SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número2Vygotsky e Moscovici sobre a Constituição do Sujeito índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.8 no.2 Juiz de Fora dez. 2014

http://dx.doi.org/10.5327/Z1982-1247201400020014 

RESENHA
DOI: 10.5327/Z1982-1247201400020014

 

Psicologia, Criança e Família na Argentina do Século 20

 

 

Bruna Rocha de Almeida

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (Juiz de Fora), Brasil

 

 

Psicología, niño y familia en la Argentina 1900-1970: Perspectivas históricas y cruces disciplinares. Luciano N. García, Florencia A. Macchioli, Ana María Talak. Buenos Aires, BA: Biblos, 2014, 218p.

O século passado foi palco de mudanças políticas e sociais que geraram crises e inconstâncias em vários locais do mundo. Em paralelo, a ciência, incluindo a Psicologia, também passou por mudanças, pela construção de novos conhecimentos e pela ascensão de novos temas de interesse. Nesse sentido, com o objetivo de apresentar uma forma de compreender a diversidade da Psicologia, a partir de uma perspectiva histórica, os autores do livro Psicología, niño y familia en la Argentina 1900-1970: Perspectivas históricas y cruces disciplinares apresentam reflexões que estabelecem entrelaçamentos entre a dimensão epistemológica e as condições históricas, culturais, sociais, políticas e institucionais, nas quais o conhecimento relacionado à disciplina psi é produzido na Argentina, no século 20.

As investigações apresentadas nos capítulos da obra foram realizadas a partir da denominada ‘história intelectual' que, de acordo com os autores do livro, enfatiza a análise dos entrelaçamentos e das zonas de tradução e transformação dos saberes. Pressupondo-se que diversos saberes e práticas surgem, se estabelecem e se dissolvem durante um certo período, o interesse central da investigação estaria baseado no rastreio de debates, conflitos, alterações e mudanças de sentido nas formas de pensamento, bem como na história dos intelectuais como geradores de saber. Partindo do marco da ‘história intelectual', as investigações foram realizadas com base nos ‘estudos de recepção', enfoque que considera as disparidades e as especificidades dos contextos nos quais o conhecimento é produzido e recebido, além de privilegiar as histórias e a produção de conhecimento local em detrimento dos enfoques historiográficos que se centram na produção de autores canônicos.

Sobre a estrutura do livro, este se divide em quatro partes: Introdução, que apresenta o objetivo central da obra, os aspectos teórico-metodológicos da sua construção e uma descrição dos capítulos subsequentes; e três capítulos, cada um escrito por um dos autores do livro. O primeiro capítulo foi escrito por Ana María Talak que tem formação em ­Psicologia, ­Filosofia e História e realiza estudos focados na ­história da Psicologia, na historiografia e nas teorias e problemas epistemológicos da Psicologia. Luciano Nicolás Garcia é responsável pelo segundo capítulo. O autor tem formação em Psicologia e História e suas pesquisas se centram no cruzamento entre a história e a filosofia da ciência, em especial da Psicologia e disciplinas conexas, bem como a cultura de esquerda argentina e internacional. Já o terceiro capítulo foi elaborado por Florencia Adriana Macchioli. Com formação em Medicina e Psicoterapia Familiar, a autora se dedica ao estudo do entrecruzamento entre história dos saberes e práticas, ciências sociais, disciplinas psi, família e sociedade na Argentina e a nível internacional. A seguir, serão expostos os principais aspectos apresentados em cada seção da obra.

O primeiro capítulo, intitulado El desarrollo psicológico entre la naturaleza, la cultura y la política (1900-1920), apresenta uma reflexão crítica da Psicologia do desenvolvimento, praticada enquanto disciplina acadêmica na Argentina nas primeiras décadas do século 20. Ressalta-se que, em tal período, ainda não existia uma psicologia profissional autônoma e os saberes psicológicos eram implementados por profissionais de diferentes campos, como educação, direito e medicina. Desse modo, a seção se dedica à reflexão sobre os enlaces da Psicologia com outros campos disciplinares e práticos, como a educação, a criminologia e a clínica médica, bem como os cruzamentos entre os saberes psicológicos e os discursos políticos e sociais dominantes à época.

Influenciados principalmente pelas tradições europeias e norte-americanas, os estudiosos da ­Psicologia do Desenvolvimento na Argentina se baseavam na psicologia naturalista e evolucionista. Assim, os estudos (por exemplo, sobre delinquência infantil e indisciplina escolar) eram realizados utilizando métodos e técnicas empiristas, que privilegiavam medições quantitativas e observação do comportamento, excluindo aspectos da subjetividade das crianças e adolescentes pesquisados e desconsiderando as dimensões estruturais, sociais, políticas e econômicas, o que resultava em uma orientação individualista, descontextualizada e determinista do problema em investigação.

O segundo capítulo, intitulado La civilización de la psiquis: Ciencia y psicología en el pensamiento de Aníbal Ponce, tem por objetivo apresentar a obra de Ponce, enfatizando como as suas filiações políticas impactaram a sua agenda de pesquisa, demonstrando a confluência entre saberes políticos e psicológicos. São apresentadas as mudanças que ocorreram nas ideias de Ponce ao longo do tempo, articulando-as às influências de autores vinculados à Psicologia e aos acontecimentos políticos e sociais daquele período.

Sua análise permite vislumbrar diferentes fases da produção científica de Ponce:

(1)   o estudo sobre psicopatologias, influenciado pelos trabalhos de Ingenieros e baseado em ideias liberais positivistas;

(2)   a investigação do problema da constituição normal da mente humana, com foco no desenvolvimento infantil, a partir da influência de Jean Piaget;

(3)   a pesquisa sobre a adolescência e os processos de socialização ligados a ela, orientada pelas ideias de Alfred Adler;

(4)   a diminuição e posterior interrupção de produção em Psicologia e a mudança nos critérios epistêmicos e políticos com os quais avaliava os trabalhos da Psicologia, educação e ciência de um modo geral, bem como na sua visão sobre a instituição escola e a ideia do que seria uma civilização ideal e a barbárie. Nesse momento, os trabalhos de Ponce, baseados no materialismo dialético histórico, propunham uma verdadeira revisão do pensamento intelectual ocidental. Em 1936, Ponce se exilou no México, local onde faleceu.

O terceiro capítulo, intitulado La familia entre la neurosis y la comunicación, é o mais denso do livro. Nele, a autora se propôs a realizar reflexões histórico-críticas acerca da psicanálise, do estruturalismo e da teoria sistêmica, problematizando a constituição da especialidade da terapia de família na Argentina. Para tanto, teve como base os trabalhos de Carlos Sluzki e Eliseo Verón, entre 1960 e 1970.

Esta seção se divide em quatro partes, nas quais a autora apresenta, principalmente:

(1)   a conjuntura política, social e intelectual argentina, entre 1960 e 1970, focalizando o Serviço de Psicopatologia da Policlínica Lanús;

(2)   a implantação do estruturalismo francês e da teoria da comunicação humana norte-americana, por meio da descrição das trajetórias de Verón e Sluzki, respectivamente;

(3)   a articulação entre neurose e comunicação, proposta pelos teóricos em questão;

(4)   as investigações de Verón e Sluzki entre 1963 e 1970, que culminaram no livro Comunicación y neurosis, no qual é defendida a hipótese de que os transtornos psiquiátricos, em específico as neuroses, estariam etiologicamente vinculados à comunicação aprendida durante o processo de socialização no ambiente familiar que, por sua vez, é influenciado pela classe social da família. Assim, foram desenvolvidas investigações em três níveis: indivíduo, família e sociedade, enfatizando a família como objeto de intervenção para uma mudança social.

Observa-se que a obra apresenta três capítulos aparentemente independentes, mas que, juntos, refletem sobre a história da construção do conhecimento psicológico na Argentina. Além disso, apesar das diferenças em seus conteúdos, os capítulos ­tratam de um tópico comum e recorrente nas investigações sobre o ser humano, qual seja a sua ­constituição enquanto indivíduo e o processo de socialização. Perpassando, pois, por temas do desenvolvimento humano, o livro ilustra como a Psicologia argentina produziu conhecimento sobre a criança, a educação e a família no século 20.

Uma das semelhanças entre os capítulos é o fato de apresentarem a conjuntura política, social e intelectual da época como uma forma de compreensão das alianças e dos cruzamentos intelectuais realizados pelos teóricos argentinos. Essa semelhança, já apresentada na introdução do livro como decorrência da metodologia utilizada pelos autores em suas investigações, se mostra como uma característica interessante, uma vez que permite melhor compreender a influência do momento histórico na produção acadêmica.

Outro ponto a ser destacado é a diferença na forma de abordar o desenvolvimento humano nos trabalhos do início e final do século 20: de uma visão determinista e linear apresentada nos estudos do primeiro capítulo, a uma tendência, nas investigações apresentadas no terceiro, em considerar o desenvolvimento sob uma ótica um pouco mais pluralista e integradora. Destaca-se que, atualmente, observa-se a tendência da Psicologia em compreender o desenvolvimento humano como estando relacionado aos aspectos sociais, culturais, políticos e biológicos. Nesse sentido, o desenvolvimento é concebido como um processo complexo, dinâmico e multifatorial (Aspesi, Dessen, & Chagas, 2005).

Por fim, a leitura do livro é de fundamental relevância para os estudiosos da Psicologia, em especial do desenvolvimento humano. Compreender as bases históricas do conhecimento se mostra como uma oportunidade de reflexão teórica, que permitirá uma aplicação mais crítica e consciente das teorias.

 

Referências

Aspesi, C., Dessen, M. A., & Chagas, J. (2005). A ciência do desenvolvimento humano: Uma perspectiva interdisciplinar. In Dessen, M. A., & Costa-Junior, A. L. (Eds.), A ciência do desenvolvimento humano: Tendências atuais e perspectivas futuras (pp. 19-36). Porto Alegre: Artmed.

García, L. N., Macchioli, F. A., & Talak, A. M. (2014). Psicologia, niño y familia en la Argentina 1900-1970: Perspectivas históricas y cruces disciplinares. Buenos Aires: Biblos.         [ Links ]