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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.7 no.2 Juiz de Fora Dec. 2013

 

SEÇÃO LIVRE
DOI: 10.5327/Z1982-1247201300020015

 

Os Equívocos do Artigo "Os Equívocos e Acertos da Campanha 'Não À Medicalização da Vida'"

 

 

Lygia de Sousa ViégasI, III; Jason GomesII, III; Ariane Rocha Felício de OliveiraI, III

IUniversidade Federal da Bahia (Bahia), Brasil
IIUniversidade Federal de São Paulo (São Paulo), Brasil
IIIFórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade

 

 

 

No mês de outubro de 2013, foi publicado no número 6154, volume 342 da Revista Science, artigo do biólogo e jornalista norte-americano John Bohannon, que desnuda de forma desconcertante a fragilidade de muitas publicações "científicas", valendo-se, para tanto, de um experimento: ele enviou para 304 revistas científicas renomadas espalhadas pelo mundo um artigo escrito com base em... invencionices sem nenhuma sustentação científica. Em palavras mais "científicas":

um trabalho científico falso, baseado em dados falsos, obtidos de experimentos sem validade científica, assinado com nomes falsos de pesquisadores que não existem, associados a universidades que também não existem. (Escobar, 2013, para. 1)

Pois não é que tal artigo foi publicado em 157 Revistas, escandalizando a credibilidade do meio científico na sociedade em geral?

Guardadas as devidas proporções, resgatamos essa experiência para questionar a publicação do artigo "Os equívocos e acertos da campanha 'Não à medicalização da vida'" (Frias & Júlio-Costa, 2013), pois este possui importantes equívocos metodológicos e conceituais, que passaram despercebidos pelo conjunto de revisores e editores desta renomada revista científica voltada para o campo da neuropsicologia.

A importância de se realizar estes esclarecimentos se sobreleva com a leitura do Editorial da Revista, intitulado "Um retrato da neuropsicologia no Brasil" (Pimenta, 2013), no qual a autora explicita que tal artigo compõe o conjunto de 12 trabalhos selecionados entre os 32 textos submetidos para essa edição especial, tendo como critério que esses trabalhos "mostram rumos relevantes das investigações de nossa Neuropsicologia". Ao abordar especificamente o artigo de Frias e Júlio-Costa, a autora do Editorial define-o como "um intrigante questionamento", afirmando ainda que ele

constitui uma análise cuidadosa da concepção do Conselho e uma crítica através do levantamento aprofundado de vários conceitos neuropsicológicos relacionados ao Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). (Pimenta, 2013, p. 1)

No entanto, situamos inúmeros equívocos no artigo, que pedem esclarecimento. Nesse sentido, a finalidade do presente texto é responder assertivamente ao referido artigo, desfazendo tais equívocos, esclarecendo aspectos fundantes do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, bem visando dirimir as confusões criadas. Espera-se, com esta publicação, garantir a seriedade e a ética na produção e na publicação de pesquisas em torno da chamada medicalização da vida, tema da maior importância para ser discutido seriamente, considerando o impacto incisivo que vem produzindo na vida de um número significativo de crianças e adolescentes no Brasil e no mundo. Nosso compromisso, portanto, é com o rigor científico, fundamental para o avanço das ciências e para a melhoria da qualidade de vida da população que sofre dificuldades nos processos de aprendizagem escolar.

 

Primeiras Aproximações com o Debate sobre Medicalização da Educação no Brasil: Aspectos Históricos

Embora tenha ganhado notoriedade nos últimos cinco anos, o debate em torno da medicalização da educação não é recente no Brasil, sendo realizado por profissionais de diversas áreas de atuação, com destaque para a medicina, a pedagogia e a psicologia. Podem-se considerar como publicações históricas sobre o tema: o clássico livro "A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia" (Patto, 1990); o artigo "A história não contada dos distúrbios de aprendizagem" (Moysés & Collares, 1992); e o livro "Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização" (Collares & Moysés, 1996). Tal debate, por sua vez, vem sendo realizado em nível mundial também há décadas, e encontra notoriedade, sobretudo, em dois autores consagrados: Michel Foucault (1977) e Ivan Illich (1982).

Apesar de tal discussão somar mais de três décadas no Brasil, o debate em torno da medicalização da educação foi reaquecido recentemente, pois, à revelia de toda a polêmica em torno da educação medicalizada, no ano de 2007, chegou ao conhecimento de um grupo de psicólogos o projeto de lei (PL) nº 0086/2006), em trâmite na Câmara Municipal de São Paulo, que dispunha sobre a contratação de equipes terceirizadas de especialistas para realizar o diagnóstico e o tratamento da dislexia. Somou-se à preocupação despertada pelo referido projeto de lei o aumento significativo de encaminhamentos de crianças e adolescentes para serviços de saúde por parte de suas escolas, fato desvelado por pesquisas no campo da educação e da saúde (Angelucci & Souza, 2010, p. 7).

Tal situação culminou na organização de um coletivo de profissionais de diversas áreas, que passou a se reunir sistematicamente, a fim de fazer o enfrentamento político e científico do PL. Assim, diversos debates foram organizados sobre o tema, tanto no âmbito da Câmara dos Vereadores como em universidades, ampliando, assim, a compreensão crítica do tema e produzindo efeitos na construção de estratégias que superassem o olhar patologizante para o fracasso escolar no município de São Paulo.

Com base nesses debates e reuniões, o coletivo decidiu organizar um evento internacional pautando o tema. Tal evento, intitulado "A educação medicalizada: dislexia, TDAH e outros supostos transtornos", foi realizado em novembro de 2010, e absolutamente todas as atividades estão disponíveis on-line1. A programação envolveu minicursos, oficinas, simpósios e conferências, além de atividades culturais, contando com a participação de médicos, sociólogos, psicólogos, pedagogos e fonoaudiólogos de diversos estados brasileiros, além de estrangeiros. Destaque deve ser dado ao sociólogo Peter Conrad, consagrado no debate sobre medicalização e desmedicalização da vida, sendo mesmo premiado inúmeras vezes pelas contribuições no estudo dos problemas sociais; e Steven Strauss, neurologista americano que combate de forma contundente a dislexia, também recebendo prêmios pelas suas contribuições sobre o tema.

Ao longo do I Seminário Internacional, houve espaço para a discussão e construção coletiva do "Manifesto do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade" (Fórum, 2010), o qual foi lido publicamente ao final do evento, contando na ocasião com a adesão de 450 participantes e 27 entidades. Vale ressaltar que, estando disponível para adesões on-line, hoje o Manifesto conta com 3.083 assinaturas.

Como última atividade do I Seminário Internacional, foi fundado o Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade,

movimento social que articula entidades, grupos, representantes de movimentos sociais e pessoas físicas para enfrentar conjuntamente os processos de medicalização da vida e da política, mobilizando a sociedade e construindo propostas de atuação que acolham, atendam e protejam aqueles que sofrem esses processos. (Fórum, 2013)

Ainda no âmbito do I Seminário, destacamos que este foi transformado em livro, intitulado "Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos (CRP-SP & GIQE, 2011).

Desde então, o Fórum vem se reunindo sistematicamente, construindo uma forma democrática de organização e trabalhos. Durante os dois primeiros anos, compôs a secretaria executiva do Fórum as seguintes entidades: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP); Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ); Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) e o Gabinete do Vereador Eliseu Gabriel. Desde o início de 2013, a secretaria executiva é composta pelas seguintes instituições: Centro de Saúde-Escola "Samuel Barnsley Pessoa", da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – CSE-FMUSP (Medicina); Sindicato dos Psicólogos de São Paulo – SinPsi (Psicologia); Associação Palavra Criativa (Fonoaudiologia); e Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia – FACED-UFBA (Educação).

Desde sua fundação, o Fórum vem crescendo em representatividade tanto em âmbito nacional quanto internacional. Assim, para além do Fórum Nacional, foram criados núcleos regionais, sempre por iniciativa e engajamento das próprias regiões. Hoje, temos os seguintes núcleos: Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe, Rondônia e Acre. No Paraná, os núcleos Metropolitano de Curitiba, Irati e Maringá; em São Paulo, os núcleos de Assis, Baixada Santista, Campinas, São José do Rio Preto, Sorocaba e Região Metropolitana de São Paulo; em Minas, os núcleos Belo Horizonte, Uberlândia, Leste de Minas e Triângulo Mineiro. Outros núcleos estão em gestação, em diversos estados brasileiros, e todos que desejam consolidar um núcleo contam com nosso apoio (Fórum, 2013).

Ainda para dimensionar a importância do Fórum, criamos um site em 2011 (www.medicalizacao.org.br), o qual possui, desde então, 320 mil acessos, sendo que desde o início de 2013 foram 150 mil acessos (dados extraídos do relatório da locaweb). O Fórum também possui uma página no Facebook, que em menos de dois anos conta com 8.618 seguidores do mundo inteiro.

Vale ainda mencionar os outros dois eventos internacionais organizados, agora tendo o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade como integrante da comissão organizadora. O II Seminário Internacional "A educação medicalizada: novas capturas, antigos diagnósticos na era dos transtornos", realizado em 2011, contou com a participação de médicos, psicólogos, psicanalistas, fonoaudiólogos, pedagogos, gestores públicos e jornalistas de diversos estados brasileiros, além de estrangeiros. Destacamos, nesse segundo evento, a presença do Forum Infancias, da Argentina, que desde então se tornou parceiro de trabalho e militância do nosso Fórum. Também os vídeos deste evento estão integralmente disponíveis on-line2, além de ele ter sido transformado em livro (Collares, Moysés e Ribeiro, 2013).

Finalmente, o III Seminário Internacional "A Educação Medicalizada: reconhecer e acolher as diferenças", foi realizado em 2013, ampliando as parcerias internacionais para os seguintes países: Argentina, Cuba, Estados Unidos, França, Portugal e Espanha. Merece menção a ilustre participação de Joseph Knobel Freud, sobrinho neto do pai da psicanálise. Vale ressaltar que no III Seminário Internacional foi fundado o Movimento Internacional pela Despatologização da Vida, ampliando a internacionalização criada no mesmo ano por ocasião do IV Simposio Internacional sobre Patologización de la Infancia, realizado em Buenos Aires em junho de 2013, sob o nome Forum Latinoamericano sobre Patologización de la Vida, e que conta com a presença de sete países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, México e Uruguai. É certo que, tanto quanto os anteriores, esse evento será também disponibilizado on-line e transformado em livro.

Finalizando o histórico, há de se mencionar que, com base nas pautas propostas pelo Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade, o Conselho Federal de Psicologia (Gestão 2011–2013) assumiu o compromisso de promover uma campanha sobre o tema, a qual foi lançada publicamente em 11 de julho de 2012, durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Intitulada "Não à medicalização da vida", tal campanha produziu materiais que não apenas denunciam a medicalização da vida, mas apontam para formas de superação desse quadro (Conselho, 2012).

Tal histórico, portanto, expõe os primeiros equívocos do artigo de Frias & Júlio-Costa (2013). Explicitemos:

1.  Ao longo do artigo, permanece uma clara confusão entre: (a) a Campanha "Não à medicalização da vida" do Conselho Federal de Psicologia; (b) o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; (c) o Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade; e (d) o Seminário Internacional "A Educação Medicalizada". Chama a atenção, nesse aspecto, que nem mesmo o nome do evento aparece correto no artigo. Assim, o artigo afirma que o Fórum é um evento organizado pelo CRP/SP (p. 3), demonstrando total desconhecimento do histórico apresentado acima, o qual, no entanto, é público e está disponível on-line para interessados, o que deveria ser o caso dos pesquisadores que publicam sobre o tema.

2.  O artigo reduz equivocadamente a organização do Seminário Internacional ao CRP-SP. No entanto, basta uma consulta aos materiais públicos do evento para desfazer esse equívoco. O Seminário, chamado no artigo de Fórum, é um evento organizado pelo Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, sempre contando com um conjunto de instituições parceiras e com financiamento público, denotando, assim, a cientificidade que sustentou cada um dos eventos. Em sua terceira edição, contamos com o apoio de entidades como FAPESP e UNICAMP. A comissão organizadora da terceira edição do evento, por sua vez, foi composta pelas seguintes entidades:
Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar e Educacional da USP, UNIP, Centro de Saúde-Escola "Samuel Barnsley Pessoa" da Faculdade de Medicina da USP, Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, Anhanguera Educacional, Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, Associação Palavra Criativa, Sindicato dos Psicólogos de São Paulo, Grupo Interinstitucional Queixa Escolar. Tal constatação reforça nossa interpretação de que os autores não estudaram a fundo para publicar uma análise do tema, impactando na sua incorreção e superficialidade.

3.  Os autores citam o site (http://medicalizacao.com.br/) como uma referência para ser conferida em relação à liderança do Conselho Federal de Psicologia. No entanto, basta acessar o site, cujo endereço correto é medicalizacao.org.br, para comprovar que a afirmação do artigo é equivocada, já que ele é da responsabilidade do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade.

Tendo desfeito os primeiros equívocos do artigo de Frias e Júlio-Costa (2013), de caráter histórico, cabe desfazer os equívocos metodológicos, focalizando os procedimentos utilizados na construção do referido artigo.

 

Questionamentos Metodológicos ao Artigo de Frias e Júlio-Costa

Considerando que o artigo de Frias e Júlio-Costa (2013) foi publicado em revista científica qualificada, há de se esperar que o mesmo atenda rigorosamente aos critérios científicos na produção e difusão de conhecimento. Tal expectativa aumenta, sobretudo, com a leitura do editorial, que, conforme apresentado anteriormente, aposta que o artigo "constitui uma análise cuidadosa", feita por meio de "levantamento aprofundado" (Pimenta, 2013, p. 1). No entanto, a leitura cuidadosa do artigo desvela que a análise não foi cuidadosa, tampouco calcada em levantamento aprofundado, no caso específico das leituras relativas à crítica da medicalização.

É patente que, se os autores referenciam livros e artigos para defender as patologias criticadas pelo Fórum e pela Campanha do CFP, eles não citam um único livro, capítulo de livro ou artigo publicado em periódicos científicos para situar e analisar o posicionamento crítico em relação às mesmas patologias que, segundo defende o Fórum, constituem o fenômeno da Medicalização. Ao contrário, o artigo focaliza apenas folhetos produzidos para ampliar a popularização do debate no meio social. Nesse sentido, a análise fica claramente desigual, aspecto que não pode ser considerado como característica de rigor científico.

Ora, sendo um movimento social, compõem os objetivos do Fórum, declarados desde nosso Manifesto: ampliar a democratização do debate; estabelecer mecanismos de interlocução com a sociedade civil; popularizar o debate, sem perder o rigor científico; pluralizar os meios de divulgação, incluindo sites, redes sociais, outros meios de comunicação e manifestações artísticas em geral (Fórum, 2010).

Por esse motivo, desde sua fundação, o Fórum tem produzido folhetos, valendo-se de gêneros discursivos absolutamente diferentes do acadêmico, com a finalidade de circular tal material nas redes sociais e na internet, para a popularização do debate, sem perder o rigor científico. Isso significa que cada um desses folhetos se origina de discussões profundas, por vezes produzidas pelos mesmos autores de artigos e capítulos de livros científicos e acadêmicos. Há de se ressaltar o esforço que a produção de tais panfletos envolve, considerando o hábito de seus autores em ter como interlocutores seus pares acadêmicos, e a necessidade de se tornar a linguagem mais acessível, sem, com isso, simplificar as ideias contidas em cada um desses materiais.

Entre os panfletos criticados no artigo de Frias e Júlio-Costa (2013), duas referências usadas nos chamam a atenção, ambas de autores pertencentes ao Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade.

Uma delas é o folheto do antropólogo Rui Massato Harayama (cujo nome veio escrito errado!), intitulado "O que é ciência, afinal?" (Harayama, 2012), no qual o autor discorre sobre os discursos científico e religioso. Há uma vasta literatura científica na qual o antropólogo se baseou para a escrita do folheto, e referenciada ao final dele, aspecto, no entanto, não apresentado por Frias e Júlio-Costa em seu artigo.

Podemos, nesse âmbito, e para não nos prolongarmos no importantíssimo debate no campo das ciências humanas e sociais e seu papel na justificação das desigualdades sociais, voltar-nos à renomada filósofa brasileira Marilena Chaui (1997), que, ao analisar o discurso ideológico presente em muitas produções ditas científicas, afirma de maneira contundente, e subvertendo a máxima marxista segundo a qual a religião é ópio do povo: "a racionalidade é o novo nome da providência divina. Talvez tenha chegado a hora da heresia: a ciência é o ópio do povo" (Chaui, 1997, p. 83).

O segundo folheto apresentado por Frias e Júlio-Costa foi publicado no site Aprendiz, com o nome "Carta a uma mãe", tendo autoria da médica pediatra e professora Titular da UNICAMP Maria Aparecida Affonso Moysés (2011). Novamente, chama a atenção que os autores optaram por citar um folheto, negligenciando o fato de que ele é de autoria de uma renomada médica brasileira, autora de diversos artigos científicos, livros e capítulos de livros, tanto nacionais quanto internacionais, tendo mesmo sido indicada ao Prêmio Jabuti pela publicação do livro A institucionalização invisível: crianças que-não-aprendem-na-escola (2001).

Seria dispensável frisar que no site do Fórum, aparentemente consultado pelos autores, há inúmeras indicações de leituras científicas, publicadas em periódicos nacionais e internacionais, que poderiam contribuir significativamente para uma discussão rigorosa das diferentes vertentes em relação à medicalização da vida. Além disso, qualquer levantamento bibliográfico em sistemas como o SciELO ou as bases de dados de teses e dissertações, tarefa básica em pesquisas científicas sérias, aponta para um conjunto de publicações que analisam a medicalização da vida de forma aprofundada. Sem contar os livros nacionais sobre o tema já citados na primeira parte deste texto, afora os livros em língua estrangeira.

Nesse sentido, fica patente que o artigo de Frias e Júlio-Costa, embora objetive realizar a crítica da crítica à medicalização da vida, assume essa tarefa sem assumir o compromisso sério e responsável que ela envolve, recaindo notoriamente na falta de rigor científico, ao contrapor duas visões antagônicas sobre o tema, mas apresentar com mais preciosismo a visão defendida do que a criticada.

Nesse sentido, ficam ao Fórum as perguntas que partilhamos com os editores da Revista e agora com o conjunto de leitores: qual a motivação dos autores para submeter um artigo construído com base em tantas confusões e escolhas viciadas para realizar a discussão de tema tão sério e complexo? Com base em que critérios foram selecionados os pareceristas para avaliar esse artigo? Com base em que critérios os pareceristas o aprovaram?

 

Medicalização e Ideologia

Finalmente, é possível analisar os equívocos conceituais do artigo de Frias e Júlio-Costa (2013), o que faremos, inicialmente, à luz de aspectos gerais em torno do fenômeno medicalização, para então analisar suas especificidades na vida escolar.

Frias e Júlio-Costa (2013) reconhecem a grande controvérsia em relação aos diagnósticos dos chamados transtornos da aprendizagem. Defendem, então, que há duas posições distintas, lideradas de um lado pela Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA), em conjunto com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e com a Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp), e de outro pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). De fato, é inegável que existem duas vertentes absolutamente divergentes em relação ao debate em torno dos transtornos de aprendizagem. No entanto, não é correto afirmar que são lideradas por entidades, já que as organizações, movimentos sociais, instituições profissionais e acadêmicas possuem independência e autonomia na condução de suas discussões.

Qualquer pesquisa bibliográfica séria desvela que o debate em torno da medicalização da educação é amplo e diversas questões circundam o fenômeno. Segundo Moysés e Collares (2010, pp. 71-72), medicalização é a "transformação de questões coletivas, de ordem social e política, em questões individuais, biológicas". Sua face mais sombria é tornar as diferenças ou a desigualdade em doenças, caracterizando a patologização da vida. É certo que a medicalização isenta as instâncias de poder de suas responsabilidades, embora trate de problemas gerados e perpetuados em suas entranhas.

Nesse ponto, cabe questionar duas afirmações de Frias e Júlio-Costa (2013), sendo a primeira a de que a medicalização envolve um "erro técnico" (p. 4). Não se trata de uma questão técnica, já que as técnicas não são neutras, mas informadas por visões de mundo, de ciência, e, nesse caso específico, de processos de aprendizagem e desenvolvimento humano. O debate teórico em torno desses temas é extremamente complexo e aponta para uma diversidade de perspectivas. No entanto, quando entramos no campo da saúde-doença, e mais especificamente das doenças neurológicas, é certo que elas não podem ser fundamentadas de forma relativista. Doença neurológica é doença neurológica, não podendo variar em termos de interpretação. Se há variação interpretativa, é porque não há consenso em torno do tema. O que é o caso do TDAH e da dislexia, como veremos mais adiante.

Antes, no entanto, cabe o questionamento em torno da segunda afirmação, qual seja, que o "erro técnico" seria proposital, sendo "estratégia política de manipulação da opinião pública". Tal afirmação nos conduz à discussão acerca dos aspectos ideológicos envolvidos na medicalização da vida, debate marxista que aqui mui resumiremos por meio das contribuições de Chaui (1980; 1997) e Žižek (1996).

Segundo Chaui, ideologia é "um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais" (1980, p. 115). Trata-se, portanto, de ideias que contribuem para a crença de que os homens são desiguais por natureza ou mesmo por desejo próprio, pois a vida social oferece oportunidades iguais a todos.

Uma característica fundamental do discurso ideológico é o fato de ele ser construído "sob o modo da afirmação, da determinação, da generalização e da redução das diferenças, da exterioridade face ao objeto [...], trazendo a garantia da existência de uma ordem, atual ou virtual". Daí se apresentar como neutro, "a fim de testemunhar uma verdade que estaria inscrita nas próprias coisas" (Chaui, 1997, p. 33). Assim, ao mesmo tempo em que se constrói de maneira afirmativa, é essencialmente um discurso com temas silenciados e mesmo com contradições internas. Diz Chaui:

O discurso ideológico é um discurso feito de espaços em branco, como uma frase na qual houvesse lacunas. A coerência desse discurso [...] não é uma coerência nem um poder obtidos malgrado as lacunas, malgrado os espaços em branco, malgrado o que fica oculto; ao contrário, é graças aos brancos, graças às lacunas entre suas partes, que esse discurso se apresenta como coerente. [...] O discurso ideológico se sustenta, justamente, porque não pode dizer até o fim aquilo que pretende dizer. Se o disser, se preencher todas as lacunas, ele se autodestrói como ideologia. (1997, p. 21-22, itálicos da autora)

Finalmente, destaca que a ideologia é um fenômeno involuntário e inconsciente, ou seja, o pensamento ideológico se supõe verdadeiro, como se nada devesse à sua pertença histórica. Em outras palavras, "as ideias universais da ideologia não são uma invenção arbitrária ou diabólica" (Chaui, 1997, p. 100).

Žižek (1996), por outro lado, reconhece que transformações históricas, advindas, sobretudo, da experiência nazifascista, implicaram a necessidade de se rever o conceito de ideologia, já que "é muito fácil mentir sob o disfarce da verdade" (p. 14). Assim, para esse pensador contemporâneo, o cinismo é o modo mais destacado da ideologia na atualidade, afirmando: "a fórmula do cinismo já não é o clássico enunciado marxista do 'eles não sabem, mas é o que estão fazendo'; agora, é 'eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo'" (p. 14). Diz ele:

O próprio conceito de ideologia implica uma espécie de ingenuidade constitutiva básica: o desconhecimento dos seus pressupostos, de suas condições efetivas, a distância, a divergência entre a chamada realidade social e nossa representação distorcida, nossa falsa consciência dela. É por isso que tal "consciência ingênua" pode ser submetida a um processo crítico-ideológico. A meta desse processo é levar a consciência ideológica ingênua a um ponto em que ela possa reconhecer suas próprias condições efetivas, a realidade social que ela distorce e, mediante esse ato mesmo, dissolver-se. (Žižek, 1996, p. 312)

Ora, se o modo dominante da ideologia é cínico, o clássico método crítico de confrontar o texto ideológico com suas lacunas, com o que ele tem de reprimir para se organizar, para preservar sua coerência, torna-se impossível ou inútil.

Voltando para o campo da medicalização, podemos afirmar que se trata de um fenômeno ligado à ideologia, já que envolve a redução da complexidade humana a características individuais ou biológicas, ou seja, a sua tradução em termos de doenças, sobretudo quando se fala em doenças neurobiológicas que, no entanto, não têm comprovação científica na própria medicina. Nesse sentido, questionamos a expressão "medicalização equivocada" utilizada por Frias e Júlio-Costa (2013, p. 4), a qual dá a entender que haveria uma medicalização que não seria equivocada. À luz do conceito consagrado em torno da medicalização, fica claro que ela é, em si, uma interpretação equivocada das diferenças.

Finalmente, questionamos decisivamente a suposição de que todos que defendem o modo medicalizado de compreender os processos de aprendizagem e desenvolvimento o façam propositadamente, embora não descartemos a existência de pessoas mal-intencionadas nesse contexto. Saber separar esses dois conjuntos é fundamental, pois obviamente a estratégia de enfrentamento de seus discursos e práticas não é a mesma. Se os que aderem à ideologia devem ter suas ideias confrontadas de forma consistente, essa estratégia é absolutamente ineficaz no caso daqueles que não agem por ideologia, mas movidos pelo que Žižek chama de cinismo.

 

A Medicalização Comparece à Escola

Finalmente, é possível adentrar especificamente na temática da medicalização da vida escolar, cuja gravidade deu origem à fundação do Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade e à organização da Campanha do Conselho Federal de Psicologia, esta última foco do artigo de Frias e Júlio-Costa (2013).

No contexto específico da vida escolar, a medicalização envolve a invenção de doenças que, embora estejam popularizadas, são frágeis em termos de racionalidade médica, pois não há comprovação científica de que sejam problemas orgânicos. São supostas doenças que atingem tanto professores quanto alunos, reduzidos a corpos biológicos disfuncionais, o que afronta a notória piora da qualidade da escola oferecida.

Focalizando especificamente os alunos, é certo que sobram problemas no uso da língua escrita, bem como comportamentos indisciplinados. Nesse contexto, tem sido reforçada a ideia de que tais problemas são decorrência de doenças neurológicas de origem genética: a dislexia e a hiperatividade. Sem comprovação científica, estamos diante de "doenças da moda", que silenciam sobre a complexidade envolvida no processo de desenvolvimento e aprendizagem, e sua inter-relação com a escolarização.

Analisando especificamente o TDAH, destacamos que embora ele seja definido como "um transtorno neurobiológico, de causas genéticas" (Associação Brasileira de Défict de Atenção, O que é o TDAH?, para. 1) pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção, diversos autores que sustentam essa afirmação reconhecem que ainda não há comprovação inequívoca para ela. É o caso, por exemplo, de Rohde3 e Halpern (2004), que afirmam: "Apesar da importância das funções dos dois sistemas atencionais na neurobiologia do TDAH, ainda são muito escassas as demonstrações diretas das suas relações recíprocas no transtorno" (p. 64).

Tal reconhecimento também comparece em Frias e Júlio-Costa, embora de maneira relativizada, quando os autores afirmam (Frias & Júlio-Costa, 2013, p. 9, destaques nossos):

Na verdade, o que se encontra pontualmente na literatura não são questionamentos sobre a existência do TDAH, mas sim a necessidade de melhorar os critérios diagnósticos (Beljan, Reuter, Ganas & Hoover, 2012), de identificar biomarcadores (Beljan et al., 2012) e de utilizar racionalmente a medicação (Valdizán-Usón et al., 2013), verificando seus efeitos a curto e longo prazos (Pastura & Mattos, 2004) e a necessidade de uma abordagem biopsicossocial no que se refere ao TDAH. (Richards, 2012)

Mas consideramos uma fonte inequívoca da polêmica em torno do tema a própria bula do medicamento mais recomendado para o tratamento do TDAH, a qual afirma, literalmente, que "A etiologia específica dessa síndrome é desconhecida e não há teste diagnóstico específico" (Ritalina, Indicações da Ritalina, para. 2). E ainda que "Os sinais neurológicos não-localizáveis (fracos), a deficiência de aprendizado e EEG anormal podem ou não estar presentes e um diagnóstico de disfunção do sistema nervoso central pode ou não ser assegurado"(Ritalina, Indicações da Ritalina, para. 1).

O mesmo pode ser dito em relação à dislexia: não há consenso de que erros na escrita sejam sinais de uma doença neurológica (Guarinello et al., 2006; Rubino, 2010; Massi & Santana, 2011). Segundo Massi (2007), as questões próprias do processo de aquisição da escrita são equivocadamente transformadas em sintomas de um quadro nosológico chamado dislexia. O que no processo de medicalização é tomado como sintoma patológico, para Massi, Berberian e Carvalho (2012) são sinais da ação do sujeito na construção de conhecimento e refletem não uma doença, mas suas estratégias e hipóteses estabelecidas no decorrer do processo de alfabetização.

Nesse sentido, diferentemente do que afirmam Frias e Júlio-Costa (2013), não é consensual que "deve haver uma busca de diagnósticos bem realizados", mas, posto que ainda não há os "critérios científicos bem estabelecidos e transparentes", que tornassem não apenas o diagnóstico mas a própria categoria nosológica inequívocos.

Sintetizam de forma profunda, por meio do recurso à história dessas duas supostas doenças, o capítulo da pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés e da pedagoga Cecília Collares intitulado "Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica" (2010). Para uma crítica específica do TDAH, recomendamos o livro organizado pelo neurologista argentino León Benasayag intitulado "ADDH. Niños con déficit de atención e hiperactividad: uma patología de mercado?" (2011). No âmbito da dislexia, recomendamos o livro da fonoaudióloga Giselle Massi, intitulado "A dislexia em questão" (2007) e o livro do neurologista americano Steven Strauss, intitulado "The linguistics, neurology, and politics of phonics" (2005).

Nesse ponto, há de se questionar a comparação temerária feita no artigo de Frias e Júlio-Costa (2013) entre os transtornos que questionamos e algumas doenças comprovadas por meio de exames físicos. Deficiência auditiva, hipertensão, diabetes, entre outras, são condições físicas, biológicas do ser humano; existem exames que conseguem apontá-las claramente. O mesmo não acontece com os supostos transtornos de aprendizagem, pois para a constatação deles há apenas suposições a serem comprovadas, mesmo que apoiadas em exames de imagens com modernos equipamentos.

Nesse sentido, o que o Fórum propõe é uma discussão bem fundamentada acerca da fragilidade em torno de tais supostos transtornos, não apenas em relação a como são feitos seus diagnósticos e sugeridos os tratamentos, mas substancialmente à etiologia mesma desses transtornos. Nosso objetivo, portanto, é apontar que o que é posto como verdade inquestionável é, em realidade, um grande campo para discussão, uma vez que envolve aspectos políticos, sociais, ideológicos e culturais.

Sustenta a urgência desse debate o reconhecimento de que tem se tornado cada vez mais comum, no cenário escolar, crianças e adolescentes serem diagnosticados, a despeito da enorme polêmica em torno do tema. Para Frias e Júlio-Costa, tal aumento "pode simplesmente refletir o aumento ao acesso a diagnóstico e tratamento de um problema que realmente estava prejudicando os usuários" (p. 8), chegando mesmo a afirmar que ainda há muitas outras crianças a serem diagnosticadas e tratadas. Discordamos veementemente dessas afirmações, apostando, com Welch, Schwartz & Woloshin (2007), que os exageros em torno da medicalização da vida produziram uma verdadeira epidemia de diagnósticos e tratamentos.

Finalmente, não poderíamos deixar de questionar as afirmações de Frias e Júlio-Costa (2013) que questionam as críticas em torno da estigmatização das crianças e adolescentes diagnosticados no contexto escolar. Segundo eles, "O que a campanha trata como estigmatizante pode ter um efeito exatamente inverso, ou seja, o diagnóstico auxilia na reconstrução do self do indivíduo com o transtorno" (p. 8). Ou ainda:

Não se trata de rotular ou reduzir, mas sim de expandir as possibilidades de desenvolvimento, uma vez que o diagnóstico favorece o planejamento de intervenções. Neste sentido, é função do profissional (seja ele médico, psicólogo, fonoaudiólogo etc.) fazer um aconselhamento psicológico, expondo para a família e para a criança não apenas os déficits, mas também as potencialidades do paciente, a fim auxiliar no direcionamento da sua aprendizagem e da sua rotina. (Frias & Júlio-Costa, 2013, p. 8, destaque nosso).

É com base nessa argumentação que defendem que o "diagnóstico precoce" é "necessário", pois permite "o tratamento adequado por meio de reabilitação cognitiva, intervenções escolares e apoio aos pacientes e seus familiares", reduzindo suas "limitações", melhorando a "qualidade de vida dele e de sua família", e permitindo sua "inclusão social" (Frias & Júlio-Costa, 2013, p. 9).

Para nós seria suficiente apontar a contradição de tais afirmações pelo simples fato de que a criança ou adolescente, que na escola devem ser vistos e tratados como alunos, são chamados pela alcunha de "paciente", estigma de doente que certamente os acompanha e acompanhará na vida escolar. Sobram referências de pesquisas no campo da educação que denunciam o quanto o diagnóstico caminha na contramão da inclusão escolar, uma vez que serve muito mais para marcar a criança diferente do que a tratar como igual. Merece menção o livro já citado de Maria Aparecida Moysés, A institucionalização invisível: crianças que não-aprendem-na-escola (2001), cuja relevância para a educação rendeu a indicação ao prêmio Jabuti.

Concluímos, pois, que construir uma percepção de si mesmo como portador de transtorno é construir uma percepção de si marcada pelo rótulo. Deixa de ser uma criança e passa a ser um hiperativo, ou desatento; ou disléxico... A partir de então, seus aprendizados e atitudes deixam de ser vistos por si e pelos que entornam como "normais". E não seria isso um estigma?

 

Medicalização e a Indústria Farmacêutica

Outro aspecto questionável no artigo de Frias e Júlio-Costa (2013) envolve a defesa do uso do tratamento medicamentoso para o TDAH. Segundo afirmam, de maneira embasada, "não há como negar que qualquer medicamento possua efeitos colaterais, de maneira que seu uso indiscriminado pode ser letal, em especial para crianças e idosos". No entanto, prosseguem afirmando, novamente com base em autores, que "antes de um medicamento ser disponibilizado no mercado para os consumidores, existem fases de testagem (farmacovigilância) que asseguram sua eficácia e efeitos em longo prazo", bem como que "o metilfenidato é considerado uma das medicações mais eficazes na área da Psiquiatria" (p. 9).

Curiosamente, não é o que lemos na própria bula da Ritalina, metilfenidato, na qual encontramos que o medicamento é "um estimulante do sistema nervoso central" (Ritalina, Ritalina, para. 1). Seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado, mas presumivelmente ele exerce seu efeito estimulante ativando o sistema de excitação do tronco cerebral e o córtex. O mecanismo pelo qual ele produz seus efeitos psíquicos e comportamentais em crianças "não está claramente estabelecido, nem há evidência conclusiva que demonstre como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso central." (Ritalina, Farmacodinâmica, para. 1)

Na bula, ainda encontramos a afirmação categórica de que o remédio "não deve ser utilizado em crianças com menos de seis anos de idade, uma vez que a segurança e a eficácia nesse grupo etário não foram estabelecidas" (Ritalina, Advertências da Ritalina, para. 1). Além disso, afirma que

embora não tenha sido ainda confirmada uma relação causal, tem sido relatada (sic) uma moderada redução no ganho de peso e um ligeiro retardo no crescimento com o uso prolongado de estimulantes em crianças. Isso é normalmente acompanhado por uma retomada do crescimento quando o medicamento é descontinuado. (Ritalina, Precauções da Ritalina, para. 1, destaques e acréscimo nossos)

A lista de reações adversas é grande e envolve todo o organismo. Chama atenção a estratégia recomendada na bula para "minimizar tais complicações": "períodos sem o medicamento, especialmente durante os finais de semana e nas férias escolares" (Ritalina, Precauções da Ritalina, para. 1, destaques nossos). Por fim, a bula deixa claro, em letras garrafais, que o medicamento "PODE CAUSAR DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA" (Ritalina, Superdosagem da Ritalina, para. 3).

Assim, chamamos a atenção para uma reflexão que consideramos fundamental: por que está sendo comercializado um medicamento antes mesmo de comprovações técnicas básicas serem elucidadas?

Finalizando esta parte, reiteramos nossa plena discordância em torno da afirmação de que "no Brasil, apenas os mais ricos têm acesso a esses serviços. A falta de reconhecimento oficial impede a ajuda a essas crianças duplamente prejudicadas, pelo transtorno e pela falta de tratamento" (Frias & Júlio-Costa, 2013, p. 9).

Tal discordância apoia-se nas pesquisas que denunciam o aumento de projetos de lei que visam inserir programas de diagnóstico e tratamento de crianças e adolescentes em idade escolar na rede pública de ensino. Embora mascarados de direito, sabemos que tais projetos nascem da negação, aí sim, de um direito fundamental: o direito à escolarização de qualidade (Souza e Oliveira, 2013). Mas também encontra sustentação no belo artigo da jornalista Eliane Brum, intitulado "O doping dos pobres" (2013), que, ao denunciar a ampliação do consumo de medicamentos psiquiátricos entre os pobres no Brasil, questiona:

Não há nada mais doentio e aniquilador do que o sentimento de impotência.
E, quando a questão é esta, tomar remédios como se sua dor não fosse legítima, não tivesse causas reais que precisam ser escutadas e transformadas, é acentuar o abismo da impotência. É o contrário de saúde. (Brum, 2013, p. 45)

Mas para que não restem dúvidas quanto à pertinência de nossa preocupação, o tema povoou recentemente o site da própria Associação Brasileira de Psiquiatria, com a publicação, em fevereiro de 2013, do texto "Cresce uso abusivo de metilfenidato".

Criticar a medicalização implica promover novas formas de cuidado.

Um último equívoco do artigo de Frias e Júlio-Costa (2013) merece ser criticado: a suposição de que, ao criticarmos a medicalização da vida, seriamos contrários ao acolhimento das pessoas que sofrem esses processos.

Basta uma pesquisa séria nas produções do Fórum para desvelar que temos não apenas aprofundado a crítica contundente dos processos de medicalização da vida em todas as suas esferas, mas também apresentado propostas concretas de acolhimento das diferenças e cuidado das pessoas que sofrem esses processos, baseadas em concepções de ser humano e de sociedade que rompem com a lógica patologizante, o que reporta à dimensão teórico-metodológica.

Merece destaque o Grupo de Trabalho Educação & Saúde, composto por pesquisadores e profissionais com experiência no acolhimento de crianças e adolescentes que sofrem com o processo de medicalização. Caracterizando-se por ser interdisciplinar, multiprofissional e multicêntrico4, o detido trabalho do GT resultou na elaboração de um rico documento, intitulado "Recomendações de práticas não medicalizantes para profissionais e serviços de saúde e educação", uma de nossas produções coletivas mais relevantes (Fórum, 2012).

Tal documento está integralmente disponível no site do Fórum, tendo tido 4.809 acessos desde sua publicação em 2012. Além disso, em 2013 foi publicada sua versão impressa, contando com o financiamento da Faculdade de Educação da USP e do Centro de Saúde-Escola "Samuel Barnsley Pessoa" da Faculdade de Medicina da USP. Assim, o Fórum conseguiu garantir uma tiragem de mil exemplares, todos para distribuição gratuita.

O pioneirismo e relevância desse importante instrumental teórico-prático representam um passo significativo no enfrentamento da patologização de crianças e adolescentes com dificuldades escolares. Apostamos que esse não é um passo qualquer. É um passo fundamental, pois abre uma nova trilha, que agora pode ser percorrida e ampliada por outros profissionais, dando continuidade à consolidação de caminhos outros que possam de fato acolher e enfrentar as dificuldades, mas apoiados no respeito às diferenças. Sem concebê-las como doença.

 

Referências

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1      http://medicalizacao.org.br/videos/
2      Cf. nota 1
3      Vale ressaltar que o próprio Rohde declara ser conferencista ou consultor das seguintes companhias farmacêuticas: Bristol-Myers Squibb, Eli-Lilly, Janssen-Cilag e Novartis, situação que caracteriza conflito de interesses.
4      Compuseram o GT: profissionais de antropologia, fonoaudiologia, medicina, pedagogia e psicologia, das seguintes instituições, todas renomadas: Associação Palavra Criativa/IFONO, Centro de Saúde Escola "Samuel Barnsley Pessoa" da Faculdade de Medicina da USP, Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UNICAMP, Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Psicologia da UNESP Campus Assis, Grupo Interinstitucional Queixa Escolar, Instituto Sedes Sapientiae, Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisa em Psicologia Escolar e Educacional, Rede Humaniza-SUS, Serviço de Psicologia do Hospital do Servidor Público Municipal e União de Mulheres do Município de São Paulo.