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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.6 no.1 Juiz de Fora July 2012

 

ARTIGOS

 

O Lugar da Metapsicologia na Psicanálise*

 

The Role of Metapsychology in Psychoanalysis

 

 

Eduardo RotsteinI,1

I Universidade Federal do Rio de Janeiro

1 Doutorando em clínica psicanalítica

Endereço para correspondência:

 

 


RESUMO

A aparente contradição contida no discurso freudiano, que, por um lado, afirma a procedência exclusivamente empírica da Psicanálise e, por outro, reconhece a presença de especulação em seu interior, enseja a questão central do presente artigo: que importância tem a Metapsicologia – a teoria especulativa de Freud - para o empreendimento psicanalítico? A afirmação da proveniência empírica da Psicanálise perde sua força, principalmente, sob a consideração da influência que o pensamento hegemônico à época de Freud exerceu sobre seu discurso epistemológico. Em contrapartida, os desenvolvimentos sobre a Metapsicologia e sobre suas relações com a Metafísica reforçam a hipótese de que a Metapsicologia é indispensável ao exercício da Psicanálise. Tudo indica, com efeito, que a teoria metapsicológica repousa sobre a suposição - inverificável empiricamente - da existência do inconsciente, justamente o objeto ao qual se voltam a investigação e a prática analítica. O caráter especulativo do inconsciente não exclui, contudo, a vinculação da Psicanálise à experiência, pois a suposição desse objeto é o principio que orienta o exercício da clínica analítica e propicia as manifestações verificadas em seu curso.

Palavras-chave: Psicanálise; metapsicologia; inconsciente; especulação.


ABSTRACT

On one hand, Freud holds that Psychoanalysis proceeds exclusively from empirical experience. On the other hand, he recognizes that Psychoanalysis contains some degree of speculation. This apparent contradiction evokes the main question of this paper: what is the role of Metapsychology – Freud's speculative theory – in Psychoanalysis? The claim of Psychoanalysis' empirical provenance loses its strength mainly in regards to the influence that the hegemonic thinking at Freud's time had over its epistemological discourse. Conversely, the examination of Metapsychology and its relation to Metaphysics reinforces the hypothesis that Metapsychology is indispensable to the practice of Psychoanalysis. Indeed, it seems that the metapsychological theory is based on the assumption of the existence of the unconscious, which is empirically unverifiable and precisely the subject of analytical investigation and practice. However, the speculative character of the unconscious doesn't deny the linkage of psychoanalysis to experience, since it is the assumption of the unconscious that forms the guiding principle and enables the phenomena verified in the course of analytic practice.

Keywords: Psychoanalysis; metapsychology; unconscious; speculation.


 

 

Há cem anos era lido o artigo que Freud havia preparado para o congresso médico austral-asiático a pedido da comunidade científica, que lhe demandara esclarecimentos a respeito da recém-surgida Psicanálise. Logo nas primeiras linhas do artigo, lê-se:

Ela [a Psicanálise] repousa, como de início eu gostaria de acentuar, não sobre especulação [Spekulation], mas sobre experiência [Erfahrung] e é, conforme essa procedência, inacabada como teoria. Cada um que esteja pronto para trabalhar nela pode se convencer, em razão de suas próprias investigações, da correção ou incorreção das hipóteses nela contidas e, dessa maneira, tomar parte em seu desenvolvimento (Freud, 1911/1990, p. 724).

Sobretudo nas ocasiões em que introduz a nova disciplina ao público não psicanalítico, Freud a apresenta como um método de investigação do psiquismo baseado na experiência, concebendo esta basicamente como ordenação de dados sensíveis a partir de princípios universais. É por isso que as formulações psicanalíticas sempre estariam sujeitas à reformulação (os sentidos podem a cada momento aportar algo de novo e inantecipável) e seriam verificáveis por qualquer investigador disposto a aplicar o método psicanalítico (já que obtidas sob condições compartilháveis).

É verdade que a concepção da Psicanálise como investigação empírica do psiquismo, produtora de um saber ao mesmo tempo contingente e objetivo, haveria de aproximá-la da ciência e, de golpe, afastá-la dos saberes especulativos, cujos conceitos são formados a partir de meros princípios do pensamento puro, sem mediação de dados sensíveis. Porém, não bastou a afirmação da experiência como fundamento da Psicanálise para que o fantasma da especulação, ameaça maior aos aspirantes à ciência, deixasse de rondá-la. Na verdade, a negação da especulação pressupõe que esta seja aventada como um fundamento possível da Psicanálise. E Freud, revestido da autoridade que os criadores têm sobre as criaturas, autoridade que faltava a seus detratores, foi talvez o primeiro a admitir a parte de especulação que cabia à sua invenção, em especial, à sua teoria dos processos psíquicos inconscientes – a Metapsicologia.

Ora, se, mesmo imbuído da tarefa de convencer quanto ao caráter científico da Psicanálise, Freud reconhece a presença da especulação em suas construções, é porque esta deve desempenhar uma função relevante em sua investigação. Circunscrever o papel desempenhado pela Metapsicologia na investigação e na prática psicanalítica, cujos fundamentos ainda hoje são objeto de discussão, é o objetivo central deste artigo. Para tanto, é preciso situar os diversos, por vezes discordantes, discursos freudianos a respeito da Psicanálise, apresentar os debates já realizados em torno da metapsicologia, de modo a aclarar as razões de seu caráter especulativo, e discutir suas relações com a Metafísica, em referência a qual é descrita.

 

Os Ensinos Exotérico e Esotérico de Freud

Não raro caímos em embaraço ao tentarmos extrair da leitura dos textos freudianos voltados à apresentação ou à descrição do método analítico uma concepção inequívoca e coerente da Psicanálise. Seus conteúdos são muitas vezes divergentes, quando não contraditórios. Se os considerarmos, porém, em seus contextos, ganhamos um princípio de compreensão profícuo, que permite separar uma massa de início indiferenciada de textos em grupos distintos, e colocar em seus devidos lugares as afirmações diversas contidas neles.

Este princípio é em muitos aspectos semelhante ao aplicado às produções filosóficas da Antiguidade Clássica e serviu igualmente à escansão da obra de Lacan. Segundo Milner (1996), as produções agrupam-se ou distinguem-se em sua forma e conteúdo de acordo com sua destinação. São esotéricas as obras voltadas aos de 'dentro', isto é, àqueles que já aderiram ao pensamento e ao modo de vida veiculados por elas. Por pressuporem o conhecimento prévio do receptor, contêm desenvolvimentos aprofundados e dispensam maiores artifícios de exposição. Em contrapartida, as exotéricas dirigem-se aos ainda não iniciados, que devem ser despertados à verdade da doutrina através de uma transmissão que não contenha senão o mais facilmente compreensível de seu cerne, cuja assimilação deve ser favorecida pelo largo uso de artifícios retóricos.

Assim como Lacan, Freud assumiria uma postura acentuadamente esotérica nos textos pertencentes, de preferência, ao registro escrito e destinados aos psicanalistas. Tratar-se-ia dos livros e artigos que contêm algum desenvolvimento, questionamento ou reformulação significativa da teoria analítica. Já noutras páginas, afloraria seu pendor exotérico: ofereceriam 'ao analista profissional pouca coisa nova', sendo antes 'endereçadas à multidão de pessoas instruídas às quais talvez possamos atribuir um interesse benévolo, ainda que cauteloso, pelas características e descobertas da jovem ciência' (Freud, 1933a/1990, p. 15). Encontram--se principalmente nos textos oriundos do registro oral, como suas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise (1916/1990), proferidas efetivamente, ou, como no caso das Novas Conferências, 'somente por um artifício de imaginação' (1933a/1990, p. 15), mas também nas breves comunicações e esclarecimentos, como os Verbetes de Enciclopédia (1923/1990), redigidos tendo--se em vista o mencionado público. Como, nessas ocasiões, deve-se 'empenhar em não deixar a atenção dos ouvintes'– imaginários ou não - 'paralisar-se' (Freud, 1916/1990, p. 3), fazem-se indispensáveis certos artifícios expositivos. Assim, ocorre nesses textos que o mesmo assunto 'encontre tratamento repetido' (Freud, 1916/1990, p. 3) e que a apresentação seja floreada com a constante interpolação de exemplos.

Suspeitamos, porém, ser precipitada, no tocante ao conjunto dos escritos freudianos, a afirmação de que a obra exotérica só possui mais que a esotérica em termos de artifícios expositivos, mas nunca em termos de conteúdo; pois, ainda que Freud nos advirta que, nas conferências, 'quem está familiarizado com a literatura psicanalítica pouco achará (...) que não lhe poderia ser conhecido a partir de outras publicações muito mais detalhadas' (Freud, 1916/1990, p. 4), confessa, ao mesmo tempo, que a circunstância dessas comunicações exige o 'resumo' (Zusammenfassung) e o 'acabamento' (Abrundung) do material apresentado (Freud, 1916/1990, p. 4). Ora, instruídos pela própria Psicanálise, acreditamos não serem de modo algum desprezíveis as omissões e pequenas alterações em um discurso. As cometidas por Freud em suas palestras, especialmente no tocante à experiência em análise, talvez exprimam menos uma concepção fiel do método que havia inventado, do que o vivo desejo em dar à psicanálise um lugar junto às ciências.

Sabemos que o pensamento freudiano não é indiferente à discussão epistemológica travada no contexto intelectual onde ele surge; que se apropria, ademais, de certas teses e conceitos em voga, empregando-os na constituição de uma rudimentar teoria de conhecimento à luz da qual são descritas e avaliadas ciência, psicanálise e outras construções de pensamento. Essa autêntica 'epistemologia freudiana', no dizer de Assoun (1983), aceita a tese então hegemônica de que o único conhecimento legítimo é o científico, e de que este não pode ser obtido senão através da experiência.

O sentido específico reservado à 'experiência' nessas ocasiões deixa-se entrever quando examinada a concepção dominante de ciência no meio intelectual europeu do século XIX, difundida por eminentes pesquisadores da época, como Claude Bernard e Ernst Mach. O primeiro sistematizou os princípios metodológicos da Medicina científica, enquanto o segundo, além de ter dedicado seus próprios esforços à Física e à Psicofísica, foi uma espécie de difusor dos princípios adotados pelo grupo de cientistas a quem o jovem Freud e toda uma geração de psiquiatras se filiam (Assoun, 1983, p. 88). Mach e Bernard nutrem a concepção geral de que a investigação científica repousa sobre experiência, entendendo por isso não a mera constatação de fenômenos, mas a atividade intelectual que busca o conhecimento a respeito das coisas através de uma determinada ordenação dos fenômenos e dos fatos. Na obra canônica Introdução ao estudo da medicina experimental (1865/1915), Bernard descreve o método básico adotado em toda investigação científica da seguinte maneira: o investigador inicia com a observação de certo fenômeno, analisa suas circunstâncias e faz hipóteses a respeito de quais são, dentre os elementos assim decompostos, as possíveis causas do investigado. Em seguida, com o fito de confirmar a hipótese, parte para novas observações, colhidas, de preferência, a partir de manipulação experimental.

Ora, a julgar pelo ensino exotérico de Freud, a 'jovem ciência' psicanalítica não faria outra coisa que aplicar sobre o seu domínio específico de investigação, o da 'realidade psíquica', o procedimento prescrito pelo dito método (Freud, 1933b/1990). No entanto, essa concepção acerca da Psicanálise deixa-se facilmente questionar pelos escritos freudianos não empenhados fundamentalmente em sua promoção. Na descrição da técnica analítica e dos relatos de caso patenteia-se que os procedimentos adotados na clínica – baseados na interação entre analista e analisando - de modo algum podem ser assimilados aos procedimentos experimentais, enquanto os desenvolvimentos a respeito dos conceitos e teorias fundamentais da Psicanálise mostram que estes nem sempre provêm de uma experiência feita em análise.

 

O Inconsciente como Objeto Metapsicológico

A Psicanálise não cabe inteiramente nessa imagem, a de investigação empírica dos processos psíquicos. Isso porque a experiência analítica, de caráter clínico, é inassimilável a uma observação sistemática, mas também porque, mesmo que se a conceba erroneamente como uma, é-se obrigado a reconhecer em sua base a presença de conexões inverificáveis empiricamente. De fato, a tão anunciada 'jovem ciência' foi recebida com ceticismo pelos que viam no recurso ao método empírico o critério de legítima investigação científica, e o próprio Freud, examinado-a sob a mesma ótica, foi talvez o primeiro a julgar especulativas algumas de suas afirmações. O Psicanalista reúne-as, então, sob uma teoria dos processos psíquicos inconscientes, a qual batiza com um neologismo que alude à Metafísica e não está mencionada, sequer uma única vez, em suas conferências e verbetes de enciclopédia.

A Metapsicologia é tema controverso. A despeito das palavras de Freud a seu respeito, ou talvez por conta delas mesmo, paira certa indefinição sobre sua essência e sobre as razões que presidem essa construção. Através do exame de algumas discussões e concepções tentaremos atacar esses pontos controversos e chegar a uma conclusão sobre o assunto.

É comum admitirem-se à Metapsicologia dois aspectos essenciais. Afirma-se que a Metapsicologia contém teorias afastadas da experiência, de caráter 'hipotético', 'especulativo' ou 'fictício'. Em apoio, evoca-se quase sempre a carta endereçada a Fliess onde Freud confessa realizar, com as questões metapsicológicas, seu anseio juvenil por conhecimento filosófico (Freud, 1896/1986, p. 181), e aquela onde, numa espécie de associação, desliza de 'Metafísica' à 'Metapsicologia' (Freud, 1898/1986, p. 302); ou ainda cita-se o famoso fragmento que aproxima a teorização metapsicológica a um fantasiar e a um lance de feitiçaria (Freud, 1937/1996, p. 241).

Ao lado do aspecto especulativo, a Metapsicologia é caracterizada pelo modo como descreve seu objeto. Cita-se, neste caso, a definição de apresentação metapsicológica (Freud, 1917/1996), tomada quase como sinônimo de Metapsicologia. Trata-se do emprego de um modo de ver (Betrachtungsweise) os processos psíquicos segundo o qual estes são descritos em suas relações tópicas – tendo sede em diversos 'lugares' ou instâncias psíquicas -, dinâmicas - resultando de forças antagônicas - e econômicas - enquanto variações quantitativas de uma mesma energia. A menção, bastante difundida entre os comentadores (Birman, 1994; Garcia-Roza, 2004; Laplanche & Pontalis, 1988), a esses dois aspectos essenciais, gera, porém, um aparente contrassenso, que se impõe com tanto mais força quando não se pergunta pelo tipo de relação estabelecida entre eles ou pela razão de sua existência: como é possível à Metapsicologia servir-se de conceitos inspirados na ciência física e, ao mesmo tempo, ser encarada pelo próprio inventor como uma teoria especulativa, expressão máxima de seu pendor filosófico?

Assoun, em sua Metapsicologia Freudiana (1996), lança luz sobre a presença desses dois aspectos aparentemente contraditórios. Ele parte da ideia de que a metapsicologia encerra 'dispositivos de saber' originais em relação aos modelos de conhecimento vigentes à época, em grande medida adotados por Freud em seu discurso epistemológico; defende, contudo, que isso não implica sua exclusão do campo científico. Na verdade, a metapsicologia atende ao projeto de integrar a psicanálise à ciência, mas como seu objeto é sui generis, só pode conquistá-lo à racionalidade científica sob a condição de modificá-la. Desse modo, a exigência de fazer ciência de um objeto que se furta à investigação científica explicaria por que se unem, no interior da Metapsicologia, especulação e afetada cientificidade.

Assoun tem o mérito de isolar como o cerne da Metapsicologia seu objeto e de reportar à sua natureza peculiar aqueles aspectos discordantes. No entanto, ele explora menos o caráter desse objeto e as razões de sua inadequação aos quadros tradicionais, que o esforço de cientificidade contido nessa teoria. Não por acaso privilegia o esclarecimento de Metapsicologia enquanto apresentação metapsicológica, esquecendo-se, porém, que não foi como uma nova ciência que Freud a concebeu, mas como uma construção relacionada de algum modo à Metafísica, vista por ele como oposta à ciência: na seção 'Metapsicologia e Metafísica', o autor omite os comentários freudianos sobre suas relações precisas, estabelecidas a partir do caráter não empírico de seus objetos. Não enxerga senão um abismo entre as duas (Assoun, 1996, p. 31-32).

Mesmo assim, é de se julgar esclarecida a sua posição, principalmente se comparada com uma outra, assumida pela crítica à Psicanálise, em voga na França do segundo quartel do século XX. Os trabalhos incluídos nessa corrente, não decididos de antemão a refutar ou aceitar a totalidade das teses psicanalíticas, dão-se por tarefa examiná-las segundo critérios a partir dos quais julgam sua legitimidade e lhes conferem adesão. As críticas de Georges Politzer, Roland Dalbiez e Madeleine Cavé chegam a conclusões parecidas, ainda que os pressupostos e o percurso seguidos por Polizter (1928/1974) difiram sensivelmente dos demais.

Tomemos como principal exemplo da corrente crítica os trabalhos de Roland Dalbiez (1947) e Madeleine Cavé (1945), que admitindo o modelo da ciência experimental, elegem como critério de legitimidade das teses psicanalíticas a verificação pela 'experiência clínica'. Esses autores concluem que uma boa parte delas deixar-se-ia confirmar por qualquer um que aplique o método investigativo proposto por Freud; no entanto, confusamente justapostas à descrição ou elaboração dos resultados assim obtidos, apresentar-se-iam formulações que não derivam da aplicação desse método e que, portanto, não podem ser de modo algum verificadas com recurso à experiência clínica. Elas abandonariam totalmente o terreno da discussão científica, devendo ser consideradas espúrias construções metafísicas.

Face, então, ao que lhes parece uma inquestionável discrepância, no interior da Psicanálise, entre, de um lado, a atividade investigativa, referida à experiência, e, de outro, uma teorização que extrapola esse âmbito, esses autores não podem senão condenar a segunda, a qual, aliás, poderia ser abandonada sem o mínimo prejuízo para a atividade analítica. Em seguida, depois de realizada a crítica à Psicanálise e condenada a Metapsicologia, imbuem suas obras de uma tarefa algo soteriológica: ajudar a Psicanálise e os psicanalistas a se desprenderem da 'Metafísica', das 'teorias temerárias', e orientá-los definitivamente na direção do rigoroso espírito científico. Para isso, conviria expor de modo cientificamente aceitável o que foi apenas toscamente apresentado ou mesmo omitido por Freud, assim revelando as grandes e fecundas descobertas psicanalíticas ocultas sob a fachada confusa de seus escritos. Quando, em pleno cumprimento dessa missão, sobrevém-lhes a questão de saber por que o psicanalista, tendo descoberto um meio válido para a obtenção de grandes e fecundas verdades, ainda assim se extraviou na direção de especulações incompatíveis com isso, alegam razões exteriores ao objeto psicanalítico. Segundo Dalbiez, Freud elabora, como 'qualquer homem, sua metafísica' (1947, vol.I, p. 8) sem se aperceber disso. Ademais, foi por ser um pioneiro, que 'o psicólogo de Viena' apresentou suas aquisições preciosas sob uma forma logicamente imperfeita e sob a máscara enganadora de uma terminologia bizarra (1947, vol. II, p. 8). E Madeleine Cavé (1945, p. 105) vai ainda mais longe, propondo que as hipóteses incontroláveis de Freud, que ornam inutilmente seus livros, e a falta de provas para o que ele havia encontrado devem-se à sua 'extrema carência' em qualidades lógicas.

A nosso juízo, a crítica à Psicanálise chega a esses resultados em razão de dois equívocos. Em primeiro lugar, parece não atentar muito à razão das especulações metapsicológicas, reportando-as apressadamente aos traços de caráter de seu inventor ou às contingências históricas nas quais estava imerso, e não à própria natureza de seu objeto. Em segundo lugar, desconsidera que tais especulações metapsicológicas visam o mesmo objeto que o visado pela investigação psicanalítica, tida como um legítimo método empírico. Portanto, se a crítica condena a primeira por afastar-se da experiência, deveria no mínimo, pela mesma razão, contestar legitimidade à segunda1.

Evitamos tais equívocos se consideramos que a Metapsicologia caracteriza-se essencialmente por seu objeto, o inconsciente. É isso que lhe vale o nome e a pecha de especulação; pois, uma vez que, segundo Freud, ter consciência de algo equivale a perceber algo, então o que se encontra 'além da consciência' é, aos seus olhos, o que não pode ser percebido e, portanto, experienciado; o que não se manifesta a não ser pelos seus supostos efeitos, como os sintomas, os atos falhos e o mal-estar. Mantendo em vista o caráter do objeto metapsicológico, alcançamos ainda um encaminhamento satisfatório à questão de saber por que Freud, homem fiel ao ideal de ciência, tenha confessadamente visitado a especulação. O inconsciente é igualmente o objeto da investigação psicanalítica; em sua eleição reside a peculiaridade dessa investigação. Caso Freud abrisse mão da metapsicologia em razão do caráter não empírico de seu objeto, abriria mão da própria investigação psicanalítica, já que rejeitaria o traço que lhe dá identidade. O fato de Freud não recuar diante do inconsciente, exige a empreitada metapsicológica. Não parece contingente, portanto, a razão que a preside.

O vínculo entre Metapsicologia e inconsciente é atestado, aliás, numa das primeiras aparições daquele termo, numa carta ao amigo Fliess. Freud então se ocupava da parte da Interpretação do Sonho (1900/1996) onde descreveria o sonhar e formularia a tese de que essa e todas as demais atividades humanas repousam sobre um desejo inconsciente: "Parece-me que a teoria da realização de desejos trouxe apenas a solução psicológica, e não biológica - ou melhor, metafísica. (A propósito, vou perguntar-lhe a sério se posso usar o nome de Metapsicologia para minha psicologia que se estende para além da consciência.)..." (Freud, 1898/1986, p. 302).

Ora, uma vez que o objeto da investigação e prática analíticas é concebido através da especulação metapsicológica, como poderia a psicanálise repousar sem mais sobre experiência? Não teria ela antes seu fundamento na especulação? O papel reservado à metapsicologia no empreendimento psicanalítico torna-se mais nítido quando examinamos a concepção que Freud faz da Metafísica, por referência a qual descreve a Metapsicologia.

 

Discussão

É certo que a aproximação da metapsicologia à metafísica pode ser compreendida a partir do sentido corrente assumido pelo termo 'Metafísica' no ambiente intelectual do final do século XIX. Ele designaria todo o pretenso conhecimento sobre realidades não sensíveis. No entanto, o exato alcance dessa aproximação só é devidamente apreciado quando nos perguntamos pela eventual especificidade de 'Metafísica' em Freud, o que nos remete, além de aos seus escritos sobre o tema, às circunstâncias de sua formação intelectual. Sabemos que ele, então jovem estudante universitário, frequentara cinco séries de conferências e seminários do filósofo Franz Brentano, célebre intérprete de Aristóteles, e que elas lhe haviam causado forte impacto à época (Gay, 2002, pp. 43-44). Foi por intermédio do filósofo alemão que Freud recebeu seu 'capital filosófico' (Assoun, 1991, p. 44) e provavelmente travou contato com a teoria aristotélica designada tradicionalmente por 'Metafísica'. Diante disso, atinamos com a hipótese de que este termo ganha nas páginas psicanalíticas um sentido próximo ao assumido pela corrente interpretativa a que pertence Brentano, hipótese que se mostra correta à medida que nelas avançamos. Apresentaremos, assim, as linhas gerais dessa corrente exegética, tendo por guia a obra de Pierre Aubenque.

Em seu livro O Problema do Ser em Aristóteles (1962/1994), Aubenque defende a tese de que o conjunto de 14 textos tradicionalmente atribuídos a Aristóteles e reunidos sob 'Metafísica' compreende basicamente o curso de uma pesquisa que se ocupa do problema do ser, resumido na questão: 'O que é o ser?'. Esse problema, que sendo o menos natural de todos já suscita a questão de saber por que se o coloca, não foi resolvido pelo estagirita e talvez nunca venha a sê-lo inteiramente por quem quer que dele se ocupe (1962/1994, p. 13-14). É a dificuldade inerente à própria natureza do objeto que esclarece, assim, o estado incompleto e disperso dos textos aristotélicos, e exige que se leiam esses fragmentos como os momentos de uma busca necessariamente inacabada.

Sob esta perspectiva, o autor contrapõe-se à tradição de comentadores constituída ao longo de aproximadamente 20 séculos, dominada pela tendência em unificar, a partir da representação de totalidade sistemática, o pensamento contido nesses escritos e completar as suas lacunas mediante a adoção de pressupostos alheios à filosofia aristotélica. Guiados pela ideia de sistema, exegetas leem os escritos como se correspondessem às partes de uma unidade de pensamento previamente constituída, e com Brentano não é diferente, já que ele, confundindo o curso da pesquisa aristotélica com a ordem de sua exposição, julga que o filósofo grego partia de um corpo sistemático de conceitos para, só então, resolver os problemas. Assim como a tradição, situa a unidade do pensamento no ponto de partida da pesquisa aristotélica (Aubenque, 1962/1994, p. 12).

A inclinação por unificar num sistema os resultados da pesquisa original de Aristóteles manifesta-se não apenas nesse modo de ler seus textos, como também numa certa concepção de seu objeto, a qual favoreceu a inserção dessa pesquisa nos quadros de pensamento então consolidados. Deve-se a ela o sentido tradicional, por muito tempo predominante, de 'Metafísica'. Sabe-se que esse nome foi atribuído aos escritos aristotélicos pelos seus editores, os quais, na falta de uma designação expressamente indicada pelo filósofo, arranjaram-lhe esta. Longe de acaso, a não nomeação desses escritos pelo próprio autor e, posteriormente, a adoção de um nome inédito para eles, devem-se ao caráter original da pesquisa ali empreendida, que dificultava sua imediata inserção na clássica divisão platônica dos saberes especulativos (Dialética, Física, Moral), ou na tripartição aristotélica das ciências teoréticas (Física, Matemática e Teologia). Aristóteles reporta essa pesquisa sem nome a uma ciência que descreve como "a ciência do ser enquanto ser" (Aubenque, 1962/1994, p. 21). Desde logo percebe-se que a ciência em questão, uma vez que toma o ser absolutamente, não poderia coincidir com nenhuma das ciências teoréticas, as quais estudam as propriedades de um determinado gênero de entes (1962/1994, p. 35). A Física estuda os entes subsistentes por si, não separados da matéria e móveis. A Matemática ocupa-se de entes que não subsistem por si, são separados da matéria e imóveis. A Teologia tem por objeto os entes divinos, os quais subsistem por si, são separados da matéria e imóveis (1962/1994, p. 36). Esta última ciência também é designada por 'filosofia primeira' porque os entes divinos constituem o gênero mais eminente; a ele pertence o Primeiro Motor, que move os corpos sem ser movido por nada (1962/1994, p. 37-39).

A distinção entre a ciência do ser enquanto ser e as demais ciências particulares só não é observada em um dentre todos os livros, o K, onde aquela é chamada de 'filosofia primeira'. A terminologia desse livro, que, vale dizer, somada ao estilo discrepante levou à contestação de sua autenticidade por outros estudiosos, dá ensejo à confusão entre a ciência do ser enquanto ser e a Teologia. É verdade que o erro pode ter sido identificado pelos primeiros editores da obra, que notando a ausência de preocupações teológicas em sua maior parte, recusaram-lhe o título 'Teologia' ou 'filosofia primeira', reservando-lhe ao invés um nome frasal, saído de uma provável descrição do objeto ali pesquisado: τά μετά τά φυσικά (tá metá tá physiká), literalmente, 'as (coisas) além ou depois das (coisas) físicas'. Contudo, o neologismo não impediu que esta ciência inédita fosse assimilada à Teologia, o ser, tomado por um gênero de entes, e a preposição μετά, entendida preferencialmente como 'além de'. Foram os comentadores escolásticos que, partindo da ideia do Deus bíblico e de suas relações com o mundo, consolidaram essa interpretação. Conceberam a obscura teoria aristotélica como um conhecimento sistemático dos entes não sujeitos à geração, desenvolvimento e corrupção, estes, portanto, que se encontram além do mundo sensível; em acréscimo, tomaram-nos por entes dotados de inteligência e vontade, dispostos numa hierarquia em cujo topo reside o ente divino onipotente, que intervém a todo momento sobre o curso dos eventos deste mundo; enfim, confundiram a metafísica com a ciência das coisas divinas (Aubenque, 1962/1994, p. 6, 31).

Essa foi a concepção provavelmente transmitida a Freud pelo filósofo teísta, ex-padre, Franz Brentano, ele próprio um herdeiro daquela tradição exegética. De fato, o psicanalista não se contenta apenas em assumi-la; investiga ainda o fundamento psicológico de tal construção intelectual e, encontrando sob ela os mesmos mecanismos que subjazem a outras, estende--lhes a mesma designação. 'Metafísica' refere-se agora a um gênero de pensamento que seguramente abarca a teologia em sentido estrito, mas também outras construções intelectuais, que compartilham com ela e entre si dos mesmos fundamentos psicológicos, como o animismo, o mito, a religião e a filosofia, bem como produções que sequer pretendem-se conhecimentos, como os sintomas neuróticos e paranoicos ou mesmo superstições e crendices.

 

Metapsicologia: Teologia às Avessas

Em Totem e Tabu (1913), Freud esclarece o essencial das construções metafísicas, ao passo que em A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) explicita as relação destas com a teoria dos processos psíquicos inconscientes.

A espécie mais ilustrativa do gênero metafísico de pensamento é o animismo, a primeira e talvez uma das mais completas dentre as cosmovisões humanas (Freud, 1913/1996, p. 89). Trata-se do modo unitário de compreender o mundo segundo o qual entidades espirituais ocultas de boa ou má índole habitam os homens, animais e seres inanimados, governando seu comportamento. O animismo certamente não surgiu do puro interesse teórico dos homens, mas do desejo de dominar os eventos que os rodeavam; não por acaso, sempre acompanha o sistema animista uma série de instruções a cuja execução se atribui eficácia sobre as entidades espirituais e sobre os eventos do mundo. Consistem nas 'técnicas' do animismo procedimentos como a magia e a feitiçaria, que, por imitarem ou estarem em contato com os resultados desejados, determinariam sua ocorrência (1913/1996, p. 87-90).

Não é difícil extrair os fundamentos dessa Weltanschauung. A 'técnica' animista pressupõe a sobrevalorização ou onipotência dos pensamentos, isto é, a crença de que efeitos desejados na realidade são produzidos mediante operações intelectuais e motoras que não entretêm com eles qualquer conexão objetiva, apenas uma ligação associativa, estabelecida segundo os princípios psicológicos de semelhança e contiguidade (Freud, 1913/1996, pp. 94-96). Por sua vez, a ideia de que existem espíritos povoando o mundo resulta de projeção, pela qual 'impulsos emocionais do homem', principalmente os conflitantes, são transformados em entidades exteriores dotadas de vontade (1913/1996, p. 102). Onipotência de pensamento e projeção afiguram-se, enfim, como expressão de uma única e mesma tendência: o psiquismo transpõe ao mundo suas próprias condições estruturais, fazendo deste um reflexo de si; por isso, o animismo e as demais construções que expressam a mesma tendência não passam, aos olhos de Freud, de teorias ou sistemas psicológicos.

Mas, afinal, que parte essencial de nossa estrutura psíquica se converte e se reproduz no mundo, e qual a razão desse processo? É no curso dessa resposta que se delineia a principal tarefa da metapsicologia, a respeito da qual são dados os mais contundentes esclarecimentos em A Psicopatologia da Vida Cotidiana

A tese que perpassa essa obra, recorrentemente enunciada em suas páginas, é fruto de uma generalização audaciosa do resultado obtido pela investigação psicanalítica a respeito dos sintomas psíquicos e sonhos. Não apenas esses últimos, mas todos os fenômenos psíquicos teriam alguma motivação. Em suma: não há acasos na vida psíquica. Em apoio à tese, Freud atém-se aos eventos cotidianos tidos como fortuitos - esquecimento de palavras, lapsos de fala e escrita, ações desastradas – e, através de associações a eles relacionadas, identifica a presença de determinadas 'motivações', 'intenções' ou 'desejos' em sua base, ignoradas pelo próprio agente na ocasião de sua ocorrência.

Acontece que o procedimento analítico de associação é insatisfatório para se comprovar a existência e a efetividade das motivações inconscientes, pois dá a conhecer tais motivações somente a partir de seus supostos efeitos, sem atestá-las no momento em que atuam na produção destes. Sempre é possível questionar se as causas inferidas posteriormente são, realmente, as responsáveis pelos eventos em questão, ou mesmo se estes tiveram, de fato, alguma causa. A inferência de motivações ocultas a partir de associações gera certo descontentamento porque não debela o problema em torno da existência de tais motivações; porque é inevitável a suspeita de que tal procedimento pressuponha como dado exatamente o que intenta provar, a saber, que os eventos psíquicos fortuitos são, em verdade, motivados inconscientemente. Em razão disso, Freud trata a tese do determinismo psíquico, no último capítulo da obra, como um ponto de vista (Gesichtspunkt) ou uma suposição (Annahme), e externa, talvez pela primeira vez, o desejo de encontrar uma prova para a existência de tais motivações, prova que qualifica de "psicológica" (Freud, 1901/1990, p. 283).

Ao que parece, tal prova consistiria em indicar uma situação em que, de alguma maneira, percebemos a atuação dessas motivações inconscientes. Seguramente não podemos ter um conhecimento dessas motivações em nós; contudo, há possibilidade de conhecê-las indiretamente, ou seja, não enquanto nossas, mas enquanto atribuídas ao outro. Esse 'conhecimento deslocado' das motivações apresenta-se em ao menos duas 'regiões de fenômeno' aparentemente distantes uma da outra: o delírio paranoico e a superstição.

O paranóico atribui amiúde grande importância aos mínimos gestos alheios; através deles advinha certa intenção e tira conclusões de longo alcance. O supersticioso, por sua vez, encara alguns eventos exteriores como o prenúncio - produzido com este fito por alguma intenção sobrenatural - de um evento futuro. Os dois rejeitam o acaso no tocante às ocorrências externas, sejam gestos alheios ou eventos naturais, remontando-as a motivações ocultas; ao mesmo tempo, admitem sua possibilidade em relação à própria vida psíquica, uma vez que ambos, de outro modo tão perspicazes no farejo de motivações, não costumam perscrutá-las em si quando cometem algum ato falho.

O delírio e o presságio não são conhecimentos acerca de uma realidade externa, mas ainda assim possuem um quinhão de verdade, nisto que trariam à luz, de modo deslocado, algo da estrutura psíquica. As intenções e desejos atribuídos a uma pessoa ou entidade alheia seriam os nutridos pelo próprio paranoico e supersticioso e estariam por trás dos supostos acasos em suas vidas anímicas. Ora, se reconduzirmos ao psiquismo as intenções ocultas supostamente atuantes no mundo exterior, tratando-as agora como intenções inconscientes, então teremos invertido o mecanismo projetivo. Essa operação, inversa à que origina a metafísica, define a Metapsicologia:

Creio, de fato, que grande parte da concepção mitológica de mundo, que se estende até as mais modernas religiões, nada mais é do que psicologia projetada no mundo externo. O obscuro reconhecimento (a percepção endopsíquica por assim dizer) dos fatores psíquicos e das relações do inconsciente espelha-se – é difícil dizê-lo de outra maneira, e aqui a analogia com a paranóia tem que vir em nosso auxílio – na construção de uma realidade suprasensível, a qual deve ser retransformada pela ciência em psicologia do inconsciente. Poder-se-ia ousar resolver dessa maneira os mitos do paraíso e do pecado original, de Deus, do bem e do mal, da imortalidade e outros, e transformar a Metafísica em Metapsicologia (Freud, 1901/1990, pp. 287-288 [grifo nosso]).

Aquele que realiza essa operação metapsicológica não acredita que um evento do qual não participou sua vida psíquica seja meio de expressão de uma intenção oculta externa. Ele admite, portanto, o acaso real, entendido não como ausência de leis, mas de uma intenção por detrás dos eventos externos (a suposição de intencionalidade persiste em relação aos atos humanos alheios, mas nem de longe assemelha-se à certeza paranoica. Para o metapsicólogo, o outro age segundo intenções, embora não se possa determiná-las com certeza). Em contrapartida, acredita que toda a manifestação pertencente à própria atividade anímica, até mesmo a 'fortuita', seja sempre determinada por alguma intenção, a qual, por sua vez, tem sede apenas em sua vida anímica: ele não admite casualidade psíquica. Assim, enquanto o metafísico encontra motivações lá fora, determinando os eventos reais, o metapsicólogo as encontra dentro, produzindo seus próprios eventos psíquicos. Dependendo do ponto de vista que se assuma, dar-se-ão interpretações diferentes para situações semelhantes. Freud o exemplifica elegendo o supersticioso como o representante da posição metafísica.

Conta-nos ele que no início de um novo ano de trabalho, devia prestar visita a uma cliente, senhora muito idosa que ultrapassara os noventa anos de idade. Como estivesse com pressa, tomou um fiacre. Todos os cocheiros daquele pátio de carruagens, habituados a conduzi-lo em tais visitas, naturalmente sabiam o endereço; naquele dia, porém, o cocheiro não parou diante do destino desejado, mas diante de uma casa de mesmo número, numa rua paralela, próxima e bastante semelhante à rua em que morava a anciã. Deveria ele entrever algum sentido no fato de ter sido levado a uma casa onde a velha senhora não seria encontrada? Como bom metapsicólogo, encarou o incidente como uma casualidade sem maior importância, mas se fosse supersticioso veria no evento um prenúncio de que esse seria o último ano da paciente. Ora, o caso seria outro se ele tivesse feito a pé o caminho e, absorto em pensamentos, chegado à casa da rua paralela. Isso ele não tomaria por nenhum acaso, mas por uma ação com intenção inconsciente, que necessitaria de interpretação. Provavelmente veria nesse 'desandar' o sinal de que não esperava mais encontrá-la em breve (Freud, 1901/1990, pp. 288-289).

A diferença entre os pontos de vista metapsicológico e metafísico dá-se, porém, sobre um fundo de identidade. Ambas são dominadas pela "compulsão" em não tomar o acaso por acaso, mas em interpretá-lo (Freud, 1901/1990, p. 287), o que pressupõe, em ambas as construções, que os eventos considerados resultem de uma vontade 'oculta'. Num caso, esta vontade se encontraria além da realidade externa (Metafísica), no outro, além do psiquismo consciente (Metapsicologia). Metapsicologia e Metafísica possuem, assim, o mesmo tipo de objeto: algo que ultrapassa o âmbito do que aparece, portanto, do experienciável. Só que o pretenso conhecimento metafísico de um ente onipotente, senhor dos eventos do mundo, é tido pela metapsicologia como conhecimento deslocado de motivações que nos habitam, e que, mesmo estando além de nossa percepção, decidem o rumo de nossa vida anímica.

Não é difícil perceber que a especulação metapsicológica se encontra estreitamente vinculada à investigação e à prática analíticas, ocupando um papel fundamental nelas. Com efeito, a admissão do inconsciente – o objeto metapsicológico por excelência - é o princípio que subjaz à regra fundamental da livre-associação e à arte interpretativa: ao admitir a eficácia das motivações inconscientes sobre os outros e – por que não? – sobre si, o analista assume uma posição de escuta que o constrange a não tomar como fortuitas as palavras e as atuações que o analisando lhe dirige, e a instar por sua elaboração. A suposição metapsicológica, é verdade, não deriva da "observação de fenômenos"; mas é ela, justamente, o que propicia as manifestações atestadas na situação analítica e orienta o estabelecimento de conexões entre elas.

 

Considerações Finais

A aparente contradição entre a afirmação da procedência empírica da psicanálise e da presença da especulação em seu interior, fez-nos perguntar pelo papel desempenhado pela última no empreendimento psicanalítico. A primeira afirmação, propagada amiúde pelo ensino exotérico de Freud, remonta em grande medida ao desejo de aproximar a Psicanálise ao método da ciência tal como concebido no contexto intelectual do século XIX, e perde sua força sob a consideração das peculiaridades da clínica analítica, inassimilável à experimentação, bem como dos desenvolvimentos metapsicológicos, pronunciadamente não derivados da experiência. O exame da metapsicologia revela que esta não é fruto de idiossincrasias de seu inventor ou de contingências históricas. Entendida como "teoria dos processos psíquicos inconscientes", a Metapsicologia abriga em seu cerne a suposição da existência daquilo mesmo a que se voltam os esforços da clínica psicanalítica, daquilo que a caracteriza como tal: a suposição de uma atividade psíquica não perceptível.

Isso se patenteia nos desenvolvimentos sobre as relações que a Metapsicologia entretém com a Metafísica, compreendida por Freud partir da interpretação tradicional da teoria aristotélica do ser. Enquanto as construções metafísicas resultariam da tendência psíquica em projetar as nossas motivações no exterior, transformando-as em intenções ocultas atuantes sobre os eventos do mundo, a metapsicologia consistiria na recondução de tais supostas intenções ao seu verdadeiro lugar de origem: o psiquismo inconsciente. Muito embora se baseie numa operação inversa à metafísica, a teoria metapsicológica versa, assim como aquela, sobre uma atividade oculta, imperceptível, que escapa ao âmbito do que é verificável empiricamente. Contudo, o fundamento especulativo da psicanálise não implica a negação de qualquer vínculo desta à experiência; abre, antes, a possibilidade de uma. A suposição do inconsciente significa a adoção de um ponto de vista a partir do qual as manifestações psíquicas aparecem segundo determinadas relações. Munidos dessa suposição e talvez movidos por seu referente incognoscível, analista e analisando vão à clínica, conectando o que lhes aparece numa genuína experiência analítica.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Eduardo Rotstein
Avenida Rui Barbosa, 460/1201
CEP 22250-020 – Rio de Janeiro - RJ
E-mail: eduardorotstein@gmail.com

Recebido em 01/09/2011
Revisto em 20/03/2012
Aceito em 25/05/2012

 

 

1A discussão sobre a essência da Metapsicologia e a sua importância para a Psicanálise foi levantada mais recentemente por autores de tradição anglo-saxã, como Robert Holt e Merton Gill. No excelente artigo The manifest and latent meaning of Metapsychology (1989), Holt, após revista minuciosa dos múltiplos sentidos assumidos pelo termo em Freud, conclui ser a Metapsicologia uma tentativa de se alcançar leis psíquicas a partir de dados clínicos. Essa teoria não se definiria por seu objeto, mas por sua linguagem vaga e abstrata, formada sob a influência de diversas correntes intelectuais pertencentes à visão científica do século XIX. Gill (1976), por sua vez, propõe que, a despeito da polissemia de "Metapsicologia, esta deveria referir-se exclusivamente às afirmações sobre os substratos materiais do funcionamento psíquico. Assim, Gill toma a Metapsicologia in toto por apresentação metapsicológica, isto é, pela descrição dos processos psíquicos em termos de força, energia e estrutura. Esse resultado desconsidera a analogia freudiana entre sua teoria especulativa e a Metafísica, e encerra a interpretação questionável do objeto metapsicológico segundo a qual este equivaleria ao orgânico. Cada qual a seu modo, Holt e Gill negam total ou parcialmente a importância da especulação para a teoria e a prática da clínica analítica, em notável acordo com a crítica francesa à Psicanálise O primeiro critica o emprego de noções científicas ultrapassadas no discurso metapsicológico, enquanto o último, assimilando a Metapsicologia a uma teoria neurológica, desautoriza qualquer conexão entre as proposições metapsicológicas e as puramentes psicológicas, baseadas nos dados constatados na situação analítica. Ademais, semelhantemente à corrente francesa, ambos não se detêm nas razões que levariam Freud a elaborar, ao lado de uma teoria clínica apropriada para descrever e explicar o material clínico, um discurso supostamente afastado do "solo firme" da observação.