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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.3 no.2 Juiz de Fora  2009

 

RELATOS DE PESQUISA

 

Genealogia de uma comunidade: a trama da trança

 

Genealogy of community – the tram of the braid

 

 

Sonia BahiaI,*; Regina AndradeI,**

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Este artigo discute a sucessão e a transmissão da cultura na Comunidade da Mangueira, buscando entender de que forma se estruturam as relações entre os principais sujeitos implicados nessa ação. Toma como unidade de análise o Centro Cultural Cartola e, pela trama existente, examina as ligações com os responsáveis pela Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. O estudo identifica duas famílias herdeiras do projeto do Samba na Comunidade e verifica como se relacionam para instituir as lideranças do samba naquela comunidade. Termina por identificar a genealogia dessa sucessão a partir de duas mulheres – D. Neuma e D.Zica, reconhecendo como suas herdeiras dão continuidade à ação dessas matriarcas, e aponta uma rivalidade fraterna, estruturadora dessa relação, tal como uma trama trançada, fazendo um movimento helicoidal semelhante ao DNA genético humano.

Palavras-chaves: Genealogia, Comunidade, Liderança, Transmissão Cultural


ABSTRACT

This article discusses the succession and the transmission of the culture in the Community of the Mangueira, searching for understanding in which way the relations among the main citizens implied in this action are structured.. It takes as unit of analysis The Cultural Center Cartola, and, for existing plot, examines the link with those responsible for the Scholl of Samba the First Mangueira Station. The study identifies two inheriting families of the project of the Samba in the Community and verifies if they relate to institute the leaderships of Samba in that community. It finishes by identifying the genealogy of this succession from two women – D. Neuma and D. Zica, recognizing as their heiresses have continue the action of these matriarcs, and point to a fraternal rivalry, that gives structure to this relation, as a locked plot, making similar helical movement to human genetic DNA.

Keywords: Genealogy, community, leaderships, transmission of culture.


 

 

O presente estudo apresenta recortes pontuais de uma pesquisa intitulada A genealogia de um lugar, realizada na Comunidade da Mangueira, no Rio de Janeiro. Guiando-se por perguntas do tipo "Como se dão a sucessão e a transmissão da herança na comunidade da Mangueira?" "Como se repassa cultura?", deparou-se reconstruindo uma genealogia. Este termo remete à condição de sucessão, à memória reconstruída e reafirmada. Ao longo do trabalho, foi-se apercebendo que as condições sociais que eram remontadas faziam o mesmo movimento helicoidal das cadeias do DNA que se organizam em pares, em forma de escadas que "giram" e formam a chamada dupla hélice. A ordem desses pares determina como é o funcionamento do ser humano. Da mesma forma, a genealogia dessa comunidade são duas hastes modelares, duas famílias herdeiras que, numa dança trançada, elaboram um ritual, uma trama e um argumento de sucessão. O subtítulo deste trabalho revela o movimento feito pelas famílias para reafirmar suas posições e lugares, ressaltando que é na sustentação entre elas que se processa a herança. Este trabalho consiste, portanto, em desvendar a trama como os fios foram trançados para revelar a condição da liderança.

Através das informações levantadas durante o ano de 2006, buscou-se identificar o perfil das lideranças da comunidade, no intuito de refletir de que maneira essas lideranças se articulam entre si e institucionalizam a herança e continuidade dentro da comunidade e em que medida constituem formas originais de subjetivação, assim como traduzem as suas tradições e, ao mesmo tempo, operam transformações, visando à manutenção e à sobrevivência de seus grupos. Nesse sentido, este trabalho propõe identificar como tais lideranças estabelecem novos acordos culturais que podem significar maneiras diferenciadas de sociabilidade, ajustadas à contemporaneidade.

Encontram-se, de imediato, alguns traços bem marcantes na referida comunidade. Nela há duas famílias herdeiras do Projeto do Samba, configurado na Escola Estação Primeira da Mangueira. Elas se distinguem nitidamente pela forma como lidam com suas heranças. Fazem um movimento de cumplicidade e dissensão entre si, marcando territórios, ao tempo que se complementam nessa tensão que se constitui, por isso mesmo, numa estrutura de interação, permitindo-lhes moverem-se no mundo. Dessa forma, sustentam suas relações e permitem a vinculação de novos atores nesse cenário.

A segmentação na estrutura da comunidade é marcada, claramente, de um lado, por um projeto estético humanista, através do qual a arte clássica e barroca ganha um espaço de inserção ímpar no engajamento e superação das vulnerabilidades ali encontradas; de outro lado, por um projeto assistencialista comunitário, no qual se reflete o sentimento de solidariedade de seus cotidianos. Nesse subconjunto da comunidade, a memória e as tradições familiares constituem a sustentação das práticas através das quais abrigar o frágil, auxiliar o outro e compartilhar o viver sobrepujam qualquer dificuldade que se apresente, como afirma um dos membros da Escola: [...] aqui ninguém morre por falta de apoio. A comunidade é a máxima; a Mangueira, a religião1.

Numa análise mais detalhada desse cenário, veem-se como alguns aspectos ganham sentidos diferenciados nas duas alas da segmentação. A forma como lidam com a sexualidade, com a religião e com o conhecimento sistemático, formal, são exemplos de concepções que as distinguem, além do entrelaçamento e da via cruzada, através dos quais a herança é transmitida. É possível depreenderem-se, na sucessão, algumas insígnias distintas que foram invertidas, embora a casa onde vivem essas famílias, e o Projeto do Samba, as unam.

Nesse sentido, refazer a Genealogia de uma comunidade leva a várias e diversas direções, sejam dos suportes teóricos, que permitem um enquadre epistemológico de entendimento, sejam daqueles provenientes da própria realidade empírica. Esses caminhos contêm atalhos, idas e vindas contínuas e, portanto, se tornam dialéticos, visto que, em alguns momentos, expõe-se a teoria que revela uma prática e, em outros, revela-se uma prática que contém uma questão teórica evidente, porque a metodologia utilizada buscou sempre a legitimação das falas dos autores e dos sujeitos sociais envolvidos nesse processo

 

SOBRE GENEALOGIA E COMUNIDADES

Genealogia é uma palavra de origem grega e abarca uma variedade de significados. Para os leigos, tem o sentido de conhecimento; para os eruditos, remete ao objeto da ciência. A genealogia dedica-se ao estudo de famílias, sua origem, sua evolução, descrevendo as gerações em cadeia e traçando, sempre que possível, a história de vida dos seus membros e dos sujeitos a elas pertencentes.

Carreteiro (2001, p. 121), baseada em Legendre (1985), afirma que, [...] a genealogia é o imperativo que fundamenta a ordem social, posto que ordena os objetos, que nos identificam, tratando de designar, classificar e de dispor da questão da identidade. E a filiação é o eixo de produção da instituição genealógica e jurídica.

A ordem genealógica inscreve o sujeito num conjunto de relações no qual cada um encontra referências e limites, reconhecendo seu lugar na espécie. A partir desse lugar, o sujeito pode, ao mesmo tempo, fazer a identificação ou a diferenciação dos demais.

A técnica da genealogia vem sendo usada por algumas linhas de pesquisa em Psicologia, permitindo investigar as trajetórias dos sujeitos, buscando identificar os pontos mobilizadores de suas escolhas, que servem de ancoragem para seus projetos de vida. De Gaulejac (1995) utiliza essa metodologia a fim de identificar as originalidades dos sujeitos individuais e coletivos em suas construções, considerando que o sujeito é fruto de suas sobredeterminações sociais e de suas injunções psíquicas inconscientes. Da mesma forma, esse teórico afirma que reconstruir ou perceber a genealogia permite a compreensão do lugar ocupado na constituição familiar no sistema de ascendentes e descendentes e no sistema de alianças, configurando o que denomina de classificação e nominação. Para De Gaulejac (1999), a nominação atribui aos sujeitos a sua inscrição em uma linhagem, podendo conter dois aspectos: aqueles da ordem de suas singularidades, quando se trata da definição dos pré-nomes, contendo uma possibilidade de sua originalidade na família; e aqueles que expressam as suas relações no estatuto da parentalidade, remetendo, dessa forma, aos papéis de pai, mãe, filhos e da consequente prescrição e proscrição sexuais.

Nesse âmbito específico, podem-se encontrar discussões correlatas trazidas por Bourdieu (1997), quando revela as contradições que podem ser encetadas na adjudicação ou aceitação de tais projetos de herança pelos herdeiros e as consequências que daí são geradas.

No texto Romances familiares (Freud, 1977), é possível encontrarem-se, com base na teoria freudiana, referências específicas sobre a herança e a trajetória dos desejos do sujeito, não só revelando o conjunto de fantasias psíquicas que se engendram a partir do lugar de herdeiro, mas também revelando uma fonte de limite ao próprio autoengendramento do sujeito de se considerar todo poderoso, posto que a ordem familiar o insere numa teia de relações da qual ele é um dos elementos.

No presente trabalho, tomou-se a genealogia como técnica e como epistemologia, uma vez que a concepção de sujeito que subjaz a essa linha teórica aponta que os sujeitos se inscrevem em uma dupla inserção, a saber:

• Inscrição genealógica – O sujeito se situa em uma cadeia genealógica. Ele é portador de um projeto que assegura a continuidade da linhagem, transmitindo-a a uma geração futura, tornando-se agente de uma historicidade familiar.

• Inscrição cidadã – O sujeito é instituído pertencendo a uma sociedade, exercendo seus direitos e deveres e sendo capaz de intervir na vida da polis. (De Gaulejac, 1999, p. 57).

Do ponto de vista comunitário, estudar a genealogia permitiu pensar sobre esses complexos mecanismos de inscrição e sobre a eclosão de sentimentos de pertencimento a famílias, grupos, coletividades e sociedades, ainda que tais inscrições possam se apresentar comprometidas quando o seu reconhecimento é posto à prova.

A genealogia, quando compreendida no seio das comunidades, apresenta originalidades que incorporaram dados e suportes provenientes da Antropologia para ampliar a leitura e o cruzamento dos dados dessas heranças. A teoria estruturalista do antropólogo Levy Strauss (1971) esclarece que, em uma comunidade, dada a necessidade de regular a relação, os grupos estabelecem, muitas vezes, um conjunto de rituais equivalentes, que tratam de rivalidades e enfrentamentos como forma de fortalecimento e de marcação de suas identidades.

Para Zaluar (1998), a rivalidade, enquanto dado estruturador de relações, pode ser vista em várias comunidades nacionais e internacionais, mas no Rio de Janeiro e, posteriormente, em outras cidades brasileiras, nas favelas e em bairros populares, as escolas de samba, os blocos de carnaval e os times de futebol podem ser entendidos como uma forma dessa representação, expressando a rivalidade entre eles. Muitas vezes, a apoteose das festas representa a forma de conflito e a sociabilidade, a qual prega a união, a comensalidade, a mistura e o festejar como antídotos da violência sempre presentes, mas contida ou transcendida pela festa.

Para Lessa (2000, p. 298), é importante perceber:

[...] como no território da favela se desenvolvem sistemas de relações sociais, hierarquias de poder e complexos códigos inscritos. A insuficiência de cidadania, reduzida cobertura social, precária assistência jurídica, fazem surgir um conjunto de comportamentos e ritos respeitados no âmbito da favela. Complexas hierarquias de poder inspiradas na família patriarcal. Os fundadores do lugar, os pastores e, na atualidade, os traficantes constroem códigos de conduta e respeito severos.

Os estudos sobre comunidades têm várias possibilidades de entendimento, seja porque esse fato social se reporta a um espaço de convivência real, seja pelo aspecto simbólico que a palavra comunidade remete aos que a pronunciam – referência a um local específico, ou a um lugar idealizado, fantasiado como um bom lugar. Normalmente, a palavra comunidade é utilizada por moradores de periferias, explicitando um sentimento positivo em relação ao lugar. Por isso desenvolvem relações de vizinhança, denotando um local onde é possível encontrarem-se laços de solidariedade para a sobrevivência.

Vários são os teóricos que se dedicam aos estudos das comunidades – Simmel (1849) e Tonniës (1944); Lane e Sawaia (1986; 1987) no Brasil; Martin Baró (1983) em El Salvador (cf. Freitas Campos, 1996). Parece, contudo, que o sentimento de comunitarismo é o principal elemento que emerge dessas pesquisas.

Na atualidade, Bauman (2001; 2003) está se dedicando aos estudos de várias temáticas contemporâneas, entre elas o sentimento de comunitarismo que vem ressurgindo na atualidade como uma reação acelerada à "liquefação da vida moderna". A abordagem das questões comunitárias, entretanto, pode requerer um exame mais aprofundado do que se depreende como comunidade, uma vez que há certo radicalismo e saudosismo ensejando uma contradição sobre seus propósitos. Para Bauman (2001, p. 195), tal sentimento é [...] uma reação antes e acima de tudo ao aspecto da vida sentido como a mais aborrecida e incômoda entre suas numerosas consequências penosas – o crescente desequilíbrio entre liberdade e garantias individuais. E assim, problematiza quais os dilemas humanos que movem o crescente desejo e a fantasia do encontro de uma comunidade idealizada e quais os paradoxos e contradições que tal projeto encerra. Para esse teórico, essa busca, por um lado, demonstra um desejo primevo de pertencer a um grupo de referência, de ter um lar onde se abrigar e se proteger; por outro lado, recoloca a impossibilidade de convivência com os diferentes. Assim, tais comunidades se tornam tribos e guetos com códigos de conduta fechados, alguns afiançados nos velhos sentimentos de patriotismo e culturalismo que impedem uma dinâmica de abrigamento da solidariedade sonhada. Bauman destaca, também, que as fronteiras e os limites se tornam formas de resistência ao aniquilamento que a sociedade líquida e desabrigada engendrou. As sonhadas segurança e harmonia permeiam os discursos mais comoventes de guerras fratricidas e violentas que se esgueiram em cada esquina de cada comunidade, e cultura, que se fecha em si mesma, em nome dos velhos ideais iluministas da natureza humana. A impossibilidade de se desenvolverem laços com a civilidade universal é cada vez mais evidente, e a coerção continua sendo ainda a única possibilidade de manter algum traço de união entre os pertencentes de dentro e de fora das comunidades reais.

Dessa maneira, as reflexões aqui feitas não só tomam como referência os teóricos estudados, mas, sobretudo, se ancoram na experiência de campo, na escuta dos sujeitos sociais com quem se interagiu ao longo desta pesquisa. Foi feito o percurso de suas histórias de vida. Todos esses sujeitos mantêm ligações profundas com a Escola Estação Primeira de Mangueira, possuindo laços estreitos com a comunidade local e tendo representatividade perante seus pares.

 

A COMUNIDADE DA MANGUEIRA

A favela da Mangueira, situada próxima ao bairro do Maracanã, surge no amálgama de vários contingentes populacionais. A Mangueira é um visual fascinante. A frente limitada pela Rua Visconde de Niterói; o lado esquerdo margeado pela Rua Ana Néri, que termina no Largo do Pedregulho, início da Rua São Luiz Gonzaga, limite dos fundos; à direita tem-se a Quinta da Boa Vista.

Sua história remonta desde 1852, quando se inaugurou o primeiro correio aéreo do Brasil. Como era também uma região que produzia muitas frutas,mangas em especial, o senso comum tendeu a identificar o morro como sendo o Morro das Mangueiras. Este foi um nome tão forte que, em 1889, ocasião da inauguração da Central do Brasil, se batizou a estação e sua circunvizinhança também de Estação Mangueira. Mesmo que hoje se trate de um espaço público, pertenceu a Francisco de Paula Negreiros Saião Lobato, o Visconde de Niterói, que o recebera como presente do Imperador Pedro II. Aos poucos, com a República, autorizou-se que alguns militares lá construissem seus casebres, e outros moradores foram instalando os seus barracões, inclusive vários soldados do nono Regimento de Cavalaria. Em diferentes épocas sociais, mormente aquelas em que a imigração nordestina foi incentivada, as pessoas foram invadindo e se apropriando do espaço.

A Mangueira tornou-se, então, uma comunidade de gente pobre, constituída quase que na sua totalidade por negros, filhos e netos de escravos, inteiramente identificada com as manifestações culturais e religiosas que caracterizavam esse segmento social e racial.

Diversas foram as tentativas de reapropriação do morro por parte de possíveis herdeiros dos reais proprietários, mas os governos do Rio de Janeiro foram resguardando os direitos dos que lá residiam, instituindo políticas públicas no sentido da legitimação desses moradores. Destaque-se aqui a ação da Igreja Católica que, numa alavancagem notável, deu apoio a tais populações no que tange a auxiliá-las na busca dos direitos civis, principalmente os relacionados aos serviços públicos de água, luz, esgoto e transporte.

A Comunidade da Mangueira se constitui, como as demais comunidades cariocas, numa zona de convergência de pobreza e exclusão social. Entretanto guarda para si mesma e para os cariocas uma imagem de ser uma das comunidades mais tradicionais e populares do Rio de Janeiro. Isso se deve, em parte, à imagem que a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira representa, como berço de grandes sambistas e do próprio samba. Quem ouve ou lê sobre a história do Morro da Mangueira e da sua Escola de Samba adentra logo no cenário de segmentação e paradoxo que cercam a existência da comunidade, do ponto de vista da história contada e do ponto de vista da sobrevivência de seus moradores.

Numa comunidade como essa, cuja marca é a carência, vários ritos são instituídos; a adoção, o compadrio e as redes de sustentação ocultas são alguns exemplos. De acordo com Lessa (2000, p. 303), "é muito forte o conceito de localidade como espaço que privilegia vizinhança, amizade consolidada e laços potenciais de parentesco. O morador se percebe como um conquistador, desbravador, alguém que construiu tudo a partir do nada, alguém que se bastou a si próprio. Tem consciência das carências, porém valoriza a obra de décadas de trabalho e se orgulha do lugar. Valoriza como especial a coesão vigente na comunidade e, aliás, esta postura é basilar para a construção da identidade da micronação favelada".

Por isso, a topografia do lugar pode, muitas vezes, como no caso do presente estudo, apontar as zonas de frequência de um determinado grupo e as que são consideradas inapropriadas para outros. Essa disposição do campo aponta simbolicamente quem é quem. Assim é com o Buraco Quente , [...] apropria-se simbolicamente dos espaços... E na nação mangueirense foi construída com orgulho a identidade do "Buraco Quente"2. Para eles, é considerado ponto de inspiração de compositores, é lugar de bamba onde a polícia não se mete. (Lessa, 2000, p. 304).

Encontra-se, nos depoimentos coletados, certa reticência em relação a ser frequentador desse espaço; só os mais ousados e destemidos são respeitados e continuam freqüentando o local.

A consideração dualista da favela vem acompanhando sua história, desde o século passado, de lugar de desordem e de falta de higiene a lugar de amizade leal. Essas considerações sobre o ser favela mudam ao sabor dos ventos políticos e sociais, mas vários são os teóricos que afirmam ser [...] um complexo coesivo, extremamente forte em todos os níveis: família, associação voluntária e vizinhança (Boschi, 1970 in Zaluar, 1998).

Perlman (1976) chega a afirmar que "[...] os favelados, além de estarem dotados de forte sentimento de otimismo, teriam uma vida rica de sentimentos associativos, imbuídos de amizade e espírito cooperativo e relativamente livres de violência [...], situação que perdura até a década de 80" ( p. 136).

Na Comunidade da Mangueira, há alguns personagens entrelaçados pelos vínculos da amizade, do comprometimento e da sensibilidade; outros se relacionam a partir de suas diferenças de linhagem que marcam um território, uma descendência, e que buscam estabelecer uma origem como verdadeira, numa hierarquia de poder.

Com a fundação de sua escola de samba, aparecem as diferenças em sua genealogia. Há, por assim dizer, uma disputa velada sobre o real fundador do movimento do samba. Para alguns foi Carlos Cachaça e Saturnino Gonçalves; para outros, quem dignificou essa estrutura foi Agenor de Castro, o Cartola.

Pode-se afirmar que sempre houve uma rivalidade atravessando os blocos, os ranchos e as sociedades de carnaval, tanto assim que, no início da fundação da Estação Primeira de Mangueira como escola de samba, em 28 de abril de 1928, não houve a adesão de toda a comunidade. Essa consolidação só veio a ocorrer no segundo ano de sua existência, quando já se pode dizer que a Escola representava o morro. Essa disputa velada sempre se fez presente, como se pode observar nas letras dos primeiros sambas enredos da Escola: Linda demanda existe no samba, a nossa luta sem rancor. Mangueira, Osvaldo Cruz, Estácio, a amizade que estreita os laços só por amor. (Composição de Saturnino); ou Chega de demanda, chega! Com esse time temos que ganhar, somos a Estação Primeira. Salve o Morro da Mangueira! (Composição de Cartola).

Justifica-se, assim, o fato de que se encontram versões diferentes sobre o surgimento do samba e da Escola, mas os principais personagens dessa história – Carlos Cachaça, Cartola, Saturnino, Isnar, Pedro Paquetá, Mansur e outros – sempre são citados ainda que em papéis distintos. Encontra-se, nos relatos obtidos, essa competição. Mais do que uma disputa pessoal entre os compositores, constitui-se em algo que alimenta a história do samba, pois, segundo consta, eram grandes amigos e parceiros. A competição, até hoje, é alimentada e é responsável pela diferença na herança, determinando uma estrutura na composição específica da genealogia da comunidade, interferindo na sucessão dentro da comunidade.

Em depoimentos colhidos em momentos distintos, obtiveram-se duas falas que explicitam a diferença hoje sentida e que determinam esse cenário na composição da estrutura dos herdeiros. Uma das histórias que alimenta o sentido da herança é assim narrada por um dos segmentos da comunidade:

- "Quem fundou a Mangueira foi meu avô. Era aniversário de uma tia minha [personagem idosa, mas ainda viva], estava fazendo cinco anos de idade nesse dia 28 de abril, e o pai dela demorou de aparecer na festa. Devia estar em alguma roda de samba" [a informante sorri ao contar isso]. A filha indagou: "– Puxa, pai! Era meu aniversário e você não apareceu!" No que ele responde: "– Mas, filha, é porque eu estava fundando uma escola de samba para te dar de presente"3.

Num outro depoimento, encontramos alguns elementos norteadores dessa herança e propriedade. "[...]Minha família é fundadora deste empreendimento que é a Escola de Samba da Mangueira, do samba, a maior empresa do mundo, e não podemos deixá-la morrer, tenho um compromisso de continuar; herdei um bastão"4.

 

Duas Mulheres, Duas Primeiras Damas: A Tradição em Herança, a Sucessão e o Feminino

Neuma Gonçalves da Silva (1922-2000), Dona Neuma, nasceu no subúrbio de Madureira, no Rio de Janeiro, filha de Saturnino Gonçalves, um dos fundadores do bloco dos Arengueiros, que mais tarde originou a Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Desde criança, conviveu com os grandes compositores da Escola – seu pai era um deles. Integrante da Velha Guarda, foi tida como uma das grandes damas da localidade. Sua ação não se limitava em ser apenas uma grande sambista, por isso é considerada um baluarte na luta pela afirmação do samba de raiz e pela Mangueira – sua escola, seu tudo, sua vida, como ela bem gostava de dizer. Orgulhosa de si mesma, sempre tinha as portas abertas a todos que a procuravam. Era acolhedora, sobretudo para com as crianças e com os menos providos; não só dava abrigo, mas remédio e educação a quem lhe recorria. Em alguns momentos, moravam com ela mais de 30 pessoas. É conhecida também pelo particular método de alfabetização que desenvolveu - através de palavrões. Famoso também é o episódio do uso do telefone de sua residência por todos dentro do morro, depois de ter socorrido vítimas de um acidente ferroviário nas imediações da Mangueira:

Era dia de seu aniversário, tinha recebido um leitão de presente e tinha sua meladinha (caçhaça misturada com mel). Na hora da confusão, aquilo que era para seus convidados virou alimento para os bombeiros. Foi assim, depois do reconhecimento, que o governador Negrão de Lima teve de seu ato, que lhe doou uma linha telefônica. Meu avô sempre dizia: "– Com essa aí ninguém pode, nasceu para ser intelectual". Tanto é que os alunos da Gama Filho vinham ter aula de português com ela. Mas foi dura com as suas filhas, sempre nos dizia: "– Vocês têm que dar aos mais pobres". Foi assim que ela nos educou. E assim a gente segue seus ensinamentos É a forma como ela viveu .5

Euzebia Silva do Nascimento (1913-2003), Dona Zica, sambista da Velha Guarda, foi a última mulher de Cartola. Mulher dedicada aos outros, com um sorriso permanente nos lábios, de mãos hábeis no manuseio dos quitutes famosos. Além de ter sido fonte de inspiração para o Cartola, sempre foi um motivo de orgulho nas memórias da Mangueira. Hoje, além de ser tema de músicas, discos e livros, é reverenciada como uma das lideranças mais verdadeiras que o morro da Mangueira já teve. Segue depoimento de Marcus Quintaes:

Para mim, uma das imagens do arquétipo da Grande Mãe não está numa pequena estátua etrusca do período 2000 anos antes de Cristo. Grande Mãe, para mim, é D. Zica da Mangueira a cuidar do seu morro e de seus filhos sambistas. Sou brasileiro, trabalho no Rio de Janeiro e estou inserido na alma do meu país. Me fascina mais D. Zica do que uma estátua etrusca de dois mil anos. Se Caetano canta que "a Mangueira é onde o Rio é mais baiano", diria eu que a Mangueira é onde o Rio é mais junguiano. (Quintaes, 2005).

Quem conhece as histórias dessas mulheres sabe que, durante muito tempo, após o falecimento, respectivamente, de seus pais e seus maridos, ambas se encarregaram de dar continuidade à idéia da Escola de Samba e ao sentimento de comunidade que surgira de seus fundadores. Foram, em momentos diferentes, intituladas primeiras damas da Mangueira. Ambas constituíram a Velha Guarda da Escola, sendo admiradas pelos trabalhos sociais que desenvolveram em prol da comunidade.

Dona Neuma, mulher extrovertida e destemida, resolvia os problemas de todos que a procuravam. Expressava-se com facilidade e sabia como defender sua amada Escola, colocando a comunidade antes de si mesma. Praticando filantropia em excesso, exigiu de si e de suas herdeiras tal procedimento.

Dona Zica era mulher de grande sabedoria. A paciência, o sorriso e o acolhimento eram, segundo seus herdeiros, as qualidades que a resumiam.

Amigas diletas a ponto de construírem uma casa geminada, onde, embora permitisse que uma chamasse a outra através do muro que as unia, era possível guardar suas privacidades. Tinham suas vidas particulares bem delimitadas, havendo entre elas uma distinção. De acordo com o depoimento a seguir, Dona Neuma abrigava a todos que a buscavam:

Teve um tempo que morou aqui com a gente mais de vinte pessoas. Sei o que me custou isso. Tive que trabalhar desde cedo e era com meu dinheiro que pagava o telefone que todos usavam. De alguma forma, minha mãe nos obrigava a trabalhar e a dar para os outros que, dizia, tinham menos que a gente. O atual presidente da Mangueira [Perci] mora aqui na nossa casa desde os dezessete anos de idade. A família dele foi embora daqui e ele ficou com a gente.6

Já Dona Zica sempre ajudou muito a todos, mas resguardou sua vida privada. Era mais tímida e tinha uma família anterior à sua ligação com Cartola, o que a fez guardar certa reserva de aparições em público, só vindo a se mostrar quando foi necessário representar a Mangueira – e fez isso com todo amor, mesmo estando doente – no dia em que a Escola homenageou sua amiga Neuma, então já falecida.

Na atualidade, quem sobe o morro, logo de início avista as precárias condições de vida, sobretudo nas casas da maioria dos moradores. Em grande parte, há ruelas, escadarias e vários casebres, mas na Rua Visconde de Niterói algumas construções se destacam. O Palácio do Samba, anexo ao Barracão da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, mais adiante o Centro Cultural Cartola e, do outro lado da pista, a quadra da Vila Esportiva são as insígnias claras da distribuição de poder no morro. É importante que se perceba como tais insígnias expressam simbolicamente as formas encontradas por essa população para afirmar suas posições perante o coletivo, sendo imprescindíveis à convivência e à coesão dos moradores.

Segundo Lessa (2000, p. 305),Isso nasce como subproduto da necessidade dos moradores autorregularem suas relações. No interior de cada grande favela existem estruturas sublocais que organizam redes de vizinhanças sólidas. Dos abre-alas dos antigos ranchos carnavalescos, em sua fase histórica inicial, até as batalhas nos bailes de corredor, entre as atuais galeras funks, a chave explicativa é iluminadora da tendência à competição intralocal.

É importante reconhecer, entretanto, alguns dados de originalidade que cercam cada segmento dessas heranças, sendo três desses aspectos evidências marcantes: a sexualidade, a religião e o conhecimento sistemático (pelo acesso à Universidade). Por isso, o papel que a competição tem na transmissão da herança; competição disfarçada pelo afeto, havendo uma inversão de lugares e de insígnias, em que se instala um ritual de parecer com, de forma que uma família foi e continua sendo modelo para a outra. O duplo opera como espelho7 . Com essa compreensão, pode-se depreender a dialética e a ambiguidade presentes na relação das famílias e herdeiras.

Na família de D. Zica, a sexualidade foi contida em sua essência inicial, conforme se observa no depoimento a seguir: – [...] era presa demais, não podia frequentar os lugares.8

Hoje, uma parte dessa família tornou-se evangélica e não frequenta o Samba, preferindo assistir às chulas - dança oriunda de Portugal, apropriada pelos escravos. Atualmente, com manifestações diferentes, encontradas no Rio Grande do Sul, na Bahia e no Rio de Janeiro, sendo mas específica de grupos de sambistas tradicionais, da chamada velha guarda - e, rodas de sambas específicas. Aí o conhecimento sistemático, o cursar uma faculdade, um "vir a ser alguém" foram as perspectivas. Era como uma resposta à sociedade organizada para além do morro, por isso a adesão a um modelo moderno de fazer samba. Ser embaixadora, representar a comunidade para fora dela, foi a tônica. A própria ação social desenvolvida – ensinar as crianças a tocar violino e flauta doce – espelha o desejo de superação e a busca da igualdade de oportunidades na construção de um sujeito transcendental próprio da ideologia iluminista moderna. Ter um nome para além do morro parece ser a marca dessa busca.

Na família de D. Neuma, servir e ajudar a todos era uma obrigação familiar; o estudo ficou de fora. A sobrevivência, tendo um emprego e trabalhando duro, foi a marca dessas evidências, conforme se observa a seguir:

Só depois é que consegui adiantar meus estudos. Depois de velha, é que consegui concluir o meu segundo grau. Todas as sobrinhas e netas fazem trabalhos para a comunidade – professoras, dirigentes de centros de recuperação. Mas eu tenho vontade de fazer o mestrado também.9

A sexualidade aqui é tida como normal e necessária, ainda que os herdeiros mais novos sejam orientados a quebrar o círculo da repetição. Há um sacrifício para que alguns evoluam. O sentido de coletivo sobrepuja a individualidade.

A religiosidade é ambígua na família de Dona Neuma; ninguém assume diretamente ser ligado à Umbanda, ainda que essa tendência tenha sido sentida, mas há uma crítica forte às igrejas evangélicas: [...] São engraçados... Esses caras querem tomar o dinheiro do pobre. Só conheço gente da pesada que, depois de aprontar muito se arrepende, se diz evangélico. Minha religião é a Mangueira 10. Tal fala é quase uma reprodução exata da fala materna, de D. Neuma "[...] cuidado com um tal de Edir Macedo Macedo", dizia ela.

Há uma preocupação nesse segmento em formar continuadores – aqueles que cuidarão dos outros. Representam líderes internos, líderes de resistência, pois serão alguém para os de dentro; alguém que protegerá e dará segurança. A ordem é seguir a tradição.

O mais interessante nessa tensão existente, entretanto, é a representação simbólica da residência dessas famílias. Moram numa casa geminada, com usos e destinos diferentes.

Sabemos que a casa representa não apenas um local de habitação, mas também espelham épocas históricas diferentes, assim como expressam o modo como se vive e se considera o viver na coletividade. No caso do presente estudo, não há como prescindir da interpretação dada por Lessa (2000), [...] ter um endereço de porta reconhecido é deixar de ser favelado, é ganhar uma inscrição social [...], o que permite um reconhecimento; adentra-se também a um lugar diferenciado frente ao outro de fora do morro. Segundo Perrone (2005),

A forma de uma habitação não é casual. É produto da história do local onde ela nasceu, reverberando todas as contingências socioculturais de seu momento, não sendo imune às contaminações de valores expressos pelo "gosto". A moradia, que como propriedade é isolada, tem trocas culturais permanentes com seu meio ambiente. Mas, além de ser resultado, a arquitetura da moradia contém um projeto ou mesmo um desejo de cidade, sendo a fachada outdoor das relações dos moradores com o urbano. (p. 4)

A Casa Geminada da Mangueira chama a atenção por ser distinta das demais construções do local, pela sua forma imponente, o que representa a sinalização dessa genealogia para o restante da comunidade. Nela, as herdeiras moram, se encontram e disputam simbolicamente as modelizações e mediações para a comunidade. É o local da cultura e da gestação das sucessões.

Em que pese a literatura e a historiografia fazerem referências à senzala como morada dos negros e como lugar de sofrimento, intelectuais como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes, por diferentes perspectivas, abordaram esse tema. Mais recentemente, ao se estudar os cortiços e os quilombos, tentou-se resgatar as senzalas como espaço de resistência e solidariedade entre os negros. O que se destaca no presente estudo é que essa forma de solidariedade presente na moradia da Casa Geminada da Mangueira guarda aspectos relevantes para os seus moradores, assim como se constitui num lugar de referência para o repasse da memória e dos afetos dos moradores.

No lado esquerdo da Casa, moram as herdeiras de Dona Neuma. Esse lado funciona como uma moderna comunidade de base, uma senzala revisitada, abrigando ao todo 28 pessoas – filhas, netas e agregados da antiga proprietária. Contém espaços internos de socialização – sala, cozinha, varandas e alpendres são espaços comuns, onde se partilham comida e alegria, onde se depuram comportamentos e decisões. Aí se reproduz a cultura. Contém acessos e "rotas de individualização e fuga". São espaços privados (pequenos cômodos e quartos), onde cada um pode ter sua vida pessoal longe dos olhos dos demais. O projeto de parentalidade ganha forma e contornos definidos.

No lado direito, a casa da família de Dona Zica, fechada e protegida do olhar de curiosidade dos demais, espelha a personalidade do próprio Cartola enquanto artista fugidio e cheio de artimanhas ao lidar com o público, uma mistura de gênio criador e caboclo ressentido; resvala para o mundo através do olhar desconfiado de suas herdeiras e sucessoras.

 

CONCLUSÃO

Dito e entendido de outra forma, é possível se reconhecer, nesses modos de viver, na configuração que essas casas possuem e nas formas como a vida aí é vivida, não só o espelhamento das personalidades dessas duas grandes matriarcas mangueirenses, mas também o resgate das senzalas enquanto espaço de socialização e resistência de uma cultura. O esforço de união dessas duas mulheres, D. Zica e D. Neuma, em suas diferenças, diferenciações e tensões, servem para o equilíbrio e união em prol da sobrevivência de uma população e de um ideal: fazer da nação mangueirense uma comunidade e abrigo de amigos. Hoje, seus nomes extrapolam a comunidade e são nomes das vias de acesso ao morro. O viaduto de entrada, chamado Neuma, e aquele acesso de saída, denominado de Zica, simbolizam exatamente a ação que suas descendentes exercem hoje naquele espaço. Uma acena para fora, a embaixatriz; a outra, líder da resistência, protege o local, o para dentro.

Ao buscar o entendimento de tal configuração na teoria dos papéis de sustentação das dinâmicas dos grupos em Pichon-Riviére (1972), é possível afirmar que os grupos elegem papéis que lhes dão suporte e continuidade. Destaca-se , assim, que há os porta-vozes e líderes de mudança – aqueles que representam o grupo em sua ação, são os idealizadores e atuam no intuito de trazer o novo e incentivar a renovação; há também aqueles que atuam segundo o critério de realidade, fazendo uma avaliação mais real das possibilidades dessa ação, são os líderes de resistência. E, acrescenta Pichon-Riviére, uma boa liderança só se faz numa ação complementar entre esses dois tipos de papéis. Isso promove o equilíbrio grupal e comunitário. Dessa complementaridade é que surge uma estrutura capaz de fazer o funcionamento do grupo e capaz de desenvolver suas potencialidades. Por isso pode-se afirmar terem sido D. Zica e D. Neuma ocupantes de tais papéis na dinâmica da comunidade mangueirense e, hoje, suas herdeiras e seus familiares reproduzem esses mandatos preservando a memória e a identidade no Morro da Mangueira.

Do ponto de vista da genealogia, observa-se não só um padrão de reprodução na herança intrafamiliar, mas também, no tocante à composição da genealogia da comunidade, um padrão cruzado na assunção dos estilos de ser, permeada pela rivalidade fraterna. Para quem não era letrado, seus herdeiros buscam o conhecimento formal suprindo a falta. Buscam ter um nome – nominação. Para quem era expert, seus filhos se tornam reféns de solidariedade. De alguma forma, o espelho desse lugar é a janela do vizinho, através da qual se aprende a ser alguém. É um espelho sem reflexo para o si mesmo e só funciona pelo olhar do outro.

Do ponto de vista de suas constituições familiares, na família de Dona Zica a nominação se tornou prioridade para o projeto de vida familiar, visto que a personalidade de Cartola supre seus imaginários como figura de sucesso e êxito. Daí a personalização e a individualização como busca constante e absorção contínua do novo como perspectiva de sucesso e sobrevivência. Evidencia-se também nessa família uma crise de parentalidade, a qual só pode ser superada pela busca de originalidade, o que foi feito através de projetos mais individualizados, tendo, por isso, o conhecimento e a frequência de outros grupamentos que funcionam como novas referências para esses sujeitos. Destaque-se que o desenvolvimento de uma narrativa pessoal assume o que reafirma a questão apontada por De Gaulejac (2005, p. 61), observando-se tal perspectiva no depoimento a seguir: [...] Por isso foi importante mergulhar na minha história, de uma forma melhor, fazer um exercício de protagonismo de minhas ações. As pessoas têm que mergulhar em suas histórias.11

Já na família de Dona Neuma, o projeto de parentalidade é o foco. O papel materno sobrepuja todos os demais possíveis papéis e projetos de vida. Constituindo-se simplesmente como filhas e herdeiras, a originalidade só aparece na hora do desfile. Esse é o único lugar possível para aparecer. Nessa direção, sobressai nessa família a identidade proveniente do lugar que ocupa na comunidade. É uma identidade comunitária, compacta, e que, muitas vezes, as impede de acessar a liberdade, ou buscar uma autonomia. Confirma-se tal perspectiva no depoimento abaixo:

Era preciso dar continuidade. Nós três assinamos tudo. Tudo que ela comprava ela dava. Às vezes, a gente fazia mercado e, quando chegava aqui, ela já tinha dado tudo. Que é que se vai fazer? Foi criado assim, e até continuamos com isso.12

A complementaridade presente nessas famílias permite que todos os lugares de liderança sejam ocupados, explícita e implicitamente, nos seus imaginários e no da comunidade, havendo, num cruzamento ajustado com a horizontalidade de seus papéis na comunidade, com a verticalidade de suas histórias de vida, o que lhes institui líderes na comunidade, exemplos a serem seguidos engendrando formas de subjetividade dentro da Comunidade da Mangueira.

Por fim, só resta afirmar que a sucessão e a herança na Mangueira se dão pela ação das mulheres. O feminino constitui-se como o gerador e o gestador da memória e da cultura, ainda que retratem modelos diferenciados de ação, seja pelo acolhimento e reprodução, seja pela autonomização e novas formas de tornar-se mulher.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em Setembro de 2009
Aceito em Outubro de 2009

 

 

* E-mail: solugu@uol.com.br
** E-mail: reginagna@terra.com.br
1 Depoimento de Dona Chininha, vice–presidente da Escola de Samba da Mangueira, filha mais velha de Dona Neuma, matriarca de uma das famílias contempladas neste estudo.
2 O buraco quente é um local dentro da Mangueira cujo nome real é Travessa Saião Lobato. Constitui-se num espaço de passagem para regiões mais íngremes no morro, e foi sempre visto tradicionalmente como um lugar de encontro de bambas, designando tanto o lugar de frequência dos grandes compositores como dos destemidos do morro, onde as práticas flutuavam entre espaço para criação e espaço para derivação, bebida, bate-papo etc., havendo hoje uma contaminação sobre ser um espaço onde a frequência não é muito recomendada. Também é importante que se note que a expressão "ser bamba" é derivada de velhas práticas defensivas existentes entre os oriundos de blocos rivais e que faziam do enfrentamento com a polícia uma de suas práticas. Os valentes do morro faziam peripécias para a Escola poder desfilar. Foi onde se localizou a primeira sede da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, seu primeiro barracão.
3 Relato obtido através da narrativa de Dona Chininha, vice-presidente da Escola de Samba, filha de Dona Neuma.
4 Relato de Nilcemar Nogueira, neta de Cartola e de Dona Zica.
5 Depoimento de D. Chiniha, vice-presidente da Escola de samba Estação Primeira de Mangueira, filha de D, Neuma.
6 Narrativa de Cecy, filha de D. Neuma, responsável pela Mangueira do Amanhã, escola de samba para as crianças da comunidade, cujos objetivos são educar as crianças e preservar a memória
7 Para a Psicanálise, o conceito mais comum relativamente ao duplo é que este algo que, tendo sido originário a partir de um indivíduo, adquire qualidade de projeção e, posteriormente, se vem consubstanciar numa entidade autônoma que sobrevive ao sujeito no qual fundamentou sua gênese, partilhando com ele uma certa identificação. Nesta perspectiva, o duplo é uma entidade que duplica o eu, destacando-se dele, autonomizando-se a partir desse desdobramento. Gera-se a partir do eu para de imediato dele se individualizar e adquirir existência própria. A sua coexistência com o eu de que é originário, contudo, nem sempre é pacífica. Podem ocorrer duas modalidades: aquelas de características positivas, sendo resultante de um processo de identificação, ou aquelas de características negativas, resultantes de um processo de oposição, pela constatação de uma não correspondência de traços ou características afins.
8 Depoimento de Nilcemar Nogueira, neta de Cartola e de dona Zica.
9 Depoimento de uma das netas de dona Neuma.
10 Depoimento de Chininha, filha de Dona Neuma.
11 Depoimento de Nilcemar Nogueira, neta de dona Zica e de Cartola.
12 Depoimento de Cecy, filha caçula de Dona Neuma, que pode ser confirmado pelos depoimentos de suas outras filhas.

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