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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. v.2 n.1 Juiz de Fora jun. 2008

 

RELATOS DE PESQUISA

 

As crenças e percepções dos gerentes e as possibilidades de trabalho das pessoas com deficiência*

 

The manager’s beliefs and perceptions and the work possibilities of people with disabilities

 

 

Maristela Ferro Nepomuceno; Maria Nivalda de Carvalho-Freitas**

Universidade Federal de São João del-Rei

 

 


RESUMO

Esta pesquisa verificou se as formas como os gerentes veem as possibilidades de trabalho das pessoas com deficiência (PcDs) estão relacionadas com a visão que eles possuem do ser humano em geral, isto é, com suas crenças e percepções. Foi realizado um survey em 227 alunos de especialização em Administração. Utilizou-se o Inventário de Concepções de Deficiência e o questionário de Suposições sobre as Pessoas, baseado na teoria de McGregor. Foram realizadas análise estatística descritiva dos dados, análise de correlação de Pearson e análise qualitativa das questões abertas. Constatou-se que existem relações entre as formas como as pessoas veem as possibilidades de trabalho das Pessoas com Deficiência e a forma como os gestores normalmente avaliam o desempenho dessas pessoas e uma predominância de respostas estereotipadas em relação à deficiência.

Palavras-chave: Pessoas com deficiência, Possibilidades de trabalho, Crenças, Percepções.


ABSTRACT

This research has examined if the ways managers see the possibilities of work for people with disabilities are related to the impression they have of human beings in general, that is, with their beliefs and perceptions. A survey with 227 students attending a specialization course in Administration was carried out. An “Inventory of Conceptions of Disabilities” and a “Questionnaire of Assumptions about People”, based on McGregor’s “X and Y theory” was used. Statistical analysis of descriptive data, analysis of Pearson’s correlation and qualitative analysis of open question were accomplished. It was found that there are links between how people see the possibilities of working with people with disabilities and how the managers usually assess the performance of these individuals. A predominance of stereotype answers in relation to disability were also noticed.

Keywords: People with disabilities, Opportunities for work, Beliefs, Perceptions.


 

 

Introdução

A inserção de pessoas com deficiência em função da Lei de Cotas1 tem sido uma nova realidade que tem impactado gestores e profissionais de Recursos Humanos. Historicamente, as organizações buscaram compor seu quadro de pessoal com as pessoas consideradas de perfis ideais para o preenchimento da vaga; e as pessoas com deficiência (PcDs) foram consideradas incapazes de fazer frente às demandas de trabalho na sociedade.

Com a globalização, a fusão das empresas e a pressão de organismos internacionais e de movimentos sociais, tanto a gestão da diversidade, quanto as políticas de ação afirmativa, passam a ser uma realidade a ser gerida pelas organizações. Conforme Alves e Galeão-Silva (2004), a gestão da diversidade se distingue das ações afirmativas em função de duas variáveis: os grupos atingidos e os efeitos nas empresas. Na ação afirmativa, os grupos atingidos são as minorias e os grupos discriminados; e as mudanças provocadas nas empresas são decorrências de pressões coercitivas externas, como a Lei de Cotas. Na gestão da diversidade, são atingidas todas as diferentes identidades, e a diversidade passa a ser vista como uma vantagem competitiva para a organização.

As políticas de ação afirmativa, entretanto, têm a função de promover igualdade de oportunidades para todos, e as pesquisas têm indicado que quanto maior o tempo de trabalho com pessoas com deficiência, melhor a percepção do desempenho dessas pessoas por parte dos gerentes, o que indica que o contato com as pessoas com deficiência modifica a percepção sobre elas e melhora as possibilidades de inserção (Carvalho-Freitas, 2008).

De acordo com o censo realizado em 2000 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 24,5 milhões de pessoas portadoras de algum tipo de deficiência na população brasileira, o que representa 14,5%. Desse número, apenas 1 milhão (11,1%) exerce alguma atividade remunerada e somente 200 mil (2,2%) possuem registro em carteira de trabalho (Gil, 2002). A Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que o número de pessoas desempregadas ou em condições de trabalho precárias para assegurar a sua sobrevivência ultrapassou um bilhão no ano de 1999 (Lancillotti, 2001).

Com o advento da Lei de Cotas (Brasil, 1991), as organizações com mais de 100 funcionários se veem obrigadas a contratar as pessoas com deficiência. Em razão disso, ocorrem a reserva de cargos, a proibição de qualquer discriminação aos critérios de admissão dos amparados e a remuneração.

Essas medidas foram regulamentadas pela lei 8.213/91 e asseguradas pelo 3.298/99, que determina a forma de acesso ao mercado formal de trabalho mediada por um vínculo empregatício. A preocupação em reservar um percentual de vagas surgiu com a Constituição Federal de 1988, mas só foi definida com a Lei 8.112 de 11 de dezembro de 1990 para as instituições públicas. A reserva de vagas para o setor privado surgiu em 24 de julho de 1991 com a Lei 8.213 (Tanaka & Manzini, 2005).

De acordo com Araújo e Schmidt, (2006), o principio norteador da legislação é a tentativa de assegurar a igualdade de oportunidades ao trabalho das pessoas com deficiência e não impor assistencialismo às empresas.

Fato é que, mesmo com a existência das leis que garantam o acesso da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, há inúmeros fatores que dificultam a inserção (Tanaka & Manzini, 2005; Quintão, 2005), dentre eles, falhas no processo de formação e a escassez de pessoas qualificadas. Mesmo as pessoas que possuem uma qualificação para o mercado de trabalho enfrentam o preconceito (Brumer, 2004).

Além de todos esses aspectos, que dificultam e impedem a inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, percebe-se uma falta de conhecimento por parte dos gestores em torno da capacidade da PcD que se depara concomitantemente com as exigências do mundo do trabalho (Carreira, 1997).

Alguns gestores dizem sentir dificuldades em conseguir PcDs com qualificação profissional, preparo social e desempenho em habilidades mais complexas. Afirmam também que elas possuem dificuldades em se relacionar com outros funcionários e, ao se integrarem, sentem-se inferiores. Para eles, mesmo quando as PcDs se adaptam, apresentam às vezes comportamentos incompatíveis com a situação do trabalho (Tanaka & Manzini, 2005). Esses fatores são justificativas comuns para a não-inserção dessas pessoas no trabalho. Lancillotti (2003) afirma que a proposta de inclusão só se justifica porque se vive numa sociedade excludente.

Os estudos sobre a gestão da diversidade, com foco específico nas pessoas com deficiência já inseridas na organização, tiveram um incremento significativo a partir da regulamentação da Lei de Cotas (Suzano, Nepomuceno, Ávila, Lara & Carvalho-Freitas, 2008). Carvalho-Freitas (2007) constatou em um estudo de caso realizado em uma empresa que contratava mais de mil pessoas com deficiência, e que as formas como os gerentes veem a deficiência interferem em suas ações em relação a elas. Essa constatação contribuiu para a formulação das seguintes questões de pesquisa: será que a maneira como os gestores veem a deficiência está relacionada com a maneira predominante de o gestor perceber a natureza do comportamento humano? Ou a deficiência por si só interfere na percepção das pessoas, na maneira de ver as possibilidades de trabalho das pessoas com deficiência?

Assim, o objetivo da presente pesquisa foi verificar se as formas como os gerentes veem as possibilidades de trabalho das pessoas com deficiência estão relacionadas com a percepção que eles possuem sobre a natureza do comportamento humano.

 

1. Concepções de Deficiência

A literatura tem mostrado uma ausência de consenso sobre a definição da deficiência, que nesta pesquisa será entendida conforme Carvalho-Freitas (2007) “produto da articulação entre condição biológica e contingências históricas, sociais e espaciais, o qual poderá resultar numa maior ou menor possibilidade de discriminação ou inserção social das pessoas com deficiência” (p. 24).

É possível verificar, entretanto, que a deficiência foi vista de forma diferente ao longo da história e que essas formas de vê-la tiveram um impacto na forma de relação privilegiada com as pessoas com deficiência. Em função dessa constatação, Carvalho-Freitas e Marques (2007) definiram o que denominam de concepções de deficiência como: modos de pensamento construídos ao longo da história, quer sejam fundados em informações e conhecimentos racionais ou não, e que são utilizados para a qualificação das pessoas com deficiência, além de ofereceram as justificativas para as ações em relação a elas.

Para a construção do construto de concepções de deficiência foram utilizadas quatro matrizes de interpretação sobre a deficiência, identificadas ao longo da história. Conforme Carvalho-Freitas e Marques (2007) as matrizes interpretativas são modalidades relativamente estáveis e organizadas de pensamento ancoradas em concepções de homem, de mundo e de sociedade que organizam a atividade social, reconhecem e qualificam necessidades, e admitem formas de satisfazê-las, em função de seus fins. As concepções são formas de interpretação da deficiência predominantes ao longo do tempo, que se caracterizam como matrizes interpretativas que moldaram e legitimaram a distinção das pessoas com deficiência, tanto na sociedade quanto no trabalho. Para a construção das matrizes interpretativas, buscaram-se nos diversos períodos históricos, desde a Grécia Antiga até os dias atuais, estudos que, de forma direta ou indireta, fizeram menção às pessoas com deficiência. Após a análise dos diversos estudos, foram verificados padrões de comportamento predominantes em relação às pessoas com deficiência em cada período e sua reedição, ou não, em épocas diferentes. Além disso, foram buscadas as justificativas para a raiz das diversas concepções de deficiência na forma predominante de conceber o homem, o mundo e o conhecimento em cada época (Carvalho-Freitas e Marques, 2007).

Quatro matrizes foram utilizadas para compor as sete concepções de deficiência identificadas por Carvalho-Freitas (2007):

1. A deficiência vista como fenômeno espiritual cuja característica principal das pessoas que a possuem é atribuir uma origem metafísica à deficiência e considerá-la uma manifestação de desejos ou castigos divinos. A pessoa com deficiência é considerada como alguém que precisa ser mantida e cuidada, contribuindo para o surgimento de sentimentos de caridade e compaixão em relação a elas.

2. A normalidade como matriz de interpretação: as pessoas que compartilham desta concepção têm na norma seu padrão de avaliação, sendo a deficiência considerada um “desvio” ou “doença” que necessita de cuidados especiais dos profissionais da saúde. A possibilidade de inserção das pessoas com deficiência para quem compartilha dessa visão se dá mediante a reabilitação e a adequação delas ao sistema social. Além de considerar que as pessoas com deficiência assumem atitudes inadequadas no trabalho, provocando situações embaraçosas, são mais propensas a acidentes, têm problemas de relacionamento e devem ser alocadas em setores específicos da empresa.

3. A inclusão como matriz de interpretação: esta concepção é compartilhada pelas pessoas que deslocam sua percepção da deficiência de um problema individual para um problema social. O pressuposto compartilhado pelas pessoas que possuem esta visão da deficiência é o de que a sociedade tem que se adaptar para incluir a todos e que a inclusão das pessoas com deficiência deve ser feita a partir de suas potencialidades.

4. A matriz de interpretação técnica da deficiência se materializa através da concepção das pessoas que vêem a diversidade como um recurso a ser gerido nas organizações, e que consideram as práticas sociais e organizacionais como veículos para a participação e inclusão das pessoas com deficiência. Essa matriz se traduz em quatro fatores que avaliam as possibilidades de trabalho das pessoas com deficiência em relação à:

1. Percepção de desempenho: como característica geral, esse fator focaliza a percepção das pessoas em relação ao desempenho, produtividade e qualidade de trabalho das pessoas com deficiência e suas implicações para a competitividade da empresa.

2. Percepção do vínculo: como característica geral, esse fator focaliza a percepção das pessoas em relação ao comprometimento e estabilidade no emprego das pessoas com deficiência.

3. Percepção dos benefícios da contratação: esse fator focaliza a percepção do impacto da contratação de pessoas com deficiência para a imagem da empresa junto a funcionários e clientes e também para o clima da organização.

4. Percepção sobre a necessidade de treinamento: esse fator indica a percepção quanto à necessidade de treinamento das chefias e funcionários para a inserção de pessoas com deficiência na empresa.

 

2. Crenças e Percepções sobre o comportamento humano

Para Bowditch e Buono (1992), há muitos fatores internos e externos que influenciam a forma como vemos as pessoas e o mundo ao nosso redor. De uma maneira geral, as pessoas tendem a interpretar as informações de uma forma que corresponda ao conjunto de valores, crenças e atitudes, moldados por experiências culturais e ambientais mais amplas. As tendências internas são exemplos de alguns fatores que influenciam o que vemos e ouvimos. Elas são moldadas por experiências culturais e sociais devido à influência de experiências e socializações anteriores. De acordo com esses autores, as crenças e os valores de uma maneira geral antecedem as ações das pessoas.

Para Bowditch e Buono (1992), a percepção das pessoas está sujeita a várias distorções, ou seja, as pessoas podem enxergar as outras de uma forma diferente das que são, e um exemplo disso é a estereotipagem que é entendida como:

o processo de usar uma impressão padronizada de um grupo de pessoas para influenciar a nossa impressão de um indivíduo em particular. É um modo de se formar impressões consistentes sobre as outras pessoas, supondo que todas tenham certas características comuns em virtude de sua afiliação (tanto atribuída como obtida) a algum grupo como categoria, tal como raça, sexo, profissão ou classe social (Bowditch & Buono, 1992, p. 66).

Há três aspectos básicos da estereotipagem. O primeiro é identificar alguma categoria de pessoas; o segundo é supor que as pessoas pertencentes a essa categoria possuem certos traços e comportamentos; e o terceiro é formar uma opinião geral de que todos pertencentes àquela categoria possuem os mesmos traços e comportamentos. Dessa forma, as crenças sobre as pessoas são criadas com base em um grupo particular ao invés de olhar a singularidade de cada pessoa. Para o autor, quando a característica de uma pessoa ou um grupo encobre todas as demais características da pessoa é denominado de efeito halo. Essa característica que é ressaltada pode ser positiva ou negativa, criando dessa forma uma impressão geral que seria correspondentemente tanto boa quanto ruim (Bowditch & Buono, 1992).

Coerente com esses pressupostos sobre a percepção, McGregor (1999) desenvolveu o argumento de que as crenças básicas que os administradores têm sobre as pessoas e sobre a natureza do comportamento humano influenciam os gestores na forma como motivam e gerem o trabalho de seus subordinados.

McGregor (1999) desenvolveu a Teoria X e a Teoria Y que são imagens extremas sobre as crenças dos gerentes. Aqueles que têm por suposição básica as crenças da Teoria X tendem a pensar que as pessoas precisam ser controladas, coagidas e punidas para que se esforcem e alcancem os objetivos organizacionais. Acreditam também que o ser humano, de uma maneira geral, possui pouca ambição, quer garantia das coisas, prefere fugir das responsabilidades e ser dirigido.

Em contrapartida, os gerentes que se orientam, tendo por suposição básica as crenças tipificadas na Teoria Y, tendem a concordar que, por natureza, o ser humano comum não detesta o trabalho, porque, dependendo das condições, o trabalho pode ser tanto fonte de satisfação quanto de punição. Para os gestores que compartilham desse pressuposto, o ser humano está sempre disposto a se autocontrolar e a se autodirigir em prol dos objetivos com os quais ele se compromete. Além disso, são pessoas naturalmente ativas, que buscam satisfações no trabalho, que cansam das rotinas monótonas e que são, em geral, criativas. A Teoria Y pressupõe que as limitações da natureza humana, dentro das organizações, não são limites do ser humano, mas limites da própria direção em descobrir a atuação do potencial de recursos humanos.

Dessa forma, ao relacionar as concepções de deficiência, de um lado, e as crenças e percepções que os gestores têm sobre as pessoas e a natureza do comportamento humano, de outro, busca-se compreender se a deficiência pode ser um fator gerador de tanto impacto que interfira na percepção do gerente. Isto é, pressupõe-se que um gerente ancorado nos pressupostos da Teoria Y também teria uma disposição positiva em relação às pessoas com deficiência. Caso contrário, o pressuposto seria de que a deficiência é um fator tão impactante que esses mesmos gerentes teriam disposições negativas em relação às pessoas com deficiência.

 

Método

A pesquisa utilizou a metodologia quantitativa e qualitativa. O universo da amostra foi constituído de 650 alunos de pós-graduação em Administração de três universidades federais mineiras.

A escolha dessa população se deve ao fato de se constituir, principalmente, de pessoas com perfis característicos das organizações formais, que ocupam ou poderão ocupar funções gerenciais, e que potencialmente podem trabalhar com pessoas com deficiência em função da Lei de Cotas. Além disso, o Inventário de Concepções de Deficiência foi previamente aplicado a uma amostra de 285 alunos de cursos de especialização em Administração em três Estados diferentes do país, mantendo a mesma estrutura de fatores e boa consistência interna dos dados (Carvalho-Freitas, 2007).

Na perspectiva quantitativa, foi utilizado o survey de desenho transversal em 227 questionários, pois os demais apresentaram muitos dados faltantes ou estavam incorretamente respondidos. Segundo Malhotra (2001), o método de survey se baseia no inquérito dos participantes através de questionário estruturado, que visa uma padronização no processo de coleta de dados.

Os instrumentos de pesquisa utilizados foram: o Inventário de Concepções de Deficiência (Carvalho-Freitas, 2007) e o questionário de Análise Pessoal dos Estilos de Liderança – Suposições sobre as pessoas, baseado no modelo de McGregor (Kolb, Rubin & McIntyre, 1978, p. 158 e 159).

Todas as respostas dos participantes da amostra foram registradas na forma de banco de dados do programa de informática – SPSS for Windows (Statistical Package for Social Sciences) – visando facilitar a aplicação dos recursos estatísticos (Bisquerra, Sarriera & Martínez, 2007)

A apresentação e a análise dos dados envolveram a utilização de técnicas estatísticas, a saber:

a) Estatística descritiva: visando à descrição das concepções de deficiência predominantes e das suposições sobre as pessoas, e utilizando-se as médias das respostas.

b) Análise da correlação de Pearson visando verificar a ocorrência de correlações (direção e intensidade das associações) entre os fatores dos dois questionários.

c) Teste de qui-quadrado visando verificar se havia relação de dependência entre as concepções de deficiência e os pressupostos da Teoria X e da Teoria Y.

A análise qualitativa das questões abertas foi realizada conforme orientações de Bardin (1977) referente à análise de respostas a questões abertas, que sugere que as respostas sejam examinadas, explorando-se as relações que o indivíduo faz ao responder as questões. Para essa análise, são sugeridas algumas etapas como: realização de “leitura flutuante” das questões (p.60), agrupamento e classificação das questões segundo critérios definidos a partir das leituras realizadas (exploração exaustiva) e identificação de relações realizadas pelos respondentes.

 

Resultados e Discussão

Conforme pode ser observado na Tabela 1, 41% da amostra pesquisada discorda pouco ou concorda pouco a totalmente com explicações espirituais a respeito da deficiência, o que indica uma tendência dessas pessoas a manifestarem atitudes de caridade em relação às pessoas com deficiência. Por outro lado, 63,9% dos respondentes têm dúvida se a deficiência é ou não é um desvio da normalidade; não têm convicção em relação à alocação das pessoas com deficiência, isto é, se precisam separar as PcDs em setores específicos da organização; e além de terem dúvidas se as PcDs podem representar um potencial para maiores problemas de relacionamento no ambiente de trabalho.. A maioria dos respondentes (78,3%) concorda muito ou totalmente com os argumentos da matriz da inclusão, isto é, que as pessoas com deficiência são capazes de executar bem seus trabalhos desde que as condições e instrumentos de trabalho sejam adaptados às suas necessidades. Além disso, 80,9% discordam muito ou totalmente que o desempenho e a qualidade de trabalho são inferiores ao das demais pessoas e que contratar pessoas com deficiência pode comprometer a competitividade das empresas. A maioria (82,8%) concorda muito ou totalmente que as organizações precisam treinar chefias e funcionários para o processo de inserção de pessoas com deficiência. Por outro lado, apenas 37,8% dos respondentes concordam muito ou totalmente que a contratação de pessoas com deficiência pode trazer benefícios para o clima e para a imagem da organização.

Essa caracterização da forma como as pessoas veem a deficiência e as possibilidades de trabalho das pessoas com deficiência indica que esse público tende a reproduzir um discurso pautado nos pressupostos da inclusão e no crédito às possibilidades de desempenho das pessoas com deficiência. Essas pessoas, porém, também têm muitas dúvidas em relação à inserção de pessoas com deficiência, o que pode ser comprovado pelos resultados em relação à concepção de deficiência pautado na normalidade.

Quanto à análise das suposições sobre o comportamento das pessoas em situações de trabalho (Teoria X e Teoria Y), foi verificado que, entre os respondentes, 90,7% compartilham dos pressupostos da Teoria Y, ou seja, normalmente acreditam que as pessoas são motivadas para o trabalho e que o desafio dos gestores é criar condições para que as pessoas possam desempenhar adequadamente seu trabalho.

Buscando responder ao objetivo da pesquisa, foi realizado o teste de qui-quadrado de independência entre as concepções de deficiência e a frequência de concordância com os pressupostos da Teoria X e Teoria Y. Foi constatado que a percepção do desempenho das pessoas com deficiência depende da concordância com os pressupostos da Teoria X (valor qui-quadrado = 27,774, com nível de significância = 0,05, e valor p = 0,023), a saber, a concordância de que o desempenho das pessoas com deficiência no trabalho é inferior ao das demais pessoas depende da concordância com os pressupostos da Teoria X, isto é, da suposição do gestor de que normalmente as pessoas precisam ser controladas e coagidas para executar bem seus trabalhos.

Verificando se havia correlações significativas entre as concepções de deficiência e a concordância com os pressupostos da Teoria X e Teoria Y, constatou-se que quanto mais se concorda com os pressupostos da normalidade maior a concordância com os pressupostos da Teoria X (Pearson = 0,175 com nível de significância = 0,01); e quanto mais se concorda que o desempenho das pessoas com deficiência seja inferior ao das demais pessoas, mais se concorda com os pressupostos da Teoria X (Pearson = 0,189 com nível de significância = 0,01). Esse resultado indica que uma pessoa que normalmente tende a desconfiar de seus subordinados e a controlar os seus resultados é motivada a ter uma percepção pior do desempenho das pessoas com deficiência e a focar mais as dificuldades decorrentes da deficiência que as potencialidades dessas pessoas.

Em contrapartida, quanto maior a tendência para um estilo ancorado na Teoria Y, menor a concordância com os pressupostos da matriz da normalidade (Pearson = -0,154, com nível de significância = 0,01) e menor a crença de que o desempenho no trabalho das pessoas com deficiência seja inferior ao desempenho das demais pessoas (Pearson = - 0,177 com nível de significância = 0,05).

Essas constatações são importantes, pois indicam que um sujeito que acredita mais no potencial das pessoas, de uma maneira geral, tenderá também a acreditar mais no potencial das pessoas com deficiência e no desempenho delas. Inversamente, um gestor que desconfia de seus subordinados, também tenderá a ter uma disposição mais negativa em relação às possibilidades de trabalho das pessoas com deficiência.

Com relação à análise qualitativa, em 227 participantes da pesquisa, 86 (37,88%) responderam à questão: “Comentários que julgar importante sobre a inserção de Pessoas Portadoras de Deficiência no Mercado de Trabalho”. As respostas foram divididas em subcategorias, conforme Bardin (1977), referente à análise de respostas que foram examinadas e exploradas por agrupamento e classificação das questões segundo critérios definidos a partir das leituras realizadas. As respostas foram categorizadas em: discurso politicamente correto/idealizado; questionamento sobre a capacidade da PcD; foco nos pressupostos da inclusão; foco na dimensão técnica do trabalho da PcD (desempenho, comprometimento, vínculo, treinamento); negação da diferença; supervalorização do esforço da pessoa com deficiência; predominância de contradições; foco na deficiência; discurso vago; discurso ancorado nos pressupostos da matriz espiritual de se ver a deficiência.

No curso de pós-graduação em Marketing, essa questão foi respondida por treze alunos. Dentre as treze respostas, sete (53,85%) se encaixaram na categoria “discurso politicamente correto/idealizado”, uma vez que reproduziram opiniões sobre a inclusão. Entretanto não apresentaram justificativas para seus argumentos. A maioria desses comentários é formada por frases curtas, por exemplo: “Considero uma atitude legítima de cidadania” ou “direitos iguais para todos” ou “a inserção valoriza o deficiente”.

O “discurso politicamente correto/idealizado” também foi recorrente nos cursos de Gestão de Pessoas e no de Gestão de Negócios, uma vez que dos vinte e um alunos de cada curso, que responderam a questão, tanto em um quanto em outro curso, seis respondentes (28,57% do total de cada) fizeram comentários idealizados a respeito da inclusão das PcDs. Contudo as afirmações eram pautadas em justificativas idealizadas em que as prerrogativas do deve ser ou tem que ser predominam, tais como: “É viável, possível, demonstra responsabilidade social, é ético e não deve ser visto como filantrópico, pois os PNEs[pessoas portadoras de necessidades especiais] podem ser tão eficazes quanto os não portadores” ou “Todos têm direitos iguais. Todos devem ter a chance e a oportunidade para desenvolver suas atividade e habilidades” ou “Acho importante nos preocuparmos com a inserção de pessoas deficientes no mercado de trabalho. Importante e necessário” e “Com certeza deve-se fazer a inclusão destas pessoas que sofrem bastante preconceitos. Vamos lembrar dos Direitos de todos”.

No curso de Gestão de Negócios, cinco alunos (23,81% do total) do curso tiveram respostas que se encaixaram na categoria “foco nos pressupostos da inclusão”. As seguintes respostas são representativas dessa categoria: “Não seria o deficiente que deveria se preparar para o trabalho. O trabalho que deveria está preparado para o deficiente, entende-se como trabalho o sentido amplo da palavra - local, transporte, etc.” ou “Eu acho que todos são iguais desde que se tenham condições adequadas para trabalhar”. Observa-se, nessas questões, que há uma consciência de que o ambiente de trabalho deve estar adaptado para receber e incluir as PcDs e, dessa forma, cobrar o mesmo desempenho.

Seis respostas (28,57%) dos alunos do curso de especialização em Gestão de Pessoas foram classificadas na categoria “foco nos pressupostos da matriz técnica”, como por exemplo: “Maior conscientização das pessoas sobre a capacidade das PcDs em colaborar com a organização, conscientizar as pessoas da forma de tratamento da pessoa com deficiência no ambiente de trabalho para evitar a discriminação”. Esse tipo de resposta demonstra a preocupação das pessoas do citado curso com a formação/treinamento para as mudanças dentro das organizações. Além disso, geralmente, consideram os funcionários da organização como recurso a serem geridos e o foco do curso está na integração entre os recursos humanos.

No que se refere ao curso de Gestão Ambiental, três respondentes, ou seja, 37,5% do total das oito respostas apresentaram comentários que foram classificadas como “ancorado nos pressupostos da matriz espiritual”, já que nesta categoria os fatores predominantes são a caridade e a piedade em relação à PcD, o que pode ser exemplificado na resposta: “Todo ser humano tem que ter oportunidades para trabalhar, não importa se é deficiente ou não, e as pessoas que não têm deficiência deve ajudar as que têm em todos os sentidos”.

Outra categoria com elevado percentual (25%) do número de repostas dos alunos de Gestão Ambiental foi a “Supervalorização”, por exemplo: “As pessoas com deficiência têm força e capacidade igual ou maior que as pessoas sem, e temos muito a aprender com eles” ou “Aprendemos a valorizar deficientes, vendo neles capacidades além do que podemos imaginar”.

Essas análises nos mostram que a maioria das respostas são estereotipadas com relação às pessoas com deficiência, pois muitos percebem alguma característica positiva ou negativa na pessoa e generaliza para todo o grupo de pessoas com deficiência, exaltando-a ou supervalorizando-a sem conhecê-la, ocorrendo dessa forma o efeito halo.

Esse efeito pode ser exemplificado nas falas de alguns respondentes quando a pessoa com deficiência é vista e percebida como uma pessoa iluminada, um ser superior, e as outras características e defeitos da pessoa são encobertos ressaltando apenas esse. Do mesmo modo, se o respondente questiona a capacidade da pessoa com deficiência, ele tende a enxergá-la como incapaz, como uma pessoa que precisa de cuidados e que precisa ser protegida. Ao ressaltar apenas esse lado sem olhar os outros aspectos, cria-se uma impressão geral da pessoa conforme a percepção que o respondente possui.

De uma forma geral, a pesquisa possibilitou fazer uma aproximação em relação à forma como a deficiência é vista, indicando a presença marcante de dúvidas e a reprodução do discurso da necessidade de inserção de pessoas com deficiência no mundo do trabalho. Acredita-se que a ausência de informações mais sistematizadas sobre as possibilidades de trabalho das pessoas com deficiência leve as pessoas a emitir opiniões que acreditam que sejam coerentes com o conjunto de valores da nossa sociedade, embora não apresentem informações que possam levar a crer que já refletiram sobre a temática ou que tenham se empenhado em buscar informações mais efetivas sobre esse processo.

Os resultados desta pesquisa ajudam a compreender o processo de inserção de pessoas com deficiência, pois mostram que as resistências em relação ao trabalho dessas pessoas não podem ser associadas apenas ao fato de se possuir uma deficiência. Pelo contrário, essas resistências estão associadas a um conjunto mais amplo de crenças, percepções e valores que a pessoa possui ou compartilha em relação ao trabalho delas. Ao se constatar que as pessoas que têm uma crença na natureza humana pautada nos pressupostos da Teoria Y avaliam o desempenho de pessoas com e sem deficiência de maneira igualitária e não limitam as possibilidades de adequação dessas pessoas apenas a algumas áreas da empresa, verifica-se que a deficiência, por si só, não é um atributo que modifica a percepção das pessoas e a maneira como preferem controlar o trabalho dos subordinados.

Por outro lado, a pesquisa nos indica a necessidade de se discutir a questão da inserção de pessoas com deficiência nos mais diversos cursos de graduação e especialização, visto que a modificação de atitude é possível ao se modificar a forma como se vê ou se valoriza determinada realidade. Assim, os cursos de formação têm um papel importante na construção de uma sociedade em que o acesso de todos seja uma regra a ser respeitada.

Por outro lado, é importante sublinhar as limitações da pesquisa, realizada em três Universidades todas do Estado de Minas Gerais. São necessários novos estudos em outras regiões do país para ver se os resultados se confirmam. Além disso, outras análises poderiam ser feitas, introduzindo-se outros métodos como pesquisas em profundidade, dentre outros.

 

 

Referências

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1 Leis 8.213/91, indicando os percentuais de postos de trabalho em relação ao número de empregados da empresa, e 7.853/89, com a política nacional voltada para o portador de deficiência, e pelo Decreto 3.298/99, regulamentando, dentre outras, a forma de acesso às relações de trabalho.
* Agradecimento ao CNPq pelo apoio financeiro.
** Endereço para correspondência do leitor e editor: Departamento de Psicologia – Campus Dom Bosco - Praça Dom Helvécio, 74 - Bairro: Fábricas – Cep: 36.301-160 - São João del-Rei – Minas Gerais – E-mail:nivalda@ufsj.edu.br – Telefone: (32) 33792584

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