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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. v.3 n.2 Juiz de Fora  2009

 

RELATO DE PESQUISA

 

Contagem da frequência dos bigramas em palavras de quatro a seis letras do português brasileiro

 

Bigram frequency for four-through six-letter words of Brazilian Portuguese

 

 

Cláudia Nascimento Guaraldo Justi I,*; Francis Ricardo dos Reis Justi II

I Universidade Federal de Pernambuco – UFPE ( Recife )
II Universidade Federal de Alagoas – UFAL (Maceió)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Vários estudos sobre leitura e escrita têm demonstrado a influência de unidades sublexicais no processamento da linguagem. Uma das medidas de unidades sublexicais mais conhecida é a frequência de ocorrência dos bigramas (pares ordenados de letras que co-ocorrem nas palavras de uma língua). Visando preencher uma lacuna nos dados psicolinguísticos relativos ao português brasileiro, o presente estudo disponibiliza aos pesquisadores dados relativos à frequência de ocorrência dos bigramas (type e token) em palavras de quatro a seis letras do português brasileiro. Os resultados desse estudo demonstraram que a correlação média entre as medidas type e token foi forte e que, de uma forma geral, há mais redundância ortográfica no final das palavras de quatro a seis letras, uma vez que os bigramas em posições finais foram sempre em menor número e significativamente mais frequentes do que os bigramas nas outras posições.

Palavras-chave: bigramas; redundância ortográfica; análise de corpus linguístico.


ABSTRACT

Many studies about reading and writing have demonstrated the influence of sublexical units on language processing. One of the measures of sublexical units more used in the field of psycholinguistic is the bigram frequency. Aiming to fill in a gap on Brazilian Portuguese’s psycholinguistics data, the present study provides for interested researchers data about bigram frequency (type and token) for four- through six- letter words of Brazilian Portuguese. The results of statistical analysis demonstrated that the mean correlation between type and token measures was strong. In addition, there was more orthographic redundancy at the end of the four- through six- letter words, because the bigrams of last position were always in minor number and significantly more frequent than bigram of other positions.

Keywords: bigrams; orthographic redundancy; corpus linguistics


 

 

Como na leitura o acesso lexical é considerado um dos processos mais importantes (Perfetti, 1985), não é surpreendente que muitas pesquisas tenham se dedicado à investigação do efeito de variáveis lexicais como a frequência, a regularidade e a vizinhança ortográfica no reconhecimento visual de palavras (ver Justi & Justi, 2009 e Roazzi, Justi & Justi, 2008 para uma revisão desses achados no português brasileiro). Recentemente, no entanto, vários pesquisadores têm chamado a atenção para a necessidade de serem analisadas também as características sublexicais dos estímulos e seus possíveis efeitos sobre o reconhecimento visual ou produção escrita de palavras (Cassar & Treiman, 1997; Conrad, Carreiras, Tamm & Jacobs, 2009; Deacon, Conrad & Pacton, 2008; Pacton, Perruchet, Fayol & Cleeremans, 2001; Treiman, 1993; Westbury & Buchnan, 2002).

De acordo com Carreiras e Grainger (2004), pode-se pensar nas características sublexicais das palavras como sendo unidades funcionais que intervêm entre o processamento perceptual de baixo nível (como a detecção de traços e bordas) e o acesso à representação mental das palavras na memória de longo prazo (acesso lexical). Nesse sentido, as unidades sublexicais podem ser subdivididas de acordo com suas características em: ortográficas; fonológicas; morfológicas. O foco deste trabalho recai sobre as características ortográficas das unidades sublexicais. Em ortografias alfabéticas como o português, pode-se dizer que a representação abstrata das letras é uma das principais unidades sublexicais do ponto de vista ortográfico, já que muitos modelos de reconhecimento visual de palavras assumem que, de algum modo, ou a representação abstrata das letras é mapeada em uma representação da forma ortográfica da palavra que as contém (Coltheart, Rastle, Perry, Langdon & Ziegler, 2001; Grainger & Jacobs, 1996; McClelland & Rumelhart, 1981; Murray & Forster, 2004; Paap & Johansen, 1994; Whitney, 2001), ou é mapeada diretamente em um output fonológico ou semântico (Harm & Seidenberg, 2004; Plaut, Seidenberg, McClelland & Patterson, 1996; Seidenberg & McClelland, 1989). Porém, um problema que surge a partir da representação abstrata das letras é: como codificar a posição das letras nas palavras? De acordo com Carreiras e Grainger (2004) e Grainger e Whitney (2004), uma solução para esse problema seria postular um nível representacional sublexical que codificasse pares ordenados de letras ou bigramas. Por exemplo, a palavra ‘toca’ seria codificada pelos bigramas ‘to’, ‘oc’ e ‘ca’. Embora difiram na forma como codificam os bigramas, exemplos recentes dessa tendência são o modelo de Superposição de Bigramas Abertos (Grainger, Granier, Farioli, Van Assche & van Heuven, 2006) e o modelo SERIOL (Whitney, 2001; Whitney & Cornelissen, 2008). No entanto, o modelo de processamento paralelo distribuído de Seidenberg e McClelland (1989) já propunha que esse tipo de unidade sublexical (bigramas) poderia emergir no modelo devido ao seu grau de redundância ortográfica. Nesse sentido, se os bigramas, por um lado, são vistos por alguns pesquisadores como uma forma de codificar a ordem das letras nas palavras, por outro lado, podem ser encarados também como uma medida de redundância ortográfica.

É a observação de que as palavras escritas de uma língua são formadas apenas por certas combinações possíveis de letras e que, dentro das concatenações permissíveis, alguns padrões ocorrem mais frequentemente do que outros que suscita a ideia de que os bigramas podem ser vistos como medidas de redundância ortográfica (Novick & Sherman, 2004). Por exemplo, em ortografias alfabéticas, a frequência de ocorrência de determinadas combinações de letras varia: o padrão ortográfico ‘ck’ é mais comum do que o ‘lk’ na língua inglesa. Há também restrições posicionais sobre a ocorrência de determinados padrões ortográficos: no inglês, palavras podem terminar, mas não começar com ‘ck’. Alguns padrões ortográficos envolvem letras duplas (sequência de duas letras idênticas). No inglês, por exemplo, certas letras podem ser duplicadas (como o ‘o’ em ‘book’ e o ‘l’ em ‘fill’), ocorrendo, tipicamente, no meio e no fim das palavras, mas não no início (Seidenberg, 1989). A existência desse tipo de regularidade nos padrões ortográficos de uma língua, principalmente os indexados pela freqüência dos bigramas, tem ensejado diversas pesquisas. Por exemplo, no caso da língua inglesa, estudos de pesquisadores como Treiman (1993; Treiman & Bourassa, 2000; Cassar & Treiman, 1997) têm evidenciado que, a partir do jardim de infância, as crianças já demonstram uma sensibilidade à frequência de ocorrência dos padrões ortográficos de sua língua, seja na leitura (p. ex., ao julgar quais sequências de letras eram mais parecidas com uma palavra real, as crianças consideraram as restrições ortográficas do inglês), seja na escrita (p.ex., como na língua inglesa as palavras não podem começar com ‘ck’, as crianças raramente cometiam esse tipo de erro ao tentar escrever uma palavra). Ampliando a generalidade desses achados, Pacton e cols. (2001), pesquisando crianças falantes da língua francesa, demonstraram que a sensibilidade aos padrões ortográficos, em especial às letras que podem aparecer duplicadas em palavras do francês, ocorre de forma independente da frequência das letras isoladas que constituem o padrão. Assim sendo, os resultados do estudo de Pacton e cols. (2001) revelaram que as crianças foram sensíveis à frequência com que duas letras iguais ocorriam juntas e não meramente à frequência absoluta de cada letra.

Os resultados dos estudos de Treiman (1993), Cassar e Treiman (1997) e Pacton e cols. (2001) sugerem que, gradualmente, e mesmo após poucos meses de exposição à língua escrita, as crianças desenvolvem uma sensibilidade às restrições ortográficas de sua língua baseadas na frequência de ocorrência das unidades sublexicais presentes nas palavras a que são expostas. Ora, como a frequência de ocorrência dessas unidades sublexicais é normalmente indexada pela frequência de ocorrência dos bigramas, a frequência de ocorrência dos bigramas passa a ser, pelo menos, uma variável a ser controlada nos estudos sobre a leitura e/ou escrita. Por exemplo, no âmbito dos estudos sobre o reconhecimento visual de palavras, pesquisadores, como Rastle, Davis e New (2004) sugerem que alguns dos efeitos encontrados pelos pesquisadores ao investigarem o processamento morfológico podem ser, na realidade, efeitos da frequência de ocorrência dos bigramas que compõem as palavras. De acordo com tais pesquisadores, enquanto as raízes e os afixos têm, tipicamente, bigramas de alta frequência de ocorrência, a frequência dos bigramas que se localizam entre os morfemas é menor. Assim sendo, sequências de letras de baixa probabilidade (bigramas infrequentes) representariam o limite entre o término de um morfema e o início de outro. Uma vez que o ser humano parece ser sensível à frequência de ocorrência desses padrões ortográficos desde cedo, isso explicaria alguns dos efeitos que sugerem uma decomposição morfológica da palavra em tarefas de reconhecimento visual de palavras utilizando o paradigma de priming (Longtin, Segui, & Hallé, 2003; Rastle & Davis, 2009).

De uma forma geral, além dos estudos sobre o reconhecimento visual de palavras (p.ex. Conrad, Carreiras, Tamm & Jacobs, 2009) e sobre o desenvolvimento do conhecimento ortográfico (p.ex. Pacton e cols., 2001), estudos realizados em outras áreas do conhecimento têm considerado ser importante investigar o papel dos bigramas, seja na solução de anagramas (p.ex. Mayzner & Tresselt, 1963), seja nos estudos sobre a memorização de palavras novas (p.ex. Dorfman, 1999). Ademais, outro indício da importância dessa variável é que uma pesquisa na base de dados PsicInfo, realizada em agosto de 2009 pelos autores desse trabalho, utilizando os termos bigram ou bigrams, tendo como base apenas trabalhos publicados nos últimos 5 anos, resultou em 49 artigos, o que representa um número bastante razoável de trabalhos considerando-se a especificidade do tema.

Tendo em vista a importância dos bigramas como uma medida de redundância ortográfica ou como unidades sublexicais em modelos de reconhecimento de palavras, é natural que diversos pesquisadores utilizem alguma medida de frequência dos bigramas em seus estudos, seja para investigar diretamente seus efeitos, seja para controlá-los. De acordo com Novick e Sherman (2004), existem diferentes tipos de medidas de frequência de bigramas, algumas sendo sensíveis à posição em que os bigramas aparecem nas palavras, enquanto outras não. As medidas sensíveis à posição em que os bigramas ocorrem, normalmente, levam em consideração também o número de letras das palavras, posto que algumas posições variam de acordo com o número de letras das palavras (p.ex.: contando letra a letra, da esquerda para a direita, a posição 3 é a posição final em palavras de 4 letras, no entanto, em palavras de 6 letras, é uma das posições mediais). Desse modo, normas de bigramas sensíveis à posição especificam quais bigramas são mais frequentes, por posição, em palavras de um determinado número de letras; já normas que não são sensíveis à posição, especificam a frequência de ocorrência de um determinado bigrama, independentemente, do número de letras das palavras e de onde ele ocorre nelas. Além disso, a frequência dos bigramas pode ser computada de duas formas: de acordo com o número de palavras em que o bigrama aparece (type frequency); e, pelo número de vezes em que o bigrama aparece de uma forma geral (token frequency1). Por exemplo, considerando uma contagem sensível à posição e ao número de letras, na frase: "Fábio joga muito bem vôlei, por isso joga na seleção", o bigrama ‘jo’, na posição inicial de palavras de 4 letras, tem frequência de type igual a 1 e frequência de token igual a 2. O bigrama ‘jo’ tem uma frequência de type igual a 1 porque, no exemplo dado, aparece apenas na palavra ‘joga’ e tem uma frequência de token igual a dois porque ocorre duas vezes na frase.

No que diz respeito à distinção entre a frequência de type e a frequência de token, autores como Novick e Sherman (2004) têm argumentado que a frequência de token pode ser enganosa, uma vez que nessa se confundem a frequência do bigrama e a frequência das palavras nas quais ele ocorre (assim, um bigrama pode parecer frequente não porque ocorre em muitas palavras, mas porque ocorre em uma palavra muito frequente). Já no que diz respeito às contagens de bigramas que não são sensíveis à posição, pode-se dizer que estas deixam de capturar informações potencialmente relevantes. Por exemplo, na língua inglesa, o bigrama ‘ck’, embora possa ser frequente, não ocorre no início das palavras. Sendo assim, as contagens não posicionais de bigramas são cegas a essas possíveis regularidades da língua.

Todos os dados psicolinguísticos apresentados no corpo desse artigo até o momento são relativos à língua inglesa, pois, em nosso conhecimento, ainda não se encontra disponível publicamente nenhuma medida da frequência de ocorrência dos bigramas relativa ao português brasileiro. Infelizmente, essa escassez de dados tem dificultado os pesquisadores a investigar e/ou controlar os possíveis efeitos dos bigramas em pesquisas desenvolvidas na língua portuguesa (p.ex.: Justi & Pinheiro, 2006; Justi & Justi, 2007). Tendo essa lacuna nos dados psicolinguísticos da língua portuguesa em mente, além da importância teórica de se estudar os efeitos dos bigramas, o presente estudo teve como objetivo prover os pesquisadores brasileiros de dados sobre a frequência de ocorrência dos bigramas das palavras de 4 a 6 letras do português brasileiro. Para tal, optou-se pelo cômputo das frequências de type e de token dos bigramas, por posição e número de letras das palavras. Essa opção se justifica porque, conforme ressaltado por Novick e Sherman (2004), as contagens não posicionais podem deixar de capturar regularidades ortográficas relevantes da língua. Além disso, o leitor interessado em uma contagem não posicional pode facilmente obter esses dados com base em uma contagem posicional (basta somar a frequência relatada de um bigrama para todas as posições em que ele ocorre), já o inverso não é verdadeiro.

 

MÉTODO

Existem, pelo menos, duas listas de contagem da frequência de ocorrência de palavras no português do Brasil, a lista de Pinheiro (1996) e a lista desenvolvida pelo NILC (2005). No presente estudo optou-se pela lista do NILC (2005) por duas razões: 1) ela tem como base uma amostra maior de palavras e isso aumenta a sensibilidade da contagem da frequência de type dos bigramas;  2) em estudo anterior Justi e Justi (2008) desenvolveram estatísticas de vizinhança ortográfica para 8465 palavras de 4 a 6 letras da lista do NILC. Sendo assim, parece mais produtivo somar dados psicolinguísticos a esse conjunto de palavras para que os pesquisadores possam ter dados mais completos ao invés de ter dados fragmentários sobre conjuntos de estímulos diferentes. Destarte, a base de dados que serviu de cálculo para a frequência de ocorrência dos bigramas no presente estudo constitui-se das 8465 palavras de 4 a 6 letras retiradas do corpus NILC (2005) que foram analisadas previamente por Justi e Justi (2008). De qualquer forma, para avaliar a generalidade das frequências dos bigramas gerados neste estudo, uma amostra de 2298 palavras de seis letras comuns à terceira e quarta série do trabalho de Pinheiro (1996) foi selecionada, e uma análise da correlação entre a frequência dos bigramas gerados no presente trabalho e a frequência dos bigramas gerados com base na lista de Pinheiro foi efetuada. Foram escolhidas palavras de seis letras da lista de Pinheiro, pois, no conjunto de palavras de 4 a 6 letras dessa lista, as de 6 letras são as que existem em maior número.

 

Material

Foram utilizadas no presente estudo 8465 palavras de quatro a seis letras do corpus NILC (2005) e 2298 palavras de seis letras comuns à 3ª e 4ª série da lista de Pinheiro (1996).

 

Procedimentos

Da mesma forma que no estudo de Justi e Justi (2008), foram selecionadas para análise apenas as palavras de 4 a 6 letras do corpus NILC (2005) com frequência de, pelo menos, uma ocorrência por milhão, sendo todas as palavras estrangeiras e hifenizadas descartadas, resultando em uma base de dados de 8465 palavras. Tais palavras foram organizadas em uma planilha do ‘MS Excel’, e comandos para a extração de strings foram utilizados para a extração dos bigramas. Os bigramas foram extraídos de acordo com o número de letras das palavras e a posição em que ocorriam nelas. Após esse procedimento, os bigramas gerados foram analisados no programa ‘SPSS for Windows’ versão 16.0, sendo geradas as seguintes estatísticas: frequência de ocorrência de type e de token para bigramas que iniciam em palavras de 4 letras nas posições 1, 2 e 3 (p.ex.: para a palavra ‘pato’ o bigrama que inicia na posição 1 é ‘pa’, na 2 é ‘at’ e na 3 é ‘to’); frequência de ocorrência de type e de token para bigramas que iniciam em palavras de 5 letras nas posições 1, 2, 3 e 4 (p.ex.: para a palavra ‘chave’ o bigrama que inicia na posição 1 é ‘ch’, na 2 é ‘ha’, na 3 é ‘av’ e na 4 é ‘ve’); frequência de ocorrência de type e de token para bigramas que iniciam em palavras de 6 letras nas posições 1, 2, 3, 4 e 5 (p.ex.: para a palavra ‘casaco’ o bigrama que inicia na posição 1 é ‘ca’, na 2 é ‘as’, na 3 é ‘sa’, na 4 é ‘ac’ e na 5 é ‘co’).

No que diz respeito às palavras de 6 letras, comuns às 3ª e 4ª séries  da lista de Pinheiro (1996), optou-se por gerar bigramas para apenas uma das posições dessas palavras. Para tanto, um sorteio foi realizado e a posição 1 foi selecionada. Esse procedimento se justifica porque gerar bigramas é um processo bastante dispendioso e não há, em princípio, qualquer razão para se imaginar que a correlação entre a frequência dos bigramas das duas listas irá variar sistematicamente de acordo com sua posição, uma vez que se trata de palavras com o mesmo número de letras. O mesmo procedimento empregado para gerar os bigramas da lista do NILC foi utilizado para gerar os bigramas da posição inicial de palavras de seis letras da lista de Pinheiro.

 

RESULTADOS

Como pode ser observado na Tabela 1, ao se considerar separadamente as palavras de acordo com o número de letras, há mais bigramas diferentes nas posições mediais das palavras do que nas posições iniciais e finais, sendo os bigramas das posições finais sempre em menor número.

 

 

A fim de verificar se haveria alguma diferença estatisticamente significativa entre a frequência dos bigramas das palavras de 4 a 6 letras de acordo com a posição em que eles ocupam nas palavras, duas análises de variância foram efetuadas: uma, tendo como variável dependente a frequência de type, e a outra, tendo como variável dependente a frequência de token. Para as palavras de quatro letras, a ANOVA que considerou a frequência de token não foi estatisticamente significante (p > 0,46). Já a ANOVA que considerou a frequência de type foi estatisticamente significante, F(2,605) = 4,341 e p = 0,013. Para explorar melhor esse resultado, análises post hoc, utilizando a correção de Bonferroni, foram realizadas. Essas análises revelaram que a única diferença estatisticamente significativa ocorreu entre a frequência dos bigramas da posição final e a frequência dos bigramas da posição medial (p < 0,05), sendo os bigramas da posição final significativamente mais frequentes. Nenhuma das outras comparações post hoc foi estatisticamente significativa (para todas, p > 0,17).

No caso das palavras de 5 letras, tanto a ANOVA que considerou a frequência de type, F(3,1043) = 9,192, quanto a que considerou a frequência de token, F(3,1043) = 5,544, foram estatisticamente significantes (para ambas p < 0,01). No entanto, em ambos os casos, análises post hoc, utilizando a correção de Bonferroni, revelaram que as únicas diferenças estatisticamente significativas existentes foram entre a frequência dos bigramas da posição final e a frequência dos bigramas das outras posições (para todas, p < 0,05), sendo os bigramas da posição final significativamente mais frequentes do que os bigramas das demais posições. Nenhuma das outras comparações post hoc foi estatisticamente significativa (para todas, p > 0,50).

Por fim, as palavras de 6 letras apresentaram o mesmo padrão das palavras de 5 letras. Tanto a ANOVA que considerou a frequência de type, F(4,1430) = 9,276, quanto a que considerou a frequência de token, F(4,1430) = 6,831 foram estatisticamente significantes (para ambas p < 0,001). Mas, em ambos os casos, análises post hoc, utilizando a correção de Bonferroni, revelaram que as únicas diferenças estatisticamente significativas ocorreram entre a frequência dos bigramas da posição final e a frequência dos bigramas das outras posições (para todas, p < 0,01), sendo os bigramas da posição final significativamente mais frequentes do que os bigramas das demais posições. Nenhuma das outras comparações post hoc foi estatisticamente significativa (para todas, p > 0,50).

Para verificar se a frequência de type e a frequência de token se relacionam, análises de correlação de Pearson foram desenvolvidas levando-se em consideração o número de letras e a posição dos bigramas nas palavras. Para o cálculo da correlação média, foi utilizado o programa Meta-Analysis versão 5.3 de Schwarzer (1989). Foi adotado o seguinte procedimento: primeiro, os valores r foram transformados em valores Zr de Fisher; depois o valor Zr médio foi calculado; e, finalmente, foi transformado no valor r médio. A correlação média geral entre as frequências de type e de token foi de 0,74 e a correlação média por número de letras foi de 0,54 para as palavras de 4 letras; de 0,80 para as palavras de 5 letras e de 0,79 para as palavras de 6 letras.

No que diz respeito aos bigramas mais e menos frequentes, a título de ilustração, os ANEXOS 1, 2 e 3 apresentam os dados relativos aos 20 bigramas mais frequentes e aos 20 bigramas menos frequentes, de acordo com a posição, em palavras de quatro, cinco e seis letras, respectivamente. Como a escolha entre a utilização da medida de type e a utilização da medida de token fica a critério do pesquisador, ambas as medidas estão disponíveis. Como as frequências de type e de token, porém,não são necessariamente semelhantes, optou-se por levar em consideração o valor da frequência de type ao dispor em ordem decrescente os bigramas mais frequentes. Dessa forma, como pode ser observado no ANEXO 1, o bigrama ‘ca’ apresentou a maior frequência de type no início de palavras de 4 letras, mas não apresentou a maior frequência de token. No caso dos bigramas menos frequentes, como eles tiveram, via de regra, uma frequência de type igual a um, utilizou-se a medida token para a disposição dos resultados em ordem decrescente nos anexos. Por exemplo, um dos bigramas na posição inicial de palavras de quatro letras que têm frequência de type igual a um é o bigrama ‘ég’. Esse bigrama, contudo, tem frequência de token igual a quatro e, como foram apresentados nos anexos apenas os vinte bigramas menos frequentes, esse bigrama não aparece no ANEXO 1, pois um bigrama com frequência de token menor foi apresentado no lugar dele.

 

 

 

 

Por fim, objetivando investigar a generalidade da contagem da frequência de ocorrência dos bigramas realizada neste estudo, foi efetuada uma análise da correlação entre a frequência dos bigramas presentes em palavras de seis letras na posição inicial da lista do NILC (2005) e a frequência dos bigramas presentes na posição inicial em palavras de seis letras, comuns à 3ª e 4ª série, da lista de Pinheiro (1996). Os resultados revelaram uma forte correlação entre essas medidas (r = 0,96 para a correlação entre a frequência de type e r = 0,85 para a correlação entre a frequência de token).

 

DISCUSSÃO

Os resultados do presente estudo demonstram que há mais redundância ortográfica no final das palavras de 4 a 6 letras do português brasileiro, porquanto os bigramas em posições finais foram, de uma forma geral, sempre em menor número e significativamente mais frequentes do que os bigramas nas outras posições. Uma das possíveis explicações para esse resultado é que os bigramas nas posições finais de palavras podem coincidir com sufixos. Esse provavelmente é o caso do bigrama ‘ou’ que, embora não tenha aparecido entre os bigramas mais frequentes nas palavras de 4 letras, apareceu entre os dez bigramas mais frequentes no final das palavras de 5 e 6 letras. Isso ocorreria porque a sequência de letras ‘ou’ no final de palavras do português brasileiro, geralmente, indica uma flexão verbal. Esse argumento é reforçado ao se considerar que a probabilidade de uma palavra ter uma flexão aumenta, muito provavelmente, junto com o seu número de letras. Isso explicaria o fato do bigrama ‘ou’ ter aparecido entre os mais frequentes nas palavras de 5 e 6 letras, mas não ter aparecido entre os vinte mais frequentes nas palavras de 4 letras. Pode-se dizer que tais resultados corroboram o argumento de Rastle e cols. (2004) de que alguns dos efeitos encontrados pelos pesquisadores ao investigarem o processamento morfológico podem ser, na realidade, efeitos da frequência de ocorrência dos bigramas que compõem as palavras, já que os afixos têm, tipicamente, bigramas de alta frequência de ocorrência. Destarte, torna-se necessário que pesquisadores interessados em investigar o processamento morfológico controlem a frequência de ocorrência dos bigramas em seus estudos para evitar que os resultados possam ser atribuídos a uma diferença nessa variável.

Outra questão com a qual o presente estudo se deparou refere-se à qual medida seria a mais apropriada da frequência de um bigrama. O presente estudo computou tanto a frequência de type quanto a frequência de token e encontrou que a correlação entre essas medidas foi moderada para palavras de 4 letras e forte para palavras de 5 e 6 letras. Esse padrão é esperado, já que a frequência de token é contaminada pela frequência de ocorrência das palavras e, nesse caso, como a frequência de ocorrência das palavras de 4 letras é maior do que a das palavras de 5 e 6 letras, não é de se surpreender que a correlação entre as medidas type e token tenha sido menor nesse conjunto de palavras. Nesse sentido, pode-se argumentar, em consonância com Novick e Sherman (2004), que a medida mais segura da frequência de ocorrência de um bigrama é, de fato, a frequência de type.

Para finalizar, tendo a lista do NILC (2005) sido desenvolvida com base em textos jornalísticos, voltados primordialmente para o público adulto, uma questão torna-se pertinente: são os dados gerados pelo presente trabalho válidos para pesquisas a serem realizadas com crianças? Diferentemente da lista do NILC (2005), a lista de Pinheiro (1996) foi desenvolvida tendo como base livros infantis utilizados por crianças da pré-escola a 4ª série. Em suporte à generalidade dos resultados do presente estudo, foi observada uma forte correlação entre a frequência dos bigramas das palavras da lista do NILC e a frequência dos bigramas das palavras da lista de Pinheiro, o que atesta a generalidade da contagem de frequência de ocorrência dos bigramas efetuada nesse estudo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das características da mente humana é a sensibilidade à frequência de ocorrência dos estímulos a que é exposta. Nesse sentido, a frequência de ocorrência dos bigramas tem sido considerada uma importante variável sublexical nas pesquisas psicolinguísticas da atualidade, sendo uma das principais variáveis em estudos sobre a aquisição de padrões ortográficos (Cassar & Treiman, 1997; Pacton & cols., 2001; Treiman, 1993; Treiman & Bourassa, 2000) ou uma das variáveis a serem controladas em estudos sobre o processamento morfológico (Longtin & cols., 2003; Rastle & cols., 2004; Rastle & Davis, 2009). O presente artigo foi desenvolvido com o intuito de prover os pesquisadores brasileiros de dados psicolinguísticos referentes à frequência de ocorrência dos bigramas em palavras de 4 a 6 letras do português brasileiro, suprindo, dessa forma, uma importante lacuna nos dados psicolinguísticos dessa língua. Assim sendo, os pesquisadores brasileiros passam a contar com uma relevante fonte de dados psicolinguísticos que pode permitir uma investigação mais sofisticada do papel da redundância ortográfica na leitura e na escrita, bem como um melhor controle experimental em estudos em que outras variáveis são o foco da pesquisa. O banco de dados completo pode ser obtido gratuitamente mediante contato eletrônico com os autores deste artigo.

 

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Endereço para correspondência:
R. Engenheiro Mário de Gusmão, 1295/104
CEP: 57035-000 Ponta Verde - Maceió / AL – Brasil.
Tel.: (82)3235-1823.
E-mail: claudia.ngjusti@gmail.com

Recebido em Setembro de 2009
Aceito em Outubro de 2009

 

 

* Bolsista de doutorado do CNPq
1 Optou-se por não traduzir os termos ‘type’ e ‘token’ por esses já terem se tornados clássicos na área.

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