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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.1 no.2 Juiz de Fora Dec. 2007

 

TEMA EM DEBATE

 

CEDET – Um programa de sucesso na educação de dotados e talentosos: entrevista com a Profª Dra. Zenita Cunha Guenther*

 

 

Carlos Eduardo de Sousa Pereira, Fernanda do Carmos Gonçalves

 

 

1- O que a senhora entende como educação inclusiva e o que deveria ser modificado para reduzir os obstáculos ao oferecimento de uma educação de qualidade para todos os alunos?

Pelo ideário filosófico, Educação Inclusiva envolve uma maneira de olhar a escola pública como uma instituição acessível a todos os alunos da comunidade:

1ª. – A todas as crianças, jovens ou adultos da comunidade, sejam que características tiverem ou deixarem de ter, em todas as escolas de todo e qualquer nível, ou localização, são assegurados por direito, e concretizados na prática, os seguintes espaços:

- espaço social (matrícula, freqüência, registros, participação contínua e planejada);

- espaço físico (participação em uma turma regular, meios para movimentação e comunicação, lugar definido em sala de aula com um grupo de faixa etária compatível);

- espaço psicológico (pertencimento incondicional ao coletivo da escola, ao corpo discente regular e à turma de alunos em que está inscrito);

- espaço pedagógico (participação regular em todas as atividades grupais e individuais que respondam aos seus interesses e necessidades, ou seja, todas as situações em que puder participar, quiser acompanhar e/ou for aconselhável desenvolver).

2ª. - Todos e cada um dos alunos, independente de qualquer caracterização física, social, mental ou escolar, têm assegurado resposta às suas necessidades educativas específicas, nas modalidades, formatos e condições apropriados ao seu próprio projeto educativo, independente do que fazem os outros alunos.

A dificuldade, a meu ver, está justamente na necessidade de tratamento educacional que se oriente a atender é a cada indivíduo sem prejuízo do grupo e ao grupo sem prejuízo para o individuo. Essa é também a marca da sociedade informatizada atual, onde os serviços, consideração e contatos com as pessoas são, ou procuram ser, em contexto autônomo individual. A grande falha da “cultura industrializada”, vivida na escola pela adoção do modelo da “fábrica”, foi priorizar um “coletivo”, nem sempre real, ao indivíduo concreto e real. Vencida a síndrome do “agrupamento”, a educação inclusiva não terá grandes problemas em conduzir seu trabalho educativo. Nas palavras da Mestra:

“Creio que um dos pontos a focalizar é o já velho princípio de individualizar a ação educativa, dentro de um ambiente mais rico de estímulos e oportunidades para a aprendizagem e formação de cada um dos componentes da classe, inclusive do próprio Mestre...”(Helena Antipoff, 1973).

 

2- Existe uma distância muito grande entre o que se diz e o que se faz em nosso País. A educação segue os mesmos princípios. A legislação na área educacional é avançada, mas carece de legitimidade. Como contornar esse problema?

Sinceramente, não vejo como vencer essa barreira sem uma mudança profunda e ampla no modo de ser e pensar das pessoas, o que é quase impossível em uma cultura verbalista como a nossa. Sobre isso Helena Antipoff se refere, em várias situações:

“A palavra é traiçoeira: ela resolve magicamente as dificuldades, mascarando-as apenas (...) mas quando o mestre deixa de atender algum elemento significativo ou trata-o de maneira leviana – o fracasso não tarda a evidenciar as falhas”. (Helena Antipoff, 1971).

“... a escola de nossos dias continua a ser, apesar de todas as recriminações de pedagogos e sociólogos, uma instituição estritamente acadêmica, verbalista e memorizadora”. (Helena Antipoff, 1971)

“(...) a escola mata o espírito: indiferente à realidade, rotineira, atrofia a curiosidade infantil, faz amolecer o corpo e paralisa a mão instrumental do Homo Faber. Por quê? Porque supervaloriza o verbo, a linguagem, em detrimento das habilidades sensório-motoras e da inteligência prática”. (Helena Antipoff, 1958).

Sob esse referencial linear e verbalista, todos os problemas do país – incluindo Educação – são “resolvidos” por palavras, ou seja, “resolve-se” a situação, por mais complexa que seja, por meio de leis, decretos, ordens, resoluções e instruções. Isso feito procura-se não pensar mais no assunto, a não ser para apontar que “a solução está na lei” ou se queixar que ninguém cumpre a lei. O acúmulo de legislação reflete a perpetuação desse processo viciado: mais discussão, mais documentos, pareceres, análises, críticas e análise crítica das análises e críticas... e o problema, que não fora resolvido pelas leis anteriores, agora “fica resolvido” pelo mesmo caminho e leva previsivelmente aos mesmos resultados. É claro que nada fica resolvido na realidade... e nem se espera que fique.

Leis não mudam a realidade, ações mudam a realidade. Leis regulam situações coletivas, mas não resolvem problemas onde não existe ação, mandando que aconteçam, ou onde elas já se instalaram exigindo que não aconteçam. Na “criação do mundo” segundo o Gênesis, quando Deus disse: – Haja luz, a luz apareceu. Mas quando uma lei diz para haver alguma coisa que não existe, nada indica que isso vai “aparecer...”.

 

3- Os professores, geralmente, reclamam das dificuldades de se implementarem estratégias educacionais que tornem o ensino uma experiência estimulante para todos os alunos. Como educadora, o que a senhora julga apropriado nesse sentido?

Compreendo a frustração dos professores, como grupo, embora haja muitas diferenças em nível individual. A nossa educação é demasiado formalizada, regulada e engessada por toneladas de leis, decretos, resoluções, portarias, instruções... que chovem diariamente sobre os professores, não deixando a menor fresta para que possam tomar decisões ou exercer autonomia profissional. Os professores obedecem, tal como no ditado português “Que remédio!...”. Mas esse fenômeno alcança mais fundo do que parece.

Educação é força ambiental, e “ambiente” é uma rede espiralada que avança indefinidamente no espaço e no tempo, incluindo elementos diversificados, filtrados pelas mais diferentes vias de alcance e significação, a maioria fora do controle do indivíduo, interpretadas como “acaso”. Mas não são: no mundo de hoje existem muitos fatores determinando o que acontece no dia-a-dia das pessoas, mesmo que não haja consciência de que tal está se passando. Dois desses grandes padrões de diferenciação envolvem a questão Norte-Sul e a condição Leste-Oeste.

A questão “Norte-Sul”, geralmente expressa pela rotulação “primeiro mundo–terceiro mundo” ou “países desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”, implica superioridade de uns países sobre os outros, não em termos do que “são” nível de essência, qualidade e substância, mas do que “possuem” no nível de matéria, forma e quantidade. A condição “Leste-Oeste” volta-se para interrogações de natureza não material, tais como a essência do que constitui a vida humana. Não é segredo que a posição materialista de lidar com eventos humanos na Educação encontra pontos de estrangulamento que se opõem a qualquer filosofia defensável de formação pessoal, por exemplo:

- Fragilidade ética - tudo o que se diz, pensa ou faz, ou se deixa de dizer, pensar e fazer, vem ancorado em bases materiais, tais como “mercado” (financeiro, globalizado, de consumo, de produção, de trabalho) ou “carência” (de estruturas, de recursos, de equipamentos, de tempo). Em suma: dinheiro resolve todos os problemas do homem... Entretanto a Vida persiste em desmentir essa afirmação. Sociedades, países, grupos até mesmo indivíduos, que conseguem chegar ao patamar de posses materiais que permitem ser aceitos no “primeiro mundo”, não melhoram sua maneira de ser como seres humanos, ou sua vida, em termos de qualidade e realização pessoal. Ao contrário, nessas situações têm aumentado o nível de infelicidade pessoal, suicídio, solidão, angústia e desespero, a diversidade de doenças físicas, mentais e emocionais, as evidências de deterioração moral e social, alienação, desumanização, insensibilidade, corrupção, pornografia, violência...

- Conflito de valores - regra geral, os valores humanos na educação entram em oposição aos princípios da filosofia materialista. A presença de materialismo ostensivo enfeitado com termos palatáveis, tais como “excelência”, no contexto de louvor a um suposto senso de humanismo, como “solidariedade”, traz para a escola contradições impossíveis de serem conciliadas, levando alunos e professores à total imobilidade em termos de crescimento pessoal coerente. Por exemplo: valores como Igualdade x competitividade - chegam no nível do aluno com a impossível mensagem de que ele tem valor intrínseco igual aos outros, porque todos são iguais, mas terá mais valor se for melhor que os outros! Diversidade x homogeneização – um princípio mais praticado que apregoado, no meio educacional, glorifica a “diversidade” entre pessoas e grupos, ao mesmo tempo em que força “homogeneização” pelo viés econômico. Na verdade a aceitação da “diversidade” acontece em um discurso relativamente vazio em espaço delimitado, sem perturbar a relação entre os “que têm” e os “que não têm” poder material. Autonomia x hierarquia – é um conflito visível para o grupo inferiorizado, embora não muito claro para o que está dominando. Autonomia é um valor básico na vida igualitária, que exige pessoas aptas a pensar, criticar, escolher, ser sujeito de sua vida, decidir, tomar posição e assumir responsabilidade por suas ações, comportamentos e reações. Mas a escola, como também a sociedade, é formatada em imbatível “hierarquia”, alocando valor não à pessoa, mas ao cargo, prestígio, título, proteção política ou outro elemento externo, expresso na rede de interações em termos de submissão, obediência e aceitação de algo pré-determinado. Maslow (Memorian Volume, 1972) comenta com humor que numa hierarquia ninguém se respeita e todos se desprezam, pois “os que estão acima são autoritários e arrogantes, os abaixo são incompetentes e sabotadores e os ao lado são invejosos e desleais...”.

A vivência simultânea de valores contraditórios faz crescer nos meios escolares o “currículo oculto”, pelo qual os alunos vivem experiências contrárias ao que é ensinado no “currículo expresso”. Como se aprende menos o que é “explicado” e “pregado”, e mais o que é “vivido” e “experienciado”, o currículo oculto é melhor aprendido que as matérias ensinadas. Nessas condições, os educadores não têm hipóteses de alcançar seus objetivos, e não podem oferecer algo muito sólido para o desenvolvimento e formação do caráter dos alunos, ou inspirar sua vontade de aprender e crescer.

 

4- O CEDET é uma experiência bem-sucedida na área de educação especial que tem sido multiplicada em diversas cidades brasileiras, mesmo sem o apoio do Governo Federal. Como surgiu a idéia do CEDET e qual o referencial teórico adotado?

Essa idéia “surgiu”, se assim posso dizer, quando, por razões familiares, vim do exterior para ficar no Brasil. O Rotary Lavras Sul fez em 1992 uma homenagem pelos 20 anos de criação da APAE, que também nasceu em nossa casa... e é uma outra história...

Quando o Rotary achou boa idéia tentar um trabalho com as crianças mais capazes, comecei a visualizar qual seria o melhor caminho a seguir. Já conhecia alguns bons programas no mundo, visitei outros, troquei impressões com boa parte do colegiado internacional que sempre cultivei, desde os anos de mestranda na Universidade da Flórida (UA), e cheguei à conclusão de que não devia “adotar”, “implantar” ou “seguir” o que existe “lá fora”, porque não reflete nossas necessidades e características. E comecei a desenvolver, no dia-a-dia, com muito estudo, suor e algumas lágrimas... o que hoje é conhecido como CEDET: uma metodologia para trabalho educativo com crianças dotadas e talentosas, e o espaço físico e social onde esse trabalho acontece.

Como metodologia, o CEDET (Centro para Desenvolvimento do Potencial e Talento, Guenther, 2002; 2006, 2007) desenvolve um programa para estudantes dotados e talentosos, integrado ao sistema escolar, visando diminuir a distância entre os resultados de estudos científicos e a prática diária no trabalho educacional. A identificação caracteriza-se pela busca contínua e sistemática dos alunos dotados na população escolar, sem esperar que “apareçam” ou sejam “encaminhados”.

O referencial teórico é construído sobre bases do pensamento humanista, expressos em Helena Antipoff, Abe Maslow, Art Combs, entre outros, em que o projeto educativo focaliza, ao mesmo tempo, o potencial sinalizado e as áreas básicas à formação humanista: 1. Desenvolver o “auto- conceito”; 2. Cultivar sensibilidade e respeito ao “outro” e 3. Construir um quadro referencial de “visão de mundo”, amplo, rico e bem-informado.

Com esse referencial, procedemos à organização pedagógica do Centro, em três Áreas de Estimulação: a) Organização Social, Comunicação e Humanidades – focalizando a noção e presença do “Outro”, experiências relacionadas à vida grupal e inter-relações humanas, organização social, comunicação e mídia, vivência comum com pares, com outras crianças dotadas e variados adultos; b) Ciência, Investigação e Tecnologia – voltada para a formação da “visão de mundo”, abrindo portas para o conhecimento científico, possibilitando aquisição de instrumental e métodos empregados pela ciência para abordar, compreender e pensar o mundo de forma organizada e racional; c) Criatividade, Habilidades especiais e Expressão – promovendo auto-conhecimento e formação pessoal, através do cultivo e exploração da esfera interna dos próprios sentimentos e emoções, apreciação da beleza, compreensão e cultivo do corpo, aperfeiçoamento de qualidades pessoais, autocontrole, disciplina e auto-regulação no convívio orientado para objetivos próprios e em comum.

A dinâmica de ação envolve estabelecer uma rede informal de influência em que a família, a comunidade, a escola são chamadas a participar do processo educativo de cada criança, em diferentes momentos. O processo de estimulação do domínio de capacidade sinalizado é regido por um Plano Individual feito semestralmente pela criança ou jovem com seu facilitador, prevendo 8 a 10 horas semanais de trabalho educativo. Um plano pode incluir medidas administrativas, como aceleração ou compactação de currículo, e atividades de enriquecimento e estimulação que atendam às características, inclinações, interesses, necessidades, estilo e ritmo de aprendizagem de cada criança.

Por sua metodologia relativamente simples e efetiva, em que uma equipe de 10 professores especialistas, complementada por instrutores voluntários, atende a cerca de 800 alunos, o CEDET vem atraindo atenção dos sistemas de ensino e expandindo-se pelo Brasil (Espírito Santo, São Paulo, Tocantins), alem de Minas Gerais onde existem vários centros trabalhando ou em organização.

 

5- Atualmente o capitalismo e a sociedade privilegiam a ótica do lucro e do sucesso. Mesmo os pais, ao matricularem seus filhos, procuram escolas onde existam melhores possibilidades para atingir esse objetivo. Como essas questões são consideradas no desenvolvimento dos alunos atendidos pelo CEDET?

A maior força de um programa de educação informal está em criar um “ambiente” onde os princípios são “vividos” em vez de “explicados”. Em termos pedagógicos digamos que isso implica minimizar a ação do “currículo oculto”. É o que fazemos no CEDET, em todas as relações, interações e momentos, no dia-a-dia com alunos, facilitadores, pais, professores, instrutores voluntários, estagiários, visitantes... todos os que ali estão fazem parte desse ambiente de trabalho, responsabilidade, autonomia, respeito, compromisso...

A questão dos bens materiais é sempre presente: cerca de 60% dos nossos alunos são de classe pobre, escolas públicas e periferias, portanto, para começar, somos pobres. Mas não é assim também o nosso país? Acho que a diferença está em que nós não nos “orgulhamos” nem nos “envergonhamos” de ser pobres, e nem usamos “pobreza material” como desculpa para não buscar com afinco os objetivos a que nos propomos, em todos os níveis, inclusive de recursos materiais. Por exemplo, desde 2005 estamos envolvidos com esse intercâmbio internacional, que nos custa algum dinheiro (modestamente falando...). A União Européia nos financia até 75% das despesas – mas ainda temos que conseguir cerca de 1000 reais para cada aluno que vai viajar. Até o momento já foram ao exterior mais de 30 alunos, e há um bom número se preparando para ir, a cada ano. O que fazemos: no momento em que uma viagem é aprovada, procuramos o recurso para aquele evento – na comunidade, com os pais, com a venda de nossos livrinhos... e até mesmo em nossos próprios bolsos de professores (quando “já falta pouco”...). Ao mesmo tempo os meninos se preparam para a viagem, estudam a língua e a cultura do país a visitar, fazem seus contatos, organizam as apresentações sobre o Brasil, enfim, a viagem é vivida “durante” e não “após” a busca do recurso. Para as crianças essa situação é enfrentada como um problema situacional (é preciso juntar essa quantia) e não uma condição estrutural (não temos recursos). A primeira atitude energiza ação, e idéias aparecem; a segunda inibe ação e as pessoas desistem. Notam a diferença? Uma atitude cultivada em situações como essa ajuda a formar a sensação de “ser capaz de buscar” o que precisa, contrária à idéia de que “precisa ter dinheiro”, para resolver os problemas.

 

6- Existem vários termos para se designarem os alunos que se destacam por um potencial superior. O MEC adota o termo superdotação/altas habilidades. Qual termo a senhora considera mais apropriado? Por quê?

No nosso trabalho preferimos usar os termos mais comuns no cenário internacional: dotação (para capacidade natural) e talento (para desempenho superior). O termo “gifted” (dotado) aparece em alguns autores, como Miraca Gross, modificado por adjetivos “very gifted” (muito dotado) ou “highly gifted” (altamente dotado), mas essa gradação sugere identificação precisa em um arco de características medidas, o que nunca foi comprovado empiricamente (Freeman, 1998).

A legislação brasileira desde 1971 fala em “superdotado”, que nos documentos atuais do MEC aparece como “altas habilidades/superdotação”. Envolvida como estou na área há mais de 40 anos, não posso deixar de observar que, por interpretação ou ênfase, foram sendo inseridas em nível oficial modificações no mínimo curiosas: “giftedness”, do inglês americano (em português: dotação), levou ao Superdotação, rejeitado e conotado; mas a emenda não melhorou nada... A expressão “High Ability”, do inglês europeu (em português: capacidade alta) ficou sendo Altas Habilidades, no plural, o que, além de impróprio como conceito, contém erro de tradução. Parece que as traduções e interpretações situacionais introduzem conteúdo amparado mais em lealdades pessoais que estudos teóricos. A papelada oficial vai englobando tudo com hifens e barras, e escrevendo suas próprias definições apoiadas em argumentos do tipo “no meu entendimento...”, o que traz insegurança e rejeição aos meios escolares.

A meu ver, tal confusão é desnecessária, pois há conhecimento disponível, amplamente aceito nos meios científicos, especificamente em Gagné (1999), que apresentou uma conceituação clara para definição, desses termos, e continua a acumular evidência comprobatória: DOTAÇÃO - reflete presença e uso de capacidade natural, que se expressa espontaneamente sem aprendizagem intencional ou treino; TALENTO - indica notável desempenho, conhecimento ou habilidade sistematicamente desenvolvido, em alguma área da atividade humana. Talento, com sua origem enraizada mais em “aquisição” do que em “presente”, é um termo bem aceito, embora haja explicações diferentes em alguns autores, como Gardner (1994), que chama aos talentos “inteligências”, enquanto Gagné (2004) vê na dotação a “matéria-prima que treino, exercício, prática e acaso transformam em talentos”.

A metodologia de identificação do CEDET encontra bases para diferenciação nos estudos sobre Domínios de Capacidade Humana, (Gagné, 1994, 2003), derivados das funções cerebrais básicas (Clark, 1984). Tal diferenciação sinaliza pelo menos quatro áreas de aptidão, potencial e predisposições contidas no plano genético, expressas no ambiente por variados canais de interesse, atividade e desempenho: Inteligência (função cognitiva); Criatividade (função intuitiva); Capacidade socioafetiva (função afetiva) e Capacidade física (função física).

 

7- É comum em vários países identificar os alunos mais capazes e agrupá-los em salas ou colégios especiais. A senhora é a favor dessa estratégia?

Não diria que é comum, mas existem casos. Nesse ponto as idéias de Gagné ajudam a esclarecer: escolas e classes especiais para “dotados”, destinadas a desenvolver por via formal a capacidade natural do aluno, não trazem outro benefício a não ser acúmulo de conhecimentos e adornos intelectuais. Ao que se sabe, a capacidade desenvolve-se por experiência de vida e educação não formal, numa dimensão de tempo não inferior a 5 anos (Galagher, 1996).

As escolas especiais para treinar, exercitar, desenvolver um “Talento”, ou seja, instalar e aperfeiçoar desempenho em alguma área, são úteis, mas não chegam a desenvolver potencial e capacidade. Por exemplo, escolas de música, de matemática, de lutas orientais, de informática trazem resultados imediatos, seguros e visíveis. Mas há um problema: o talento é uma expressão concreta em uma área específica de desempenho, e mesmo quando altamente desenvolvido não se transfere para outras áreas. Desenvolver um domínio de capacidade é um processo longo, fluido e informal, sem conexão visível com aquisição de conteúdos por ensino, exercício ou treino, mas com a vantagem de propiciar transferência e expressão em diversas situações de desempenho, posicionamento e decisão, ao longo da vida.

Portanto, essas iniciativas têm de ser olhadas dentro do contexto maior da educação: A educação formal segue o seu caminho regular, com maior ou menor grau de rapidez e facilidade para o aluno mais capaz, promove a interação e integração no grupo de coortes e na comunidade, mas só por acaso desenvolve sua capacidade. Os programas educativos complementares e suplementares desenvolvidos fora do contexto formal da escola, que se empenham não em oferecer conteúdo informativo, mas em minimizar o acaso, ampliar a experiência de vida e favorecer situações de educação não formal, são mais promissores no processo de desenvolver o domínio de capacidade onde há potencial superior à média do grupo comparável.

 

8- O trabalho realizado no CEDET é metodologicamente diferenciado em relação aos demais projetos verificados no País. Quais as principais contribuições a senhora destacaria nesse trabalho?

O CEDET é essencialmente um espaço de apoio, complementação e suplementação educacional ao aluno excepcionalmente dotado e talentoso, matriculado nas escolas da comunidade. Busca essencialmente desenvolver a capacidade, talento e potencial das crianças identificadas, promovendo oportunidades não formais para interação e convivência com outros alunos dotados e talentosos de diferentes idades, escolas, classe social, estilo de vida, interesses e tipos de talento, e estimulação de qualidades pessoais, valores, consciência da diversidade, igualdade e diferenças entre as pessoas, pela vivência assistida em diversas situações de vida e interação.

O Plano Individual organiza participação em Grupos de Interesse, Projetos, Grupos de Trabalho, Encontros Gerais, bem como Projetos Individuais, Estudo Independente, Trabalho Voluntário, Orientação Pessoal, ou outro caminho que melhor possa abordar as necessidades e interesses daquele aluno. A avaliação do processo educativo segue uma espiral, com momentos de reflexão em sessões regulares de acompanhamento semanal, e avaliação sistematizada a cada semestre. A escola é integrada como co-responsável, e para cada escola inscrita no CEDET existe uma pasta onde o processo vivido por cada aluno é registrado e documentado.

Para mim é difícil resumir essas idéias em termos de contribuições específicas, porque eu as encheria de tantos detalhes que inutilizaria o objetivo da entrevista. Vou anexar uma bibliografia, incluindo o mais recente artigo sobre o CEDET como metodologia (Guenther, 2007), e vocês talvez possam encontrar algo mais útil a essa resposta.

 

9- A senhora afirma, com base na lei das probabilidades, que cerca de 3 a 5% da população geral poderia ser agrupada excepcionalmente superior à média em alguma área de desempenho ou conhecimento. Porém, em 2005 apenas 1.928 alunos de um universo de 56.471.622 foram identificados como superdotados, segundo o Censo Escolar. Quais são as maiores dificuldades que impedem a identificação e o estabelecimento de projetos de desenvolvimento para esses alunos?

... e se você pensar que desses poucos mais de 500 estão em Lavras... está respondida a pergunta. Pela metodologia do CEDET as crianças dotadas e talentosas são ativamente procuradas, em todas as escolas da comunidade, todos os anos. Os outros programas geralmente esperam que elas “apareçam”, sejam “encaminhadas” ou “indicadas” por alguém, o que enraíza pelo menos duas sérias distorções (Freeman, 1998): 1ª. - Crianças dotadas e mais capazes nunca “aparecem” na escola, porque ali são “invisíveis” por razões que já estudamos e descrevemos em nossos artigos sobre identificação. Portanto, o número que se faz “enxergar” é ínfimo. 2ª. - Grande parte dessas crianças assim “identificadas” é enviada por médicos, psicólogos clínicos, professores irritados e pais desesperados. Essas “indicações” revelam sempre crianças “com problemas”, o que tende a mostrar a população de dotados e talentosos como “problemática”. Mas houve “seleção embutida” no processo: essas crianças apareceram, não por suas qualidades, mas pelos defeitos, não pela capacidade, mas por “dificuldades”, o que não acontece com a vasta maioria das crianças dotadas “invisíveis” na escola, e pessoas mais capazes e produtivas, em qualquer idade.

 

10- Nos últimos anos verificamos um incremento no número de trabalhos com alunos talentos. E uma maior preocupação do Governo Federal em termos orçamentários. Quais as tendências para os próximos anos? O que pode surgir em termos de avanços? E quanto ao CEDET?

Começando pelo final, como fazem as crianças de 4 anos, para nosso trabalho não tem havido qualquer incremento do governo federal ou estadual, a não ser no sentido contrário: apesar de aprofundar e ampliar resultados e área de atuação, o CEDET perdeu o apoio que recebia do MEC (SEESP e FNDE) desde 1996, e apenas manteve o patamar de ajuda estadual recebido da SEE-MG em 2001. Quem efetivamente vem estimulando e mantendo os CEDETs, em Lavras e outros lugares, são as Prefeituras! Foi amplamente divulgado que o MEC está “investindo” considerável montante de dinheiro federal para “incentivar essa área”; nós tentamos por três vezes pleitear participação do CEDET, mas fomos rejeitados. Mesmo argumentando com dados atuais e submetendo Plano para trabalho conjunto, parece que o CEDET (ou nós, quem sabe) está sempre fora de um ou outro critério adotado pelo MEC. Portanto, não temos muito a dizer sobre uma “maior preocupação do governo federal...”.

Penso que se houvesse de fato “preocupação” teria havido pelo menos uma avaliação dos programas existentes no país (que não são muitos), verificando o que devia ser apoiado ou modificado, antes de se sair apregoando no Brasil e exterior, com altíssimos custos, uma “política de núcleos” atrelados a “cartilhas” que parecem se modificar ao rolar da carruagem, com referenciais teóricos que, na minha modesta opinião... são... hum... no mínimo debatíveis. (E por que não os debatemos? Por falta de interlocutor...).

Para ser absolutamente cândida como merece uma entrevista, essa publicidade toda fez bem ao CEDET, pois, cada vez que se “lança” propaganda oficial, os jornalistas buscam conhecer o CEDET, fazem comparações e mostram dados, efetivando o que ouvimos nos conselhos mundiais - “o CEDET não pode ser ignorado!”. Mas, aí é que está, não deveria ser uma “queda de braço – SEESP-MEC versus CEDET” - no estilo bíblico David e Golias... (ou do lobo e o cordeiro...), pois isso desgasta a fé na tal “preocupação do governo federal”.

Quanto ao resto da pergunta, eu prefiro esperar um pouco para avaliar o que acontece. Já tivemos tantos “soluços”, tanto “começa e pára”, “vai e volta” em nível de iniciativas oficiais, que não me animo a fazer previsões. Afinal, cinqüenta anos em educação nos tornam precavidos...

Em 1972, voltando do “I Seminário sobre Superdotação”, de Brasília, Helena Antipoff nos exorta a “tomar o gládio” e a começar a luta pela educação dos mais dotados, apontando que “bem modesto era o ‘gládio’, mais como um ‘cabo de vassoura’. Disse ela:

“Estamos cuidando agora de dar ao mais dotado o que há 40 anos atrás (na década de 30) foi pensado dar ao menos dotado: atenção especial, carinho, orientação aos pais e estudo de suas necessidades e daquilo que ele precisa para seu melhor e mais feliz ajustamento ao meio...”. (Helena Antipoff, Carta a Henriqueta Lisboa, 1973)

Em 2005 vejo ressuscitar em Brasília a mesma tarefa, a mesma recomendação, e se calhar ainda com os mesmos “cabos de vassoura” de 1972! Mas, assim como a Mestra, em 1973, desejo sinceramente que desta vez seja pra valer. E vou acompanhar atentamente.

 

11- A forma tradicional de identificação de alunos talentosos consiste na avaliação do desempenho acadêmico e em aplicação de testes de inteligência. No CEDET a metodologia se concentra na avaliação do professor. A senhora considera que essa metodologia de identificação consegue captar todas as crianças talentosas?

Preocupa-me o resultado alcançado com o uso de testes para encontrar alunos dotados, em todo o mundo, os quais alienam mais da metade de nossa população escolar, e por isso trabalhei arduamente para desenvolver outra abordagem que não se apoiasse em medida de QI. Como disse anteriormente, buscamos no referencial desenvolvido por Gagné uma ajuda para procurar com maior segurança outros domínios de capacidade que não só inteligência. Mas a afirmação feita na pergunta não está correta: o professor não faz “avaliação”, apenas oferece dados de como os alunos agem no dia-a-dia na sala de aula. Processadas as folhas preenchidas pelos professores, configura-se um grupo de crianças apresentando padrões de características associadas aos diversos domínios de capacidade e talento, e no CEDET essas crianças vivem situações de aprendizagem enriquecidas, variadas e “não-escolares”, junto com outros alunos que ali chegaram pelo mesmo processo. A isso chamamos “observação assistida”.

Com esses dados buscamos configurar não a produção do aluno, mas sua postura no processo de captar informações, de pensar, analisar, comunicar, abordar as situações de inter-relação com os outros e com o mundo físico e social, enfim, um modo de ser, perceber, sentir, pensar, agir e responder, em cada área, que apresente sinais de ser qualitativa e quantitativamente melhor, mais elaborado, mais eficiente do que os seus pares conseguem alcançar. O grupo comparável natural, para o professor, é o conjunto dos alunos na turma e na escola.

Quanto a “captar todas as crianças talentosas”, não podemos ficar no que “eu considero...”, e não ficamos. Em 1995-97 foi realizado um estudo (Guenther et alli. 1997), com a finalidade de aferir o grau de precisão em que a metodologia desenvolvida para o CEDET, em 1992-93, tem encontrado efetivamente os alunos que apresentam dotação e talento, entre os escolares observados, até que ponto o tipo de talento sinalizado se mantém na dimensão de tempo e qual a proporção de crianças identificadas em relação à origem socioeconômica, alem de verificar a existência de outras crianças capazes e talentosas não sinalizadas por esse método. Foram processadas 871 folhas de dados coletados entre 1992 e 1996, totalizando cerca de 25.000 observações independentes, em média 5.000 crianças observadas por ano, das quais 385, ou seja, 4,2% foram identificadas como dotadas e talentosas, portanto de acordo com a Lei das Probabilidades. Constatamos incidência de 20 a 40% de crianças entre as quais, embora um professor tenha observado sinais de dotação, esses não são verificados por outros observadores nos anos subseqüentes. Mas, a partir da segunda observação sistemática, a probabilidade da identificação não se comprovar desce a 01. Em 98% dos casos o domínio de talento detectado permanece estável nas diferentes observações, embora algumas modificações tenham acontecido com crianças mais novas, em situações onde havia inicialmente sinais de múltiplos domínios e talentos diversificados.

Com relação ao alcance deste procedimento para localizar alunos dotados e talentosos de classes socioeconômico e culturalmente desprivilegiados, a maior preocupação nossa em relação aos testes de QI, fez-se um estudo empregando análise tri-fatorial: ocupação e nível de instrução dos pais; renda familiar aproximada, per capita; e estilo de moradia. Foi verificado que 13% das crianças identificadas para o CEDET são de nível socioeconômico mais elevado, ou seja, classe alta e média-alta; 26% são de classe média; e 61% são crianças de classe média-baixa e classe pobre. Essas proporções são compatíveis com a distribuição sócio-econômica da população local.

Portanto, pela validação científica, foi encontrado suporte para afirmar que o processo de identificação empregado no CEDET localiza as crianças dotadas e talentosas dentro da população escolar, atingindo as diferentes classes sociais em proporção coerente com a composição do tecido social da comunidade e com a Lei das Probabilidades.

Correndo o risco de “auto-citação”, listo na bibliografia algumas publicações sobre o CEDET, com ênfase na Identificação. Pode-se notar que meus escritos parecem receber mais atenção no exterior que no Brasil. Não há nada que eu possa fazer sobre isso, e nessa circunstância o honroso convite para essa entrevista me sensibiliza como receber um presente...

Muito obrigada,

Zenita C. Guenther
Lavras, Março, 2008

 

 

Referências sobre a temática tratada no texto:

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* Psicólogo, psicanalista, Mestre em Psicanálise e Mestre em Letras pelo CES-JF e Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ. Contato: asalzer@oi.com.br

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