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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. v.3 n.2 Juiz de Fora  2009

 

REVISÃO DE LITERATURA & ENSAIOS TEÓRICOS

 

Da invenção da infância à psicologia do desenvolvimento

 

From the invention of infancy to developmental psychology

 

 

Arthur Arruda Leal FerreiraI, *; Saulo de Freitas AraujoII, **

I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
II Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo inicial uma discussão histórica (embasada no movimento da Nova História e da genealogia foucaultiana) em relação ao surgimento da psicologia do desenvolvimento. Em seguida, é proposta a hipótese de que este campo da psicologia tem como sua condição um duplo movimento: a) no século XVI, o surgimento da escola religiosa, da família como objeto de políticas de saúde e de uma experiência de infância como idade da inocência; b) no século XIX, a emergência de novas tecnologias de governo liberais, da escola laica e de uma imagem da infância calcada na evolução. Finalmente, é caracterizado o movimento de consolidação da psicologia do desenvolvimento, favorecido principalmente pelo funcionalismo norte-americano (articulado ao movimento da Escola Nova) e pelo sucesso dos testes mentais.

Palavras-chave: psicologia do desenvolvimento; história da psicologia; história da infância.


ABSTRACT

The aim of this paper is to present a historical discussion (based on the New History Movement and on the foucaultian genealogical analysis) concerning the origins of Developmental Psychology. The hypothesis that in the origin of this field of psychology there is a double movement, namely a) the appearance in the 16th century of religious school, the family as object of health policies, and the experience of infancy as an age of innocence; and b) the emergence in the 19th century of the new technologies of liberal government, the lay school, and a new image of childhood based on evolutionism, is proposed. Finally, the consolidation of developmental psychology, favored mainly by North-American functionalism (articulated with the New School Movement) and the success of mental tests, is described.

Key-words: developmental psychology; history of psychology; history of childhood.


 

 

Quando tentamos estabelecer uma história de certas áreas do conhecimento como a psicologia do desenvolvimento e a psicologia escolar, somos tentados a adotar um certo tipo de narrativa evolutiva. Nesta supõe-se um desvelamento lento e contínuo de uma essência própria e até então ignorada da infância, que vem seguido pela constituição de um saber legítimo sobre ela - a psicologia (com suas especialidades: psicologia da infância e do desenvolvimento) -, até chegar ao ponto em que há o seu encaminhamento para o seu suposto lugar natural, a saber, a escola (coroada pelo saber necessário que é a psicologia escolar). Se problemas, conflitos e obstáculos se impõem nesta história, estes são desvios contingentes de uma marcha necessária e progressiva na direção da verdade, calçada na existência de um objeto natural e universal que funciona como lastro desta história: a infância. Este objeto permaneceria o mesmo ao longo do tempo histórico; o que variaria seriam apenas os discursos e práticas sociais a serem resgatados pelas certezas do saber científico. Mas não haveria outra forma de se fazer esta história? Que outros tipos de relatos históricos poderíamos tentar estabelecer?

Em que pese a importação deste modelo histórico do campo das ciências naturais, o sentido de tal tipo de relato é, em geral, o de legitimar os saberes e instituições atualmente existentes. Alguns historiadores, contudo, operam o discurso histórico com outras finalidades e conceitos. A busca de compreensão do presente sem reificá-lo (Le Goff, 1983), ou mesmo o seu estranhamento (Foucault, 1995, p. 256) são outras finalidades possíveis. De igual modo, conceitos que nos parecem óbvios, como o de evolução, continuidade, ou mesmo o de objeto natural são alvos de problematização por parte de muitas correntes históricas, como a atual História das Ciências (de Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e Thomas Kuhn), a Nova História (de Lucien Febvre, Marc Bloch, Ferdinand Braudel, Georges Duby e Jacques le Goff) e as arqueologias e genealogias foucaultianas.

No contexto destas correntes, a história parte sempre do presente, de um problema contemporâneo que lança os historiadores num jogo interpretativo para com os atores do passado, os quais são entendidos como potencialmente portadores de formas de vida distintas das nossas atuais (postura  que aproximaria os historiadores dos antropólogos). Ao contrário dos testemunhos diretos, os historiadores contariam apenas com indícios e registros que serviriam não como provas últimas, mas sim como "monumentos" a serem interpretados. Essas histórias nada mais teriam de universal; dadas as diversas questões passíveis de serem lançadas, inúmeros seriam os objetos possíveis de serem historiados (sexualidade, loucura, morte, medo, vida cotidiana e, até mesmo, a infância). Cada qual com o seu ritmo, sua temporalidade e seus períodos no diálogo interdisciplinar com os mais diversos saberes (demografia, medicina, geografia, etc.). Tais histórias não teriam mais os sinais da continuidade e da evolução; no lugar dessas noções, impõem-se as de acontecimento e ruptura. Essa última, segundo Foucault (1972, p. 10), seria o próprio a priori do discurso histórico. Além disso, essa radical diferença entre o presente e o passado levaria à problematização da própria existência dos objetos que não teriam uma origem atemporal, mas seriam provenientes de uma irrupção, gestada por uma multiplicidade de condições aleatórias (Foucault, 1982). Esta condição forneceria aos objetos históricos uma forma de existência marcada pela raridade (Veyne, 1980): assim como eles vieram a se configurar, podem vir a se dissolver "como um rosto de areia à beira do mar" (Foucault, 1966, p. 502)1.

Como seria uma história dos saberes sobre a infância dentro desse novo quadrante histórico? Acima de tudo, uma história em que não basta apenas descrever o surgimento da psicologia do desenvolvimento em seus momentos decisivos. É preciso ir mais longe, pensar nas próprias condições de possibilidade desse saber. Para tanto, temos que recorrer tanto a fatores externos quanto internos. De fato, é inegável que nenhum desenvolvimento científico possa ocorrer em um vácuo sociocultural. Não se pode negar a influência de normas sociais e institucionais tácitas que os cientistas normalmente não questionam. No caso da psicologia, por exemplo, é necessário considerar a influência de práticas sociais sobre o estabelecimento de práticas de investigação psicológica. Logo, pensar numa história da psicologia do desenvolvimento renovada é antes de tudo romper com os relatos heróicos em que se suporiam o desvelamento de uma essência própria e, até então, ignorada da infância através do conhecimento e o seu encaminhamento até o seu lugar natural, a escola. Isso porque não teríamos mais o lastro do objeto natural, a saber, a infância e o seu suposto descobrimento progressivo pelos saberes e instituições atuais. Apenas a pura diferença entre o presente e o passado, dado na emergência de um objeto raro: a infância. No caso, isso nos conduziria a uma tese cuja equação histórica a ser evocada aqui é inversa à narrativa tradicional: da invenção da escola e das necessidades de padronização da educação, produz-se uma psicologia do desenvolvimento que cria uma certa infância. Nesse caso, nosso guia-mestre será o clássico, História Social da Criança e da Família, de Philippe Ariés (1979) que, apesar de vir sofrendo críticas, continua sendo uma referência importante para esta discussão.

 

A Invenção da Infância

Esta história da infância começa no seu grau zero, na sua ausência, tal como ocorre na Baixa Idade Média. Pode-se observar não apenas a sua ausência nas representações pictóricas, como também a de qualquer esforço de segregar o seu mundo da vida dos adultos, seja na vida sexual (esta não consistia em algo a ser oculto dos infantes), no espaço da casa (não havia o "quarto das crianças" como espaço preservado), no dormitório (a maior parte das vezes elas dormiam com os adultos), na literatura (as fábulas não eram propriamente infantis, e se podia alfabetizar com clássicos, como os diálogos platônicos), na pedagogia (as escolas livres não segregavam alunos por turmas de idades, nem favoreciam o esquema de internato ou castigos), no trabalho (era muito comum a alternativa pedagógica de se mandar um jovem realizar o seu aprendizado servindo em casa alheias; daí a origem do termo garçon), nas guerras (os exércitos não possuíam limite de idade, característica presente até o século passado, e ainda presentes em certas milícias guerrilheiras). Ainda que muitas dessas características firam a nossa sensibilidade atual, elas são marcas de muitos grupos ainda existentes (mesmo os meninos de rua, como uma rede social própria no interior da nossa) e provas da possibilidade de um mundo sem infância, sem escola e sem uma psicologia educacional e/ou do desenvolvimento.

A infância começa a se segregar como personagem e sentimento (a "paparicação") a partir do século XVI, e graças a um duplo acontecimento: 1) a diminuição da mortalidade infantil e a possibilidade de apego, restrita até então, devido às altas taxas de mortalidade na Idade Média; 2) o surgimento dos padres reformadores, portadores de uma nova moral baseada na necessidade de preservação da inocência e da racionalidade supostas nesta fase da vida. Daí o surgimento da escola em forma de internato, enquanto quarentena destinada à preservação da poluição moral suscitada pelo convívio com o mundo adulto. Supondo uma razão inversa entre idade, por um lado, e inocência e racionalidade moral, por outro, instituem-se classes diferenciadas por idade, instalando-se o castigo como correção de qualquer desvio da suposta pureza infantil. Inicia-se, neste período, o firme laço entre instituições religiosas e pedagogia, ungidas pela moral.

Paralelo a esse movimento, a família começa a se nuclearizar, a se diferenciar de uma massa social uniforme. Da instituição condutora de linhagens de parentesco, ela se transforma em espaço de gestação de sentimentos ternos entre seus membros; nasce o que Ariés designa por "família sentimento". A divisão do espaço interno a casa passa a acompanhar uma nova divisão do espaço social. De um espaço anódino, em que os cômodos não eram diferenciados e os móveis realmente móveis, deslocando-se conforme a atividade do grupo, a casa começa a ganhar compartimentos bem determinados. De igual modo, a mescla indistinta de vida privada - lazer - trabalho - ensino, presentes na casa, começa igualmente a se segregar, restando somente a primeira função em seu interior.

Tais transformações (na infância, na família e na casa) ressaltadas por Ariés (1979) apontam para o surgimento de uma nova tecnologia de poder, cunhada por Foucault (1977) de biopoder, devotado à gerência de indivíduos e populações. Ele é composto de duas vertentes: a disciplina (ou anátomo-política) e a biopolítica. A primeira, surgida no século XVII em algumas instituições fechadas como escolas, casernas e hospitais, atuaria individualizando e singularizando corpos através de técnicas de exame. A segunda, surgida em meados do século XVIII, atuaria numa escala maior, singularizando grandes populações através de modos de registro coletivos, como a estatística. No âmbito estatal, destaca-se o surgimento do Estado de Polícia (Foucault 2006), devotado ao aumento da força interna da Nação através da gestão da segurança, da moral, da religiosidade, da circulação de bens, etc. De um modo ou de outro, trata-se de uma configuração ao mesmo tempo biopolítica e disciplinar do Estado, em que o cuidado com cada um e com todos se torna a meta fundamental do governo. Um exemplo dessas novas estratégias de gestão é a campanha contra a masturbação infantil conduzida no século XVIII, tratada pelos médicos como verdadeira epidemia, apta a gerar os mais diversos males (Foucault, 2001, aula de 05 de março de 1975).

 

Um novo modo de governo, uma nova escola, uma nova infância

Entre os séculos XVI e XVIII, surgem em conjunto uma primeira forma de infância, a família burguesa e a escola, mas ainda não a psicologia. Contudo, novos acontecimentos despontam na virada para o século XIX: as formas de gestão das populações, desenvolvidas notadamente pelo Estado de Polícia, começam a ceder a novas técnicas de governo mais flexíveis encampadas pelos fisiocratas e liberais (Foucault, 2006). Tais técnicas não buscam mais o controle disciplinar de todos os fenômenos populacionais por parte do Estado, mas o seu acompanhamento em todas as suas flutuações livres e naturais. O melhor exemplo disso são as novas formas de gestão da economia, bem distintas do antigo mercantilismo: ela passa a ser acompanhada em sua liberdade e em sua ordem natural pelas livres flutuações do mercado.

Essas novas formas de gestão paulatinamente se implantam no domínio escolar: sob o pretexto de igualdade e de cidadania, o ensino laico se instaura como tarefa do Estado, substituindo paulatinamente a autoridade das escrituras pela das novas descobertas científicas. Neste quadro, no seio do movimento iluminista, surgem os círculos dos assim chamados "filantropos", um grupo de homens letrados com experiência prática como educadores. Seu objetivo era promover a transição para a sociedade burguesa através da melhoria da educação. E o desenvolvimento de indivíduos através da educação era considerado uma condição necessária para o progresso social (Jaeger, 1982).

Mudanças sutis com relação à imagem da infância e às metas do ensino são a partir daí engendradas: a pureza como essência original da criança e alvo da educação desaparecem do horizonte. Surge então uma nova infância, sem o racionalismo moral suposto pelos reformadores, mas marcada pelo primitivismo e por uma evolução a se concluir na idade adulta. Um bom exemplo desta nova configuração pode ser encontrado nas reflexões contidas no livro "Emílio" de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Supõe-se aqui a evolução natural de um ser que tem que ser tratado de uma forma livre, e conhecido em seus movimentos naturais, com a sutil correção de seu trajeto na direção do adulto cidadão e trabalhador. A nova escola pública, no esforço dessas novas técnicas de gestão naturalizantes, irá provocar o nascimento de um novo interesse nas investigações psicológicas, que culminará no estabelecimento de uma psicologia do desenvolvimento. Mas como esta articulação é produzida?

 

O Surgimento da Psicologia do Desenvolvimento

Na história da Psicologia, o primeiro tipo de investigação psicológica a se estabelecer como padrão de referência para a formação de novos psicólogos foram os experimentos empreendidos e consolidados por Wilhelm Wundt (1832-1920) na Universidade de Leipzig, a partir de 1879, data da fundação de seu famoso laboratório (Araujo, no prelo). De acordo com esse modelo, o foco deve estar na busca de processos psíquicos universais, que são encontrados na mente individual adulta e normal. E, muito embora o conceito de desenvolvimento (Entwicklung) esteja presente em toda a psicologia wundtiana, ele se refere aí ao desdobramento lógico dos processos mentais (do simples ao complexo), mas não à sua evolução ontogenética (da infância à velhice), como na perspectiva tradicional da psicologia do desenvolvimento. A observação casual da criança na vida cotidiana, embora pudesse fornecer dados empíricos interessantes, jamais poderia conquistar a importância dada aos experimentos bem planejados e controlados. Além disso, a criança não era considerada um sujeito experimental adequado, sobretudo devido às limitações de entendimento e comunicação2. Uma psicologia do desenvolvimento infantil, portanto, era a última coisa que esse modelo poderia encorajar e produzir.

Bem menos conhecido, entretanto, é o fato de que a primeira idéia de uma psicologia científica do desenvolvimento infantil surgiu nesse mesmo contexto alemão do século XIX, paralelamente à consolidação dos trabalhos experimentais de Wundt. Isso se deu graças à rápida penetração na Alemanha da teoria da evolução, que teve em William Preyer (1842-1897) um de seus maiores entusiastas. Preyer foi um dos primeiros a se apropriar dos princípios da teoria de Darwin, aplicando-os a amplas esferas da vida humana. Nesse sentido, estabeleceu um programa abrangente para explicar o desenvolvimento físico e mental na infância, que culminou na publicação, em 1882, de sua obra principal - "A Mente da Criança" (Die Seele des Kindes). Caminhando na direção contrária à de Wundt, Preyer insistiu na confiabilidade científica dos estudos observacionais sobre a criança. Além disso, estabeleceu as implicações práticas de sua teoria e concebeu um ideal pedagógico, que teve muita influência na reforma educacional alemã no final do século XIX (Jaeger, 1982).

Mas foi nos EUA que a psicologia do desenvolvimento encontrou um solo fértil para o seu florescimento e amadurecimento. Uma das figuras fundamentais nesse contexto foi G. Stanley Hall (1844-1924). Tendo sido aluno de Wundt em Leipzig, Hall retornou aos EUA e fundou, em 1883, o primeiro laboratório de psicologia experimental na América. Além de ter sido o primeiro a ocupar uma cátedra americana de psicologia, ele foi também fundador e editor do Pedagogical Seminary (1891), um dos primeiros periódicos dedicados à questão do desenvolvimento, e autor do primeiro livro-texto sobre adolescência - Adolescence (1904). Finalmente, mas não menos importante, ele foi responsável pela formação de uma geração de influentes psicólogos, cujos interesses estiveram diretamente ligados à psicologia do desenvolvimento e da educação: J. M. Cattell (1860-1944), J. Dewey (1859-1952), A. Gesell (1880-1961) e L. Terman (1877-1956), entre outros.

Se a influência de Hall foi mais no plano organizacional e institucional que no das idéias, o mesmo não pode ser dito de James Mark Baldwin (1861-1934), que teve um papel central na sistematização da psicologia do desenvolvimento nos EUA. Entre outras contribuições, ele defendeu o uso do método genético nas investigações psicológicas e propôs uma teoria geral do desenvolvimento cognitivo baseada na gênese das operações lógicas, que teve uma influência decisiva no pensamento de Jean Piaget (1896-1980). Mas a importância de Baldwin não se restringe a isso. Sua análise das interações sociais e da influência do contexto social na formação da personalidade - que o levou a postular uma "dialética do crescimento pessoal" - revelam-se surpreendentemente atuais (Cairns e Ornstein, 1979). Infelizmente, porém, o pensamento de Baldwin permanece em grande parte ignorado na psicologia contemporânea.

Um outro fator importante no surgimento e na consolidação da psicologia do desenvolvimento foi a construção dos primeiros testes mentais e suas aplicações. Em primeiro lugar, deve-se aqui ressaltar a influência de James McKeen Cattell (1860-1944), que também foi aluno de Wundt em Leipzig. Além de ter sido o primeiro a usar o termo ‘teste mental’, Cattell estabeleceu, em 1890, um dos primeiros programas gerais de medidas psicológicas em seu célebre artigo - "Medições e Testes Mentais" (Mental Tests and Measurements). Muito embora seu programa tenha fracassado em vários aspectos importantes, o movimento dos testes mentais deve muito a Cattell, que foi também um dos primeiros a ver a utilidade dos testes e a "vender" tecnologia psicológica para as necessidades públicas (Sokal, 1982, 1990). Mas é a Alfred Binet (1857-1911) que a psicologia deve realmente o sucesso dos testes mentais. Ao contrário de Cattell, que se concentrou nos processos psíquicos elementares (sensação, discriminação, etc.) em situações artificiais, Binet estava preocupado principalmente com os processos complexos ocorrendo em situações práticas. Dessas suas preocupações resultaram os famosos Testes Binet-Simon (1905), que juntos forneciam a primeira escala de avaliação da inteligência. A motivação básica dos autores era a necessidade prática de separar na escola as crianças normais das mentalmente deficientes. Dessa forma, nascia a idéia de uma "idade mental", que se diferenciava nitidamente da idade cronológica do indivíduo, ainda que permanecesse a ela relacionada. Finalmente, foi esta iniciativa de Binet que gerou o otimismo generalizado e serviu de base para as várias adaptações feitas por psicólogos americanos, visando à avaliação da capacidade mental tanto de crianças escolares quanto dos recrutas do exército americano na Primeira Guerra Mundial. Todo esse movimento acabou culminando, em 1916, na padronização do teste que virou referência para todos os testes posteriores de inteligência - o Teste Stanford-Binet de Inteligência (Cairns e Ornstein, 1979; Gardner, 1998).

De acordo com Danziger (1987), é somente olhando para os fatores socioeconômicos que iremos compreender adequadamente o surgimento do "modelo galtoniano" de prática investigativa, que se opõe ao modelo wundtiano descrito anteriormente. A diferença crucial diz respeito ao abandono da análise dos processos psíquicos nas mentes individuais em favor da distribuição de características psicológicas em grupos e populações. Trata-se aqui de padronização e ordenação dos fatores individuais a partir de normas grupais. Foi devido à expansão e à burocratização dos sistemas educacionais nos países economicamente desenvolvidos que uma massa de pessoas jovens passou a ser uma fonte de novos problemas psicológicos e, consequentemente, constituiu-se em um fundo potencial de conhecimento psicológico, e foi particularmente para os novos administradores escolares que a tecnologia psicológica foi inicialmente produzida. Tudo isso facilitou a inscrição do desenvolvimento infantil nas novas técnicas de gestão liberais, aliando conhecimento dos fenômenos naturais à sua presumível liberdade. Apesar de esse fenômeno estar presente em alguns países da Europa, foi especialmente nos EUA que esses novos métodos psicológicos de investigação e produção tecnológica floresceram, o que explica também o enorme sucesso do movimento dos testes mentais na psicologia americana (Sokal, 1990).

Em que pese, porém, a influência dos fatores externos, é preciso considerar também a importância de aspectos internos à atividade científica. Nesse caso, o evolucionismo ocupa um lugar central no plano intelectual do século XIX e nos interessa aqui particularmente. Por motivos de espaço, restringiremos nossa análise à influência de três figuras marcantes que, por sua vez, influenciaram decisivamente o pensamento psicológico norte-americano: Charles Darwin (1809-1882), Herbert Spencer (1820-1903) e Francis Galton (1822-1911). A importância de Darwin para o desenvolvimento da psicologia tem sido merecidamente reconhecida, sobretudo no que diz respeito às implicações de sua teoria da evolução e de seus estudos naturalistas para a compreensão dos fenômenos psíquicos. Já vimos anteriormente que Preyer era um darwinista declarado e que sua psicologia do desenvolvimento depende totalmente dos princípios e métodos darwinistas. Mas também nos EUA a influência de Darwin se fez presente logo cedo. Autores como William James (1842-1910), um dos "pais" da psicologia americana e o já mencionado James Baldwin, defenderam abertamente em suas teorias psicológicas idéias como a de adaptação, entre outras. Mas é a Spencer que devemos uma boa parte do prestígio do pensamento evolucionista na psicologia do século XIX. Ainda antes da publicação de "A Origem das Espécies" (1859), Spencer já tinha aplicado o pensamento evolucionista às esferas social e mental, culminando naquilo que ficou posteriormente conhecido como "darwinismo social". Em sua obra psicológica clássica - Princípios de Psicologia (Principles of Psychology), publicada em 1855 - os conceitos de ajustamento individual e de luta pela sobrevivência ocupam um lugar central na sua explicação. Na virada para o século XX, entretanto, foi Darwin quem esteve quase sempre associado à psicologia do desenvolvimento que começava a surgir. Por fim, um outro fator intelectual relevante nesta história é o estudo sistemático das diferenças individuais - relacionado à idéia darwiniana de variabilidade -, que teve Galton como seu primeiro defensor e entusiasta. Sem a insistência de Galton no valor das diferenças individuais para a compreensão de características psicológicas, o movimento dos testes mentais seria impensável (Buxton, 1985a, 1985b). Foi este novo padrão de prática investigativa que Danziger chamou de "modelo galtoniano" (Danziger, 1987).

Diretamente ligada a todas essas tendências intelectuais é que se constituiu a primeira "escola" de pensamento psicológico nos EUA - o funcionalismo. Graças ao pragmatismo filosófico de James, aliado aos esforços de John Dewey (1859-1952), os psicólogos americanos ganharam uma primeira orientação geral, que veio a culminar na estruturação da perspectiva funcionalista da "Escola de Chicago", cujos membros principais eram, além de Dewey, James Rowland Angell (1869-1949) e Harvey Carr (1873-1954). Essa orientação funcionalista serviu não só como estímulo, mas principalmente como suporte teórico e metodológico para os estudos sistemáticos sobre o desenvolvimento psíquico humano e suas possíveis aplicações no contexto da escola (Buxton, 1985a, 1985b; Schultz e Schultz, 2006). Não é de modo algum gratuito que alguns defensores da Escola Nova (movimento em prol da Escola laica) fossem igualmente psicólogos funcionalistas (que tomam o modelo darwinista de adaptação do organismo ao meio como paradigma da psicologia). Busca-se estudar na psicologia e promover na escola a adaptação da criança a seu meio, observando-se seus interesses e instigando a sua inteligência através da proposição de situações-problema. Não a disciplinando, como faziam as antigas formas educacionais, mas acompanhando seus interesses de forma livre.

 

CONCLUSÃO

Desta breve história podem se extrair duas coisas: 1) a educação escolar não é efeito, mas causa da existência da infância como conhecemos; 2) as modificações na educação escolar trazem mudanças na própria essência da infância e demandam uma psicologia que promova esta articulação entre escola e infância. Mas não se trata de qualquer psicologia: a diferença entre o modelo wundtiano de psicologia do século XIX e o norte-americano, em sua orientação funcionalista, exemplifica um espaço de articulação para uma psicologia do desenvolvimento. Através desta, forma-se a rede entre educação pública - evolucionismos - psicologia. De um modo bem claro, a psicologia pôde assim articular práticas sociais (oriundas da escola), modos de governo (as formas liberais), conceitos científicos (evolução, adaptação e função) e novas configurações da infância, permitindo naturalizar e sedimentar o que foi gerado no conjunto das práticas históricas

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Arthur Arruda Leal Ferreira
Rua do Riachuelo 169/ 405. Centro Rio de Janeiro – RJ. CEP: 20.230-014.
E-mail: arleal@superig.com.br

Recebido em Agosto de 2009
Aceito em Setembro de 2009

 

 

* Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Pesquisador bolsista do CNPq.
** Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: saulo.araujo@ufjf.edu.br
1 Estas observações sobre a nova história encontram-se desdobradas no artigo Para além da história das ciências: as novas histórias em diálogo com a história da psicologia (Ferreira, 2006).
2 Para uma explicação mais detalhada da concepção de objeto e método da psicologia wundtiana, ver Araujo (2007).

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