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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. v.3 n.1 Juiz de Fora jun. 2009

 

TEMA EM DEBATE

 

Aquisição e desenvolvimento da linguagem oral e escrita

 

Entrevista com a profª Drª Nenagh Kemp*

 

 

Luciene Corrêa Miranda*

UFJF

 

 


 

 

A Doutora Nenagh Kemp é professora na Faculdade de Psicologia da Universidade da Tasmânia (Austrália) desde 2005. O currículo da pesquisadora mostra-se bastante extenso, com experiência internacional, contabilizando dois cursos de pós-doutorado: um em Vancouver – Canadá - onde pesquisou atrasos na aquisição da linguagem de crianças em situação de risco, e outro, em Manchester - Reino Unido - cuja área de pesquisa foi o entendimento precoce das crianças sobre as categorias gramaticais. Fez doutorado na Universidade de Oxford, onde estudou o desenvolvimento da escrita em crianças de idade escolar.

Suas áreas de interesse são o desenvolvimento infantil e a psicologia da linguagem (de crianças e adultos), mais especificamente a aquisição, o desenvolvimento e o uso da linguagem escrita e falada no decorrer do desenvolvimento normal ou disfuncional. Ela também demonstra interesse por projetos em outros países. Assim surgiram os primeiros contatos da Dra. Kemp com a Professora Doutora Márcia da Mota, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), quando as pesquisadoras discutiram questões pertinentes às suas pesquisas sobre aquisição da linguagem escrita e consciência morfológica. Desses contatos surgiu o convite para Nenagh Kemp vir ao Brasil.

Em fevereiro de 2009, a pesquisadora fez uma visita ao Brasil, onde pôde discutir sobre suas pesquisas com pesquisadoras brasileiras: Márcia da Mota, Jane Corrêa e Alina Spinillo. A UFJF se beneficiou muito com breve e importante: visita da australiana, pois, além das pesquisadoras, também foi possível aos alunos de graduação e mestrado em psicologia da instituição conhecerem mais de perto a Dra. Kemp e seus trabalhos na Universidade da Tasmânia. A visita culminou com o II Simpósio de Metalinguagem e Alfabetização, que aconteceu na UFJF, em 11 de fevereiro de 2009.

A Dra. Kemp gentilmente aceitou o convite de ser entrevistada, quando falou um pouco sobre suas áreas de interesse, pesquisas de âmbito internacional e outros assuntos (comunicação pessoal, maio/2009). Nossos sinceros agradecimentos por sua grande contribuição e disponibilidade ao responder às perguntas. O material segue abaixo, original e traduzido, publicado na íntegra:

 

1. Em sua visita ao Brasil, você se mostrou interessada em estudos como alguns desenvolvidos na UFJF por Mota e outros pesquisadores sobre consciência morfológica, consciência fonológica e alfabetização. Você percebe similaridades entre os estudos brasileiros e os de língua inglesa? Por que você considera esta troca de informações entre pesquisadores de idiomas diferentes importante?

KEMP: Apesar de o português e o Inglês serem línguas muito diferentes, elas também apresentam muitas similaridades. Ambas apresentam escrita alfabética – uma maneira de representar os sons com as letras, então, o som “b” é escrito com a letra “b”. Mas em ambas as línguas também existem irregularidades. Nem toda letra possui apenas um som, e nem todo som corresponde a apenas uma letra. Em alguns casos, a morfologia, ou estrutura/sentido da palavra também ajudam a determinar a grafia da palavra. Por exemplo, em português, a grafia do som /au~/ ao final de uma palavra é determinada pelo tipo da palavra, por exemplo, -am, para verbos no passado (comeram), -ão para verbos no futuro (comerão), e –ão para não-verbos (camarão). No Inglês, a grafia do som /ks/ ao final de uma palavra é –cks para plurais (socks – meias), mas –x para não-plurais (six – seis). Pesquisadores de países falantes tanto do Inglês quanto do português têm usado essas regras de ortografia para estudar o entendimento de adultos e crianças sobre a morfologia. Observar a grafia correta e incorreta de tais tipos de palavras pode nos indicar o quanto os escritores entendem sobre a estrutura e a categoria gramatical das palavras de sua língua. Muitas das pesquisas sobre alfabetização feitas no mundo são na língua inglesa, e nós frequentemente parecemos fazer generalizações com base nesta mesma língua. Também é realmente importante considerar outras línguas, para reservar mais generalizações significativas que podem ser feitas sobre a língua escrita como um todo. Por exemplo, podemos estudar se as crianças, que estão aprendendo a ler numa língua, seguem as mesmas progressões desenvolvimentais sobre a morfologia como as crianças numa outra língua. Algumas diferenças nessa progressão provavelmente podem ser atribuídas às diferenças no modo que a sua língua enfatiza a estrutura morfológica.

 

2. Alguns pesquisadores têm mostrado que os estudos sobre consciência morfológica podem ser um importante meio de auxiliar a criança a aprender a ler e a escrever. Alguns estudos de intervenção, como, por exemplo, de Nunes e Bryant, foram aplicados em salas de aula e mostraram-se satisfatórios. Na Austrália, estudos como estes já possuem implicações educacionais relevantes?

KEMP: O trabalho de Nunes e Bryant no Reino Unido mostrou que o treinamento de crianças em consciência morfológica pode auxiliar o desenvolvimento da leitura e da escrita de um modo diferente do que treiná-las em consciência fonológica, que é a melhor habilidade conhecida. Esses tipos de intervenção também podem ser aplicados com sucesso em escolas australianas, porém isso ainda não foi feito.

Na Austrália não é ensinado muita coisa sobre gramática às crianças na maioria das escolas, e então, quando vão para a universidade muitos alunos não são capazes de fazer uma definição acurada de termos gramaticais como “substantivo”, “verbo” e “adjetivo”. Isso torna mais difícil para eles usar o conhecimento da morfologia para aprimorar sua escrita. Nas respostas das próximas questões, eu irei falar mais um pouco sobre meu trabalho com a escrita em adultos.

 

3. No Brasil, a maioria dos estudos sobre consciência morfológica é direcionada à alfabetização de crianças, porém já existem pesquisas voltadas para a alfabetização de adultos. Você havia comentado sobre alguns estudos com adultos. Você pode falar um pouco sobre esses estudos?

KEMP: Em 2008, eu conduzi diversos estudos com alunos do primeiro ano da Universidade da Tasmânia para tentar melhorar sua consciência morfológica, e assim sua grafia de palavras morfologicamente complexas. Primeiro os alunos foram testados na escrita de palavras cuja grafia é determinada pela morfologia. Por exemplo, os sons finais de palavras como “terminus - término” e “generous - generoso” são os mesmos, porém os substantivos são escritos com –us e os adjetivos com –ous. Similarmente, os inícios de palavras como “antiwar - antiguerra” e “antenatal – pré-natal” são os mesmos, mas quando o sentido é “contra”, a grafia requerida é “anti” e quando o sentido é “antes” a grafia é “ante”. Metade dos participantes (o grupo experimental) foram atendidos em três sessões de intervenção nas quais lhes foram ensinados esses três tipos de padrões, e à outra metade dos participantes (o grupo controle) foram ensinados os testes padrões não-relacionados. Três meses depois, os participantes foram re-testados com palavras similares. Na maioria dos casos a grafia de tais padrões melhorou consideravelmente, mas apenas para uma pequena quantidade (geralmente em torno de 70% a 80% de acertos) e nunca atingiram a perfeição. Então, mesmo estudantes universitários podem se beneficiar com treinamentos em consciência morfológica em inglês, apesar de muito treinamento parecer necessário antes que níveis mais elevados de melhorias possam ser percebidos. Poderia ser interessante investigar se a performance dos brasileiros seria melhor pois, para usar o português, os alunos precisariam entender a gramática em pouco melhor.

 

4. Achei seu artigo “Children’s spelling of base, inflected, and derived words: Links with morphological awareness” (2006), importante porque, nesse trabalho, você pôde perceber que as performances das crianças com palavras derivadas e flexionadas era similar, além do que você também pôde ver que a consciência da criança sobre os morfemas pode aparecer mais cedo que muitos pesquisadores acreditavam. Sobre morfologia flexional, um importante ponto no Português é que há um grande número de conjugações verbais, se comparadas ao Inglês. Essa é uma questão que merece ser mais investigada. Dessa forma, atualmente o que você considera mais importante para novas pesquisas sobre consciência morfológica?

 

KEMP: O interesse sobre consciência morfológica tem crescido nos últimos anos. Parece haver vários níveis nos quais a consciência morfológica pode ser estudada. Em algumas tarefas os participantes precisam de um nível de consciência morfológica muito explícito para se saírem bem. Por exemplo, se perguntar a uma criança: “Tem uma pequena palavra em ‘teacher – professor’ que significa alguma coisa como ‘professor?’”, a criança deve ser capaz de explicar explicitamente a relação morfológica existente entre “teacher” e “teach – ensinar”, e também que uma relação similar a esta não existe entre palavras como “corner – esquina” e “corn – milho” (Rubin, 1988). Tal entendimento é difícil de alcançar, e é considerado frequente apenas em crianças mais velhas. Outras tarefas requerem um nível menos explícito de consciência morfológica, como a tarefa de analogia de Nunes, Bryant e Bindman’s (1997): a criança escuta dois bonecos dizerem: “Tom helps Mary – Tom ajuda Mary” – “Tom helped Mary – Tom ajudou Mary” – “Tom sees Mary – Tom vê Mary” ... então a criança precisa completar a sentença final. Finalmente, outras tarefas requerem um nível explícito de consciência morfológica, e implicam um conhecimento de vocabulário e sintaxe, como a tarefa de Carlisle (1988): “Farm. My uncle is a ____. Fazenda. Meu primo é um ___.” Na qual a criança precisa completar a sentença com a forma apropriada da palavra “farm”. Parece importante para futuras pesquisas esclarecer qual nível de consciência está sendo testado, antes que muitas generalizações sejam feitas sobre as correlações entre consciência morfológica e leitura, escrita e outras habilidades da língua. Muitas línguas representam a morfologia em seu sistema de escrita e, então, é importante continuar a investigar esta área “cross-linguística”.

 

5. Em seus artigos fica claro um interesse pela questão da aquisição da linguagem escrita e oral. O que tem sido possível perceber a esse respeito em suas pesquisas mais recentes com bebês?

KEMP: Para serem capazes de aprender a ler e escrever, as crianças precisam de uma forte fundamentação na língua falada. Quando eu trabalhei na “University of British Columbia” em Vancouver, Canadá, coordenei um projeto no laboratório de Janet Werker sobre os precursores da linguagem e a detecção precoce dos atrasos da linguagem. Atualmente ainda estamos analisando este trabalho, mas parece que uma boa habilidade de processar categorias fonológicas, somada à habilidade e aprender a associar objetos/eventos com palavras são as fundamentações para aprender a língua falada. Nós estamos acompanhando essas crianças durante os primeiros anos de sua infância para investigar como tais habilidades precoces podem se relacionar a suas habilidades futuras na língua falada e escrita.

 

6. Uma notícia publicada em sites brasileiros no final do ano passado falava sobre uma conferência que você proferiu sobre a relação entre a ortografia, a leitura e a abreviação das palavras em mensagens SMS. Gostaríamos de saber um pouco mais a este respeito, visto que, no Brasil, isso também acontece e parece ser um importante campo de pesquisas sobre essa peculiar forma de linguagem escrita:

KEMP: Essa é uma nova e empolgante área de pesquisa, em que há muito campo para estudo. No meu experimento, pedi a estudantes universitários para lerem e escreverem mensagens de textos na grafia normal do inglês e na grafia peculiar para tais mensagens, denominada por ela como “textese”, em que a palavra “be” costuma ser escrita como “b”, “see” como “c”, “before” como “b4”, etc. Eu percebi que, como poderíamos esperar, os alunos foram mais rápidos para escreverem mensagens na forma “textese” do que no inglês convencional, porque eles têm que apertar menos teclas. Entretanto, eles foram muito mais lentos para ler as mensagens em “textese” do que no inglês convencional. Então, parece que escrever em “textese” economiza tempo pra quem escreve, porém faz com que o leitor gaste mais tempo. Essa pesquisa foi conduzida com o método “multi-press”, no qual você pressiona uma vez para “a”, duas vezes para “b”, três vezes para “c”, etc. Na pesquisa atual nós estamos fazendo testes similares também com mensagens de texto “predictive” tanto com crianças, quanto com adultos. Essa é uma questão interessante para ser explorada em muitas línguas.

 

7. Uma última pergunta. Você gostou do Brasil? Pretende voltar?

KEMP: Sim, obrigada. Eu realmente curti minha estada no Brasil, foi uma pena que fiquei apenas uma semana. Márcia da Mota cuidou muito bem de mim, e eu gostei muito de seus colegas e seus alunos. Eu tinha interesse em conhecer a UFJF e foi muito legal conhecer os alunos de Márcia, que foram todos muito brilhantes e interessados. O clima é mais quente do que eu estou acostumada, mas eu fui me acostumando com ele, tanto que cheguei a sentir frio quando voltei para a minha casa. Eu curti muito minha visita ao Rio e o cenário interessante no trânsito de Juiz de Fora, e gostei também de experimentar pratos e frutas típicos do Brasil que eu não conhecia. Eu espero voltar um dia, e espero também que alguns de vocês venham me visitar aqui na Tasmânia.

 

 

* Luciene Corrêa Miranda é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFJF. Agradecimento a Priscila Álvares pela correção das perguntas que foram enviadas à Nenagh Kemp.

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