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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.4 no.2 Juiz de Fora dez. 2010

 

SEÇÃO LIVRE

 

Psicologia evolucionista - Entrevista com a Profª. Dr.ª Maria Lucia Seidl-de-Moura

 

Márcia de Fátima Rabello Lovisi de Freitas; Karen Cristina Alves Lamas

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora

 

Maria Lucia Seidl-de-Moura é pós-doutorada na Universidade de São Paulo, em Psicologia Evolucionista e atualmente faz estágio pós-doutoral na PUC-RJ em estudos de famílias. É coordenadora da área de psicologia na FAPERJ. Atualmente, é professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Nessa universidade, desenvolve trabalhos na linha de pesquisa Cognição Social do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. É coordenadora do Grupo de Pesquisa Interação Social e Desenvolvimento do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. A presente entrevista foi realizada em março de 2010, ocasião na qual a Profª Drª. Maria Lucia esteve ministrando palestras durante o Simpósio em Desenvolvimento Humano e Processos Socioeducativos da Universidade Federal de Juiz de Fora. Agradecemos imensamente pela entrevista concedida, que foi transcrita na íntegra e gentilmente revisada e adaptada pela professora.

 

1) Como a senhora poderia definir a psicologia evolucionista e como se dá sua interseção com a ciência do desenvolvimento humano?

A Psicologia Evolucionista, com essa denominação, é relativamente recente, embora haja, há muito tempo, uma preocupação com uma visão evolucionista e com o entendimento do comportamento humano, porque existem disciplinas que sempre se preocuparam com isso: a etologia, a sociobiologia, a ecologia comportamental, por exemplo. O primeiro capítulo do livro sobre Psicologia Evolucionista que as professoras Emma Otta e Maria Emília Yamamoto organizaram, de autoria do Professor César Ades, aborda os vários momentos de como essa relação entre biologia e psicologia foi se dando, com uma perspectiva certamente evolucionista. Pode-se, entretanto falar que, com tal denominação e perspectiva, essa abordagem é da década de 1990 e considera-se como marco fundador a publicação do livro "A mente adaptada", de Leda Cosmides, John Tooby e Jerome Barkow. Este livro lança as bases de uma perspectiva psicológica e evolucionista do comportamento humano. Uma tentativa anterior que teve muita reação, principalmente da mídia, na década de 1980, foi a sociobiologia, porque tentava mostrar as bases biológicas do comportamento social. As pessoas interpretaram isso como uma coisa reducionista, determinista, reacionária e perigosa. Foi muito inovadora. Em minha opinião, a sociobiologia foi mal divulgada e mal interpretada, o que levou a um impasse, na própria psicologia, para as pessoas adotarem essas perspectivas. Nesse momento, a proposta que a psicologia evolucionista vem trazer, é de entender a mente e o comportamento humanos como fruto de um processo de adaptação. Quer dizer, não tendo a sua descrição e explicação reduzidas a isso, mas não podendo prescindir dessa visão, de que o nosso cérebro é um cérebro da idade da pedra, de um ambiente ancestral de evolução, que foi forjado, em milhares de anos na evolução do homo sapiens, para lidar com certos problemas adaptativos dos nossos ancestrais. Isso nos dá um conjunto de propensões que foram bem sucedidas, claro, porque a espécie está aí e tivemos todo esse desenvolvimento do homo sapiens moderno. No entanto, ela precisa ser levada em conta quando se examina o ambiente ecológico atual, os contextos culturais, os contextos sociais. Então, a psicologia evolucionista tenta compreender esses processos básicos. Ela seria uma psicologia dos processos básicos, só que olha para eles com essa visão histórica, para saber: "bom, o que é fundamental da nossa espécie? Como a nossa mente evoluiu? Quais são as características da nossa mente?". Vou dar um exemplo de uma discussão corrente que ainda não é resolvida. A perspectiva mais dominante na psicologia evolucionista é que a nossa mente é uma mente especializada, ela é modular, ela é uma mente que se preparou especializadamente para resolver problemas diferentes. Então a Leda Cosmides, que é uma jovem pesquisadora da Universidade de Califórnia, Santa Bárbara, quase a "mãe" da psicologia evolucionista, é alguém que defende a modularidade da mente. A ciência da cognição faz um paralelo da mente humana com o computador, e a psicologia evolucionista introduziu um paralelo, não tão simpático, com o canivete suíço, ou seja, "uma lâmina para cada utilidade". A mente humana para funcionar bem, segundo esses autores, desenvolveu mecanismos especializados e automáticos e é tarefa da psicologia evolucionista detectar quais são, como funcionam, como eles se atualizam em contextos culturais diferentes. Porque quando se fala de processos universais, não se está querendo dizer que os comportamentos são universais. Alguns processos são universais, mas eles funcionam sempre em interação com o contexto ecológico, já são frutos dessa interação e continuam funcionando assim. Então, basicamente, a meta da psicologia evolucionista é entender a natureza humana, o comportamento humano, a mente humana em termos da sua história. A psicologia, muitas vezes, fala de uma inteligência geral, de um processador central etc., coisas que uma vertente da psicologia evolucionista não considera viável do ponto de vista da evolução. Entretanto, muitos autores, e eu inclusive, pensamos que esse funcionamento misto de uma evolução, tanto do aumento de uma capacidade geral de solucionar problemas que a espécie foi adquirindo, como um conjunto de especializações para lidar com problemas específicos, pode conviver bem numa explicação da mente humana. Enfim, é com esses problemas, que são de pesquisa básica, que a psicologia evolucionista se preocupa. Obviamente, como as pessoas que se dirigiram à essa área vêm de formações diversas, inclusive no nosso grupo brasileiro, existe muita heterogeneidade na formação e no entendimento do processo de adaptação e eu acho que é uma ciência em crescimento no Brasil, inclusive bastante recente.

 

2) A psicologia evolucionista deriva de uma teoria biológica tradicional e tem se desenvolvido bastante nas últimas décadas. Mas não se percebe uma divulgação mais ampla dessa perspectiva nos cursos de graduação em psicologia. Por que a senhora acha que isso acontece?

Eu acho que há muita variabilidade no Brasil, depende das influências dominantes nos cursos. Sem um estudo, mas apenas por viajar muito pelo Brasil, percebo que existem duas áreas que dominam, juntas ou separadamente, os cursos de psicologia no Brasil, que são a psicanálise e a psicologia social. Em muitos cursos, predomina uma visão política da psicologia e, em outros, uma visão psicanalítica. Os alunos possuem, em geral, uma representação social da psicologia baseada na clínica. É um desejo natural e esses professores se tornam muito influentes. O que eu vejo quando essas perspectivas dominam, de maneira muito geral, é que para esses dois grupos o ser que estudamos na psicologia, seja ele indivíduo ou ser em sociedade, é como se fosse incorpóreo e não possuísse uma história biológica. Ou ele é só social, ou ele é só psíquico, mas como uma história recente, da sua ontogênese, da sua relação original com os pais. Então, fica faltando alguma coisa na psicologia. Existem, todavia, cursos de psicologia, como na USP e no Rio Grande do Norte, que já têm uma vertente forte de psicobiologia ou etologia, em que isso já é muito mais disseminado. Na UERJ, por exemplo, essa perspectiva não existia até há pouco tempo atrás. Eu ministrei a primeira disciplina de psicologia evolucionista, que era eletiva, quando descobri uma demanda muito grande, com muitos alunos interessados e, desde então, esse interesse tem crescido. Nós recebemos uma verba da CAPES, do PROCAD, que reúne cursos de pós-graduação em psicologia num projeto comum, para realizarmos diversas missões de estudo, nas quais alunos de uma determinada universidade podem passar um mês em outra estudando sobre os temas comuns aos PPGs. Então, tivemos missões sobre psicologia evolucionista na USP, na UFBA, na UFRN e na UFPA. Temos tentado disseminar essa perspectiva, fizemos o livro... A maioria das pessoas que deram um feedback sobre o tema concordam que avançamos na inserção da psicologia evolucionista dentro dos cursos de psicologia, mas ainda estamos longe do que gostaríamos. Houve um concurso para a UnB que foi para professor de psicologia evolucionista. Ainda estamos começando. Eu, por exemplo, sempre dei aula de psicologia do desenvolvimento falando nisso e os alunos, às vezes, ficavam um pouco surpresos quando se falava de capacidades biológicas, de propensões, de onde elas vieram, porque os bebês humanos são de determinada maneira, e isso já foi criando pelo menos uma expectativa de pensar nesses aspectos. Acho que depende das tradições locais e uma consideração pelos interesses dos alunos, enfim. Também acho que não é uma coisa fácil... Nos EUA, pesquisas dizem que 70% das pessoas não acreditam na teoria da evolução. Apesar de 150 anos de história, se a ideia é difícil de aceitar, inseri-la na psicologia é mais difícil ainda, porque as pessoas pensam que não tem nada a ver com isso, que isso é com os biólogos e médicos. Só para se ter uma ideia, na UERJ existe um instituto de medicina social. Tem um pesquisador evolucionista, que se dedica a estudar esse tema no instituto e causa estranheza, num instituto onde a base seria biológica. Imaginem isso num instituto psicológico social ou num curso de sociologia. Há, porém, sinais de mudança. Tivemos alguns eventos no RJ, como quando a Leda Cosmides veio ao Brasil em 2006, e deu uma conferência na UFRJ e ficou cheio. Ano passado, meus alunos fizeram uma comemoração no Dia de Darwin, que é em 12 de fevereiro, na UERJ e havia mais de 200 pessoas (pouquíssimos da psicologia da UERJ), mas tinha gente de toda parte. Então, eu acho que isso está mudando, mas ainda lentamente.

 

3) E qual seria o método mais adequado para se fazer pesquisa numa perspectiva evolucionista e quais são os desafios para os pesquisadores dessa área?

São muitos. Vou dar um exemplo: a professora Leda Cosmides tem um programa de pesquisa amplo para estudar um módulo que está ligado à nossa capacidade de altruísmo, que é adaptativa. Quando somos altruístas é porque isso, de alguma forma, é recíproco. Você ajuda e é ajudado, não é consciente, mas isso é um mecanismo selecionado e que nos traz mais aptidão, permite conseguir sobreviver melhor, cuidar dos nossos filhos de uma forma melhor por causa do altruísmo. Como é muito importante essa reciprocidade, é uma hipótese da professora Leda que nós temos um mecanismo de detecção de enganadores, quer dizer que há um módulo que acende uma luzinha vermelha para aquele que não age com reciprocidade. Isso não está presente só no homem. Há alguns estudos de altruísmo recíproco, por exemplo, com morcegos, muito interessantes, demonstrando que os morcegos que se alimentam de sangue buscam seu alimento e depois regurgitam para aqueles companheiros mais fracos, que não conseguiram se alimentar sozinhos. No fim, isso traz benefícios para o altruísta. Enfim, é muito importante, para ser adaptativo, que a gente não fique ajudando toda a vida quem não ajuda em troca. Eu brinco com meus alunos, dizendo que quando eles começam a formar grupos de trabalho desde o primeiro período da graduação, descobrem também aqueles alunos que não costumam fazer nada e vão tirando fora... Sobre esta hipótese, então, precisa-se fazer muitos testes para saber se é universal, se não é um mecanismo geral... Podem ser feitos estudos experimentais, transculturais, foi o que a Leda fez. Por exemplo, ela fez estudos experimentais para mostrar que você responde diferentemente a tarefas lógicas gerais do que a tarefas lógicas que envolvem o cumprimento de acordos sociais. Mesmo que tenha a mesma estrutura lógica que aquelas tarefas que se estuda em lógica e que Piaget falou que são adquiridas na fase das operações formais, e você aplicar em estudantes universitários, você tem uma percentagem de fracasso enorme. Porque essas tarefas não são naturais para nós, são difíceis e precisamos, às vezes, aprender lógica para responder. Se essas tarefas forem feitas com conteúdos que estão ligados ao cumprimento de regras e à reciprocidade, uma resposta significativamente diferente é observada. Pode-se fazer testes por experimentos e procurar se não existem respostas alternativas que explicam seus resultados. Então, você vai fazer vários testes, inclusive examinando evidências de transtornos cerebrais, o que é lesado, o que não é, se é localizado no cérebro ou não, já que se tem outros métodos de localização, de áreas e tal. Com isso pode-se verificar se isso é uma característica de grupos urbanos, se isso não apareceria em outros grupos. Então, estudos transculturais em culturas completamente diferentes, como os estudos com indígenas da Venezuela e do interior do Amazonas, foram feitos. Em síntese, os métodos variam dependendo do problema, mas é sempre difícil... Não se responde, em minha opinião, a uma pergunta da psicologia evolucionista com uma pesquisa. A conferência da Leda foi magistral, porque ela mostrou como foi cercando esse problema. O nosso grupo tentou estudar investimento parental, todo o esforço que se coloca num descendente para sua sobrevivência e futura reprodução, e que, de certa forma, é competitivo com os outros descendentes. Pois se você tem dois filhos, você investe em um e está tirando do outro, é todo um equilíbrio... Nós fizemos um estudo com mais de 600 mulheres em seis estados e 12 cidades aqui no Brasil para estudar isso. Bom, o que nós concluímos? Há toda uma teoria que mostra que seu estilo de apego vai influenciar sua história reprodutiva, e as condições ecológicas que vão influenciar o investimento parental. Baseamo-nos na teoria, tivemos resultados muito interessantes, mas acho que chegamos ao final sem saber, exatamente, qual a melhor maneira de investigar investimento parental e pensando, como eu e alguns outros do meu grupo, que para se fazer uma investigação de investimento parental, o estudo deve ser de diversas gerações. Porque, vejam: se eu focalizo uma mãe e seu filhinho, eu vejo se ela faz várias coisas que, teoricamente, são investimento: amamenta, leva ao médico, faz uma série de coisas. Mas uma mãe pode não amamentar e investir de outras maneiras, ainda mais hoje em uma sociedade em que se têm alternativas. Para os animais, isso é fácil, como diz o Professor Mauro Luís Vieira, que é etólogo de formação e meu parceiro em muitos trabalhos. Quando se estuda hamsters como ele estudava, você vê que se a mãe não investe no filhote, não amamenta, o filhote morre. Com a mãe humana não é tão simples assim. Se ela não amamentar e der mamadeira, o filhote não morre. Então, eu não posso usar amamentar como critério necessário para investimento parental e isso traz um conjunto de complexidades. Há muitos estudos interessantes, alguns sobre percepção de raças, testando hipóteses, até com resultados importantes, que mostram que os nossos preconceitos raciais não são coisas que fazem parte do nosso cérebro ancestral, até porque não éramos tão diferentes assim no momento em que nosso cérebro foi forjado... Estudos experimentais testam essa hipótese. Há hipóteses da psicologia evolucionista que falam de um conceito chamado desconto do futuro, de como, em certas condições ecológicas em que há maior risco de sobrevivência e reprodução, investe-se no presente e não no futuro. Há estudos empíricos sobre isso utilizando questionários ou estudos populacionais que a professora Margot Wilson e Martin Dale fizeram no Canadá e eu tenho alunas aqui também fazendo... Então você pode usar uma série de recursos metodológicos da psicologia. O problema é como vai-se testar hipóteses e afastar explicações alternativas, para não acabar concluindo algo apenas porque foi dali que se partiu, achar que aquilo é evolucionista porque foi adaptado assim. Penso que a pesquisa em psicologia evolucionista ainda é um desafio.

 

4) E quais são as implicações práticas da psicologia evolucionista para o trabalho do psicólogo?

Eu acho que para você ser psicólogo, você tem que pensar nas pessoas como produtos de várias histórias (e isso é uma idéia antiga, do Vygotsky), produto, primeiro, de uma história filogenética. Eu não posso trabalhar como psicólogo se eu não conheço nossa natureza. Não adianta eu ter uma idealização da natureza humana. Naquele livro do Steven Pinker, "Tábula Rasa", ele diz "vamos demolir os mitos". Um deles é o mito do bom selvagem, ou o mito de que você pode transformar uma pessoa em qualquer coisa. Há, então, coisas que, como psicólogo (não necessariamente um psicólogo evolucionista), é necessário conhecer para poder usar qualquer teoria. Todas as teorias psicológicas têm que fazer sentido à luz da filogênese. Se elas não fazem sentido, não são boas teorias. É uma lei de encaixe, inclusive das ciências, a própria história da evolução tem que se encaixar na história geológica da Terra... Então, as ciências precisam fazer certo sentido harmônico, as teorias dentro da psicologia precisam ter sentido. A implicação prática é uma visão mais completa, mesmo que você trabalhe com uma ou outra abordagem. A psicologia evolucionista não oferece técnicas para o trabalho clínico ou educacional, mas vai dar informação sobre limites e possibilidades das pessoas com as quais trabalhamos como psicólogos. Eu acho que isso é uma ferramenta de reflexão. Por exemplo, essa idéia do Pinker, de que você não transforma uma pessoa em qualquer coisa, que era uma idéia do Watson: "dê-me tantas crianças que eu farei delas isso e aquilo...". Não. Primeiro, eu não posso transformar uma criança num morcego, não posso transformar uma criança mesmo num chimpanzé, apesar de nós compartilharmos tanto da nossa bagagem genética, assim como eu não posso transformar um chimpanzé num humano, como alguns estudos da década de 1960 e 1970 que foram estudar linguagem e criaram bebês chimpanzés como se fossem bebês humanos. Então, é preciso entender as características de cada espécie e o valor adaptativo dos comportamentos, e aí, tudo bem, as questões serão tratadas com outras ferramentas, inclusive teóricas, que forem necessárias. A psicologia evolucionista não esgota as possibilidades de respostas às perguntas com as quais o psicólogo se depara.

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