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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.3 no.1 Juiz de Fora June 2009

 

RELATOS DE PESQUISA

 

Aplicação do questionário de qualidade de vida em pessoas com deficiência intelectual

 

Quality of life of the intellectual disabilities

 

 

Janine Reis Tavares Pereira *

Associação de Livre Apoio ao Excepcional –Juiz de Fora/MG

 

 


RESUMO

Este trabalho avaliou a qualidade de vida de pessoas com deficiência intelectual. A amostra consistiu de 15 pessoas (10 mulheres e 5 homens), com média de idade de 26,8 anos. Os dados foram coletados através da aplicação da primeira versão em língua portuguesa do Questionário de Qualidade de Vida – QQV. Os sujeitos foram indagados sobre sua Satisfação, Produtividade, Independência e Participação Social. O percentil médio mais elevado foi alcançado na escala de Satisfação (73,6), seguido da participação social (52,8) e Produtividade (43,73). O desempenho mais baixo foi no domínio Independência (12,8). A análise nos permitiu dizer a respeito da necessidade de investirmos no contexto social destes indivíduos, sobretudo na promoção de independência e, consequentemente, na Qualidade de Vida das pessoas com deficiência intelectual.

Palavras-chave: Qualidade de vida, Deficiência intelectual, Questionário de Qualidade de Vida - QQV


ABSTRACT

The objective of this study was the evaluation of the quality of life of intellectual disabilities. The sample consisted of 15 individuals (10 women and 5 men), with an average age of 26,8 years. The data of this research were obtained from the submission of the first version for the Quality of Life Questionnaire – QoL.Q in Portuguese language. The subjects were asked about their Satisfaction with Life, Productivity, Independence and Social Participation. It was possible to identify that the highest mean percentile achieved by the subjects happened in the Satisfaction scale (73,6), followed by the Social Participation Evaluation (52,8), and Productivity (43,73). The lowest performance was found in the evaluation of the management of the Independence (12,8). Hence, the analysis allow us to say that there is a need for investments in the social context of these individuals, mostly in the promotion of their independence, enhancing, therefore, the Quality of Life of intellectual disabilities.

Keywords: Quality of Life, Intellectual disabilities, Quality of Life Questionnaire – QoL.Q


 

 

INTRODUÇÃO

As questões relacionadas às pessoas com deficiência constituem um desafio frente à busca de uma sociedade inclusiva e democrática. No caso de pessoas com deficiência intelectual, o resgate da cidadania e a inclusão têm sido um processo lento, demandando maior atenção para diferentes contextos. Neste estudo, pretendemos contribuir examinando a qualidade de vida de pessoas com deficiência intelectual. Nesse sentido, o estudo da qualidade de vida abre novas possibilidades de se pensar o desenvolvimento, aumentar o bem-estar e, ao mesmo tempo, promover sua inclusão na sociedade (Shalock, Gardner e Bradley, 2007; Shalock e Alonso, 2002).

As pesquisas sobre Qualidade de Vida – QV – são recentes e muitos são os desafios encontrados na busca por dados mais consistentes. A expressão “Qualidade de Vida” tem sido amplamente difundida nos últimos anos, ganhando popularidade através de debates públicos e publicações de temática geral (Albuquerque, 2003). Em decorrência dessa popularização, o termo é caracterizado como abstrato, complexo, indiretamente mensurável, admitindo múltiplas orientações. (Sétien, 1993 apud Albuquerque, 2003). Hoje, a pesquisa na área enfrenta o grande desafio de buscar respostas consistentes e colocá-las a serviço de políticas públicas e programas sociais diversos (Shalock, Gardner e Bradley, 2007; Shalock e Alonso, 2002; Shalock, 1997).

No Brasil, embora a quantidade de pesquisas e estudos sobre Qualidade de Vida sejam cada vez mais frequentes, quando relacionamos este tema às pessoas com deficiência intelectual, não dispomos de dados suficientes. Não havia em língua portuguesa nenhum instrumento de avaliação da Qualidade de Vida das pessoas com deficiência intelectual. Esse, portanto, foi um dos fatores motivantes para iniciar um trabalho inédito de tradução e aplicação no Brasil.

Neste trabalho, portanto, será produzida a primeira versão traduzida para o português do referido instrumento: o Questionário de Qualidade de Vida - QQV.

O Quality of Life Questionnarie foi escolhido para ter sua primeira versão em português por ser o principal instrumento em avaliação de QV destinado à população de pessoas com deficiência intelectual. O QoL-Q, desenvolvido por Shalock e Keith, nos Estados Unidos, destina-se: a) à avaliação da necessidade de serviços/programas individuais; b) à avaliação dos resultados de evento ou circunstância específica; c) a avaliação de programas ou serviços; d) a pesquisas, por exemplo, sobre os efeitos de programas de intervenção ou que visem identificar componentes transculturais de qualidade de vida.

Destacamos que este trabalho se diferencia de outros relacionados à deficiência intelectual por reconhecer a potencialidade dessas pessoas para expressarem por si mesmas suas (in) satisfações. As pessoas com deficiência intelectual devem ter oportunidades de conduzir seu próprio processo de desenvolvimento através, por exemplo, de possibilidades de fazer escolhas, falar por si mesmo, tomar decisões, entre tantas outras ações tão rotineiras para todos. E ainda, este trabalho se destaca pelo pioneirismo na investigação do tema: Qualidade de Vida de pessoas com Deficiência Intelectual.

Assim, o objetivo deste estudo é examinar a percepção que as pessoas com deficiência intelectual possuem acerca da sua qualidade de vida, por meio do questionário sobre Qualidade de Vida especializado para tal população.

 

METODOLOGIA

Participantes

Participaram deste estudo 15 (quinze) pessoas com deficiência intelectual. São cinco homens e dez mulheres, selecionadas dentre 52 alunos que frequentam uma instituição educacional que atende a pessoas com deficiência intelectual, na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Tais participantes foram selecionados por possuírem habilidades linguísticas para a comunicação oral e por terem 18 anos ou mais. A média de idade entre as mulheres foi de 28,3 e entre os homens, 23,4 anos. Com relação ao nível socioeconômico dos participantes, 60% deles possuem renda familiar de até 03 salários mínimos.

Instrumentos

Para realizar este trabalho foram utilizados: o teste Raven – Escala Geral, e a primeira versão traduzida do Questionário de Qualidade de Vida (Shalock e Keith, 1993).

O teste Raven-Escala Geral foi utilizado com o intuito confirmar a condição intelectual dos participantes.

O Questionário de Qualidade de Vida – QQV – utilizado é a primeira versão traduzida para o português do questionário americano de qualidade de vida para pessoas com deficiência intelectual desenvolvido por Shalock e Keith (1993). Neste estudo foi a primeira vez em que este questionário foi aplicado no Brasil.

O QQV é composto por 04 (quatro) escalas, referentes a 04 (quatro) domínios de QV, a saber: Satisfação, Produtividade, Independência e Participação Social. O domínio Satisfação corresponde aos itens 1 a 10 e tem como objetivo investigar junto aos portadores de deficiência intelectual a sua satisfação com a vida. O domínio Produtividade corresponde aos itens 11 a 20 e avalia as ocupações e atividades laborativas. Por sua vez, o domínio Independência é investigado nos itens 21 a 30 e avalia o controle que o portador de deficiência intelectual possui sobre sua própria vida, além do poder de decisão que possui. Por fim, o item Participação Social, representado pelos itens 31 a 40, solicita aos sujeitos que respondam questões relacionadas à sua participação em atividades junto à comunidade ou vizinhança.

Procedimentos

Tradução do Questionário de Qualidade de Vida - QQV

A tradução do Questionário de Qualidade de Vida foi realizada seguindo 4 etapas:

1. A pesquisadora deste estudo fez a tradução do instrumento para a língua portuguesa;

2. O instrumento traduzido foi submetido à avaliação de uma tradutora inglês/português;

3. O instrumento foi submetido à avaliação de 2 (duas) professoras doutoras do Departamento de Psicologia, da Universidade Federal de Minas Gerais, com o intuito de adequar a tradução ao que se deseja investigar.

4. Duas profissionais que atuam com pessoas com deficiência intelectual avaliaram o instrumento com o objetivo de verificar sua viabilidade de aplicação.

Coleta de dados

Para realizar este estudo, procedemos como se segue:

1. Contactamos a instituição parceira da pesquisa, apresentando nosso trabalho;

2. Identificamos os sujeitos da pesquisa, isto é, aqueles que possuem habilidades linguísticas, numa amostra de 52 pessoas, com base em nossa experiência na instituição;

3. Entramos em contato pessoalmente, e através de carta, com a família desses sujeitos solicitando a autorização para que os deficientes intelectuais pudessem participar da pesquisa.

Para a coleta de dados propriamente dita, foram realizados 45 encontros com os participantes deste estudo num total de 3 (três) sessões de entrevistas individuais com cada sujeito. No primeiro encontro, eles foram esclarecidos sobre o projeto e convidados a colaborar. Todas as pessoas convidadas aceitaram participar da pesquisa. Em um segundo encontro, eles responderam ao teste Raven – Escala Geral. No último encontro, foi aplicado o Questionário de Qualidade de Vida.

Com os familiares dos sujeitos foram realizados 15 encontros, sendo que em cada um realizou-se uma entrevista individual com cada responsável. A entrevista teve como objetivo esclarecer dúvidas sobre o objetivo do estudo e identificar a renda familiar dos mesmos.

Procedimento de análise de dados

Os dados obtidos por meio do Questionário de Qualidade de Vida foram analisados intradomínios, com o objetivo de averiguar possíveis oscilações de desempenho entre os sujeitos para um mesmo domínio. Foi feita também uma análise interdomínios, a fim de verificar se o desempenho dos sujeitos variava para domínios diferentes.

 

RESULTADOS

1 – Raven Escala Geral

Todos os sujeitos entrevistados foram classificados com nível V de Inteligência, a saber, deficiência mental.

2 – Questionário de Qualidade de Vida – QQV

2.1 – Avaliação do Desempenho interdomínios por meio da média dos percentis

Comparando as médias de desempenho interdomínios, o item independência foi o que apresentou escores mais baixos. Os domínios produtividade e participação social oscilaram em torno do percentil 50. O grupo só se sobressai no domínio satisfação (Figura 1)

2.2 – Avaliação do Desempenho Intradomínio, considerando os percentis obtidos por sujeito

- Domínio Satisfação: Os resultados indicaram que para a maioria dos sujeitos a avaliação de vida é positiva. Entre os entrevistados, 80% relataram que quase nunca se sentem solitários ou sozinhos; 73,% disseram que estão sempre alegres; 67% responderam que a maioria das coisas que acontecem em sua vida são coisas boas; 60% disseram que se sentem tão bem quanto as outras pessoas. Os sujeitos com baixos percentis foram aqueles que fizeram uma avaliação negativa de sua vida.

- Domínio Produtividade: os dados indicam que na avaliação deste domínio 02 sujeitos apresentam percentis discrepantes. Eles não exercerem qualquer atividade laborativa. É relevante esclarecer ainda que os demais entrevistados que trabalham, realizam sua atividade laborativa dentro da própria instituição. Entre os entrevistados, 93% avaliam as atividades que exercem como sendo importantes tanto para ele quanto para as outras pessoas; 80% se sentem satisfeitos com as habilidades que aprenderam. Destes, 47% disseram que sua atividade laborativa tem lhes proporcionado aprendizagem de habilidades que poderão ajudá-lo em um emprego melhor ou diferente.

- Domínio Independência: De acordo com os dados obtidos, praticamente todos os sujeitos se dizem pouco independentes. A pouca independência do grupo fica clara quando constatamos, na situação de entrevista, que apenas 04 possuem a chave de casa. Além disso, todos os sujeitos relataram que só utilizam o sistema de saúde mediante o acompanhamento do responsável, cabendo ao mesmo a marcação da consulta e demais compromissos. Nenhum dos sujeitos se diz responsável por si mesmo. Dentre eles, 47% afirmam ter um tutor ou responsável a quem compete todas as atribuições. A maioria dos sujeitos relatara ter domínio somente de atividades de vida diária como: hora em que se alimenta, dorme e o que faz para se divertir.

- Domínio Participação Social: os dados apresentaram uma oscilação acentuada entre os sujeitos. É importante ressaltar que todos os sujeitos entrevistados necessariamente pertencem a pelo menos um grupo, além da família, a saber, a instituição parceira deste estudo. Contudo, 33% deles pertencem somente a este grupo. Para os demais, foi possível constatar que, além da escola, eles frequentam somente grupos religiosos configurando um total de apenas dois grupos sociais. Destaca-se que 47% dos entrevistados relataram que quase nunca recebem visitas.

3 – Desempenho total dos sujeitos no Questionário de Qualidade de Vida

A média dos percentis obtidos foi de 57,66. Aproximadamente 50% dos sujeitos apresentam um desempenho entre médio e baixo (percentis entre 20 e 50), o que indicaria baixa ou média qualidade de vida.

Como já foi ressaltado, trata-se de um instrumento que ainda não foi validado em nosso país. Dessa forma, os dados obtidos por esta pesquisa não podem ser comparados com os dados da população americana. Neste estudo, por exemplo, encontramos que o percentil médio alcançado pelos participantes (57,66; n=15) é inferior à média alcançada por pessoas com deficiência intelectual profunda (62.6, n = 22) na população americana. A média obtida pelo grupo brasileiro no domínio independência também é mais baixa que a média obtida por pessoas norte-americanas com deficiência intelectual profunda (15.6, n = 22). Destacamos que este é o domínio que possui maior relação com o grau de deficiência.

 

DISCUSSÃO

Sobre os resultados

Diante dos resultados apresentados, é possível apontar algumas questões cruciais para este trabalho. O primeiro domínio investigado foi o Satisfação. Chama a atenção o fato de a maioria dos entrevistados apresentarem percentis altos para este domínio. Sobre estes aspectos, questionamos se a limitação cognitiva somada à realidade de baixa interação social pode ter contribuído para que essas pessoas sejam menos capazes de apreciarem de forma realística questões de ordem subjetiva(s), como as apresentadas na escala.

Um outro dado a ser analisado diz respeito à avaliação positiva que 67% fizeram sobre as coisas que acontecem em sua vida. Segundo esses entrevistados, a maioria dessas coisas são positivas. É relevante ressaltar que o ambiente institucional pode ter interferido na forma como eles responderam o questionário. É possível pensarmos que os sujeitos entrevistados não teriam restringido suas avaliações às ações que a instituição lhes destina, sem contrapor tais ações a acontecimentos de seu dia-a-dia em família, com amigos, na comunidade.

Com relação ao domínio Produtividade, todos os sujeitos que exercem atividade laborativa trabalham em oficinas protegidas na própria instituição. Logo, as condições de trabalho são diferenciadas se comparadas à colocação formal no mercado de trabalho. Nas oficinas, embora os sujeitos sejam cobrados quanto à produção, assiduidade, compromisso, responsabilidade e embora recebam pela atividade exercida, trata-se de um ambiente de trabalho com um controle diferenciado sobre os sujeitos e o trabalho em si. Além disso, é um ambiente que ele já domina, no qual convive com pessoas conhecidas e que tem como objetivo principal a capacitação não somente para produção e competitividade, mas também para a promoção do desenvolvimento. Desse modo, pode ser que, se estes sujeitos estivessem inseridos no mercado formal de trabalho, avaliassem suas atividades de forma mais crítica.

Dando sequência à discussão dos dados, é crucial apontarmos o baixo desempenho dos sujeitos no domínio Independência. Ele nos faz pensar na condição sócio-histórica dessas pessoas. Trata-se de pessoas já adultas com deficiência intelectual. São famílias que há 20, 25 anos tiveram seus filhos com deficiência, num contexto adverso à inclusão e fechado para qualquer ação de promoção de seu desenvolvimento. É possível pensarmos ainda na condição de superproteção e controle pela qual tais pessoas possam ter passado em sua trajetória de vida. A sociedade, de modo geral, não reconhece naquelas com deficiência a capacidade para escolher, tomar decisões, participar como agentes de seu desenvolvimento. Nesse sentido, este trabalho apresenta um diferencial. Aqui é a própria pessoa com deficiência intelectual que avalia sua vida.

Além disso, são pessoas que frequentam há muitos anos instituição educacional especializada. As escolas especiais foram criadas por volta da década de 60 com o objetivo de assegurar aos alunos com deficiência sua plena capacitação como adultos responsáveis, prepará-los para a vida independente através da aquisição de conhecimentos e das habilidades necessárias para o desempenho de funções sociais (Fierro apud Coll, Palácios e Marchesi, 2004). Assim, as escolas especiais se constituíam como uma via paralela à escola regular que, através de técnicas e atendimentos especializados, visavam ao desenvolvimento dos “especiais”. Contudo, a escola especial nem sempre conseguiu atingir seus objetivos e passou um período exercendo suas atividades como uma prática marginal, isolada, sem rever ou questionar sua atuação.

Por fim, é importante ressaltarmos a contingência de limitação de vivências sociais retratada na avaliação do domínio Participação Social. Dentre os entrevistados, dois alcançaram apenas o percentil 1. Além disso, 47% relataram que quase nunca recebem visitas. Soma-se a isso, o dado de que a maioria dos entrevistados relataram que, além do grupo familiar, participam somente da instituição educacional. Os sujeitos vivem numa situação com bastante redução em relação às vivências e interações sociais. De acordo com os dados obtidos, podemos pensar que tais sujeitos encontram-se isolados de uma rede mais complexa de relações sociais. Em muitos casos, essa situação é agravada pela dificuldade financeira das famílias.

Sobre as interações sociais das pessoas com deficiência, Vygotsky apontou que:

o que decide o desenvolvimento de uma pessoa, em última instância, não é a deficiência em si mesmo, mas suas consequências sociais, sua realização psicossocial. Os processos de compensação tampouco estão orientados a completar diretamente a deficiência, o que na maior parte das vezes é impossível, mas destina-se a superar as dificuldades que a deficiência cria. (Vygotsky, 1996, P. 18)

Dessa forma, o problema não é a deficiência em si, mas como os outros reagem à deficiência. Além disso, em condições favoráveis, a criança com deficiência pode criar caminhos alternativos que promovam o seu desenvolvimento (Monteiro apud Freitas, 1998).

Recorremos aos trabalhos de Brofenbrenner (1996) para compreendermos a importância de cada contexto na promoção do desenvolvimento e na qualidade de vida das pessoas. Desde os níveis mais próximos e íntimos (microssistemas) aos mais amplos (macrossitemas), cada contexto tem relevância específica. São múltiplas as possibilidades de ampliar as chances de exploração dos contextos mais próximos e, consequentemente, de potencializá-lo: dar oportunidades de desenvolver atividades de vida diária (ex: preparar refeição); facilitar o acesso a diferentes ambientes e elementos (ex: possibilidade de explorar elementos como água, terra); promover a orientação com relação a sinais do meio (ex: orientação sobre cores ou códigos); garantir a acessibilidade em dentro de casa e na comunidade; promover estimulação sensorial; criar oportunidades para escolhas e controle pessoal (ex: de luz, temperatura, privacidade, espaço pessoal).

Outra análise relevante diz respeito a contextos mais amplos envolvendo políticas internacional e nacional vigentes, postura religiosa, padrões culturais dominantes, entre outros. De acordo com Brofenbrenner (1996), tais aspectos são responsáveis pelas oportunidades de bem-estar emocional e físico das pessoas com deficiência, equiparação de oportunidades para a educação, reeducação, possibilidades de emprego, serviços sociais, esporte, lazer e direitos.

Brofenbrenner e Morris (2000) apontam ainda a importância da dimensão do tempo e sua influência sobre os diversos sistemas ao longo do desenvolvimento. No caso dos participantes deste estudo, observamos que as contingências desfavoráveis ao desenvolvimento das pessoas com deficiência não foram revertidas de forma satisfatória ao longo dos anos. Hoje, tais pessoas são adultos que ainda participam de um número reduzido de grupos sociais, vivem em ambientes protegidos, não estão incluídos na sociedade, não são independentes e autônomos.

Por fim, recorrendo à teoria do Curso da Vida, podemos compreender como a trajetória de vida destas pessoas transcorreu para que elas chegassem a esta condição de dependência e convívio social limitado. A trajetória de vida de cada um traz consequências para sua forma de ser e agir na sociedade. Segundo Néri (2001), o processo de desenvolvimento caracteriza-se pelo equilíbrio entre as diversas dimensões que o compõem, a saber: dimensão cognitiva, afetiva, social etc. No caso das pessoas entrevistadas, observamos que, ao longo da vida, não lhes foram dadas condições favoráveis ao seu desenvolvimento. Consequentemente, podemos dizer que também a qualidade de vida foi prejudicada.

Sobre o instrumento

É fundamental fazermos algumas considerações sobre o instrumento utilizado. É preciso ressaltar que este trabalho representa um esforço inicial para checar a viabilidade do uso do Questionário de Qualidade de Vida junto a pessoas com deficiência. Portanto, trata-se de um questionário não padronizado e não validado para a população brasileira de pessoas com deficiência intelectual. Esta primeira aproximação que realizamos por meio do presente estudo a tal questão parece-nos mostrar o instrumento como sendo viável e potencialmente útil: todos os indivíduos entrevistados responderam o questionário segundo as orientações estabelecidas. Desse modo, todos os itens do QQV foram compreendidos pelos entrevistados. No entanto, uma avaliação mais profunda do instrumento se torna limitada em função da população entrevistada ser pequena e frequentar uma mesma instituição. Por exemplo, pode ser que o item Produtividade tenha tido percentis elevados por ser um programa oferecido pela instituição. Se aplicado a um número maior de pessoas com deficiência intelectual e com origem em grupos sociais diversos, é bem possível que tenhamos uma melhor chance de verificar as especificidades da aplicação do instrumento na população brasileira.

Como já foi assinalado em momento anterior deste estudo, nesta primeira experiência do uso deste instrumento no Brasil, deparamos-nos com uma dificuldade na conversão dos dados em percentis. Constatamos que a tabela de conversão dos dados classifica os resultados obtidos em função do nível de deficiência que a pessoa possui. Uma mesma pontuação está relacionada, portanto, a percentis diferentes em função da variação de QI.

Para a realizarmos este estudo, porém, não dispúnhamos de um instrumento que identificasse a severidade da deficiência. Para que pudéssemos dar sequência às avaliações, optamos por classificar os deficientes participantes como pessoas com deficiência intelectual leve em função das habilidades linguísticas apresentadas. Mas não podemos garantir que alguns sujeitos deste estudo não tenham sido classificados de forma equivocada. Se fosse possível classificar os participantes segundo o grau de severidade da deficiência, talvez os percentis obtidos fossem diferentes. Além disso, os resultados também poderiam ser diferentes se o instrumento fosse padronizado e validado em amostra brasileira.

Um outro aspecto importante a ser discutido diz respeito aos conceitos de Satisfação, Produtividade, Independência e Participação Social. É fundamental que seja feita uma conceituação precisa sobre estes termos. Sabemos que é possível enfatizar aspectos diferentes considerando estes mesmos domínios e conceitos Os autores não apresentam uma definição de tais conceitos no manual do teste. Além disso, eles não apresentam nenhuma justificativa do porquê de privilegiarem este ou aquele item.

 

CONCLUSÃO

Para finalizarmos este trabalho, fazem-se necessários ainda alguns comentários. Primeiramente, esta pesquisa foi desenvolvida considerando uma amostra pequena de sujeitos (n=15) em função de ter sido realizada somente em uma instituição. Com relação ao instrumento aplicado aos participantes, destaca-se que se trata da 1ª versão na língua portuguesa do Questionário de Qualidade de Vida – QQV. Este é, portanto, um questionário ainda não padronizado e validado segundo a amostra brasileira de pessoas com deficiência mental.

Em contrapartida, pode-se dizer que os resultados obtidos contribuíram para uma tentativa de preencher a lacuna apontada na bibliografia no que se refere à qualidade de vida de pessoas com deficiência intelectual. Assim, também a versão brasileira do instrumento Questionário de Qualidade de Vida representa uma contribuição para possível validação futura. Destaca-se ainda a presença de referências inéditas sobre QV em pessoas com deficiência mental e a presença de teorias contemporâneas do desenvolvimento humano em seu corpo teórico. Pode-se dizer ainda que o trabalho serviu como alerta para especialistas, entidades, instituições destinadas à atenção a pessoas com deficiência para a importância de promover o desenvolvimento global e consequentemente, investir na melhoria da qualidade de vida dessas pessoas.

Diante dos resultados obtidos, é possível levantar algumas sugestões para trabalhos futuros:

- Desenvolver pesquisas sobre Qualidade de Vida de pessoas com deficiência intelectual com o intuito de preencher lacunas na bibliografia sobre o tema no Brasil;

- Atuar junto à família, entidades, instituições que prestam atendimento a pessoas com deficiência com o intuito de conscientizá-los da relevância de se promover o desenvolvimento global das pessoas com deficiência e da relação direta com a sua qualidade de vida;

- Atuar junto às pessoas com deficiência intelectual com objetivo de conscientizá-las sobre suas capacidades, habilidades, autonomia e independência;

- Desenvolver projetos em parceria com escolas e instituições que prestam atendimento a pessoas com deficiência mental, com o objetivo de avaliação constante de sua prática, de forma a garantir o seu desenvolvimento global.

 

 

REFERÊNCIAS

Albuquerque, S. M. R. L de (2003). Qualidade de Vida do Idoso: A Assistência domiciliar faz diferença? São Paulo: Editora Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Brofenbrenner, U. (1996). A Ecologia do Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Brofenbrenner, U. e Morris, P. A (2000). The Ecology of Developmental Processes. In: Handboook of Psycology, 993-1027.         [ Links ]

Chiu, E. (2000). Demência, depressão e qualidade de vida. In O. V. Forlenza & P. Caramelli (Orgs.), Neuropsiquiatria geriátrica (pp. 39-43). São Paulo: Atheneu.         [ Links ]

Fierro, Alfredo (2004). Os alunos com deficiência mental. In Cool, César, Marchesi, Álvaro e Palacios, Jesús. (orgs). Desenvolvimento psicológico e educação: transtornos do desenvolvimento e necessidades educativas especiais (pp 193-214), v.3. 2ª edição. Porto Alegre: Artmed (trabalho originalmente publicado em 1996).         [ Links ]

Neri, A. L (org) (2001). Psicologia do Envelhecimento. São Paulo: Papirus.         [ Links ]

Monteiro, M.da Silva (1998). A educação especial na perspectiva de Vygotsky. In: Freitas, M. T. de A. (org). Vygotsky um século depois.. .(pp 73-84) Juiz de Fora: EDUFJF.         [ Links ]

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Vygotsky, L.S. (1996). Obras Escogidas: Fundamentos de Defectologia. – vol V Madrid: Ed. Visor Dis.         [ Links ]

 

 

ANEXO

Questionário de Qualidade de Vida - QQV

Instruções

O QQV poderá ser administrado a pessoas com retardo mental que tenham linguagem expressiva e receptiva adequada. O examinador deverá ser sensível à possibilidade do respondente não compreender alguns dos itens ou o significado de algumas palavras. Se isso ocorrer, ele poderá parafrasear o item para melhorar a compreensão do respondente. Caso isso ocorra com frequência, ou se já é sabido que o entrevistado não possui adequada habilidade linguística expressiva ou receptiva, é aceitável que duas pessoas que conheçam bem o indivíduo completem o QQV.

- Instruções aos respondentes

Leia as seguintes instruções para o respondente:

Eu quero que você pense sobre onde você vive, trabalha, e se diverte; sobre a família, os amigos e as pessoas que você conhece. Juntos, vamos responder algumas questões sobre como você se sente em relação a essas situações. Se você quiser, você pode marcar as escolhas dadas para cada item; se você quiser posso marcá-las para você depois de ler e discutir as três alternativas de cada item. Por favor, tente responder cada um dos itens. Você terá o tempo que precisar. Não existe resposta certa ou errada. O que nós queremos é somente saber como você se sente em relação ao lugar onde vive, ao trabalho, à família, aos amigos e pessoas que conhece. Você tem alguma dúvida?

Se o respondente consentir, o examinador procede administrando os 40 itens do teste. Ao ler os itens, preste atenção em cada palavra. Você poderá parafrasear itens e repeti-los quantas vezes forem necessárias para assegurar a compreensão do respondente.

- Instrução para examinadores

Os examinadores devem completar o questionário sem nenhuma discussão sobre os itens ou indivíduos.

- Instrução especial para o item trabalho

Se a pessoa não trabalha, não pergunte as questões 13-20 e dê a cada uma “1” ponto.

Programas de trabalho poderão ser considerados como emprego ao responder o questionário.

 

 

 

 

 

 

 

Recebido em: Maio de 2009
Aceito em: Junho de 2009

 

 

* Psicóloga Coordenadora do Programa de Atendimento às Pessoas com Deficiência Intelectual da ALAE – Associação de Livre Apoio ao Excepcional –Juiz de Fora/MG. Este trabalho é derivado da Dissertação apresentada no curso de Pós-graduação na Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia.

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