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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.5 no.2 Juiz de Fora dez. 2011

 

ARTIGOS

 

A estrutura como representação na obra inicial de Merleau-Ponty*

 

Structure as Representation in Merleau-Ponty's Early Work

 

 

Duane H. Davis I

I Universidade da Carolina do Norte em Asheville, NC, EUA.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tema deste artigo, enunciado nos termos mais gerais, diz respeito à relação de "fundamentação" entre a filosofia e a práxis das ciências humanas, especialmente a psicologia. Mais especificamente, eu argumento que a obra de Merleau-Ponty nos fornece uma noção de estrutura que pode ser vista como representação em dois sentidos importantes e entrelaçados. Em primeiro lugar, sua noção de estrutura é uma representação do eu. Em segundo lugar, sua noção de estrutura é uma representação da psicologia – especialmente no que diz respeito às suas relações com a filosofia. Por fim, eu tentarei mostrar como a estrutura como representação inaugura o projeto merleau-pontyano de uma fenomenologia da percepção, que ele desenvolverá por toda sua vida.

Palavras-chave: Fenomenologia; psicologia; Merleau-Ponty; representação; estrutura.


ABSTRACT

The subject of this paper, stated in the most general terms, concerns the "grounding" relation between philosophy and the praxis of the human sciences, especially psychology. More specifically, I argue that Merleau-Ponty’s early work provides a notion of structure that can be seen as representation in two important intertwined senses. First, his notion of structure is a representation of the self. Second, his notion of structure is a representation of psychology – especially in regard to its interrelations with philosophy. Finally, I will show how structure as representation inaugurates Merleau-Ponty’s life-long project of a phenomenology of perception.

Keywords: Phenomenology; psychology; Merleau-Ponty; representation; structure.


 

 

Meu tema, enunciado nos termos mais gerais, diz respeito à relação de "fundamentação" entre a filosofia e a práxis das Ciências Humanas, especialmente a Psicologia. Mais especificamente, eu argumento que a obra de Merleau-Ponty nos fornece uma noção de estrutura que pode ser vista como representação em dois sentidos importantes e entrelaçados. Em primeiro lugar, sua noção de estrutura é uma representação do eu. Em segundo lugar, sua noção de estrutura é uma representação da Psicologia – especialmente no que diz respeito às suas relações com a filosofia. Por fim, eu tentarei mostrar como a estrutura como representação inaugura o projeto merleau-pontyano de uma fenomenologia da percepção, que ele desenvolverá por toda sua vida.

Eu devo adverti-los que, ao longo deste ensaio, estarei usando o termo representação num sentido peculiar e deliberadamente ambíguo. Por favor, não entendam o termo representação no sentido de uma cópia de algo, em que, de alguma maneira, a cópia esteja diminuída com relação ao seu original. Pensem em representação no sentido de uma representação sem origem. Dessa maneira, a ênfase recai no processo, no acontecimento da representação, e não naquilo que é representado ou em algo que seja uma cópia daquele original. Assim, quando eu afirmar que a estrutura é uma representação do eu, não pretenderei dizer que ela é uma cópia ruim do eu. Nem – o que seria ainda pior – quererei dizer que a estrutura é o verdadeiro eu revelado. Em vez disso, a estrutura será o revelar-se do sentido do eu. A estrutura não é uma coisa; ela é um processo – é da natureza de um acontecimento. A estrutura do comportamento implica o eu enquanto eu no sentido do comportamento. Da mesma forma, quando eu disser que a estrutura é uma representação da Psicologia, eu não pretenderei afirmar que a estrutura é uma cópia ruim ou alguma Psicologia verdadeira revelada. A estrutura será o revelar-se do sentido da Psicologia. A estrutura do comportamento implica a Psicologia como Psicologia, com suas disciplinas e praxes específicas, no sentido do comportamento. Em ambos os casos, a estrutura é uma re-presentação criativa e radical – sentido e valor rompendo a si mesmos enquanto tais – e, assim, ela é mais bem compreendida sem referência a alguma apresentação originária.

 

A Estrutura como Representação do Eu

O que é o eu? Essa é apenas uma das formulações da grande questão imemorial: Quem somos nós? Quem é aquele que faz surgir o comportamento estudado pela Psicologia?

Merleau-Ponty enuncia muito claramente o propósito de seu trabalho de 1942, La Structure du Comportement (1942/1990), na primeira frase do livro: "Nosso objetivo é compreender as relações entre consciência e natureza: orgânica, psicológica ou, mesmo, social" (p.1) 1. Observem, por favor, que esse objetivo é um projeto de compreensão, e não de conhecimento dos fatos. Retornaremos a esse ponto mais tarde. Esse enunciado do propósito do livro tampouco é um mau esboço do direcionamento de toda a carreira de Merleau-Ponty. Em geral, em suas primeiras obras, ele se concentra em transformar radicalmente a noção de consciência, enquanto que, em seus trabalhos mais tardios, ele se concentra em transformar radicalmente a noção de natureza.

Merleau-Ponty procura atingir essa compreensão da relação entre consciência e natureza pela elucidação da estrutura – ou das estruturas – do comportamento. Ele é mais específico sobre seu plano no final da introdução, onde diz que abordará o problema "de baixo", e não de um ponto de vista teórico (SC, p. 2; SB, p. 4.). Isto é, começando pelo mundo tal como o experienciamos, Merleau-Ponty espera livrar-se das pressuposições metafísicas sobre o eu e sobre a natureza, assumidas pelas várias escolas de pensamento em Psicologia de sua época (a saber, o behaviorismo de Watson, o "mentalismo" de Brunschvicg, a Psicologia da Gestalt de Koffka e Koehler, etc.). Em vez de começar pelas concepções metafísicas de mente, corpo e natureza, ele espera que essa nova abordagem "possa nos dar a oportunidade de defi ni-las de novo", especialmente evitando a "desordem ideológica" manifesta no behaviorismo norte-americano de sua época (SC, pp. 2-3, n. 2; SB, p. 225, n. 3.).

Merleau-Ponty acreditava que os psicólogos frequentemente assumiam alguma compreensão particular do eu na prática de sua ciência. Observem, por favor, que Merleau-Ponty não pensa que isso seja "errado". Eu creio que ele sempre foi, em certo sentido, um psicólogo, ao longo de toda a sua carreira, embora esteja certo de que um bom número de filósofos e psicólogos estaria disposto a discordar dessa afirmação. Mas os resultados obtidos pelas ciências – que fazem certas pressuposições – reivindicam essas suposições como se elas fossem universais e objetivas. Em vez disso, essas reivindicações devem ser explicitadas no reconhecimento dessas pressuposições, uma vez que os resultados são contingentes com relação a elas. Ou seja, os resultados podem proporcionar um grande discernimento (insight), mas eles são mais bem compreendidos como o consequente de um enunciado condicional, no qual o antecedente é uma pressuposição metafísica não enunciada. Retornaremos a esse tema na segunda seção deste ensaio.

A abordagem filosófica de Merleau-Ponty, em geral, é fenomenológica. A escola filosófica de pensamento conhecida como fenomenologia foi fundada pelo matemático e filósofo alemão Edmund Husserl, que realizou seu trabalho mais importante no primeiro terço do século XX. É ao pensamento de Husserl que Merleau-Ponty retorna sempre ao longo de toda a sua carreira – sempre se apropriando do projeto fenomenológico de Husserl de maneira crítica e criativa.

A intuição fundamental da fenomenologia é que a consciência é intencional. Isto é, a consciência é sempre consciência de algum objeto da consciência. A consciência intencional está sempre direcionada ao seu objeto, orientada para ele e conectada com ele. A ideia-chave aqui é que a consciência é a relação envolvendo aquele que conhece e a coisa a ser conhecida. Então, quando Merleau-Ponty enuncia seu propósito aqui, ele está descrevendo uma relação intencional entre a consciência e o mundo. Se quiséssemos ser mais críticos, poderíamos dizer que ele joga com o sentido equívoco do termo consciência, pois se refere tanto ao entendimento tradicional da consciência como "cognoscente" ou "sujeito", quanto ao sentido fenomenológico, mais rico, da consciência intencional, que é a relação entre a consciência tradicional e seu objeto – a natureza. Mas acho que este acaba sendo um equívoco bastante frutífero, pois ele permite que Merleau-Ponty explore essa ambiguidade que está no coração da existência humana pelo resto de sua carreira. Nós não somos nem sujeitos, nem objetos – de alguma maneira, somos ambos e nenhum dos dois. Nós não somos nem consciência, nem natureza – de alguma maneira, somos ambas e nenhuma das duas. Nosso comportamento está estruturado dessa maneira ambígua.

Husserl (1982, p. 56) pensava que sua abordagem fenomenológica revelava um domínio para a ciência que "mal tinha sido percebido até então", o qual, por sua vez, revelava uma nova compreensão do eu – uma compreensão radical da consciência como consciência intencional 2. Mais interessante que isso: ele pensava que essa abordagem envolvia uma alteração da consciência. A fim de melhor compreender tudo isso – e, o que é mais importante para nossos propósitos, a fim de compreender a noção de Merleau-Ponty da estrutura como uma representação do eu – , precisamos primeiro compreender alguma terminologia básica da fenomenologia.

Husserl descreveu como a consciência ingenuamente aceita seu mundo na sua forma dada e se referiu a essa atitude como a "atitude natural" da consciência. Mas nós também tendemos a ver o mundo em termos dos preconceitos teóricos que nós herdamos ou cultivamos. Ao reconhecer esses preconceitos e suspender nossa crença nos mesmos, Husserl pensava que nós poderíamos revelar o fenômeno tal como ele é, em vez de ficarmos presos aos nossos preconceitos teóricos. A chave – dizia ele – era suspender nossos sistemas de crenças sobre qualquer fenômeno em questão, sem postular novas crenças teóricas. Isso evitaria os erros que ele pensava que a Psicologia tinha cometido, ao considerar seus resultados como estados reais dos fenômenos, em vez de assumir seus próprios preconceitos teóricos. Nesse caso, a natureza do eu é o fenômeno que nós estamos interessados em discutir. Se começamos por assumir que o eu é um epifenômeno da atividade fisiológica, por exemplo, então os resultados de nossas investigações precisam reconhecer essas pressuposições.

Husserl tomou emprestado um termo dos antigos céticos para descrever suspensão de nossas préconcepções: epochè. Ao realizar a epochè, nós estamos também reduzindo o objeto da consciência ao próprio fenômeno bruto, posto a nu. Daí esse processo que ele denominou redução fenomenológica. A epochè e a redução fenomenológica são dois lados da mesma moeda: realizar a epochè simultaneamente nos engaja na redução fenomenológica. Realizando a epochè e nos engajando na redução fenomenológica, somos capazes de voltar nossa atenção para a própria relação intencional, que é o revelar-se do fenômeno.

Agora, precisamos olhar apenas um pouco mais de perto a maneira como Husserl pensou que essa epochè e a redução fenomenológica deveriam ser efetuadas, a fim de avançar em nossa compreensão da posição de Merleau-Ponty. Husserl pensava que a consciência se dá na atitude natural de uma maneira familiar, porém impura e incerta, limitada por suas contingências. Nem o eu na atitude natural, nem o eu com seus preconceitos teóricos eram um entendimento do eu capaz de alcançar os fenômenos como eles realmente são. Isso tem imensas implicações para o modo como a Psicologia como ciência deve proceder e para como a Filosofia deve fundamentá-la – que nós discutiremos na segunda e na terceira seções deste ensaio. Ele pensava que, alterando a própria consciência, a fenomenologia podia revelar o eu fundamental operando em completa liberdade, em vez de ficar atolado em suas contingências. "Em vez de permanecer nessa atitude, nós propomos alterá-la radicalmente" (Husserl, 1982, p. 57). Observem, por favor, a reflexividade aparentemente paradoxal que há aqui, quando o fenômeno a ser revelado é a própria consciência: nós devemos alterar a consciência, a fim de revelá-la tal como ela é. Ora, Husserl estava a par desse problema, é claro, e sustentava que isso não é um problema desde que nós nos retiremos da atitude natural. O verdadeiro eu que é revelado através dessa alteração da consciência é o ego transcendental: a raiz da consciência intencional em relação com seu objeto. Para Husserl, esse ego transcendental não é, de forma nenhuma, a mesma coisa que a psique operando na atitude natural. Apenas o ego transcendental, operando em sua plena liberdade, pode suspender a crença nos preconceitos teóricos. Assim, ele mantinha que, a menos que a ciência da Psicologia estivesse fundamentada pela fenomenologia, sua compreensão do eu seria limitada e distorcida. O psicólogo fenomenológico norte-americano Amadeo Giorgi (1998) descreveu isso humoristicamente como "procurar pela psique em todos os lugares errados".

Husserl descreveu com grande entusiasmo o modo como a redução fenomenológica fornecia uma pura fundamentação para o conhecimento científico, por meio dessa alteração radical da consciência. Essa alteração da consciência é importante para a compreensão do que nós estamos chamando de uma representação do eu na noção merleau-pontyana de estrutura.

Merleau-Ponty buscava revelar a estrutura do comportamento, que eu já descrevi como uma relação intencional entre consciência e natureza. Ele queria livrar-nos dos preconceitos teóricos a respeito da natureza do eu que ele via em várias das escolas de Psicologia de sua época. Merleau-Ponty procurava revelar as limitações e inadequações dessas abordagens psicológicas, ao expor que elas continham pressuposições metafísicas não admitidas. Ele fez isso descrevendo como o behaviorismo, o intelectualismo e a psicologia da Gestalt explicavam três ordens de comportamento: a ordem física, a ordem vital e a ordem humana. Não temos tempo para entrar nos detalhes dessas críticas aqui. Mas a maneira pela qual Merleau-Ponty realiza essas críticas é, ela mesma, digna de nota. Ele elabora essas posições – "experimenta-as para ver se servem" – apenas para descobrir, de dentro para fora, que elas são, de algum modo, limitadas e produzem explicações do eu que são contrárias à nossa experiência e injustificáveis. E, em cada caso, o problema é que elas fazem pressuposições metafísicas a respeito do eu. O behaviorismo sustentava que o eu é uma relação entre estímulo e resposta, a qual se apoia numa metafísica positivista, segundo a qual o que é real pode ser empiricamente verificado, manipulado e controlado. O intelectualismo sustentava que o eu é realmente espiritual ou intelectual, e não de natureza empírica. Os psicólogos da Gestalt criticam tanto o behaviorismo quanto o intelectualismo, ao descreverem o comportamento em termos de relações entre as partes e o todo. No entanto, em última instância, eles insistiam em que essas relações eram as causas reais e materiais do comportamento. Em cada caso, Merleau-Ponty elabora essas posições e adota algumas verdades limitadas. Ele se apropria de aspectos de cada posição na articulação de sua própria compreensão da estrutura.

Por exemplo, Merleau-Ponty se apropria das críticas dos gestaltistas ao behaviorismo, mas, então, desconstrói suas críticas para revelar que elas dependem de uma má compreensão da causalidade como material, que eles já tinham mostrado ser inadequada

Mas, ao falar das formas físicas, a teoria da Gestalt quer dizer que se podem encontrar essas estruturas numa natureza tomada em si mesma [como puro objeto], de modo a constituir a mente. Assim, as mesmas razões que desacreditam a concepção positivista das leis [do comportamento] também desacreditam a noção de formas em si. Não se pode corrigir uma com a outra; e esses dois dogmatismos compreendem mal o sentido vivo das noções de estrutura (...) na consciência científica. Muito mais do que opostas, elas são complementares e representam antinomias que precisam ser ultrapassadas (SC, p. 151; SB, p. 140).

A noção merleau-pontyana de estrutura é uma representação do eu. Ela se apropria de aspectos dessas outras explicações do eu, ao mesmo tempo em que evita os apelos metafísicos que ele revelou nas outras posições. A estrutura se manifesta no mundo da experiência e da percepção, mas Merleau-Ponty não reduz o eu a um arranjo de causas empíricas. A estrutura explica a relação entre mente e corpo sem reduzir a mente ao corpo ou o corpo à mente. A estrutura leva em conta as Gestalten sem postulá-las como realidades empíricas ou causas materiais.

Merleau-Ponty sempre escreve obliquamente. Ele revela seu pensamento em suas apropriações críticas de outros pensadores. Alguns leitores ficam impacientes com esse estilo. Consideremos, então, uma analogia, a fim de compreender melhor o que Merleau-Ponty quer dizer com sua noção de estrutura. Podemos perguntar: "O que é um time de futebol?" Claro que nós sabemos o que o time de futebol é! Não temos nenhuma dificuldade em distinguir nosso time favorito dos outros (a não ser, talvez, que tenhamos tomado algumas caipirinhas demais). O que é esse time que nós reconhecemos? Os corpos físicos dos jogadores são obviamente o que se vê no campo, mas o sentido do time não se esgota nessa explicação. E os jogadores reservas nas laterais? E os jogadores anteriores, o treinador, os massagistas, os fãs, o escritório comercial que vende os produtos do time? Onde nós paramos? Da mesma maneira, não iremos muito melhor apelando para algum espírito de equipe, a não ser que este tenha alguns corpos grandes, fortes, rápidos e ágeis para complementar aquele espírito. O time tampouco é redutível a uma série de relações físicas causais entre partes e todos: goleiros e atacantes, por exemplo. Então, o que é o time? Ele não é a carne individual dos jogadores, nem algum espírito desencarnado, nem a relação entre os jogadores e o time como coisas. Mas á uma estrutura identificável no comportamento que nós chamamos de "time". A estrutura do comportamento implica o time como time no sentido do comportamento. Nenhum outro time se comporta como aquele! Sua identidade e estilo singulares são revelados em seu comportamento. A estrutura do comportamento é o revelar-se do sentido do time.

Há interessantes paralelos a essa abordagem na carreira posterior de Merleau-Ponty, que nós não tempos tempo de discutir em detalhe, mas podemos apenas mencionar de passagem aqui. Onde está a raiva que alguém sente de nós quando nos tornamos particularmente irritantes? (Merleau-Ponty, 2002, pp. 45-47). Onde está a pintura que nós adoramos ou abominamos? (1964a). Onde está a linguagem que eu uso para exprimir esse pensamento? (1945, pp. 203-232; 1986, pp. 174-199).

Onde está o time? Onde está o eu? Ele não está em parte alguma, se procurarmos por ele como algo puramente empírico, espiritual ou como alguma relação entre Gestalten. O eu não é nem sujeito, nem objeto. Consciência/objeto, sujeito/objeto são relações intencionais nas quais o fenômeno do eu é exposto – na estrutura do comportamento. A descrição do eu como representado em estrutura não é um movimento do subjetivo para o objetivo, porque a estrutura não é objeto. Penso ser óbvio que a estrutura não é subjetiva, mas quero enfatizar aqui que a estrutura não é uma verdade objetiva do preconceito subjetivo. Ela tampouco é alguma realidade metafísica objetiva por trás da aparência subjetiva. A estrutura não está atrás, embaixo, além ou em qualquer outro lugar que não seja este mundo da experiência. Ela não é subjetiva. Ela não é objetiva. A estrutura do comportamento implica – representa – o eu como eu no sentido do comportamento. O eu é um fenômeno.

A representação do eu manifesta na estrutura do comportamento conta com a ambiguidade de que o eu é mais do que ele é, nunca é exatamente o que ele é, e não é nada mais do que aquilo que ele é. A fim de compreender esse eu, deve haver uma alteração radical do eu que se manifesta em sua própria emergência como fenômeno.

Esse objeto – ou sujeito – elusivo é o comportamento a cujo estudo a ciência da Psicologia tem-se devotado. Ele difere marcadamente do eu tal como tipicamente entendido pela Psicologia. Como veremos na próxima seção, essa noção de estrutura também acarreta uma exposição igualmente radical e criativa da ciência que se dedica ao estudo do comportamento.

 

A Estrutura como Representação da Psicologia

O que é Psicologia? Como acontece com a questão do eu, a não ser que estejamos dispostos a nos contentar com uma resposta desgastada e didática, não é assim tão fácil saber como responder a essa questão. É claro que ela é o estudo do comportamento – mas que tipo de estudo? E como a filosofia se relaciona adequadamente com o estudo do comportamento? Ou, nos termos da nossa investigação, como a noção de estrutura em Merleau-Ponty pode ser uma representação da Psicologia?

Como dissemos anteriormente, a estrutura é o revelar-se do sentido da Psicologia. A estrutura do comportamento implica a Psicologia enquanto Psicologia, com suas disciplinas e práticas específicas, no sentido do comportamento. Assim como a noção merleau-pontyana de estrutura acarretava alterações radicais do eu, ela também acarreta uma mudança radical na abordagem de como a Psicologia deve fornecer uma explicação do comportamento.

Na seção anterior, o eu – o que Husserl chamava "o enigma dos enigmas" – revelava-se tanto como subjetivo quanto como objetivo – mas nem sujeito, nem objeto. Da mesma forma, a ciência da Psicologia deve ser tanto subjetiva quanto objetiva – mas nenhuma das duas coisas. Se a Psicologia fosse adotar uma abordagem puramente subjetiva, ela produziria diários em vez de estudos científicos. Mas ela não pode fingir assumir uma postura puramente objetiva, a menos que ela se abstenha de qualquer possibilidade de fornecer interpretação e compreensão.

Merleau-Ponty segue o caminho da crítica que os psicólogos da Gestalt fazem do behaviorismo para ilustrar como uma abordagem causal e objetiva simples não pode sequer explicar os refl exos, muito menos ordens superiores de comportamento. Ele examina o trabalho realizado por psicólogos clássicos – tal como Pavlov, Watson e Sherrington, entre outros – para ilustrar como eles decompõem o comportamento em partes menores que podem ser observadas e controladas, assumindo que a melhor compreensão do comportamento é como uma conexão causal e mecânica entre alguns estímulos e respostas isoladas. Uma explicação puramente objetiva e mecanicista como essa ignora seletivamente o contexto sistêmico do comportamento e, assim, distorce seu significado. Ela reduz o eu que se comporta a algo semelhante a um "posto de controle ferroviário" e, ao mesmo tempo, limita esse tipo de explicação psicológica a uma distorção objetiva mecanicista.

A metáfora de um posto de controle ferroviário não é aplicável, já que não se pode descobrir onde ele estaria situado e já que este seria um posto de controle que receberia suas instruções dos comboios que ele está encarregado de redirecionar e que improvisa os caminhos e desvios de acordo com suas indicações (Merleau-Ponty, SC, p. 32; SB, p. 32).

Inibições, dispositivos de controle, etc., são sobrepostos ao modelo do arco reflexo posteriormente. Mas não faz sentido sustentar o modelo mecanicista quando este é inconsistente com a experiência. Uma explicação como essa depende de categorias que não foram feitas para os fenômenos que ela revelou (SC, p. 33; SB, p. 33). Merleau-Ponty elabora esse modelo de Psicologia e, com isso, revela quais pressuposições metafísicas são feitas a respeito da abordagem dessa escola de Psicologia.

Além disso, não há uma conexão causal linear simples em jogo aqui. A abordagem teórica reducionista falha em apreender a complexidade do comportamento devido às suas pressuposições metafísicas.

A teoria do reflexo condicionado apresenta estímulos e respostas que se sucedem uns aos outros num organismo como uma série de acontecimentos externos entre si e entre os quais não se podem estabelecer outras relações além daquelas da contigüidade temporal imediata (SC, p. 105; SB, p. 95).

Mas Merleau-Ponty mostra que existe uma alteração criativa em ação no comportamento, como, por exemplo, a aprendizagem, que os behavioristas descrevem como condicionamento, mas que escapa às exigências da teoria.

Rigorosamente descrita, além disso, a aprendizagem não parece ser o acréscimo, a antigas formas de comportamento, de certas conexões determinadas entre tais e tais estímulos e tais e tais movimentos, mas, ao contrário, uma alteração geral do comportamento que se manifesta numa multidão de ações, cujo conteúdo é variável, mas cuja significação é constante (SC, p. 105-6; SB, p. 97).

A aprendizagem não é a cópia exata do comportamento, mas uma re-presentação criativa. Essa abordagem clássica em Psicologia ignora o que Merleau-Ponty chama de "causalidade circular" em favor de um modelo linear claramente simplificado. Essa causalidade circular explica as alterações em questão descrevendo a interdependência situada, que é incompatível com um modelo puramente objetivo.

A percepção é um momento da dialética viva do sujeito concreto; ela participa em sua estrutura total e, correlativamente, ela tem como seu objeto original, não uma "massa não-organizada", mas as ações de outros sujeitos humanos (SC, p. 179; SB, p. 166).

Quando fala de uma "dialética viva", Merleau-Ponty enfatiza que a estrutura se situa na dimensão do acontecimento. Há uma alteração do eu que, como vimos na seção anterior, se manifesta quando se atenta para a estrutura do comportamento. Da mesma forma, requer-se uma alteração da atitude científica. Caso contrário, como observa Merleau-Ponty, a Psicologia sofreria por causa de suas concepções metafísicas, e suas explicações seriam limitadas, da maneira como acabamos de ver. Como veremos, Merleau-Ponty pretende mostrar que, se a Psicologia puder ser representada, à medida que seu sentido emerge na estrutura do comportamento, isso também mudaria a relação entre Psicologia e Filosofia.

"Passando pelo behaviorismo, obtemos os meios para introduzir a consciência, não como realidade psíquica, mas como estrutura" (SC, p. 3; SB, p. 5). E, como veremos na seção fi nal, Merleau-Ponty mal começou um projeto que será para a vida inteira, quando aborda a natureza da existência dessas estruturas, na conclusão desse seu primeiro livro.

Como afirmei anteriormente, Merleau-Ponty era um pensador fenomenológico. Como tal, ele se interessava pelas condições de possibilidade da experiência – ou pela "filosofia transcendental". É importante notar agora como sua posição difere da de Husserl a respeito do papel da filosofia em fornecer uma fundamentação transcendental para as ciências.

Recordem, por favor, que Husserl pensava ser necessário suspender ou pôr entre parênteses nossa crença nos preconceitos teóricos, a fim de ultrapassar a atitude natural rumo a um modo de consciência crítica novo e radicalmente alterado, que ele acreditava ser exclusivo da fenomenologia. Isto é, ao realizar a epochè, nós alteraríamos radicalmente nosso estado de consciência, de tal modo a nos engajarmos simultaneamente na redução fenomenológica. Ele acreditava que isso produziria uma nova compreensão do fenômeno, que fosse pura e inocente de todo preconceito teórico. Husserl pensava, assim, que a filosofia fenomenológica forneceria uma nova fundação transcendental para todas as ciências, incluindo a Psicologia. Husserl descrevia a fenomenologia como a "ciência das ciências" – a única garantia adequada de resultados necessários e certos nas e entre as ciências. Sem uma fundamentação fenomenológica adequada, Husserl (1982) pensava que a Psicologia podia ocasionalmente produzir verdades válidas, mas não teria nenhuma maneira de compreender o sentido e a amplitude dessas verdades, pois permaneceria atolada na atitude natural e limitada por suas concepções metafísicas.

Assim, eu excluo todas as ciências relacionadas a esse mundo natural, não importando quão firmemente estabelecidas elas sejam para mim, não importando o quanto eu as admire, não importando quão pouco eu pense em eliminar a menor objeção a elas; eu não faço absolutamente nenhum uso das coisas colocadas por elas. Eu tampouco assumo como minha nenhuma das proposições que pertençam a essas ciências, mesmo que ela seja perfeitamente evidente; nenhuma é aceita por mim; nenhuma me fornece um fundamento – que isso fique bem claro: na medida em que ela seja entendida, tal como se apresenta em uma dessas ciências, como uma verdade a respeito das realidades deste mundo. Eu não devo aceitar uma proposição como essa até que eu tenha colocado um parêntese à sua volta. Isso significa que eu só posso aceitar tal proposição numa consciência modificada – a consciência de exclusão do juízo – e, portanto, não mais como ela é na ciência, uma proposição que reivindique sua validade e cuja validade eu aceite e utilize (pp. 61-62).

Para Husserl, a promessa da filosofia fenomenológica repousa na alteração radical da consciência, que a afaste de qualquer ponto de vista teórico que a ciência pudesse fornecer. De fato, Husserl via como uma crise fundamental de seu tempo o fato de que as verdades afirmadas pela ciência fossem assumidas não apenas como verdades, mas como o padrão de verdade de nosso mundo da experiência.

Da mesma forma, embora Merleau-Ponty (2002, pp. 14-15) não queira negar a ciência, ele vira a mesa e insiste em que é a ciência que era culpada da negação do mundo da experiência 3. A ciência moderna era culpada de sua própria arrogância, ao assinalar o mundo percebido como uma classe subordinada requerendo retificação: "uma simples aparência destinada a ser superada pelo conhecimento científico" (p. 15).

É crucial perceber que Merleau-Ponty não está advogando a negação da ciência. Na verdade, ele era contrário à visão arrogante que a filosofia moderna manteve, de Descartes a Kant e Hegel: a de que a filosofia deveria, enquanto guardiã da razão, presidir sobre as ciências e fornecer-lhes um fundamento firme. Caso contrário, sustentavam esses pensadores arrogantes, o trabalho da ciência seria desperdiçado. Como a ciência poderia fornecer uma verdade sobre o mundo, se ela não consegue sequer considerar o que a verdade significa ou o que o mundo significa? Qualquer filosofia "que se apresente como uma afirmação autoritária da absoluta autonomia da mente… deixou de ser uma interrogação" (Merleau-Ponty, 1960, p. 158; 1964, pp. 98-99). Merleau-Ponty criticou essa visão pretensiosa ao longo de toda a sua carreira.

Embora a explicação merleau-pontyana da estrutura do comportamento seja uma radical representação que pretende transformar a ciência, ela transforma também a própria abordagem fenomenológica. Enquanto Husserl acreditava que a epochè e a redução fenomenológica forneceriam um conhecimento apodítico – isto é, necessário e certo – que fundamentasse as práticas e as disciplinas da ciência, Merleau-Ponty difere acentuadamente dele nesse ponto.

Em primeiro lugar e acima de tudo, Merleau-Ponty afirmará em seu próximo livro que "o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa" (Merleau-Ponty, 1945, p. viii; 1986, p. xiv). Não há nenhuma pureza na abordagem metodológica de Merleau-Ponty. As ideias de Husserl foram um grande passo adiante, mas criaram um novo idealismo do qual Merleau-Ponty procurou abrigar-se em suas interações com as ciências, especialmente a Psicologia, ao longo de toda a sua carreira. A reflexão filosófica amplia e altera as ciências humanas, mas também é dependente delas. Essa é uma relação de fundamentação simbiótica e criativa.

Diz-se, em geral, que a psicologia não é competente no que concerne a esse ponto, já que ela não diz respeito aos objetos da experiência (...), mas apenas aos seus conteúdos (...), através dos quais eles (os objetos) nos são dados, e que a operação da consciência não pode ser conhecida pela observação desses materiais contingentes e de sua gênese temporal, mas apenas por uma reflexão sobre a estrutura do objeto. Na verdade, é justamente essa distinção entre estrutura e conteúdos, entre a origem psicológica e a origem transcendental, que está em questão (...). Assim, o que a psicologia diz, tomado no exato sentido em que ela pode dizê-lo, é incompleto, mas não falso; a gênese psicológica coloca problemas transcendentais (SC, pp. 179-180, n.1; SB, pp. 244-5, n. 82 - grifos meus).

Eu tenho uma confissão para fazer esta noite. Durante minha pós-graduação, na Universidade Estadual da Pensilvânia, eu costumava provocar um grande estudioso de Husserl – talvez um discípulo – , Thomas Seebohm, perguntando respeitosa, mas repetidamente, se a práxis das ciências humanas não seria uma parte integral da fundamentação das ciências humanas. Quando eu fazia isso, eu gostava particularmente de ver uma veia em suas têmporas começar a latejar. Até mesmo os idealistas husserlianos têm corpos.

O objeto visado pelo ataque de Husserl era o psicologismo, e não a Psicologia. Não obstante, sua abordagem da fenomenologia transcendental relegava a Psicologia a um status de segunda categoria. A Psicologia precisaria estar fundada na Filosofia para que pudesse ser significativa. E, infelizmente, o modelo de Husserl para a fenomenologia como uma ciência das ciências sofria do mesmo problema que Merleau-Ponty articulou tão claramente como sendo o destino de qualquer ciência dogmática; esse modelo considerava a compreensão psicológica como "uma simples aparência destinada a ser superada pelo conhecimento científico [nesse caso, fi losófi co]" (2002, p. 15). Tanto Husserl quanto Merleau-Ponty viam a fenomenologia como uma abordagem promissora da crise, embora eles certamente não concordassem a respeito do que exatamente precisava ser feito. Merleau-Ponty disse que Husserl reconheceu, "melhor que qualquer outro, que todas as formas de pensamento são, em certo sentido, independentes. Nós não precisamos dilacerar as ciências humanas para fundar a filosofia, nem dilacerar a filosofia para fundar as ciências humanas" (Merleau-Ponty, 1960, p. 158; 1964b, p. 98). Parece claro que Merleau-Ponty compreendeu esse ponto melhor do que Husserl jamais o fez. Podemos notar isso quando vemos que a noção de estrutura é uma representação da Psicologia – especialmente no que diz respeito às suas inter-relações com a filosofia, na qual a relação de fundamentação simbiótica e criativa entre Psicologia e fenomenologia é também uma representação da fenomenologia.

 

Inaugurando uma Fenomenologia da Percepção

Até agora, o fato de concentrarmo-nos na estrutura do comportamento nos permitiu considerar o eu e a ciência da Psicologia como fenômenos. A estrutura do comportamento implica o eu enquanto eu, e a Psicologia enquanto Psicologia no sentido do comportamento. A estrutura é o revelar-se do sentido do eu e da Psicologia. Em ambos os casos, a estrutura é uma representação criativa e radical – sentido e valor rompendo a si mesmos enquanto si mesmos e, assim, sendo mais bem compreendidos sem referência a alguma apresentação originária. Agora, precisamos voltar nossa atenção para o modo como, ao articular a estrutura como representação, o projeto merleau-pontyano vitalício de uma fenomenologia da percepção tem início.

Esse entrelaçamento dos dois sentidos de estrutura no qual nos concentramos é o começo do projeto merleau-pontyano de uma fenomenologia da percepção. Quando reconhecemos que são eus que estudam o comportamento de outros eus, então reconhecemos que qualquer rigor científico deve levar em conta certa reflexividade. Quando a abordagem fenomenológica revela uma consciência alterada, ela transforma a maneira pela qual ela estuda o eu, assim como o eu que ela estuda. Essa não é uma desvantagem para a investigação, mas a sua própria condição de possibilidade. E, embora a atitude científica seja uma alteração radical do eu, nem a Psicologia, nem a Filosofi a podem fingir ocupar algum puro ponto de vista sobre os fenômenos.

O título da obra mais famosa de Merleau-Ponty – Fenomenologia da percepção – é também uma descrição de seu projeto interdisciplinar vitalício. A Fenomenologia da percepção é uma obra dialética. Merleau-Ponty se opõe a duas escolas de pensamento psicológico, mostrando que cada uma delas está desenvolvendo problemas filosóficos para a Psicologia da percepção; e ele se opõe a duas escolas filosóficas de pensamento para revelar as pressuposições metafísicas comum a ambas. Finalmente, um acordo para o bem comum emerge dessa falácia compartilhada: uma ciência descritiva autocrítica emerge como o resultado da investigação e é utilizada para fornecer explicações ricas e detalhadas da consciência encarnada engajada na percepção. De novo, é crucial observar que a investigação psicológica e a crítica psicológica levaram-no a uma alteração tanto da especulação psicológica quanto da especulação filosófica. Ele utiliza esses problemas da Psicologia para guiá-lo rumo a um problema filosófico que espreita em meio a esses problemas psicológicos. Nesse processo, ele é capaz de fornecer explicações detalhadas da percepção espacial, do movimento corporal, da experiência sinestésica, da sexualidade, da fala e do gesto – e, finalmente, estende-as a reflexões mais abstratas sobre a natureza da consciência, da temporalidade e da liberdade. Não há dúvida de que, nessa obra, Merleau-Ponty produziu um híbrido distinto daquilo que se fazia passar por Psicologia e por Filosofia. Contudo, tudo isso floresce a partir de suas raízes na Psicologia e se mantém firmemente enraizado nesse solo; pois, sem suas origens numa Psicologia da percepção, a contribuição singular da consciência encarnada – o corpo vivido ou o corpo experienciado – nunca poderia ter sido articulada.

E nos já podemos mapear seu percurso filosófico utilizando sua apropriação dessas várias constelações das ciências humanas. No período de A estrutura do comportamento, ele se propunha a compreender a estrutura da consciência mediante um exame que emergia de dentro da Psicologia perceptiva. Na Fenomenologia da percepção, ele expandiu essa noção de estrutura da consciência para enfatizar a consciência encarnada – mais uma vez se apropriando de explicações psicológicas da percepção; mas agora, de tal maneira a desenvolver uma fenomenologia existencial própria. Parece claro que, nesse estágio de sua carreira, a Filosofia de Merleau-Ponty se articula consistentemente apenas em virtude das ciências humanas, no contexto das ciências humanas e em diálogo com as ciências humanas.

Eu gostaria de examinar detalhadamente uma passagem das páginas finais de A estrutura do comportamento que é crucial para notarmos como esse primeiro livro inaugura uma fenomenologia da percepção.

Por um desenvolvimento natural, a noção de Gestalt levou-nos de volta a seu sentido hegeliano, isto é, ao conceito antes que este se torne consciência do eu. A natureza, nós dizemos, é exterior ao conceito. Mas, precisamente, o conceito enquanto conceito não tem nenhum exterior, e a Gestalt ainda precisa ser conceitualizada como unidade do interior e do exterior, ou da natureza e da idéia. Correlativamente, a consciência para a qual a Gestalt existe não era a consciência intelectual, mas a experiência perceptiva. Assim, é a consciência perceptiva que deve ser interrogada a fim de encontrarmos nela um esclarecimento definitivo (SC, p. 227; SB, p. 210).

Primeiro, devemos notar que se trata de um desenvolvimento natural. Notem o aspecto autorreflexivo dessa passagem desde o começo. É um desenvolvimento dialético que busca conceitualizar a si mesmo – tornar-se objeto de sua própria compreensão. Por favor, observem que isso não pode nunca ser completado. Assim, este é um desenvolvimento natural na medida em que ele envolve o exterior de um conceito de si mesmo. Ele é natural também no sentido de que existe um sens [sentido], uma direção, assim como uma significação para essa reflexão particular. A própria ideia de Gestalt nos convida a pensar para além das pressuposições metafísicas não examinadas da Psicologia da Gestalt, que Merleau-Ponty desnudou ao longo das mais de 200 páginas anteriores do texto. A Psicologia da Gestalt é uma espécie de autoconsciência da Gestalt. Nós somos convidados pelo sens [sentido] a refletirmos sobre a noção de Gestalt antes de sua apropriação pela Psicologia da Gestalt.

Em segundo lugar, Merleau-Ponty diz que as Gestalten nos levaram de volta ao seu sentido "hegeliano", mas penso que isso apenas no sentido formal da lógica dialética da reflexão à qual aludimos acima. Considero mais importante que isso reflita o trabalho de Dilthey, que enfatizou um sentido carregado de história 4. A noção de Gestalt na Psicologia da Gestalt tem um exterior, uma vez que ela é já o produto de uma mediação. Mas ela é uma apropriação teórica de algo que poderia ser compreendido como não tendo nenhum exterior. O que, no comportamento humano, é a-histórico? Para Dilthey (1977), uma Psicologia explicativa tem "como seu objeto a totalidade da natureza humana e o pleno conteúdo de seus nexos psíquicos". Essa psicologia descritiva "nos permitiria compreender a totalidade da vida psíquica, seus contextos, conteúdos e formas predominantes" (p. 39). É a historicidade da compreensão que se revela nesse sentido primitivo, pré-teórico, de Gestalt 5.

Em terceiro lugar, relembremos as primeiras frases da introdução do texto: "Nosso objetivo é compreender as relações entre consciência e natureza: orgânica, psicológica e, mesmo, social. Por natureza, compreendemos aqui uma multiplicidade de acontecimentos externos uns aos outros e unidos por relações de causalidade" (Merleau-Ponty, SC, p. 1; SB, p. 3). Quando Merleau-Ponty diz que "a Gestalt ainda precisa ser conceitualizada como unidade do interior e do exterior, ou da natureza e da idéia", ele tem claramente em mente esse enunciado básico de seu projeto. Isto é, a estrutura do comportamento é a relação entre consciência e natureza. Essa ideia de estrutura deve ser vista como uma intromissão recíproca peculiar entre consciência e natureza ("unidade da natureza e da ideia") 6. Devemos lembrar as últimas frases da introdução aqui, nas quais Merleau-Ponty nos diz que, através de uma atenção crítica à Psicologia da Gestalt que superasse os problemas do behaviorismo, nós seríamos capazes de "introduzir a consciência não como realidade psíquica, mas como estrutura". Assim, nós iríamos "investigar o sentido e o modo de existência dessas estruturas". O objetivo explícito da compreensão da(s) estrutura(s) do comportamento é compreender a unidade da consciência e da natureza – a unidade de sua diferenciação. Como vimos acima, essa compreensão fornece uma autoconsciência reveladora e radical, que Husserl descreveu apaixonadamente em Ideias I. A fenomenologia é um engajamento na compreensão [understanding] que, com isso, transforma a consciência que permanece sob [standing under] seu objeto. Essa tarefa de elucidar a(s) estrutura(s) do comportamento não é apenas a compreensão da unidade entre consciência e natureza; ela é também a revelação do ser-no-mundo.

Em quarto lugar, a Verstehen – compreender, em vez de conhecimento factual – busca um objeto, mas só pode ser satisfeita com a totalidade da existência humana. Mas apenas o próprio Espírito humano abstrato poderia ser adequado para essa tarefa, e não a consciência perceptiva situada em sua finitude. A compensação natural – o outro lado da moeda dessa finitude – é a historicidade. Assim, a consciência perceptiva enquanto consciência histórica ultrapassa a si mesma sem negar a sua finitude.

Em quinto lugar, notem, por favor, que Merleau-Ponty está já mostrando a intersecção entre os sentidos hegeliano e husserliano de fenomenologia que é característico da fenomenologia francesa de meados do século 20 7.

E, finalmente, essa passagem clara e explicitamente inaugura uma fenomenologia da percepção. Uma vez que percebamos que o sens [sentido] natural da reflexão é uma rejeição da consciência intelectual, orientamo-nos para a consciência perceptiva – e a estrutura do comportamento é revelada através de uma reflexão fenomenológica: a epoche é o questionamento crítico da apropriação teórica da Gestalt. A redução é a interrogação da consciência perceptiva 8.

Vemos, assim, que a explicação da estrutura é a inauguração do projeto de uma fenomenologia da percepção. Tentei enfatizar que o projeto de Merleau-Ponty é sempre informado pela Psicologia. Mais tarde, refletindo sobre as relações entre as ciências humanas e a filosofia, Merleau-Ponty escreveu que "toda ciência secreta uma ontologia; toda ontologia antecipa um corpo de conhecimento" (1960, p. 158; 1964b, p. 98). A própria existência não pode ser significativa, a não ser que seja entendida nos termos do mundo em que nós existimos. A Psicologia fornece um corpo de conhecimento que é uma parte crucial desse processo de trazer a ontologia de volta à Terra. A explicação que Merleau-Ponty dá da estrutura enquanto o revelar-se dos fenômenos do eu e do estudo do eu em sua fundamentação criativa e simbiótica está na origem de sua investigação fenomenológica da percepção. Em última instância, essa investigação leva Merleau-Ponty a mudar o foco dos termos da consciência para os termos da natureza – particularmente em termos ontológicos, a explicação da própria existência. Gary Brent Madison (1981) afirma esse ponto muito claramente:

Embora, eles não estejam ainda plenamente desemaranhados, Merleau-Ponty já está de posse dos fios condutores de seu pensamento em A estrutura do comportamento; o resto de sua obra consistirá em seguir essas pistas, uma aventura fenomenológica (...). É suficiente fazer notar aqui que as características circulares, dialéticas e verticais da estrutura apresentadas nessa obra antecipam diretamente a análise na Fenomenologia da percepção, na qual Merleau-Ponty mostrará que a existência é definida por um diálogo com o mundo, pela intencionalidade e a transcendência – e, de fato, não é nada mais que isso (p. 14).

A ciência da Psicologia fornece um componente crucial de nossa compreensão da existência – uma das razões pelas quais ele se referiu a sua própria filosofia da existência como uma "endo-ontologia", nas notas de trabalho de sua obra final e inacabada, O visível e o invisivel. Esse mesmo projeto tem suas raízes na notável explicação da estrutura do comportamento que Merleau-Ponty desenvolve. A estrutura é o revelar-se do sentido do eu enquanto eu, e da Psicologia enquanto Psicologia. Em ambos os casos, a estrutura é uma representação radical e criativa – sempre pensado como esse rompimento de si mesmo enquanto si mesmo que nós reconhecemos como identidade. Esse rompimento está no coração de todo sentido. E, assim, essas representações são mais bem compreendidas sem referência a alguma origem.

 

Referências

Dilthey, W. (1977). Descriptive Psychology and Historical Understanding (R.M. Zaner & K.L. Heiges, trs.). The Hague: Martinus Nijhof.         [ Links ]

Giorgi, A. (jun, 1998). Looking for Psyche in All the Wrong Places. Comunicação apresentada no Congresso Internacional de Pesquisa em Ciências Humanas, Sitka, Alaska.         [ Links ]

Husserl, E. (1982). Ideas Pertaining to a Pure Phenomenology and to a Phenomenological Philosophy, Vol. I, (F. Kersten, trad.). Hague: Martinus Nijhoff Publishing.         [ Links ]

Madison, G. B. (1981). The Phenomenology of Merleau-Ponty: A Search for the Limits of Consciousness (G. B. Madison, trans.). Athens: Ohio University Press.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1945). Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1960). Signes. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1964a). L’Oeil et l’esprit. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1964b). Signs (R. McCleary, tr.). Evanston: Northwestern University Press.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1983). The Structure of Behavior (A. Fisher, trans.). Pittsburgh: Duquesne University Press.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1986). Phenomenology of Perception (C. Smith, trans.). New Jersey: Routledge & Kegan Paul.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1990). La structure du comportement. Paris: Quadrige. [Original publicado em 1942]         [ Links ].

Merleau-Ponty, M. (2002). Causeries. Paris: Éditions du Seuil.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: duane.h.davis@gmail.com

Recebido em março de 2011
Revisto em agosto de 2011
Aceito em outubro de 2011

 

 


1
Daqui em diante, eu citarei a edição francesa como SC e a tradução inglesa (1983) como SB.
2 Gostaria de expressar a minha gratidão ao Sr. Evan Edwards – um jovem e promissor filósofo – pela sua assistência em minha discussão desse material em Husserl.
3 "Não se trata de negar ou de limitar a ciência; trata-se de saber se ela tem o direito de negar ou de excluir como ilusórias todas as pesquisas que não procedam, como ela, por medidas, comparações, e não concluam daí leis tais como aquelas da física clássica, encadeando tais conseqüências a tais condições" (Merleau-Ponty, 2002, pp. 14-15).
4 Isso também reflete outra diferença nas abordagens fenomenológicas de Husserl e Merleau-Ponty: Husserl se preocupou com o psicologismo e o historicismo da posição de Dilthey ao longo de toda a sua carreira.
5 O fato de que a Gestalt ainda precisava ser conceitualizada como unidade revela a relação intencional de todas as Gestalten per se. Será essencial repensar essa ideia de unidade. Tanto Sartre como Merleau-Ponty nunca se cansaram dessa tarefa. Cf. a ideia sartreana de uma "totalidade destotalizada" em sua obra tardia, assim como a ideia merleau-pontyana de "hiperdialética", também em sua obra mais tardia. É essencial – quer Merleau-Ponty tenha compreendido isso aqui ou qualquer outro lugar em sua obra – que esta seja vista como uma unidade apenas em sua diferenciação. Para mim, este é o horizonte histórico da existência humana. É um horizonte implicado de diferenciação.
6 Assim, devemos ser cautelosos com as próprias críticas de Merleau-Ponty à sua obra inicial [cf. as notas de trabalho para O visível e o invisível], na qual a consciência teria sido retratada como intelectual ou psicológica em algum sentido derivado ou ontologicamente empobrecido.
7 É interessante notar que os fenomenólogos ortodoxos não reconhecem que tenha havido qualquer conexão entre os projetos fenomenológicos de Hegel e Husserl. Talvez fosse melhor dizer que eles não admitem isso. Cf. Herbert Spiegelberg, The Phenomenological Movement. Esta é uma excelente visão panorâmica da fenomenologia, mas cautelosa em admitir quaisquer conexões como esta.
8 Há mais uma passagem em que Merleau-Ponty indica obliquamente a direção de seu pensamento rumo a uma fenomenologia da percepção – especialmente no contexto de como a Psicologia figura no âmbito de uma análise da existência humana: "Isso é tudo que precisamos aceitar aqui. Uma explicação mais completa deve ser reservada para outro trabalho" (SC, p. 180, n. 1; SB, p. 245, n. 82).
* Conferência apresentada na Universidade Federal de Juiz de Fora em 07 de abril de 2011. Tradução de Richard Theisen Simanke.