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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.6 no.1 Juiz de Fora July 2012

 

ARTIGOS

Caracterização da Violência Sexual a partir de Denúncias e Sentenças Judiciais**

 

Characterization of the Sexual Violence Described in Indictments and Verdicts

 

Ana Maria Franchi PincoliniI,II; Cláudio Simon HutzII; Lorena Laskoski II;

IFundação de Assistência Social de Caxias do Sul

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência:

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta um levantamento de dados sobre abuso sexual de crianças e adolescentes no Rio Grande do Sul, Brasil. A coleta foi realizada a partir de denúncias e sentenças judiciais referentes a 229 processos criminais encaminhados à 1ª e 2ª Varas da Infância e Juventude de Porto Alegre para oitiva no Projeto Depoimento Sem Dano entre 2003 e 2007. Foram coletados dados relativos às características de vítimas e réus, tipo de abuso (intra ou extrafamiliar), tempo de tramitação e desfecho dos processos. Os crimes e atos infracionais mais frequentes foram estupro e atentado violento ao pudor. Os resultados mostraram predominância do abuso sexual intrafamiliar contra meninas. A maioria dos acusados tinha relação com a vítima, sendo familiar ou conhecido.

Palavras-chave: Abuso sexual; abuso sexual intrafamiliar; sistema judiciário.


ABSTRACT

This article presents a survey carried out about sexual abuse of children and adolescents in Rio Grande do Sul, Brazil. The data was collected from the indictments and verdicts from 229 legal proceedings. The criminal complaints were directed to the 1st and 2nd courts for children and adolescents of Porto Alegre, where victims give testimony from 2003 to 2007. Data was collected about victims and defendants, type of abuse (intrafamilial or not), duration of processes and verdicts. Most of the law-suits were about offence to pudicity and rape. The results showed intrafamilial sexual abuse against girls. The majority of abusers had some relationship with the victims.

Keywords: Sexual abuse; intrafamilial sexual abuse; legal proceedings.


 

 

O abuso sexual contra crianças/adolescentes (ASC) é um fenômeno cuja real prevalência é desconhecida e provavelmente subnotificada (Borba, 2002; Cohen & Gobetti, 2003). Estima-se que somente 10% dos casos de ASC cheguem ao sistema criminal (Sanderson, 2005).

No Brasil, essa temática chamou a atenção dos profissionais envolvidos com a proteção à criança e ao adolescente especialmente a partir da década de 1990, como reação ao sexo turismo (Faleiros & Campos, 2000) e após a publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Amazarray & Koller, 1998; Habigzang & Caminha, 2004).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define o ASC como o envolvimento de crianças em atividades sexuais que são incapazes de compreender completamente e que violam leis ou tabus sociais. Tais atividades objetivam a gratificação sexual do abusador e ocorrem entre a criança e um adulto (ou mesmo outra criança cuja idade/desenvolvimento a coloque em uma relação desigual de responsabilidade, confiança ou poder) (OMS, 1999).

Quando o abusador tem para com a criança laços de consanguinidade e/ou responsabilidade, o ASC é denominado Abuso Sexual Intrafamiliar (ASI), podendo o abusador ser um responsável biológico ou adotivo (Azevedo & Guerra, 1989). Estudos indicam que, em geral, o abuso é cometido por familiares da criança/adolescente (Azevedo & Guerra, 1989; Camões, 2003; Habigzang, Koller, Azevedo, & Machado, 2005; Miller, 1994; Pfeiffer & Salvagni, 2005), de modo que mais de 80% dos abusadores fazem parte da comunidade onde a criança vive, sendo familiares, vizinhos ou conhecidos (Sanderson, 2005).

As dificuldades de estimação da real prevalência do ASI se devem tanto à inexistência de normas técnicas de diagnóstico, registro e notificação dos casos, quanto ao pacto de silêncio que envolve a família abusiva. Acredita-se que o abuso sexual atinja todas as idades, classes sociais, religiões e etnias, sendo considerado um problema de saúde pública pela OMS (Benetti, 2002; Borba, 2002; Habigzang, Koller, et al., 2005; Pfeiffer & Salvagni, 2005; Reppold, Pacheco, Bardagi, & Hutz, 2002).

As vítimas são predominantemente meninas (Cohen, 2000; Cohen & Gobetti, 2003), na faixa etária dos cinco aos 10 anos de idade (Habigzang, Koller, et al., 2005). Kristensen, Oliveira e Flores (1999), em estudo de 1754 registros de violência doméstica contra crianças e adolescentes, encontraram que as meninas representaram 79,4% das vítimas de abuso sexual.

Embora a literatura aponte predominância de vítimas do sexo feminino, o sexo masculino também é vitimado. Ao revisarem a literatura internacional sobre o tema, Pfeiffer e Salvagni (2005) encontraram uma prevalência de 10% de situações de abuso homossexual, onde as vítimas eram do sexo masculino. Finkelhor (1994), estudando adultos que relataram abuso sexual na infância, encontrou uma prevalência variando de 2 a 62% entre as mulheres, e três a 16% entre os homens. Ao reunir achados de estudos sobre violência sexual em diferentes países, esse autor concluiu que a maioria das estimativas indica que 20% das mulheres e entre três e 11% dos homens foram sexualmente abusados quando crianças. Acredita-se que a violência sexual contra meninos seja ainda mais subnotificada do que quando as vítimas são meninas, provavelmente em função de questões de gênero, já que as relações abusivas podem ser percebidas como associadas à homossexualidade (Cohen & Gobetti, 2003; Kristensen, 1996).

O ASC aparece mais frequentemente relatado em famílias de Nível Socioeconômico (NSE) baixo (Kaplan, Sadock, & Grebb, 1997). Em um estudo com 1193 adolescentes de escolas estaduais de Porto Alegre (Polanczik, Zavaschi, Benetti, Zenker & Gammerman, 2003), 4,5% dos adolescentes disseram ter testemunhado episódios de abuso sofrido por outra pessoa e 27,9% relataram conhecer pessoas que foram vítimas de violência sexual. Entre os adolescentes que testemunharam violência sexual, aqueles que moravam com oito ou mais pessoas em casa apresentaram prevalência 3,43 vezes maior do que aqueles que moravam com até quatro pessoas. Entre os que alegaram conhecer vítimas, a prevalência maior foi de adolescentes do sexo feminino, de 17 a 20 anos, que moravam com pai ou mãe e companheiro (a), e com cinco a sete pessoas na mesma casa. Esses dados, de certa forma, coadunam-se com o dado de que há mais relatos de ASC em famílias de baixa renda, já que tais famílias costumam ser mais numerosas. No entanto, os dados não permitem inferir se, de fato, o ASI é mais frequente em famílias de NSE baixo ou se é apenas mais relatado nessas famílias em relação a famílias de outras camadas socioeconômicas. Segundo Pelisoli (2008), pode-se supor que as classes mais favorecidas evitariam a denúncia e a exposição social. Assim, crianças de famílias com NSE médio e alto estariam ainda mais desprotegidas.

Pfeiffer e Salvagni (2005) lembram que, embora a expressão "abuso sexual" seja citada no ECA (Art. 130) e nos livros de Medicina Legal, ela não faz parte das definições de crimes de natureza sexual do Código Penal Brasileiro (CPB). Os crimes sexuais mais relacionados ao presente estudo são os "Crimes contra a liberdade sexual", em especial o estupro (Art. 213) e o atentado violento ao pudor (Art. 214). Outros crimes sexuais frequentes contra crianças e adolescentes, definidos em outros capítulos do CPB, são a corrupção de menores (Art. 218) e o favorecimento à prostituição (Art. 228). Durante a realização desse estudo, o CPB sofreu alterações importantes através da Lei Federal 12.015, de agosto de 2009, em especial a supressão do Art. 214 (atentado violento ao pudor) e sua incorporação ao Art. 213 (estupro). Assim, foi extinto o crime de atentado violento ao pudor, em função do entendimento de que ele estaria incluído no crime de estupro.

Anteriormente, quando havia as duas condutas ou o chamado "concurso material" entre os dois crimes (conjunção carnal e ato libidinoso diverso da conjunção carnal simultaneamente), a pena corresponderia ao somatório das penas dos dois crimes. O estupro correspondia ao ato sexual vaginal. O coito anal, mesmo que com penetração completa e ejaculação no interior do corpo da vítima, era considerado atentado violento ao pudor. Pela nova redação, não há que se falar mais em atentado violento ao pudor: a prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal e a prática da própria conjunção carnal correspondem a um único tipo penal (estupro, de qualquer modo), aplicando-se a pena de 6 a 10 anos de reclusão.

A nova definição para o crime de estupro diz que ele consiste em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou ainda permitir que com ele se pratiquem outros atos libidinosos (Lei 12.015/2009). Como a lei penal retroage para beneficiar o réu (CF 1988, Art.5º, XL), há discussões no campo jurídico em função de que a alteração no CPB beneficiaria os condenados aos dois crimes em concurso material (Mesquita Junior, 2009). Para esse autor, a equiparação das penas teria sido um erro porque pune da mesma forma o crime meio e o crime fim. Ao cometer uma violência sexual, a pena será a mesma independentemente do agressor praticar atos preliminares ao coito ou consumar o ato sexual. Esse autor considera que a equiparação das penas estimularia o agressor a consumar o ato sexual, já que seria condenado por estupro de qualquer modo. Por outro lado, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é o de reconhecer a continuidade delitiva entre esses dois crimes, de modo que a realização das duas condutas ou de apenas uma deve ser considerada para a fixação da pena.

Tais alterações do CPB não foram consideradas no presente estudo em função de serem recentes e ainda gerarem discussões no campo jurídico. Como a coleta dos dados já estava em andamento quando foi sancionada a lei e obviamente não haveria tempo hábil para acompanhar a revisão de todas as sentenças face à nova legislação, os dados foram computados conforme o ordenamento jurídico anterior. Assim, no presente estudo, "Estupro" é definido como constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça, enquanto "Atentado violento ao pudor" corresponde ao ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal (CPB, 1940).

Conforme o Art. 224 do CPB, a violência pode ser real ou presumida. É presumida se a vítima for menor de 14 anos, independente de consentimento (Art. 224 a), se é alienada ou débil mental e o agressor conhecia essa condição (Art. 224 b) e se não pode, por outras causas quaisquer, oferecer resistência (Art. 224 c).

Após a descoberta/revelação do abuso, o mesmo é notificado às autoridades competentes através do registro de ocorrência policial ou boletim de ocorrência (BO). Tal registro pode ser realizado em qualquer delegacia, embora, quando a cidade disponha, o local mais indicado seja a Delegacia da Criança e do Adolescente (DECA). Depois de efetuado o BO (popularmente conhecido como "denúncia"), o órgão policial inicia uma fase de investigação (inquérito policial), na qual são chamados os envolvidos e as testemunhas para prestar depoimentos. Caso o inquérito policial conclua que há indícios de materialidade e autoria do crime (ou do Ato Infracional (AI), se o acusado for menor de 18 anos), o relatório do caso é encaminhado ao Ministério Público (MP). Assim, cabe ao MP oferecer a denúncia ao poder judiciário e, a partir desse momento, tem início o processo judicial propriamente dito (Granjeiro & Costa, 2008).

Na fase judicial, a tramitação do processo pode ser um tanto morosa. Pesquisa anterior (Habigzang, Koller, et al., 2005) indicou que a maioria dos encaminhamentos ao judiciário teve uma tramitação longa, demorando mais de um ano. Isso deixava a vítima vulnerável a novos abusos ou a chantagens e intimidações, pois, no caso de ASI, nem sempre a família cumpre as determinações de afastamento do acusado (Habigzang, Azevedo, et al., 2005).

Além disso, bem mais frequente que o afastamento do acusado, o que ocorre é a vítima ser acolhida em instituições de proteção (abrigada) a fim de ser protegida de novos abusos, favorecendo que tenha a sensação de que é ela quem está sendo punida. Na pesquisa citada anteriormente, o agressor foi afastado em apenas 1,1% dos casos, enquanto a vítima foi abrigada em 10,1% dos casos. A destituição do poder familiar de ambos os genitores ocorreu em 19,1% das situações e a destituição da genitora em 15,7% (Habigzang, Azevedo, et al., 2005). Isso indica que algumas mães não são protetivas, não cumprindo as determinações de afastamento do agressor, favorecendo assim intimidações e até a repetição dos abusos.

Com relação à investigação e responsabilização dos agressores, uma dificuldade já apontada por Camões (2003) é a questão da prova. Muitas vezes a comunicação de um abuso que ocorria desde a infância só é feita muitos anos depois, quando a vítima já é adolescente, complexificando o processo em virtude da inexistência de indícios físicos. Além disso, nos casos de ASI, em geral não há conjunção carnal. Com a inexistência de indícios físicos, a perícia médica legal frequentemente acaba sendo inconclusiva e em muitos casos não se consegue punir o abusador (Pfeiffer & Salvagni, 2005).

Por isso, muitas vezes a palavra da vítima é o único elemento de prova (Borba, 2002; Habigzang, Koller, et al., 2005; Magalhães & Ribeiro, 2007), de forma que ela pode sentir que a punição do agressor seja sua responsabilidade. Em função disso, a coleta do depoimento infantil deve ser realizada de modo criterioso e qualificado, buscando evitar vitimizações secundárias.

Em função do perigo de revitimização e do despreparo dos operadores do Direito na coleta do depoimento infantil (Borba, 2002), o Poder Judiciário tem buscado algumas alternativas. No Rio Grande do Sul, em maio de 2003, por iniciativa do magistrado Daltoé Cezar, teve início o Projeto Depoimento Sem Dano (DSD), na 1ª e 2ª Varas da Infância e Juventude (VIJ) de Porto Alegre (Brito, 2008). A proposta buscou fundamentações legais no Art. 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), que destaca que crianças têm o direito de serem ouvidas em processos judiciais que lhes digam respeito. Na CF (1988), os fundamentos para essa prática são buscados no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e no Art. 227 (Brito, 2008). Conforme descrito por seu idealizador, no DSD, crianças e adolescentes são ouvidos em uma sala especialmente preparada, dotada de microfones e câmeras e decorada de modo a permitir que se sintam à vontade. Um psicólogo ou assistente social permanece em companhia da criança/adolescente e, através de um fone de ouvido, repassa-lhe as perguntas do juiz. O profissional atua como um intérprete, na medida em que não faz as perguntas nas palavras exatas do magistrado, e sim de forma que a criança/adolescente possa compreender e não seja agredida ou ofendida pelo questionamento. O profissional deve ser devidamente preparado e treinado para que não induza a respostas. Essa técnica possibilita que a inquirição seja realizada uma única vez, já que os arquivos de áudio e vídeo do depoimento ficam gravados, passíveis de serem revistos durante o processo. A vítima também é preservada da inquirição tradicional, potencialmente mais danosa, onde estão presentes o juiz, os advogados e até mesmo o acusado (Cezar, 2007).

Importa salientar que, na temática do ASI, cabem tanto processos civis quanto criminais (ou penais). Inclusive, é frequente a instauração dos dois tipos de processo frente a uma mesma situação de abuso. Processos criminais têm por objetivo a pretensão punitiva do Estado, enquanto processos cíveis pretendem a conciliação das partes em função de interesses substanciais em jogo (Cintra, Grinover & Dinamarco, 1998). Os dados coletados nesse estudo se referem a processos de natureza criminal, cujo objetivo é a responsabilização penal dos agressores, caso comprovadas a materialidade e a autoria. Não foram incluídos processos de natureza cível. Estes últimos, no caso do abuso sexual, objetivam ações que visam à proteção das vítimas (como definição de guarda e regulamentação/suspensão da visitação).

Em função de terem sido pioneiras na realização da oitiva de vítimas na modalidade DSD no país (Brito, 2008), além dos processos que tramitavam nessas varas, a 1ª e 2ª VIJ-POA recebiam, desde 2003, cartas precatórias de comarcas do interior, solicitando a oitiva de vítimas por este projeto. A opção por essa modalidade de escuta da criança/adolescente vítima é livre decisão do magistrado que, caso não possua tal método em sua jurisdição, pode solicitar que a oitiva seja feita na capital, através de uma carta precatória. Em função disso, os dados coletados no presente estudo também se referem a processos do interior, embora em minoria. A maior parte dos dados é referente a processos criminais da capital e região metropolitana, que tramitaram nos primeiros cinco anos da implantação do DSD e cujos depoimentos foram realizados na 1ª e 2ª VIJ entre 2003 e 2007. O objetivo da pesquisa foi realizar um levantamento acerca do ASC no sul do Brasil. O ano limite de inclusão de processos no estudo foi 2007 em função de que o objetivo era estudar casos em que o processo judicial já estivesse encerrado, a fim de obter mais dados do desfecho.

 

Método

Trata-se de um estudo documental, exploratório e descritivo. Os documentos examinados consistiram em material impresso (denúncias do MP) e material eletrônico (sentenças). Denúncia, no presente estudo, não se refere à concepção do senso comum, e sim ao documento elaborado pelo MP em que o fato, já registrado e apurado pela autoridade policial, é denunciado ao poder judiciário e que assinala o início da fase judicial do processo. Denúncias são documentos que contêm a qualificação do acusado (idade, sexo, escolaridade, profissão), dados da vítima (idade, sexo, relação com o acusado), circunstâncias do ato abusivo (local, duração, data) e o enquadramento (tipo de crime/AI).

De posse da denúncia do MP, onde consta o número do processo, pode-se localizar a sentença, quando a mesma já foi proferida, registrada e disponibilizada no site do Tribunal de Justiça. A sentença é um documento em que há a descrição/retomada da denúncia e dos principais fatos do processo, além da indicação e fundamentação legal do desfecho.

Embora esses documentos sejam mais ou menos padronizados, tanto denúncias quanto sentenças diferem em riqueza de detalhamento. Há sentenças longas, em que são citadas jurisprudência e fundamentação teórica, e sentenças mais sucintas, sem tais elementos. Tal configuração depende tanto das características do crime/AI quando do estilo do julgador.

Os dados apresentados se referem a 229 processos. A coleta de dados a partir das denúncias iniciou em março e foi concluída em junho de 2009, enquanto a busca pelas sentenças no site do Tribunal de Justiça do RS iniciou em junho de 2009 e estendeu-se até abril de 2010. Em torno de 80% dos processos são da capital e de cidades da região metropolitana do Rio Grande do Sul.

A coleta dos dados foi feita a partir da leitura exaustiva das denúncias e das sentenças disponíveis. Nesses documentos, as pesquisadoras buscavam, em cada processo examinado, informações sobre três categorias: circunstâncias do abuso sexual, características das vítimas e características de agressores. Com relação às circunstâncias do abuso sexual foram coletados e tabulados os seguintes dados: número do processo, mês/ano do crime/AI, mês/ano da denúncia, agente denunciante, enquadramento penal (Artigo do CPB), cidade de ocorrência do crime/AI, local em que ocorreu, desfecho do processo na justiça de 1° Grau (condenatório, absolutório ou em tramitação). Sobre as vítimas, foram coletados e tabulados os seguintes dados: idade, sexo, número de vítimas simultâneas, relação de parentesco com o agressor (dado a partir do qual crimes e AI eram classificados em Intrafamiliares ou Extrafamiliares). Sobre o agressor foram coletados e tabulados: idade (a partir da qual eram separados os crimes e os AI´s, definição que depende do agressor ser adulto ou adolescente), sexo, escolaridade, profissão, número de agressores simultâneos. Após a coleta, os dados foram organizados em um banco de dados. Como o estudo se tratava basicamente de um levantamento, para a análise dos dados numéricos (idades de vítimas e agressores, por exemplo), foram calculadas as médias e respectivos desvios padrão (estatísticas descritivas). No caso dos dados nominais (agente denunciante, sexo da vítima, por exemplo), foram contadas as frequências e calculadas as percentagens em relação à amostra como um todo. Esses resultados foram, então, confrontados com pesquisas anteriores e com a literatura especializada. Os resultados e a respectiva discussão serão apresentados a seguir.

 

Resultados e Discussão

Os fatos denunciados neste estudo ocorreram entre 1996 e 2007. O tempo médio decorrido entre o fato e a denúncia pelo MP foi de 14 meses, embora com uma grande variação, em torno de 19 meses. Esse tempo corresponde ao tempo de exposição aos abusos nos casos em que houve crime continuado (CPB, 1940, Art.71), que corresponderam a 24% da amostra (55 processos). Em muitos casos o registro de ocorrência foi feito bastante tempo após o fato. Quando houve mais de um crime, a data de início considerada para o cálculo foi a do primeiro episódio.

A literatura internacional aponta que em torno de 80% dos casos de abuso sexual de crianças têm duração superior a um ano (Kristensen, Oliveira & Flores, 1999). Em estudo anterior (Habigzang, Koller, et al., 2005), em 32,2% dos casos, o tempo de duração da violência sexual foi entre um e 11 meses e, em 67,8% dos casos, entre um e nove anos, revelando a dificuldade de notificar os abusos às autoridades. Assim, o que o presente estudo sugere, corroborando estudos anteriores, é que a vítima permanece bastante tempo vulnerável a novos abusos, especialmente nos casos de ASI.

Em 12% dos casos (27 processos), a vítima foi abusada mais de uma vez pelo mesmo agressor, de modo que houve a repetição do mesmo crime. Essa circunstância, denominada concurso material, é agravante da pena (CPB, 1940, Art. 69). No estudo de Habigzang, Koller et al. (2005), em 45,7% dos casos havia informação sobre o número de vezes que o abuso ocorreu. Desses, em quase 80% dos casos, foi encontrada repetição dos abusos, sendo que, em 41,9 %, houve um período em que a vítima era abusada diariamente.

É provável que esses dados estejam relacionados: a demora na revelação do segredo e no registro de ocorrência policial favorece que o crime seja continuado ou repetido. Isso revela a situação de desproteção em que se encontram essas crianças e adolescentes, vulneráveis a novos abusos pelo mesmo perpetrador. Pode-se supor que, no caso de abusos praticados por familiares, a demora se relacione também ao pacto de silêncio que caracteriza tais famílias, às ameaças e chantagens do abusador e aos sentimentos de medo e vergonha da vítima (Furniss, 1993; Habigzang & Caminha, 2004).

Além disso, o inquérito policial também leva um tempo bastante variado. Somente após o final do inquérito, e caso o mesmo conclua que há indícios suficientes, é que o fato é levado ao judiciário. Embora já na fase policial, em geral, sejam tomadas medidas protetivas, visando ao afastamento entre vítima e agressor, há falta de fiscalização do afastamento real (Habigzang, Azevedo, et al., 2005). Algumas vezes o agressor é afastado de casa, mas permanece residindo nas imediações e acaba tendo contato com a vítima.

Na presente pesquisa há mais agentes denunciantes do que processos, pois, em muitos casos, o registro de ocorrência policial foi feito por mais de uma pessoa ou instituição. A informação sobre agente denunciante existia em 180 processos. Destes, a mãe foi agente denunciante em 102 (57%), seguida pelo pai, com 8% dos registros (15 casos), e pelos responsáveis (casal em conjunto), com 7% dos registros (12 casos). Outros familiares (irmãos, tios, avós, outros parentes) participaram do registro de ocorrência em 14% dos processos (25 casos). Pesquisa anterior (Habigzang, Koller, et al.,2005) também encontrou a predominância da mãe como agente denunciante (37,6%) e outros parentes (15,1%).

Das instituições pode-se citar o Conselho Tutelar (CT) como principal instituição que toma parte na notificação dos abusos à autoridade policial. O CT foi agente denunciante único em 10% dos casos em que havia essa informação (18 processos) e participou indiretamente da quase totalidade de casos, orientando e definindo ações da rede de assistência/proteção, corroborando estudo anterior (Habigzang, Azevedo, et al., 2005).

Instituições assistenciais e de saúde figuraram como agentes denunciantes em menos de 3% das ocorrências. Instituições de ensino, escolas e professores aparecem com pouco menos de 2%. Os dados não permitem concluir se tais instituições não têm realizado ocorrências de fato ou se, na verdade, não comunicam diretamente ao órgão policial, e sim ao CT. No entanto, como tais instituições, em especial a escola, são frequentadas pela quase totalidade das vítimas, cabe realizar estudos que esclareçam essa questão. Caso realmente a participação nas ocorrências, mesmo indireta, seja restrita, cabe investigar as causas desse fenômeno e buscar alternativas para instrumentalizar escolas e professores com relação aos procedimentos diante de suspeitas de abuso.

Com relação a outras entidades, por vezes aparecem atuações equivocadas. Em um processo desse estudo, uma criança pequena foi estuprada pelo padrasto e necessitou de hospitalização. Há informações na denúncia do MP de que a mãe teria sido orientada pelo médico do hospital a procurar o CT. Porém, mesmo com a orientação, a mãe não levou o caso ao Conselho, tendo sido denunciado posteriormente por outros familiares. Cabe, portanto, reforçar que o papel de instituições e profissionais deve ser mais ativo, transcendendo a orientação e efetivando o contato com o CT ou com a autoridade policial. Furniss (1993) aponta a relutância de médicos em reconhecer e relatar o abuso. Pode-se supor que isso também ocorra com outros profissionais da rede de atendimento e outras pessoas que convivem com a criança. Os achados de pesquisa anterior (Habigzang, Koller, et al., 2005) apontaram que, em 61,7% dos casos, alguém já sabia do abuso e não havia denunciado.

Por sua própria natureza, geralmente o abuso sexual não tem testemunhas. No entanto, em 4,5% dos processos deste estudo (oito casos), a ocorrência foi atendida em flagrante pela Brigada Militar. Nesses casos, vizinhos, populares ou familiares que flagraram o fato chamaram os policiais. Em nove casos, o registro da ocorrência foi feito por vizinhos (5%), anonimamente (três casos ou 1,7%) e por populares que flagraram o abuso (1,7%). Embora bastante timidamente (8% dos casos), percebe-se a participação de não familiares e pessoas não ligadas a instituições como agentes denunciantes. Esses números revelam que, apesar do dever constitucional de toda a sociedade de proteger crianças e adolescentes (CF, 1988, Art. 227), e da determinação do ECA no mesmo sentido (ECA, 1990, Art. 4º), em geral, pessoas que não têm relação com a vítima se eximem de tal responsabilidade.

O tipo de crime/AI mais frequente foi o atentado violento ao pudor, que ocorreu em 82% dos casos (188 processos). O estupro foi o segundo tipo mais comum e apareceu em 51 processos (22% dos casos). Pelo menos um desses fatos aconteceu em todos os processos estudados. Algumas vezes aconteceram os dois crimes/AI no mesmo processo e com a mesma vítima, como nos casos em que a mesma vítima é submetida a sexo vaginal e anal, ou oral.

Conforme explicitado anteriormente, a violência é presumida quando a vítima é menor de 14 anos (CPB, 1940, Art. 224a), quando é alienada ou deficiente mental e o agente aproveita-se dessa condição (CPB, 1940, Art.224b), ou quando não pode oferecer resistência em função de outras causas que não a imaturidade ou a presença de retardo mental (CPB, 1940, Art. 224c). A primeira condição ocorreu em mais de 96% dos processos (220 casos), a segunda em torno de 4% dos casos (nove processos) e a terceira em menos de 3% (cinco processos). Entre esses últimos, há dois casos de vítimas deficientes físicas e um de deficiente sensorial (cegueira). Essas circunstâncias são consideradas agravantes da pena caso o acusado seja condenado e demonstram uma situação de abuso de poder por parte do agressor que, não bastando a superioridade/maturidade física e emocional, aproveita-se de outros elementos que tornam a vítima ainda mais vulnerável, como deficiências físicas, mentais e sensoriais.

No presente estudo, o número de vítimas não correspondeu ao número de processos. Em 40 processos (em torno de 17,5% da amostra) houve mais de uma vítima, totalizando 294 vítimas. Destas, 68% (200 vítimas) eram do sexo feminino e a média de idade das vítimas foi de oito anos (DP= 3,39 anos), o que corrobora outros estudos (Cohen, 2000; Cohen & Gobetti, 2003; Kristensen, Oliveira & Flores, 1999).

O número de agressores também difere do número de processos (255 agressores). Algumas vítimas foram abusadas por mais de um agressor, simultaneamente ou não. Quando os abusos não são simultâneos, a explicação pode ser o comportamento hipersexualizado que algumas vítimas passam a apresentar, potencializando revitimização (Habigzang & Caminha, 2004).

Os agressores são predominantemente do sexo masculino (244 agressores, ou 96% dos casos). Apenas 11 mulheres adultas figuraram como acusadas (em torno de 4,5% dos casos). Destas, somente três cometeram crimes de abuso sexual sozinhas, sendo que duas delas abusaram sexualmente das filhas e uma foi acusada de abuso sexual extrafamiliar, sendo a vítima um menino do qual tomava conta. As outras oito acusadas do sexo feminino agiam em parceria com acusados do sexo masculino. Em três casos, tratava-se de um casal que abusava sexualmente em conjunto, visando à satisfação sexual. Em cinco casos, tratava-se de mães/adultas responsáveis que, embora tivessem conhecimento dos fatos, omitiam-se diante dos abusos praticados pelos companheiros, concorrendo para que continuassem, e de mães/responsáveis que cometiam crimes de favorecimento à prostituição, "oferecendo" crianças sob sua responsabilidade para programas sexuais em troca de dinheiro.

Predominou o abuso sexual intrafamiliar ou doméstico. Em 122 (53%) dos 229 processos, o acusado tinha relações de parentesco/responsabilidade para com a vítima. Em 101 (44%), o abuso foi extrafamiliar; e em seis casos (em torno de 3%), intra e extra simultaneamente (ou havia mais de uma vítima e o abusador era familiar de uma e não familiar das outras, ou havia mais de um abusador, cada qual com diferentes relações de parentesco com a vítima).

Dos 255 acusados, 133 eram familiares das vítimas (52%) e 122 (48%) não eram familiares, embora na maioria fossem conhecidos. Esses dados corroboram a literatura, como já amplamente citado. Nos casos de ASI, pais, padrastos e tios são os mais frequentemente acusados (27,8%, 26,3% e 10,5%, respectivamente). Percebe-se que pais e padrastos somam mais da metade dos acusados que tinham relação de parentesco com a vítima. Outros familiares que figuram como acusados são primos (8,3%), irmãos (6,0%), mães (4,5%), avós (3,8%), "avodrastos" (3,8%), entre outros. É interessante notar que avós e "avodrastos" figuram como acusados na mesma percentagem, assim como a percentagem de pais e padrastos é muito próxima. Mesmo entre os 122 acusados de abuso sexual extrafamiliar, a maioria tinha algum contato com a vítima. Em torno de 24% dos abusadores que não eram familiares eram completamente desconhecidos da vítima. Todos os demais tinham alguma forma de contato com a criança/adolescente, de forma que vizinhos e conhecidos somam 65,5% e professores/instrutores/colegas de escola somam 10,6%.

Com relação ao local de ocorrência dos abusos, conforme salientam Cohen e Gobetti (2003), o maior palco é a casa da vítima ou dos familiares com quem ela tem contato. A vítima foi abusada em sua própria casa em 94 (41%) dos 229 processos desse estudo. A casa do acusado, frequentada pela vítima, foi o segundo maior palco de abusos (76 processos ou 33%). Nesse caso, os abusos aconteciam quando a vítima visitava abusadores que eram seus avós ou tios, ou ainda, em caso de pais separados, na casa do genitor, aos finais de semana.

Outras vezes, o acusado utilizou-se de locais ermos, como matos, campos, lavouras, barragens, terrenos baldios e construções (37 casos ou 16%) ou aproveitou-se da vítima em locais públicos e de lazer, como clubes, parques e estabelecimentos comerciais (11 casos ou 5%). Esses locais são mais frequentes em abusos extrafamiliares. Em nove situações (4%), a vítima foi abusada nas dependências de instituições educacionais (escolas e creches); e em três (1%), o abuso ocorreu no interior de veículos. Em sete processos (3%) não havia informação do local exato do abuso. Cabe lembrar que, como dito anteriormente, algumas vítimas foram abusadas mais de uma vez e em locais diferentes, de modo que a soma de locais não coincide com o número de processos.

Quanto ao desfecho, 48,5% (111) dos 229 processos tiveram sentença condenatória. Em 22,3% (51 processos), houve absolvição; e em 29,3% (67 casos), ocorreram outras situações (extinção da punibilidade por decurso de prazo, sentenças improcedentes, sentenças ainda não registradas pelo cartório, indisponíveis na Internet ou processos ainda em tramitação). O tempo médio de tramitação foi de quase dois anos (22 meses, SD=18 meses), desde a denúncia formal do MP até a sentença de 1° grau.

Também foram investigadas as profissões dos acusados. A maioria deles executava atividades de baixa qualificação nas áreas de construção civil e agricultura. Mais de 20% estavam desempregados ou atuavam na informalidade. Esses dados corroboram pesquisa realizada anteriormente no RS acerca do perfil dos acusados, que aponta que os mesmos têm baixa escolaridade e atuam em profissões de baixa qualificação, em geral sem vínculo empregatício. O desemprego é apontado como fator de risco para violência intrafamiliar (Habigzang, Koller, et al., 2005), em função de gerar conflitos e estresse entre os membros da família e de colocar o pai como principal cuidador das crianças, oportunizando os abusos (Koller & De Antoni, 2004). Esses dados também se coadunam com o fato do ASC ser mais frequentemente relatado em famílias pobres (Kaplan, Sadock, & Grebb, 1997), pois em tais famílias o subemprego e o desemprego são mais frequentes. Do mesmo modo, o estudo de Polanczik et al. (2003) encontrou maior prevalência de ter testemunhado violência sexual entre adolescentes que residiam com oito ou mais pessoas em casa, o que também é mais frequente em famílias de baixa renda. Outra característica de tais famílias, apontada por Sarti (1996), é a rede de apoio e relacionamentos, que em geral ultrapassa os laços consanguíneos e inclui a instituição do compadrio e a vizinhança, de modo que as crianças circulam, sendo expostas a um maior número de cuidadores (Fonseca, 2005). Se por um lado a rede de apoio social e afetiva tem sido mencionada como um fator de proteção, propulsor de estratégias de enfrentamento e moderador frente a eventos estressores (Britto & Koller, 1999), por outro lado, uma rede extensa e não tão seletiva de cuidadores pode se constituir em fator de risco. Além disso, as famílias de baixa renda, por supostamente acessarem mais os equipamentos das redes de assistência social e saúde, tendem a ser "mais vistas" pelos sistemas de proteção.

Embora a situação de pobreza, que inclui dificuldades de inserção no mercado de trabalho e precárias condições de moradia e alimentação exponha tais famílias a situações de maior vulnerabilidade, ela não está necessariamente atrelada à violência intrafamiliar e ao abuso sexual (De Antoni, Barone & Koller, 2006; Santos, 2007). Assim, por essa perspectiva e pelos dados do presente estudo, não seria a pobreza o fator de risco, mas um conjunto de características comumente associadas à pobreza, como o desemprego e a alternância de cuidadores. Além disso, a explicação para a maior notificação de abuso sexual nas camadas de níveis socioeconômicos mais baixos também pode estar no maior contato dessa população com agentes da rede socioassistencial, que, defrontados com suspeitas de abuso, devem notificá-las às autoridades competentes. Cabe lembrar que outros fatores, como determinadas dinâmicas familiares (não restritas às famílias pobres), têm sido associados à ocorrência de abuso sexual (Furniss, 1993).

 

Considerações Finais

Conforme a Constituição Federal e o ECA, proteger a infância e a adolescência é dever de todos. Embora atualmente as ocorrências sejam feitas majoritariamente pela família e pelo CT, qualquer pessoa, diante da suspeita, deveria comunicar às autoridades ou aos órgãos de proteção, mesmo anonimamente. Apesar disso, observou-se nesse estudo que ainda é tímida a participação de não familiares das vítimas como agentes denunciantes. Instituições educacionais e de saúde também não figuram entre os principais denunciantes, apesar da quantidade de contato dessas instituições com crianças e adolescentes. Há a necessidade de capacitação da rede intersetorial no sentido de que seus agentes possam detectar situações suspeitas e encaminhá-las às autoridades. Para tal, é imprescindível o preparo de tais agentes para que conheçam os equipamentos de proteção disponíveis nas redes socioassistenciais. Só será possível identificar e combater o abuso/exploração sexual de crianças e adolescentes através de uma ação consciente e articulada de toda a sociedade, que englobe diversas políticas públicas e a ação dos cidadãos.

Por fim, talvez por ter sido realizado exclusivamente com processos nos quais as vítimas foram inquiridas através da metodologia DSD, este estudo encontrou altas percentagens de condenação de agressores adultos e também de adolescentes. Pesquisas que incluíssem processos nos quais a vítima foi inquirida em audiência tradicional poderiam esclarecer a relação entre o modelo de inquirição da vítima e a condenação do acusado. Logicamente, não se defende aqui puramente o aumento do número de condenações, não sendo essa a intenção primeira do DSD, e sim, supostamente, uma consequência desse modelo de inquirição. Possibilitar às vítimas um espaço adequado de relato dos fatos permite que os acusados que efetivamente cometeram abuso sexual contra crianças sejam responsabilizados. Por mais que não se defenda aqui o encarceramento puro e simples dos acusados, a responsabilização e conscientização da ilegalidade desse ato e de suas consequências para a vítima, a família e para si mesmo são parte fundamental da ressocialização dos agressores com vistas à prevenção de novas ocorrências.

 

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Endereço para correspondência:
Laboratório de Mensuração - UFRGS
Rua Ramiro Barcelos, n.2600, sala 101
CEP 90035-003 – Porto Alegre - RS
E-mail: anissyma@yahoo.com.br

Recebido em 30/11/2011
Revisto em 13/04/2012
Aceito em 30/05/2012

 

 

*Esse estudo foi autorizado judicialmente e contou com o apoio dos magistrados Dr. Daltoé Cezar e Dr. Breno Beutler Jr. e de duas profissionais da 2ª e 3ª Varas da Infância e Juventude de Porto Alegre, a assistente social Vânea Maria Visnievski e a psicóloga Betina Tabajaski.