, acompanhada da ingerência midiática para o consumo, destrói o conceito de emancipação no sentido de utilização da razão como mecanismo esclarecedor e crítico, por outro, o atleta, sabedor de tudo isto, pode reconstruir seus objetivos de trabalho associando desenvolvimento técnico com crescimento pessoal. A prática esportiva, que aparentemente se tornou mero contexto de espetáculo, palco de tipos que atuam intencionalmente e são assistidos por outros tantos apaixonados e manipulados dentro do jogo de interesses mercadológicos, pode também levar à formação de um atleta crítico e transformador. Paixão e manipulação oscilam como um pêndulo em função do senso crítico ou da falta dele quanto à consciência do tipo social e da matriz que o sustenta. No entanto, segurar esse pêndulo sabendo o que determina seu movimento pode fazer com que os atletas se transformem em senhores de seus próprios destinos, tomando as rédeas de muitas situações nas quais, de outro modo, seriam meras marionetes.

Voltemos à cultura contemporânea e às possíveis “razões” dessa aplicação no contexto esportivo do futebol profissional no Brasil. Seria o triunfo do irracionalismo ou um novo conceito de razão o que fundamenta o contexto esportivo na atualidade? Em que sentido pode-se falar de futebol, de sociedade, a partir da perspectiva da condição pós-moderna? Que racionalidade é esta, que vem substituir ou aterrar o grande sonho que a humanidade elaborou para si mesma de razão libertadora e de emancipação pela revolução ou pelo saber? Afinal, desde a Paidéia grega, o esporte é agente intrínseco de formação do homem.

Contudo, na pós-modernidade, especificamente no contexto do esporte em geral e do futebol em particular, por intermédio dos conhecimentos objetivos produzidos pelas ciências do esporte, legitimadoras de diferentes tipos de controle sobre corpos e mentes, com seus saberes disciplinares, estão sendo gerados superjogadores. Esses pagam o preço de sua transformação em fenômenos e em produtos de um conhecimento que os leva, bem como àqueles que desejam segui-los, ao exercício de uma prática de trabalho acrítica, movida apenas pela estética de belas jogadas que podem ou não resultar em gols (o futebol chamado de arte).

Vários e importantes eventos históricos marcam os efeitos do projeto de uma ciência forte. No futebol não é diferente; pelo contrário, até hoje, e talvez mais que nunca, a busca pelo domínio do conhecimento como ciência e seu produto tecnologizado e midiatizado espetacularizam e corrompem tanto quanto salvam ou libertam. Isso propiciou o surgimento de uma irracionalidade calcada na paixão pelo esporte, que talvez seja o único meio de ascensão social para muitos, que gera identidade nacional e, a cada quatro anos, uma sensação coletiva de pertencimento à nação.

Em um país de tamanha desigualdade social como o Brasil, o futebol, assim como o carnaval e as telenovelas, tem o sentido do “circo” que alegra e distrai o povo cheio de necessidades que, literalmente, está sem “pão”. Como maior fenômeno de massa do país de miseráveis, o futebol é contexto para exorcizar as faltas e se travestir de verde e amarelo de modo a exaltar seus tipos, os quais, de forma identitária, refletem desejos de ascensão e de possibilidades.

Esse ponto leva à reflexão sobre a condição humana e o efeito que toda essa disciplina e tecnologia geram. Seriam esses jogadores de futebol humanos ou seriam eles novos deuses em formato de máquinas? Seriam heróis, reeditados pela tecnologia, ou anti-heróis pelo modo como se fazem heróis? Esses mesmos atletas, na atualidade, aceitam se submeter a arriscadas condições, pois o que importa é chegar ao fim, que é a vitória, a qualquer custo, mesmo que isto os leve, posteriormente, a despencar do pódio, quando, então, cairá o manto e se revelará o doping do existir como atleta.

Porém, o descrédito atual do esporte como agente emancipador e da ciência como solução para todos os males parece transportado do projeto iluminista que, em sua origem, continha o âmbar impregnado do DNA da desconfiança. Dessa forma, compreende-se porque, na pós-modernidade, o niilismo e a descrença na cultura como fonte de liberdade e emancipação floresceram. E, mais ainda, o sistema sociopolítico e econômico opressivo contemporâneo, que gera grande desigualdade social e impõe a forma como os sujeitos devem agir, pensar e sentir, também engendra desconfiança e desconforto. No esporte, existem “impressões” de progresso e saúde, principalmente no contexto de alto rendimento; porém, o próprio espetáculo que o apresenta e faz circular seus valores demonstra a fragilidade de seu processo e a lógica do seu sistema, pois também veicula os efeitos da busca irracional pela excelência, dos quais, muitas vezes, nem a própria ciência pode dar conta. No meio esportivo, a desconfiança vem emoldurada pelo espetáculo, pela possibilidade de ascensão social diante da falta de oportunidades, pela fama e fortuna decorrentes da superação acompanhada de valores físicos e sociais de grande poderio histórico, ético e moral.

Nesse caso, a racionalidade atual é rebuscada e nublada pela dúvida quanto às possibilidades de fundamentação lógica tal que fuja a um modelo que atenda ao sistema, sendo este modelo instrumental e individualizador. As narrativas e as performances globalizantes, veiculadas em tempo real e expressas em todas as formas de cultura, não anunciam liberdade. A cultura, apresentada como uma segunda natureza, agora é definida pelo que pode ser veiculado por intermédio das mídias, instantaneamente, preenchendo os horários televisivos, motivando reclames, chegando a todos os cantos do planeta e estabelecendo os valores dos tempos atuais a partir dos produtos que carrega consigo. O ideal do projeto inicial de cultura (moderna e emancipadora) não existe mais; o que se chama de cultura, na contemporaneidade, como produto, e ao mesmo tempo como tecido do capitalismo, já nasce com sua obsolescência programada.

Essa configuração requer indivíduos mais bem preparados para entender a dinâmica relacional e fluida em que estão inseridos e, como tipos sociais, por vezes são os nós centrais de matrizes repletas de pessoas posicionadas e interessadas em exercer poder sobre eles. Essa condição os leva a resistir ao sistema. Ser “antenado”, “tecno”, “pós”, ”virtual” e tudo que os mantenha competitivos e habilitados a ascender no meio esportivo é válido, desde que utilizado como meio e não como fim em si mesmo.

Lyotard (1989) iniciou sua tentativa de desmascarar a pretensão de legitimidade da ciência pela evidência de que ela não pode provar-se por si mesma. Exatamente nesse ponto, no fundamentalismo científico, é que reside o que ele chamou de condição pós-moderna. No esporte, e mais especificamente no futebol, os saberes associados ganharam projeção e respeito por serem intitulados ciência do esporte; cada saber disciplinar constitui-se como especificidade e carrega suas inscrições e materialidadesA como se fossem agentes legitimadores. Freqüentemente, essas ciências perdem a noção do contexto maior em que está inserido o jogador de futebol, que é a sociedade, impondo suas técnicas e tecnologias como se estas determinassem o que é certo, de uma forma geral, para o atleta. Nesse ponto, vale a pena ressaltar a problematização que Latour (2000) propõe quanto à formação e à fluidez da ciência e de seus derivados, além dos caminhos labirínticos de construção e ação da ciência.

Sendo assim, é importante problematizar o conhecimento, tornando a condição pós-moderna clara no que diz respeito ao direito de desafiar a ciência como única instância legitimadora do que é e do que não é conhecimento. Para tanto, se faz necessário aceitar que não existem certezas nas afirmações e descobertas científicas, mas formas posicionadas de explicação, versões legitimadas de saberes que não devem invalidar metodologias, porém situá-las, deixando claro que apenas uma perspectiva parcial, posicionada, pode gerar uma visão objetiva e ampla, com conexões claras e responsáveis (Haraway, 1995).

A condição pós-moderna nos faz problematizar a objetividade da ciência e de sua razão instrumentalizadora, além de questionar a sociedade e sua relação com os indivíduos. Deve-se compreendê-la em um estado de perda da confiança na cultura atual, midiatizada, que só parece existir como veículo de interesses previamente programados e instrumento de consumo. Essa condição gera a necessidade de outros paradigmas de ciência, assuntos intoleráveis no discurso científico clássico. Por outro lado, descreve certa fragilidade quanto a valores como segurança, saber e poder, mostrando que a cultura pode ser tão assustadora em sua versão opressora quanto na libertadora.

A permissividade total mostra-se culturalmente tão desastrosa quanto uma cruel limitação: poder tudo é tão angustiante quanto não poder nada. E no esporte, cruzar algumas fronteiras pode significar até a morte. A consciência da incerteza, pelos detentores dos saberes disciplinares no esporte, gera imenso desconforto para quem compreende a sua irracionalidade e raciocina com outra lógica que não a instrumental. Sob esse ponto de vista, não há segurança e previsibilidade sobre nada quando a cultura expressa valores e modelos de explicação para nossas condutas. Entretanto, na perspectiva de quem é ídolo ou consumidor, modelos são estabelecidos e seguidos de forma acrítica, sem nenhuma angústia; no máximo, se há desconforto, isto decorre da impossibilidade de aquisição da identidade ou do produto ao qual o ídolo se refere. Giddens (2001, p. 73) corrobora essa idéia quando afirma que “A cultura já não pode mais proporcionar uma explicação adequada do mundo que nos permita construir ou ordenar nossas vidas; entretanto, não há nada de misterioso no surgimento do fundamentalismo no mundo moderno tardio”.

 

O futebol na sociedade do espetáculo

O fascínio pelo espetacular, pelo fenomenal, pelo show imagético torna-se cada vez mais evidente na condição pós-moderna, o que não pode ser dissociado do desenvolvimento da tecnologia de informação, o qual, por sua vez, possibilita que os grandes eventos esportivos estejam ao alcance do mundo globalizado e façam parte do cotidiano e da cultura dos países (Debord, 1992; Rubio, 2002). Tampouco pode esse fascínio ser dissociado de transformações econômicas, que fazem do contexto pós-moderno um ambiente propício e disfarçador da racionalidade instrumental, que se utiliza da lógica cultural específica do capitalismo tardio, ou, em outras palavras, de irracionalidade.

É comum caracterizar a cultura atual como “sociedade do espetáculo ou de consumo” (Debord, 1992, p. 42), o que corresponde a aceitar que os países se fazem respeitar por seu poderio tecnológico, pelas mercadorias que produzem, trocam e consomem. Esse é um dos eixos centrais para a compreensão da cultura esportiva: tudo pode ser consumido. Se outrora o consumo era apenas de bens materiais com valor de troca, na atualidade tudo e todos são simultaneamente mercadorias e consumidores. Portanto, é necessário produzir os dois, demanda e objeto, na fluidez dos interesses, e essa produção é bem mais cara e ardilosa que somente a produção de mercadorias. O consumo de pessoas, produtos e serviços está pautado por sua circulação, estabelecida pela linguagem dada aos acontecimentos, como no exemplo de fenômenos que viram mercadorias, as quais, se forem humanas, passam a agregar, com sua imagem, valor a tudo em que tocam. Tendo por base os ensinamentos de Debord (1992), é possível compreender que a sociedade atual, particularmente no tange ao tema futebol, está totalmente contaminada pelas imagens, pela aparência do que realmente existe e não pelo plano da própria realidade. As imagens, seguindo os valores de quem as cria e as faz circular, estabelecem o que vem a se tornar parâmetro real.

Entendendo o futebol atual como um trabalho que envolve centenas de pessoas com saberes diferentes em condições de produção e ganho, observamos um imenso acúmulo de espetáculos. Aquilo que outrora era vivido pelas pessoas em seu círculo local, agora, mediado pelo sistema informacional de massa, ganhou alcance global e tornou-se, com o efeito gerado pela grande audiência, uma imagem. Nesse ponto, são vários os tipos sociais famosos que se tornaram heróis e ídolos instantâneos e que duraram como tal o exato período de tempo que suas imagens ficaram em circulação, pois, retirando-as de evidência, eles foram esquecidos tão rapidamente quanto haviam levado para ser fabricados e idolatrados.

No futebol atual, globalizado, as imagens e as mensagens dos meios de comunicação de massa criam e referendam tipos sociais específicos &– reis, fenômenos, bons moços, deuses, entre outros. Esses tipos são apresentados de acordo com os interesses de quem os torna visíveis, podendo também ser apresentados os demais tipos de um jogador (marido, religioso, filho, amigo) quando o interesse comercial se faz presente. Nesse contexto, tanto o tipo “jogador de futebol profissional” quanto aqueles que o assistem, e nele se espelham, passam a viver em um mundo de consumo permanente de tudo aquilo que foi associado ao tipo que lhes interessa: fatos, notícias, produtos e mercadorias.

O espetáculo do futebol segundo Foer (2002) é composto de vários elementos, dimensões e esferas de atuação; engloba um grande conjunto de atores e espectadores que fazem parte, simultaneamente, do mesmo contexto e de outros tantos variados em diferentes culturas; entretanto, estabelece uniformidades e padrões em alta velocidade. Aquilo que está em volta do assunto vira um imenso espetáculo: o atleta e tudo o que ele faz, inclusive fora dos gramados; o jogo, com suas questões técnicas, táticas, físicas e psicológicas, assim como os saberes envolvidos em cada uma; o uniforme, com toda a tecnologia desenvolvida por diversas marcas de materiais esportivos, os esquemas de patrocinadores e as disputas pelos tipos que levarão suas imagens ao sucesso de vendas; os contratos, que são preenchidos com cifras inimagináveis e geram um êxodo de jogadores, de todas as idades, em busca de maiores oportunidades de ascensão social, rumo a países do mundo todo; as chuteiras, que fazem milagres que os pés não podem acompanhar; os gestores, com suas estratégias de marketing e as notícias que, por serem produzidas diariamente e em horários considerados nobres, deixam de ser informações sobre os acontecimentos e se tornam, constantemente, especulações e sensacionalismo sobre pessoas e temas. Para Debord (1992, p. 32):

O espetáculo consiste na multiplicação dos ícones e imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massa, mas também dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que faltava na vida real do homem comum: celebridades, atores, políticos, personalidades, gurus, mensagens publicitárias &– tudo transmite uma sensação permanente de aventura, felicidade, grandiosidade, ousadia. O espetáculo é aparência que confere integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida. É a forma mais elaborada de uma sociedade que desenvolveu ao extremo o “fetichismo da mercadoria” (felicidade identifica-se com o consumo).

Pode-se entender que, no futebol, a relação entre as pessoas, principalmente aquelas em processo de formação, transformam-se e são construídas tendo por base a imagem e o espetáculo. O consumo da imagem e dos bens por ela induzidos ocupa o lugar do diálogo e do pensar que anteriormente compelia a ação participativa e transformadora da sociedade. Esse resultado é desastroso, pois leva as pessoas a um isolamento e à afirmação do “eu que tenho coisas”, para, logo a seguir, conduzi-las à massificação acéfala e devastada por uma inversão de valores do “eu que tenho e pertenço ao todo”. O espetáculo e seus atores passam a constituir-se em realidade e esta, em espetáculo, alimentando o círculo vicioso. Configura-se, então, a perda de fronteiras e de limites claros para as coisas, uma característica definidora do que se chama modernidade.

Com o assédio constante de imagens e informações, o indivíduo pode passar a viver uma vida idealizada, na qual a ficção tende a misturar-se à realidade e vice-versa. São jovens sonhando e acreditando que podem se tornar reis, fenômenos, heróis e que, baseados neste sonho, consomem produtos que os aproximam do objeto que o simboliza. Entre um jogo e outro, a vida continua. As ações rotineiras, como ir à escola, treinar e viver o cotidiano são mescladas com noticiários específicos, comerciais, jogos de diferentes campeonatos, programas personalizados, ou seja, o reforço diário do sonho e da vida cotidiana vão se alternando. Essa manipulação midiática afeta o reino das emoções e, obviamente, o processo de formação das crianças e dos jovens. Dessa forma, felicidade, raiva, justiça e solidariedade são apresentadas como espetáculo, em uma realidade própria e teleguiada conforme os conceitos de quem a produz.

Essas tecnologias informacionais de comunicação interferem na percepção e na formação de conceitos dos indivíduos. Uma sociedade espetacular, seja futebolística ou não, cria e reproduz uma forma de cultura própria. Sua conseqüência é a construção de uma sociedade com tipos sociais também próprios. No caso do futebol, além dos tipos serem superexpostos, supermanipulados, também são pauta de outras relações familiares que não as suas, aquelas invadidas por sua imagem. São geradas expectativas de mães, projeções de pais, disputas entre irmãos, embates entre profissionais, entre outras relações conflituosas.

Nesse processo, a mídia passa a ter peso fundamental no que se estabelece como cultural e socialmente relevante. O espetáculo define os parâmetros do que é socialmente aceitável e desejável, uma vez que é a afirmação da imagem tornada visível por ela mesma e não, como observa Debord (1992, p. 42), “a negação da vida que se torna visível”.

Não se pode esquecer que o mundo atual foi criado por nós mesmos; manipulado ou não, é governado por algo socialmente construído que, portanto, não precisa ser assim (Hacking, 2001). Nos esportes em geral, e no futebol de maneira específica, torná-los espetáculo pode gerar identificação popular, funcionar como vitrine política de uma ordem estabelecida pelo Estado, maquiar problemas de ordem social e de direitos humanos, recuperá-los, parar momentaneamente guerras e animosidades entre opostos políticos e religiosos.

Nos anos após aquelas Copas do Mundo nas quais a Seleção Brasileira de Futebol saiu vitoriosa (1958, 1962, 1970), houve efeitos sobre o país, gerando a imagem de campeão, de um povo orgulhoso identificado com a vitória. Como dizia Nelson Rodrigues, “a pátria de chuteiras”, mas que escondia atrás dessa imagem atrocidades econômicas de endividamento externo gigantesco e práticas nada democráticas de conduta do Estado.

Esse mesmo futebol, com o passar do tempo, apresentou nas Copas do Mundo de 1994 e 2002, nas quais a Seleção Brasileira de Futebol também foi vitoriosa, a referência de um país que continuava a gerar talentos e a se desenvolver como país. Seus atores, antes reis e manés, passaram a ser chamados de “fenômenos” pela sociedade que os constrói e consome, apresenta-se democrática e faz crer aos cidadãos que estes têm poder, oportunidades e liberdade de escolha para consumir os sonhos e os produtos que lhes são ofertados.

Campbell (1990, p. 64) faz uma análise do consumo, identificando suas relações com o romantismo, o sonho, a busca imaginária de realização: “a atividade essencial do consumo não é a seleção, a aquisição ou o uso real dos produtos, mas a procura imaginária do prazer a que se presta a imagem do produto”. A forma como as pessoas vivem na sociedade atual demonstra que o consumo transformou-se em atividade substitutiva da busca de formação pessoal. A condição de possuir objetos tomou lugar das condições de formação que levam os indivíduos a ser alguma coisa. Essa tendência ao consumismo desenfreado pós-moderno é pautada por uma lógica instrumental que define os sujeitos de acordo com aquilo que consomem. Não é raro ver, na época presente, crianças, jovens e adultos trocando possibilidades de aprendizagem e de experiências coletivas pelo consumo de aparatos tecnológicos que os levam à competição e à individualização ou, no máximo, a um novo modelo de coletividade intermediada pela tecnologia.

Aparatos ou inscrições tecnológicas como a televisão, de maneira geral, e o computador, ainda de modo restrito, se transformaram na janela para o mundo da maioria das pessoas. Por conseguinte, esses equipamentos são fontes de dados, sites, imagens, signos, sentidos e a esse aglomerado de informações, passou-se a chamar hoje de cultura. Esses conteúdos, como no caso dos sites esportivos, são propaganda ou fragmentos de informações, por vezes sem profundidade, a alimentar o imaginário atual; esteticamente belos e fascinantes pelos efeitos, trazem no apelo visual o encantamento, embora nem sempre favoreçam o entendimento de fatos e conteúdos. O sujeito que absorve essa quantidade de informações de forma passiva, e é fruto de uma sociedade extremamente desigual em termos de possibilidades de formação, passa a ser somente condicionado reflexamente, como o cão do clássico experimento de Pavlov na década de 1920 (Pavlov, 1971), ou opera sobre a sua própria passividade e articula mecanismos de resistência que o levam a uma interação posicionada dentro do sistema.

Quem não conhece a lógica do sistema pode funcionar em meio a uma engrenagem que, na maioria das vezes, leva a não se dar por conhecer e, no máximo, consegue diferenciar sua boa capacidade de informar-se acerca de sua má formação. Por outro lado, quem conhece a lógica do sistema pode, ao reconhecer a engrenagem, entender mais claramente sua forma de funcionar e, com isso, afetar seu próprio processo formador, ganhar cultura e ir além do informar-se. Diante de qualquer lógica, poderá se posicionar e resistir, enfrentando o sistema se assim o desejar, apresentando os seus valores à sociedade. Não são maioria os Sócrates, Falcões, Leonardos, Caios e Tostões, embora se possa arriscar que todos estes tiveram em comum a facilitação de acesso a algum grau educação formal e/ou de oportunidade.

Portanto, esses dois caminhos, trilhados por quem conhece o sistema e resiste a ele e por quem não conhece o seu funcionamento e se submete a ele, podem gerar pessoas tão diferentes, embora pareçam apresentar um processo similar na sociedade do espetáculo. Aquele que se auto-refere como o tipo “jogador de futebol profissional”, e as materialidades que o circundam como mercadoria &– bola, chuteira, camisa, tênis, entre outros tantos artigos &–, se confundem na vida prática e cotidiana com os valores do lucro, do mercado e dos repertórios que circulam na mídia e nas vias correntes de informação como valores do tempo atual. O nível de subordinação de cada um é facilmente identificado no modo de relação que tem com os objetos de consumo e com o seu modo de consumir. Tais objetos, para o atleta, não são feitos somente para atender às necessidades de uso; são também artigos que mantêm o sistema do capital circulando e posicionam o esportista como um valor agregado a eles. E quando esses atletas, por meio de suas capacidades, demonstram seu valor para a sociedade, passam eles mesmos, e tudo o que tocam, a constituir objetos de desejo. O desejo dos fãs e admiradores oscila entre aquilo que o ídolo faz, aquilo que ele tem e aquilo que parece existir a par do que ele tem e faz tornado visível pelos mais diversos tipos de veículos de comunicação nos quais circulam repertórios verbais, cheios de sentidos e significados sobre ser jogador de futebol profissional.

Em suma, há uma forma utilitária e instrumental de produzir e obter conhecimento, gerando a vida, os objetos, as realidades, as emoções, as relações sociais, com base nessa estruturação de pensar o indivíduo e o mundo. Essa “universalização” ganhou a nomenclatura de globalização, na qual os modos de produzir objetividades e subjetividades se tornaram iguais, pautados por um único sistema socioeconômico e político que praticamente uniformiza a humanidade. Saberes e culturas locais vêm paulatinamente perdendo espaço para o longo alcance da banda larga e da informação em tempo real. A estrutura desse sistema condiciona as formas de sociabilidade e estas, por conseguinte, constituem realidades que a confirmam. O capitalismo “cria um mundo à sua imagem e semelhança” (grifo nosso) e quase todas as estratégias de formação das pessoas são meros mecanismos de manutenção e preservação de suas condições de realidade. Entretanto, isso não significa que o indivíduo não tenha vontade ou possibilidade de resistir. Pelo contrário, resistimos à nossa maneira e somente precisamos de uma maior gama de possibilidades, oportunidades e formação educacional crítica que nos habilite para tal. O que a sociedade globalizada faz circular e uniformiza é mais que o capital; são valores, crenças, modelos de relações sociais, sonhos construídos tendo por base valores situacionais, maquiados pela propaganda e demaquilados pela falta de condições igualitárias de obtenção e realização destes.

No contexto esportivo, esse mundo, e mais especificamente o mundo do futebol de campo, tornou-se sem pátria, sem origem, sem amor à camisa e com uma história que foi se transformando. Essa transformação é verificada na mudança do que outrora era considerado valor, a paixão pelo que era defendido e agora é somente algo que gera proventos financeiros. Na atualidade, esse contexto se mostra perfeito para a construção de ídolos, personagens e fenômenos que compactuam quase de forma tayloristacom o sistema regido pela lógica instrumental e que, não raras vezes, camufla as desigualdades, universaliza a exclusão, a apartação e a segregação.

Hoje, o futebol de campo, que já apresentou várias funções sociais no decorrer de sua existência, é emblema do modo como a sociedade se configura e tem em seu profissionalismo todas as características supracitadas. Justamente por essas peculiaridades, existe falta de disponibilidade reflexiva por parte de seus integrantes para analisar e divulgar os mecanismos construtores da sociedade e que são determinantes das relações humanas. É possível aventar que essa ausência de disponibilidade seja interessante para vários integrantes do sistema. O futebol de campo e a formação do jogador de futebol profissional, nas suas mais diferentes categorias, tornaram-se excelente exemplo da forma de funcionamento da sociedade na condição pós-moderna.

As promessas iluministas de um mundo melhor, de conhecimento científico que melhorasse e construísse uma sociedade moderna, do progresso e da felicidade ao alcance de todos, se tornaram meras ilusões. Claro que muito se realizou; no entanto, isso se voltou para muito poucos e à custa de muita desigualdade e sofrimento para cidadãos que acreditaram em uma sociedade justa e igualitária. Esse padrão parece se repetir no futebol de campo profissional quando este se torna meta de milhões de jovens que, não tendo acesso a mecanismos de formação pessoal e profissional, se entregam a uma rotina de treinamentos, de controle de seus corpos, mentes e interesses em busca de ascensão social, poder de compra, auto-realização e diminuição das desigualdades das quais são vítimas.

O atleta, que atua como jogador de futebol profissional, com sua subjetivação e razão reflexiva, sua capacidade crítica, gestada e gerada com o tempo da história, da memória e das experiências, pode ir pelo ralo ou, no máximo, para a sala de manutenção, ou ser submetido a cirurgia, ou, ainda, pode funcionar como mola propulsora do sistema em que ele mesmo está inserido. Suas possibilidades de autonomia e emancipação, que dependem de conhecimentos plurais e singulares, advindos de sua relação direta com uma sociedade que deveria esclarecê-lo e não eclipsá-lo, lhe são vedadas. O atleta, assim como o esporte em si, virou produto como fala Melo (2008).

O modo como a pessoa passa a agir é função direta dos constitutivos sociais construídos pelo seu momento histórico e social e, aparentemente, cristalizados no formato de matriz, e também passa a confirmar os valores dos tempos curtos, vivido e longo, aqui descritos como pós-modernosB. Essa forma como a sociedade se apresenta, no contexto do futebol, deve ser descrita, esmiuçada, interrogada e compreendida em suas particularidades. Do ponto de vista da psicologia social, isso se faz pela análise da matriz social que nos dá pistas desse processo de construção das relações sociais e do tipo “jogador de futebol profissional”, assunto que merece ser pesquisado e compreendido profundamente para maior possibilidade de reflexão.

 

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Endereço para correspondência
Av. Dr. José Hermano, 300 casa G5-33
CEP 74865090. Goânia/ GO - Brasil
E-mail: pereiraab@gmail.com

 

 

A Inscrições e materialidades são termos que, segundo Latour (2000), se referem aos aparatos técnicos produzidos pelo fazer científico e saberes que legitimam as categorias de análise e a própria ciência.
B Tempos curto, vivido e longo são descritos por Spink e Frezza (1999) como os tempos da história, dos acontecimentos e da interanimação dialógica, respectivamente.

 

Sobre a autora

Adriana Bernardes Pereira
Professora Doutora da Universidade Católica de Goiás

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