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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.5 no.1 Juiz de Fora ago. 2011

 

RESENHA

 

Uma Arqueologia do Pensamento de Wilhelm Wundt: Por que a Psicologia Científica ainda não Chegou ao Século XIX?

 

An Archaeology of Wilhelm Wundt's Thought: Why Scientific Psychology has not yet Reached the Nineteenth Century?

 

O Projeto de uma Psicologia Científica em Wilhelm Wundt: Uma Nova Interpretação.
Araujo, S. F.
Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010, 224p.

 

 

Carlos Eduardo Lopes

Universidade Estadual de Maringá

 

 

Vivemos em uma época na qual a reflexão teórica e a preocupação histórica em psicologia tornaram-se artigo de luxo. Não porque história e teoria sejam atividades desejadas por todos e alcançada por poucos, mas porque são continuamente consideradas como futilidades ou um exercício inócuo de pessoas que não têm algo mais sério a fazer. Não raro ouve-se, em diferentes contextos de investigação psicológica, dúvidas em relação à própria legitimidade de pesquisas que versam sobre esses assuntos. Com isso, ao mesmo tempo em que cresce a facilidade de publicação de artigos empíricos, cuja contribuição, vez por outra, resume-se na relevância estatística de dados sobre assuntos irrelevantes, torna-se cada vez mais comum políticas editoriais de periódicos de psicologia que restringem o número de trabalhos teóricos (Machado, Lourenço & Silva, 2000). Além disso, observamos uma crescente superespecialização e fragmentação do campo psicológico, que nosúltimos anos aproxima-se cada vez mais de um amontoado de confusões conceituais que se sucedem indefinidamente.

Nesse cenário desfavorável, encontrar um livro como "O projeto de uma psicologia científica em Wilhelm Wundt: Uma nova interpretação" do professor Saulo Araujo é uma grata surpresa para todos aqueles que ainda insistem em pensar a psicologia científica como uma proposta séria e coerente do ponto de vista conceitual. O professor acaba por dar um sentido bem mais profundo para a provocação colocada por Blumenthal (1979), quando anuncia que Wundt é o pai que a psicologia nunca conheceu. Afinal, se por um lado, praticamente todo manual de história da psicologia menciona Wundt como precursor da psicologia científica, seu pai (e.g. Schultz & Schultz, 1996; Marx & Hillix, 1978), por outro lado, não podemos entender o sentido preciso dessa afirmação, visto que, na maioria das vezes, ela não é acompanhada de qualquer informação sobre as características do projeto de psicologia wundtiano, e muito menos sobre o desenvolvimento desse projeto, suas rupturas, avanços, conflitos, contradições. Pois é justamente nesse ponto que se insere o livro do professor Saulo Araujo. Trata-se de uma obra original e minuciosa, que opera uma verdadeira arqueologia do pensamento de Wilhelm Wundt.

O sentido de arqueologia já é revelado no material que sustenta a "nova interpretação" proposta pelo livro: trata-se de livros, artigos e outros documentos de autoria de Wundt, consultados no original em alemão, sendo que boa parte dessas fontes até hoje não tinha sido analisada por praticamente nenhum psicólogo do mundo. Assim, trata-se de "desenterrar" um Wundt desconhecido não só por psicólogos brasileiros, mas também por renomados especialistas do mundo todo, com os quais, aliás, o professor Saulo Araujo trava um vigoroso e provocante diálogo no decorrer das quase duzentas notas de rodapé da obra. Dessa forma, não parece exagero aproximar os resultados obtidos pelo livro de uma verdadeira descoberta arqueológica. Não bastasse a originalidade e o grande escopo do material analisado - mais de oitenta obras de Wundt -, o resultado obtido é uma elegante e convincente articulação, que, definitivamente, inaugura um novo campo de pesquisas sobre o pensamento de Wundt.

Lembrando Koffka (1935), que tentava explicar a dificuldade de aceitação da Gestaltpsychologie nos Estados Unidos, podemos comparar o Zeitgeist de um país com o clima, que favorece o desenvolvimento de apenas alguns tipos de plantas. O problema a ser enfrentado pelo livro do professor Saulo Araujo é que o clima em que a psicologia brasileira está exposta atualmente favorece muito mais o desenvolvimento de uma engenharia do que de uma arqueologia, e, por isso, acredito que uma pergunta pode ser colocada por potenciais leitores adaptados a esse clima: afinal, qual é a relevância de "exumarmos" Wundt? A psicologia atual não teria superado essa antiga proposta? O presente não é melhor do que o passado?

Como uma planta que nasceu em um clima desfavorável, e por isso deve lutar para permanecer viva, o livro floresce com um novo conjunto de questionamentos possíveis a partir de sua leitura. Que psicólogo atualmente tem erudição suficiente para colocar a psicologia em um projeto filosófico, que passa por uma teoria do conhecimento, uma lógica, uma ética, e culmina em uma Weltanschuung? Que psicólogo atual teria condições de dialogar com Kant, tentando corrigir e superar a Crítica da Razão Pura? Que psicólogo vê a psicologia como um projeto que engloba o estudo dos indivíduos, animais dotados de mentalidade e culturas, sem uma pretensão reducionista? Haveria um psicólogo com uma clara opinião sobre a relação entre mente e cérebro sem incorrer na facilidade da "solução" materialista? Se tivermos dúvidas da possibilidade de encontrar esse psicólogo na atualidade, a justificativa para "desenterrar" Wundt já está dada, pois ele faz tudo isso.

Do ponto de vista estrutural, o livro organiza-se de acordo com a cronologia do pensamento de Wundt buscando sanar, basicamente, uma dúvida: qual o sentido das rupturas do projeto de psicologia wundtiano? Com isso, tenta-se, no limite, avaliar o diagnóstico funesto de William James, que vê nos trabalhos do psicólogo alemão um amontoado de respostas a diferentes críticas, sem qualquer coerência interna, o que, nos impediria de dizer que se trata realmente de uma obra. Nessa organização cronológica o professor Saulo Araujo transita em uma fecunda hipótese: de que o projeto de psicologia wundtiano só pode ser satisfatoriamente compreendido se contextualizado em suas preocupações filosóficas. Trata-se, pois, de revelar uma faceta de Wundt desconhecida pela maioria dos psicólogos, a do Wundt filósofo. O interessante nesse ponto, é que essa nova faceta acaba por se mostrar mais importante do que a tradicional visão de Wundt como psicólogo experimental fundador do laboratório de Leipzig. Somos, então, surpreendidos com o fato de que a psicologia científica, que tantas vezes se vangloriou de sua separação radical em relação à filosofia, é em sua origem parte de um projeto filosófico.

No entanto, essa relação entre filosofia e psicologia no pensamento de Wundt está longe de ser simples. Em primeiro lugar, é preciso compreender que a filosofia envolve diferentes disciplinas e, por isso, nem sempre o termo aparece com o mesmo significado. Se tomarmos filosofia como metafísica, por exemplo, Wundt, gradualmente, alinha-se com o Zeitgeist alemão dos séculos XVIII e XIX, operando uma verdadeira revolução no que diz respeito à relação entre ciência (incluindo a psicologia) e metafísica. Afastando-se do pensamento clássico, cujos ecos podem ainda ser encontrados na modernidade, a metafísica deixa de ser vista como um corpus de verdades primeiras que sustenta a ciência. A metafísica passa a ser agora o télos de todo conhecimento, uma integração necessária diante da fragmentação operada pelas ciências particulares. Nesse sentido, quem sustenta a metafísica são as ciências, e não o contrário.

Nesse ponto a principal tese do livro parece correr o risco de tornar-se contraditória. Como dizer que a psicologia depende da filosofia se a metafísica é que depende do avanço científico, do qual a psicologia é parte? Essa aparente contradição se desfaz quando verificamos que Wundt não opera uma identificação entre filosofia e metafísica, ou seja, embora a metafísica seja parte importante da filosofia, há outros ramos da filosofia. São justamente esses outros ramos da filosofia, a saber, a lógica e, principalmente, a teoria do conhecimento, que regulam as ciências particulares. Em outras palavras, a lógica e a teoria do conhecimento evitam que essas ciências se comprometam com metafísicas dogmáticas, o que impediria a construção de uma metafísica "científica". Em suma, a lógica e, principalmente, a teoria do conhecimento mantêm a metafísica em seu devido lugar, no estágio final da evolução do conhecimento humano.

Com esses esclarecimentos, o livro avança na análise da obra de Wundt mostrando que podemos identificar apenas uma grande ruptura no seu projeto de psicologia científica: o abandono da teoria lógica da mente. Em poucas palavras, essa teoria, que aparece nas primeiras formulações psicológicas de Wundt, entendia a mente como um conjunto de inferências inconscientes, que antecediam e explicavam a experiência consciente. Assim, as inferências inconscientes, um conjunto de processos indutivos, organizariam as sensações associando, fundindo e relacionando-as, o que constituiria a percepção ou experiência consciente.

O problema com a teoria lógica da mente é o mesmo que qualquer teoria psicológica assentada na noção de inconsciente psíquico precisa enfrentar: como falar da natureza desse inconsciente se, por definição, ele não pode ser conhecido? Como decidir entre um enunciado que afirma que a natureza do inconsciente é lógica e um que nega essa natureza se não há evidência empírica direta para nenhuma delas? Em suma, uma teoria do inconsciente dificilmente escapa de uma metafísica dogmática. Essa constatação fará com que Wundt abandone a teoria lógica da mente e acabe considerando que há apenas um sentido legítimo para o termo inconsciente, que é o fisiológico. Como explicação para essa ruptura, o livro aponta a influência de Kant. Nesse sentido, o desenvolvimento posterior do projeto psicológico wundtiano pode ser considerado como sendo de inspiração kantiana. Mas essa afirmação precisa ser tomada com cuidado. Da mesma forma que depois de ser acordado de seu sono dogmático por Hume, Kant não se tornou um humeano, Wundt, depois de ser acordado de seu sono dogmático por Kant, não se tornou um kantiano. Na verdade a pretensão de Wundt era superar Kant. Evidentemente, é preciso avaliar em que medida Wundt logra esse objetivo, uma questão que o livro deixa em aberto, e que, longe de ser uma falha, mostra outra virtude da obra: a proficuidade em abrir caminho para pesquisas futuras.

O abandono da teoria lógica da mente e, consequentemente, da noção de inconsciente psíquico consolida-se a partir de um conjunto de mudanças. Em primeiro lugar, Wundt amplia a noção de consciência fazendo a diferença entre percepção e apercepção, mostrando que nem tudo que está no campo perceptual é conhecido com total clareza. Na verdade, a atenção é justamente a seleção de um ponto do campo total, que passa a ser conhecido com mais nitidez, o que não quer dizer que o resto do campo ainda não seja passível de conhecimento. Em suma, a dicotomia consciente-inconsciente é substituída no campo psíquico por graus de consciência. Em segundo lugar, é preciso evitar um erro comum de propostas introspeccionistas, não confundindo consciência com autoconsciência. Isso introduz a questão da separação entre eu e não-eu. O eu, em seu sentido psicológico, a autoconsciência, não é um fato original que se identificaria com a própria consciência. Segundo Wundt, essa confusão surge porque a forma desenvolvida da consciência, que conta com a nítida separação entre eu e não-eu, é tomada como aúnica possível. A proposta será, então, adotar uma perspectiva genética na compreensão da consciência, defendendo assim a existência de uma consciência primitiva na qual encontram-se apenas representações e, consequentemente, uma indiferenciação entre eu e não-eu.

Esclarecidos os motivos e a forma do abandono da teoria lógica da mente, o livro volta-se para a apresentação doúltimo e definitivo projeto de psicologia de Wundt. Embora esse projeto consista em uma mudança radical em relação àquele assentado na teoria lógica da mente, há ainda alguns pontos que já estavam, pelo menos em germe, presentes nas primeiras formulações e que poderão ser agora desenvolvidos. Um desses pontos diz respeito à Völkerpsychologie. Desde suas primeiras formulações, Wundt defendeu que o escopo da psicologia ultrapassava o estudo dos indivíduos, devendo ser complementado por uma psicologia comparada que envolvia a psicologia animal e a Völkerpsychologie. No entanto, só a partir daúltima formulação de seu projeto de psicologia é que a separação entre psicologia individual e Völkerpsychologie será esclarecida. O primeiro passo será delimitar os temas tratados por essa "psicologia dos povos". Aqui Wundt esclarece que a Völkerpsychologie estuda basicamente a linguagem, mitos e costumes. Isso culminará em uma noção de mente coletiva, que se sustenta pelo fato de sermos capazes de identificar uma continuidade processual nos assuntos psicológicos estudados no âmbito das culturas. Em outras palavras, a Völkerpsychologie complementa a psicologia individual na medida em que mostra as peculiaridades do desenvolvimento psíquico coletivo, que, entre outras coisas, tem uma outra temporalidade, estabelecendo, assim, um independência relativa dos indivíduos (os "produtos psíquicos criados nas culturas" permanecem por gerações e por isso não se restringem à consciência individual). Essa diferença de temporalidade impede a aplicação do método experimental nesse campo, ao mesmo tempo em que permite o emprego da observação aproximando metodologicamente a Völkerpsychologie das ciências do espírito, sobretudo, da etnologia e da antropologia.

Na medida em que acompanhamos esse complexo desenvolvimento da obra de Wundt, é praticamente inevitável um déjà-vu. Como não lembrar de Freud quando vemos Wundt às voltas com o inconsciente psíquico e suas dificuldades de livrar-se da metafísica dogmática? E de Piaget, diante da defesa de uma perspectiva genética para analisar o conhecimento? Ou ainda, da Gestaltpsychologie nas críticas ao introspeccionismo tradicional, e na visão do inconsciente como fisiologia? É nesse sentido que reencontramos Wundt como o pai da psicologia. Parece que muitas das propostas psicológicas que surgem no século XX já estavam em germe no projeto wundtiano, o que coloca Wundt como um "elo perdido" da psicologia moderna. Parafraseando Whitehead (1929), será que poderíamos dizer que a história da psicologia científica é uma nota de rodapé da obra de Wundt? Creio que sim, não fosse um outro "elo perdido" que ainda está por ser descoberto: William James. E aqui o livro coloca uma questão fundamental para futuros estudos: como situar James, um erudito contemporâneo de Wundt, diante de todo esse desenvolvimento? Não que o livro devesse responder a essa questão, afinal não é esse seu objetivo; mas depois de sua leitura parece irresistível começar a imaginar um diálogo entre entre o alemão e o norte-americano. Se por um lado, podemos ouvir claramente ecos de Wundt no projeto de James (como não aproximar o fluxo do pensamento de James (1890/1955) da experiência imediata de Wundt, entendida como um processo?), por outro lado, parece haver diferenças fundamentais: haveria paralelo wundtiano para a ação mental de James, um conceito que tem, justamente, a função de afastar a metafísica da psicologia? Ou ainda, como encontrar uma Völkerpsychologie em James? Talvez a dificuldade da psicologia científica esteja aí: ela tem dois pais.

 

Referências

Araujo, S. F. (2010). O projeto de uma psicologia científica em Wilhelm Wundt: Uma nova interpretação. Juiz de Fora: Editora UFJF.         [ Links ]

Blumenthal, A. L. (1979). The founding father we never knew. Contemporany Psychology, 24(7), 548-550.         [ Links ]

James, W. (1955). The Principles of Psychology. In R. M. Hutchins (Org.), Britannica great books, vol. 53. Chicago: Encyclopedia Britannica. (Originalmente publicado em 1890)        [ Links ]

Koffka, K. (1935). Principles of Gestalt Psychology. New York: Harcourt, Brace and Company.         [ Links ]

Machado, A., Lourenço, O., & Silva, F. J. (2000). Facts, concepts, and theories: The shape of psychology's epistemic triangle. Behavior and Philosophy, 28, 1-40.         [ Links ]

Marx, M. H., & Hillix, W. A. (1978). Sistemas e Teorias em Psicologia. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Schultz, D. P., & Schultz, S. E. (1996). História da Psicologia Moderna. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Whitehead, A. N. (1929). Process and Reality. New York: Macmillan.         [ Links ]