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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.7 no.2 Juiz de Fora Dec. 2013

http://dx.doi.org/10.5327/Z1982-1247201300020005 

ARTIGOS
DOI: 10.5327/Z1982-1247201300020005

 

Mecanismos de Defesa em Pacientes Oncológicos Recidivados: Um Estudo Clínico-Qualitativo*

 

Defense Mechanisms Among Patients with Relapsed Cancer: A Clinical-Qualitative Study

 

 

Gizelle Mendes Borges; Rodrigo Sanches Peres

Universidade Federal de Uberlândia (Uberlândia), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo objetivou investigar os mecanismos de defesa empregados por pacientes oncológicos adultos recidivados. Trata-se de um estudo clínico-qualitativo, do qual participaram oito pacientes avaliados a partir do emprego de uma entrevista. A definição do número de participantes envolveu o critério de saturação. As entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas na íntegra e analisadas de maneira independente. A racionalização, a regressão, a projeção e a denegação foram os mecanismos de defesa identificados com maior frequência, possivelmente em função da vivência da recidiva e do elevado poder disruptivo que a caracteriza. Conclui-se que a compreensão do funcionamento defensivo daqueles que se deparam com esse acontecimento pode auxiliar no aprimoramento da assistência multidisciplinar oferecida aos mesmos.

Palavras-chave: Psico-Oncologia; psicologia clínica da saúde; mecanismos de defesa.


ABSTRACT

The present study aimed to investigate the defense mechanisms used by patients with relapsed cancer. This is a clinical-qualitative study, which involved eight patients evaluated with a interview. The definition of the number of participants involved the saturation criteria. The interviews was audio-recorded, totally transcribed and analyzed independently. Rationalization, regression, projection, and denial were the defense mechanisms more frequently identified, possibly due the experience of relapse and its disruptive power. We conclude that the understanding of the defensive functioning of those who live this event can improve the multidisciplinary assistance offered to them.

Keywords: Psycho-Oncology; clinical health psychology; defense mechanisms.


 

 

O termo "câncer" abrange mais de 100 doenças que resultam do crescimento desordenado de células que, devido a modificações da expressão gênica, dividem-se rapidamente e invadem tecidos e órgãos, podendo, inclusive, se disseminar para diversas regiões do corpo (Caponero, 2008). Todas elas têm etiologia multifatorial, pois suas causas podem ser externas ou internas ao organismo e relacionar-se entre si. As causas externas referem-se ao meio ambiente e aos hábitos próprios de uma sociedade. As causas internas são, na maioria das vezes, geneticamente determinadas. Desde 2003, o câncer se afigura, no Brasil, como a segunda causa de morte na população, representando cerca de 17% dos óbitos de causa conhecida (Instituto Nacional de Câncer, 2011).

De modo geral, a cirurgia, a radioterapia, a quimioterapia e o transplante de medula óssea representam as principais modalidades terapêuticas para o câncer. A escolha de uma determinada modalidade ou até mesmo a combinação delas vai variar de acordo com cada caso e suas especificidades (Instituto Nacional de Câncer, 2011). Nos dias de hoje, o tratamento possui uma resolutividade considerável, sobretudo quando o diagnóstico é precoce. Entretanto, eventualmente a doença pode evoluir para o surgimento de metástases ou recidivas, o que representa, conforme Torrano-Masetti (2000) e Canaverde (2011), um momento crítico na vida do paciente.

Uma recidiva possui um elevado poder disruptivo porque, como apontam diversos autores, simbolicamente representa o fracasso dos esforços envidados no tratamento e é vivenciada como uma nova ameaça ao corpo já fragilizado pela doença primária (Massie & Holland, 1991; Almeida, Mamede, Panobianco, Prado & Clapis, 2001; Peres, 2008). Sendo assim, pode afetar o funcionamento defensivo do paciente, ou seja, o conjunto de operações mentais adotadas pelo mesmo para se proteger das tensões às quais é submetido. O termo "mecanismos de defesa" designa, em Psicanálise, tais operações mentais, cujas finalidades básicas, para Zimerman (2001), são a manutenção da constância psíquica e a promoção do ajustamento à realidade externa.

O ego pode ser considerado o agente dos mecanismos de defesa, visto que representa, por definição, o polo defensivo da personalidade. Entretanto, na maioria das vezes, os mecanismos de defesa são empregados inconscientemente pelo ego. Por essa razão, cada sujeito possui, conforme Kusnetzoff (1982), um repertório defensivo relativamente restrito. Mas vale salientar que apelar a essas operações psíquicas quando da deflagração de eventos altamente ansiógenos não deve ser considerado um processo psicopatológico a priori, pois a sobrevivência do aparelho psíquico encontra-se intimamente relacionada à sua capacidade de se proteger. É nesse sentido que autores como Vaillant (2001) sustentam que o funcionamento defensivo de um sujeito pode ser considerado um indicador de seu desenvolvimento egoico, mas não necessariamente de uma eventual psicopatologia.

Freud (1895/1996) propôs que a utilização de um determinado mecanismo de defesa poderá ser considerada psicopatológica apenas quando remeter à revivescência de sentimentos penosos — associados a acontecimentos prévios — dos quais o ego, quando da experiência original, não foi capaz de se defender mediante a execução de investimentos laterais. Além de gerar tensões internas que provocam desprazer, essa revivescência fomenta uma intensa regressão egoica, influenciando negativamente o equilíbrio da personalidade e o ajustamento do sujeito à realidade externa.

Como salienta Peçanha (2008), compreender o funcionamento defensivo de um paciente acometido por uma doença orgânica é essencial para que a assistência multidisciplinar oferecida ao mesmo seja compatível com seu modo típico de lidar com as tensões. Dada a relevância do assunto, algumas pesquisas recentes vêm sendo dedicadas à investigação dos mecanismos de defesa em diferentes populações clínicas. Oliveira e Yoshida (2009), por exemplo, avaliaram os sintomas psicopatológicos e o funcionamento defensivo de obesos grau III e verificaram, sobretudo naqueles que seriam submetidos à cirurgia bariátrica, a predominância de mecanismos de defesa classificados como imaturos ou desadaptativos, fato esse que pode dificultar o ajustamento às restrições decorrentes de tal procedimento.

Na área de Oncologia, podem-se citar as pesquisas de Peres (2008), Bandeira e Barbieri (2007), Capitão e Zampronha (2004) e Torrano-Masetti (2000). Todas elas avaliaram os mecanismos de defesa em diferentes grupos de pacientes acometidos por câncer, mas privilegiaram outras variáveis. Portanto, faz-se necessário expandir o conhecimento que atualmente se tem a respeito do assunto, dado que tal conhecimento pode ter importantes implicações para a assistência multidisciplinar oferecida aos mesmos. Assumindo essa assertiva, o presente estudo foi desenvolvido com o intuito de investigar os mecanismos de defesa em um grupo de pacientes oncológicos adultos recidivados. Tal recorte justifica-se porque, como já mencionado, uma recidiva pode comprometer o funcionamento defensivo do indivíduo e dificultar seu ajustamento à realidade externa.

 

Método

Desenho Metodológico

O desenho metodológico do presente estudo foi inspirado no método clínico-qualitativo preconizado por Turato (2005). As pesquisas qualitativas, conforme Minayo (2012), têm como finalidades a compreensão e a interpretação de experiências humanas complexas, sendo que toda compreensão caracteriza-se por um entendimento contingente e incompleto e toda interpretação consiste na elaboração de possibilidades delineadas pela compreensão. Portanto, para Camic, Rhodes e Yardley (2003), as pesquisas qualitativas contemplam um determinado objeto a partir da análise de seus significados subjetivos. Inseridas no campo das pesquisas qualitativas, as pesquisas clínico-qualitativas visam, mais especificamente, explorar experiências humanas complexas em settings de saúde. Para tanto, sustentam-se em uma atitude clínica fundamentada nos princípios básicos da teoria psicanalítica e assumem como diretriz principal o estabelecimento de relações de sentido entre os dados obtidos (Turato, 2003).

Participantes

Participaram do presente estudo oito pacientes, sendo seis mulheres e dois homens, que se encontravam em situação de recidiva oncológica e realizavam o tratamento médico preconizado em um hospital universitário. A Tabela 1 apresenta uma caracterização de tais pacientes e esclarece que a faixa etária dos mesmos variou dos 34 aos 77 anos e a escolaridade, do Ensino Fundamental incompleto ao Ensino Superior completo. No que se refere ao estado civil, observa-se que a maioria não convivia mais com o cônjuge, seja por viuvez ou divórcio. Não obstante, apenas uma participante não tinha filhos. A Tabela 2, por sua vez, sintetiza informações clínicas a respeito dos pacientes e revela que o tipo de doença primária dos mesmos foi diversificado. Porém, a maioria foi submetida a um mesmo tratamento, a saber: a quimioterapia.

Estratégia de Recrutamento, Seleção e Definição dos Participantes

Os participantes foram localizados por meio de buscas ativas realizadas a partir das indicações de profissionais de saúde do hospital universitário em questão, os quais foram solicitados, com a devida anuência institucional, a colaborar com o presente estudo, fornecendo aos pesquisadores informações a respeito de pacientes em tratamento considerados elegíveis para a coleta de dados. Vale destacar que foram considerados elegíveis os pacientes que atendiam aos seguintes critérios de inclusão: (1) possuir idade acima de 18 anos; (2) apresentar diagnóstico de recidiva de qualquer tipo de neoplasia maligna; (3) ter conhecimento desse diagnóstico há, no mínimo, um mês e (4) não possuir antecedentes psiquiátricos, suspeita de déficit intelectual, quadros demenciais ou distúrbios de comunicação capazes de comprometer a interação com os pesquisadores durante a coleta de dados.

É preciso salientar também que a definição do número de participantes do presente estudo foi executada com base no critério de saturação, o qual, a propósito, tem sido amplamente adotado no campo das pesquisas qualitativas. Portanto, como preconizam Fontanella, Ricas e Turato (2008), envolveu a identificação, a partir da avaliação dos pesquisadores, de certa repetição de dados. A utilização de tal critério tem o mérito, ainda segundo os referidos autores, de viabilizar a obtenção de um panorama representativo da realidade empírica pesquisada até mesmo quando — assim como ocorre no presente estudo — os participantes constituem uma amostra não probabilística de conveniência, de forma que representa um importante recurso para a validação científica.

Instrumento

O instrumento utilizado foi um roteiro semiestruturado de entrevista elaborado especialmente para o presente estudo (Anexo 1). As 40 questões que constituíram tal roteiro organizavam-se em três eixos, a saber: (1) dados de identificação; (2) primeira ocorrência da doença e (3) recidiva (Anexo 1). Desse modo, seu emprego possibilitou aos participantes relatarem suas histórias de adoecimento desde o diagnóstico da doença primária até o momento atual. E os mesmos puderam fazê-lo configurando o campo da entrevista de modo individual, na medida em que um roteiro semiestruturado, a despeito de viabilizar ao pesquisador a obtenção de dados considerados de maior relevância face ao objetivo da pesquisa, tende a fazer emergir respostas do entrevistado de maneira mais livre (Belei, Gimeniz-Paschoal, Nascimento & Matsumoto, 2008). Nesse fato reside uma importante vantagem da entrevista em relação àqueles testes psicológicos designados por Hogan (2006) como objetivos por serem compostos, a exemplo dos inventários e questionários, por itens de múltipla escolha.

A relevância das entrevistas no campo das pesquisas qualitativas foi evidenciada por diversos autores, dentre os quais se podem citar Martins e Bicudo (1994) e Turato (2003). Contudo, a opção por tal instrumento no presente estudo justifica-se, mais especificamente, tendo em vista que, em pesquisas recentes realizadas junto a variadas populações1 (Maia, Guimarães & Ribeiro, 2003; Gambatto, Carli, Guarienti, Silva & Prado, 2006; Castro, 2010), as entrevistas revelaram-se especialmente proveitosas no sentido de subsidiar a coleta de dados indicativos dos mecanismos de defesa utilizados pelos entrevistados. Possivelmente, isso ocorreu porque as entrevistas, para Bleger (1987), possibilitam tanto ao entrevistado expor explicitamente certos dados a respeito de si, quanto ao entrevistador vislumbrar outros dados que emergem de modo implícito.

Coleta de Dados

Todos os pacientes indicados pelos profissionais de saúde ao longo de um período de seis meses foram abordados pela primeira autora do presente estudo, pessoalmente, nas instalações do hospital universitário em questão ou por meio de contato telefônico, e convidados a participar da coleta de dados. Houve duas recusas, ambas atribuídas pelos pacientes à indisponibilidade de tempo. Cada um dos pacientes que aceitou participar foi entrevistado individualmente em um local reservado e em condições apropriadas para tanto, também nas instalações do hospital. As entrevistas foram gravadas em áudio com consentimento prévio de todos os participantes e realizadas em um único encontro, com duração média de 45 minutos. Vale destacar que, nos casos em que os participantes apresentaram disponibilidade, a coleta de dados foi realizada de imediato. Nos casos em que isso não foi possível, a coleta de dados foi agendada, de comum acordo, para um momento posterior.

Análise de Dados

As entrevistas de todos os participantes do presente estudo foram transcritas literalmente e na íntegra. Posteriormente, foi adotada uma estratégia de análise constituída por três etapas. Na primeira etapa, as transcrições foram submetidas a leituras exaustivas, realizadas de maneira independente pelos pesquisadores, com o intuito de evitar uma eventual contaminação dos resultados. Na segunda etapa, também de maneira independente, os pesquisadores registraram em um quadro sinóptico individual os mecanismos de defesa identificados em cada uma das entrevistas. Nesse processo, foram considerados os seguintes mecanismos de defesa: (1) recalque; (2) regressão; (3) formação reativa; (4) isolamento; (5) anulação retroativa; (6) projeção; (7) introjeção; (8) sublimação; (9) denegação; (10) negação; (11) racionalização e (12) intelectualização.

As definições propostas por Laplanche e Pontalis (2001) para tais mecanismos de defesa foram adotadas pelos pesquisadores com o intuito de conferir coerência à avaliação dos resultados. Na terceira etapa de análise, por fim, os pesquisadores realizaram uma reunião presencial, com o intuito de obter um consenso sobre os mecanismos de defesa apresentados por cada participante. Para tanto, todas as ocorrências de mecanismos de defesa, tal como registradas nos quadros sinópticos individuais, foram discutidas caso a caso. As ocorrências analisadas consensualmente de início foram aceitas automaticamente. Já as ocorrências analisadas de maneira discordante foram discutidas caso a caso até que se chegasse a um comum acordo. Empregando esse conjunto de dados, foi organizado um quadro sinóptico geral para cada participante.

Cuidados Éticos

O presente estudo é parte de um projeto mais amplo, o qual obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia (parecer 1091/10). Desse modo, os cuidados éticos necessários foram observados, sendo que todos os participantes concordaram espontaneamente com a realização da coleta de dados e formalizaram sua anuência mediante a assinatura de um termo de consentimento livre e esclarecido. Além de descrever sucintamente a coleta de dados, tal termo assegurava aos participantes o direito de desistir, a qualquer momento, de sua participação no presente estudo, sem qualquer espécie de prejuízo ao atendimento que lhes era oferecido no hospital universitário onde os mesmos realizavam tratamento médico. Vale destacar ainda que as iniciais dos nomes verdadeiros dos participantes, fornecidas pelos mesmos durante as entrevistas, foram substituídas por nomes fictícios, com o intuito de preservar-lhes o anonimato.

 

Resultados

No conjunto das entrevistas, foram identificados, com maior frequência, os seguintes mecanismos de defesa: racionalização, regressão, projeção e denegação. Constatou-se que o primeiro deles foi preponderante, tendo sido empregado, ao menos uma vez, por todos os participantes. Os relatos 1 e 2 exemplificam ocorrências da racionalização tal como identificadas pelos pesquisadores. Afinal, o relato 1 aponta que o impacto psicológico causado pelo tratamento cirúrgico implementado em função da doença primária foi minimizado por Adélia a partir de uma explicação coerente do ponto de vista lógico, ainda que reducionista do ponto de vista emocional. Já o relato 2 demonstra que, ao ser questionado sobre sua reação ao diagnóstico da recidiva, Benício forneceu indícios de que, para lidar com tal estressor, procurou simplesmente naturalizar racionalmente sua ocorrência.

Relato 1: "[...] Tem gente que já perdeu mais, já perdeu uma perna, já perdeu um braço. Isso aqui [a mama] não faz falta, eu não vou amamentar mais, eu não vou ter mais filhos" (Adélia).

Relato 2: "Uai, [...] eu já tava sabendo que ele ia voltar" (Benício).

Conforme a avaliação dos pesquisadores, a regressão esteve presente nas entrevistas de quatro participantes. Os relatos 3 e 4 ilustram tal achado, pois denotam que tanto Paula quanto Adélia, em função do caráter extremamente ansiógeno da situação, encontraram dificuldades acentuadas para reagir adaptativamente à confirmação da recidiva. O retorno do câncer, aparentemente, trouxe à tona mais uma vez o sofrimento desencadeado pelo diagnóstico e pelo tratamento da doença primária, particularmente devido à emergência de um sentimento de perda associado à percepção de que todos os esforços envidados até então no controle da doença haviam sido em vão.

Relato 3: "O primeiro pensamento foi esse: mas eu vou perder tudo, o tratamento que eu fiz, vou ter que fazer tudo de novo" (Paula).

Relato 4: "Eu só pensei uma coisa: vai começar tudo de novo ..." (Adélia).

A projeção, por sua vez, foi observada pelos pesquisadores nas entrevistas de três participantes. Os relatos 5 e 6 o exemplificam, na medida em que evidenciam que tanto Paula quanto Benício depositaram conteúdos internos em algo ou alguém externo. Paula o fez atribuindo ao hospital e aos demais pacientes a tristeza experimentada por ela quando da confirmação da recidiva. Já Benício projetou na população de um modo geral um pensamento ("suicídio") e um sentimento ("desespero") que podem ter-lhe ocorrido em algum momento devido ao adoecimento, mas que, por serem potencialmente desestruturantes, não puderam emergir à consciência. Nesse caso, especificamente, chama atenção ainda a ausência de personificação, recurso que talvez tenha sido inconscientemente adotado para promover um maior distanciamento do participante em relação ao pensamento e ao sentimento em questão.

Relato 5: "[O hospital] era muito triste, eu olhava e tava tudo triste" (Paula).

Relato 6: "Tem muita gente que pensa em suicídio, entra em desespero" (Benício).

A denegação também foi observada pelos pesquisadores nas entrevistas de três participantes. O relato 7 ilustra que, a exemplo de Abílio, os mesmos, quando da utilização de tal mecanismo de defesa, recusaram-se a admitir certas representações que, embora provisoriamente, chegaram ao nível da consciência. Abílio o fez de modo interessante, desmembrando a denegação em três movimentos: (1) um primeiro, ao negar que a recidiva tenha lhe "abalado"; (2) um segundo, ao afirmar que inicialmente havia recusado o tratamento médico proposto e (3) um terceiro, ao contestar essa afirmação – o que sugere que a representação que a originou não pode ser tolerada pela consciência – e reforçar sua suposta "aceitação" em relação à recidiva.

Relato 7: "Não, dessa vez eu não me abalei. E até falei pro Dr. L. que eu não ia fazer o tratamento, aceitei bem" (Abílio).

 

Discussão

Os mecanismos de defesa predominantes entre os participantes do presente estudo, como já mencionado, foram a racionalização, a regressão, a projeção e a denegação. A projeção também se revelou recorrente entre os adolescentes com câncer avaliados por Capitão e Zampronha (2004) mediante a aplicação do Questionário Desiderativo, técnica projetiva2 por meio da qual são veiculadas perguntas que, de maneira simbólica, remetem o sujeito a situações em que a possibilidade de morte é iminente. E o mesmo se pode afirmar a propósito das mulheres acometidas por câncer de mama que participaram da pesquisa de Bandeira e Barbieri (2007), na qual foi empregada na coleta de dados outra técnica projetiva, a saber: o Teste de Apercepção Temática.

Em tais pesquisas, assim como naquelas desenvolvidas por Peres (2008) e Torrano-Masetti (2000), os mecanismos de defesa foram avaliados apenas em segundo plano em comparação com outras variáveis. Contudo, estes últimos autores trabalharam com pacientes mais semelhantes, em termos do curso da doença, àqueles que participaram do presente estudo. Peres (2008) observou que a denegação foi um dos mecanismos de defesa mais frequentes em mulheres acometidas por câncer de mama em situação de recidiva. Já Torrano-Masetti (2000) aponta que a projeção e a regressão predominaram entre pacientes recidivados com doenças onco-hematológicas.

Assim como Bandeira e Barbieri (2007) e Capitão e Zampronha (2004), tanto Peres (2008) quanto Torrano-Masetti (2000) realizaram a avaliação dos mecanismos de defesa dos participantes de suas pesquisas a partir dos dados oriundos da aplicação de técnicas projetivas, embora tenham utilizado também um roteiro semiestruturado de entrevista para a avaliação de outras variáveis. Ou seja, dentre as publicações nacionais localizadas por meio do levantamento bibliográfico executado para os fins do presente estudo, não foram encontradas pesquisas nas quais a avaliação dos mecanismos de defesa de pacientes oncológicos tenha sido realizada especificamente por meio de entrevista.

Esse fato torna patente a existência de diferenças entre este estudo e as referidas pesquisas no que tange ao instrumento adotado para a coleta de dados. E essas diferenças determinam o alcance da discussão dos resultados ora reportados à luz daqueles veiculados por outros autores que trabalharam com pacientes oncológicos. Porém, deve-se destacar que, como já mencionado, em pesquisas recentes realizadas junto a outras populações (Maia et al., 2003; Gambatto et al., 2006; Castro, 2010), as entrevistas foram privilegiadas durante a coleta de dados para a avaliação de mecanismos de defesa. Conclui-se, portanto, que, de modo geral, as pesquisas na área de Oncologia que se debruçam sobre tal temática não estão sintonizadas a essa tendência metodológica.

Não obstante, tanto os resultados ora reportados quanto aqueles apresentados por outros autores que trabalharam com pacientes oncológicos indicam que os mesmos, especialmente em situação de recidiva, tendem a recorrer a mecanismos de defesa que, nos termos de Vaillant (2001), podem ser classificados como imaturos ou desadaptativos. O referido autor agrupa sob essa rubrica operações mentais que se caracterizam por afastar do plano da consciência pensamentos e sentimentos experimentados como ameaçadores, o que pode levar a uma distorção da realidade externa. Mas adverte que o emprego de mecanismos de defesa dessa natureza não necessariamente se deve a uma suposta psicopatologia, podendo ser determinado pela ocorrência de um estressor agudo.

Possivelmente, portanto, o funcionamento defensivo apresentado pelos participantes do presente estudo foi influenciado de modo decisivo pela vivência da recidiva devido ao elevado poder disruptivo que a caracteriza. E esse funcionamento defensivo pode tanto manter-se quanto modificar-se ao longo do tempo. Consubstanciando essa linha de raciocínio, ressalte-se que, como observou Kusnetzoff (1982), as contribuições de diversos psicanalistas contemporâneos sustentam que, em última instância, qualquer mecanismo de defesa, em que pese sua associação com o ego, pode ser apresentado por qualquer sujeito, dependendo da situação. Conclui-se, assim, que, na base dos processos psicopatológicos, não há o emprego pontual de uma ou outra operação psíquica classificada como imatura ou desadaptativa, mas sim sua adoção compulsiva e descontextualizada, como, inclusive, já apontava a teorização freudiana.

 

Considerações Finais

Ao possibilitar um mapeamento dos mecanismos de defesa empregados por um grupo de pacientes oncológicos recidivados, o presente estudo fornece contribuições iniciais para o preenchimento de uma importante lacuna na literatura científica nacional. Afinal, uma compreensão mais detalhada a respeito de como o retorno do câncer é vivenciado pode auxiliar no aprimoramento da assistência multidisciplinar oferecida àqueles que se deparam com esse acontecimento. Para tanto, contudo, novas pesquisas são imprescindíveis. Com base nos resultados ora reportados, recomenda-se aos pesquisadores interessados em se debruçar sobre o assunto que considerem a possibilidade de recorrer a uma entrevista para a coleta de dados, pois tal instrumento mostrou-se proveitoso frente ao objetivo proposto.

Desenvolvendo essa recomendação e tendo em vista que o presente estudo privilegiou o delineamento transversal, proporcionando, assim, comparações entre um grupo de pacientes oncológicos recidivados em um mesmo momento, parece oportuno sugerir também a utilização da entrevista em estudos com delineamento longitudinal. Tal recomendação parte do princípio de que a coleta de dados em ao menos dois momentos distintos permitirá o acompanhamento de possíveis mudanças ao longo do tempo no que se refere ao funcionamento defensivo dos participantes, o que pode contribuir para refinar a compreensão do funcionamento psíquico dos mesmos. Ademais, é preciso salientar que, na perspectiva de uma abordagem multimodal, a coleta de dados em pesquisas posteriores pode envolver a utilização combinada de entrevistas e testes psicológicos.

Por fim, uma limitação do presente estudo deve ser apontada para que possa ser contornada em pesquisas posteriores. Ocorre que, como se preconiza para o desenvolvimento de pesquisas qualitativas, foi observada, na definição dos participantes, uma homogeneidade fundamental, uma vez que todos eles apresentavam uma característica básica, a saber: encontravam-se em situação de recidiva oncológica. A despeito disso, houve certa heterogeneidade em relação a outras variáveis, tais como o sexo, a faixa etária, o nível de escolaridade e a localização da doença primária. Pesquisas posteriores podem esclarecer se essas variáveis exercem influência significativa no funcionamento defensivo de pacientes oncológicos recidivados.

 

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Endereço para correspondência:
Rodrigo Sanches Peres
Universidade Federal de Uberlândia
Avenida Pará, 1.720, Bloco 2C – Campus Umuarama
CEP 38401-136 – Uberlândia/MG
E-mail: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br

Revisto em 05/11/2012
Revisado em 02/03/2013
Aceito em 13/06/2013

 

 

* Os autores agradecem a inestimável contribuição da Profa. Dra. Anna Claudia Yokoyama dos Anjos à realização do presente estudo.
1 Nenhuma dessas pesquisas, entretanto, teve como participantes pacientes oncológicos.
2 Vale destacar que se agrupam sob a rubrica das técnicas projetivas aqueles testes psicológicos que se caracterizam por permitir ao sujeito ampla liberdade de expressão e exigir um intenso grau de criação e elaboração pessoal por meio da veiculação de estímmulos invariavelmente pouco ou nada estruturados (Chabert, 2004). Por esse motivo, as técnicas projetivas possibilitam a investigação de processos mentais inconscientes, o que, tipica- mente, não ocorre com os testes psicológicos designados como objetivos. Porém, em comparação com estes, as técnicas projetivas possuem procedimentos de aplicação e, principalmente, avaliação mais complexos e trabalhosos.

 

 

Anexo

 

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