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Psicologia em Pesquisa

versión On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.9 no.1 Juiz de Fora jun. 2015

http://dx.doi.org/10.5327/Z1982-1247201500010012 

RESENHA

DOI: 10.5327/Z1982-1247201500010012

 

O movimento do pensamento de Sigmund Freud segundo Luiz Roberto Monzani

 

Freud: o movimento de um pensamento
Luiz Roberto Monzani.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 3.ed., 2015, 300 p.

 

 

Olavo Smanio Brando; Jéssica Brum; Rodrigo Carquejeiro; João Maciel

Universidade Federal de São João Del Rei (São João Del Rei), Brasil

 

 

A publicação em 1989 do livro de Luiz Roberto Monzani intitulado Freud: o movimento de um pensamento (Monzani, 1989) representou um marco no campo dos estudos brasileiros em filosofia da psicanálise. O livro foi o resultado extraído de uma tese de doutoramento em filosofia defendida na Universidade de São Paulo (USP) alguns anos antes, sob a orientação de Marilena Chauí. Na época, a área de pesquisa em filosofia da psicanálise era ainda incipiente. O trabalho de Monzani — juntamente com o livro Freud: a trama dos conceitos, de Renato Mezan (1982) (também resultante de um trabalho de pós-graduação orientado na USP por Chauí) — pode ser considerado como pioneiro nesse campo.

O livro de Monzani se propõe a estabelecer uma estratégia para a leitura de Freud que escape às alternativas classicamente estabelecidas no campo dos estudos freudianos, como, por exemplo, entre o Freud "hermeneuta", preocupado com a interpretação e o sentido, e o "cientificista", empenhado na formulação de uma teoria reducionista das forças psíquicas que determinam a mente e o comportamento. Outra dicotomia que o livro se empenha em superar é a que se estabelece, na literatura de comentário sobre Freud, entre a afirmação da unidade e homogeneidade da obra — que argumenta que o autor teria sido sempre o mesmo (hermeneuta, fisicalista, etc.) ao longo de todo o percurso de seu pensamento — e a que teria mudado de ideia uma ou várias vezes ao longo do trajeto (passando, por exemplo, da neurologia à psicologia ou de uma a outra teoria das pulsões, da angústia ou da estrutura da mente). Para tanto, a ideia de "movimento" se apresenta como um conceito efetivamente metodológico — cuidadosamente definido, aliás, na introdução do trabalho — destinado a fundamentar uma estratégia de leitura para ser aplicada a Freud nesse estudo, mas, em princípio, generalizável para outras produções científicas, filosóficas e até mesmo literárias, como coloca Monzani.

O livro é composto por quatro estudos relativamente independentes, mas que podem, em conjunto, ser considerados como ilustrações progressivamente mais elaboradas do método de leitura delineado no início. No primeiro, intitulado Sedução e fantasia, é descrita a formulação da assim chamada teoria freudiana da sedução, para depois discutir as razões e as consequências de seu abandono. Como se sabe, Freud formulou inicialmente a hipótese de que a histeria e outras neuroses seriam resultado de episódios infantis de sedução ou abuso sexual por um adulto que, ao serem rememorados após a puberdade, produziriam um efeito traumático retardado e desencadeante todo um trabalho de defesa psíquica que levaria à formação dos sintomas. Com o tempo, acumularam-se as evidências de que as cenas de sedução analisadas por Freud eram ou poderiam ter sido fantasias infantis, e não acontecimentos vividos. Com isso, se viu levado a renunciar a essa teoria e a reconhecer o papel central das fantasias inconscientes na vida mental e na psicologia das neuroses. Monzani, seguindo em parte os passos de Jean Laplanche, analisa toda a complexidade do movimento que vai de uma hipótese a outra, mostrando que não se trata pura e simplesmente de substituir, uma pela outra, duas teorias distintas e sem relação entre si. Em muitos aspectos, essa revisão traz consequências indesejáveis para Freud, como o retorno de fatores constitucionais na explicação das neuroses, cuja importância Freud teria procurado neutralizar com a hipótese da sedução. Para contrabalançar isso, Freud acaba recuperando elementos da teoria supostamente abandonada e reintroduzindo-os sob uma nova forma, procurando, por exemplo, encontrar um acontecimento efetivamente vivido (na história do indivíduo ou da espécie) na origem de cada fantasia. Monzani foi um dos primeiros intérpretes de Freud a enfatizar como a teoria do complexo de Édipo — que supostamente toma o lugar da hipótese da sedução — toma forma muito lentamente e demora a firmar-se como um elemento central da teoria freudiana, estando, por exemplo, praticamente ausente nas versões iniciais dos Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade (Freud, 1974b).

No segundo capítulo, intitulado A máquina de sonhar, Monzani aborda a transição do modelo neurobiológico do Projeto de uma psicologia (1895) (Freud, 1974a) para o modelo psicológico apresentado em A interpretação dos sonhos (1900) (Freud, 1974c), considerado unanimemente como um passo crucial na evolução do pensamento freudiano. Mais uma vez, ele mostra que não se trata de uma simples substituição de uma teoria por outra e que, portanto, a tese da ruptura entre os dois modelos, embora contenha elementos verdadeiros, é insuficiente para dar conta dessa transição. As hipóteses do Projeto não são abandonadas, mas, pelo contrário, são reapresentadas no famoso capítulo VII de A interpretação dos sonhos sob uma nova roupagem — com a qual, aliás, se perpetua nas etapas posteriores da evolução da teoria. Há deslocamentos e reformulações, com certeza, de maneira que tampouco se poderia falar de total continuidade, mas esses deslocamentos não eliminam os componentes da teoria inicial, de modo que, por exemplo, falar de um modelo naturalista e explicativo no Projeto e de outro não naturalista e interpretativo em 1900 seria sempre uma simplificação grosseira.

O terceiro capítulo (Nos confins do prazer) reproduz a mesma estratégia de argumentação com relação à teoria freudiana das pulsões. Trata-se, mais uma vez, de relativizar a hipótese da ruptura. Com efeito, os dois grandes momentos de ruptura usualmente apontados na evolução do pensamento de Freud são situados em 1900 e em 1920. No primeiro, como vimos, ter-se-ia dado a passagem de um modelo neurológico para um modelo psicológico do sujeito que teria levado à origem da própria psicanálise (daí o caráter fundador normalmente atribuído à obra A intepretação dos sonhos). No segundo, a formulação da nova teoria pulsional, substituindo a oposição anterior entre pulsões de autoconservação e pulsões sexuais, por outra que passa a opor as de vida e as de morte. Monzani mostra que, se a nova teoria traz elementos novos e vai além da teoria anterior, ela, ao mesmo tempo, engloba-a e preserva-a. As pulsões de vida, por um lado, incluem a antiga dualidade formada pela autoconservação e a sexualidade, ainda que com consideráveis revisões. Por outro lado, a grande novidade da segunda dualidade pulsional (o conceito de pulsão de morte) é revelado como menos inédito do que frequentemente se supõe. Ao contrário de resultar na indulgência de Freud, ao se permitir enveredar por especulações metafísicas e formulações apriorísticas, Monzani demonstra detalhadamente os elos que vinculam a hipótese das pulsões de morte com as teorizações anteriores de Freud: a explicação da agressividade, a função das tendências à inércia e à constância na vida mental, os fenômenos clínicos da repetição, entre outros. Com isso, o conceito aparece mais como uma síntese de elaborações anteriores do que como uma novidade absoluta que as eliminasse e substituísse.

Por fim, o quarto e último capítulo (A raiz do inconsciente) aplica a mesma metodologia e a mesma estratégia de análise do texto freudiano à relação entre os dois grandes modelos de estruturação do psiquismo elaborados por Freud: as duas "tópicas" ou teorias do aparelho psíquico propostas respectivamente em A interpretação dos sonhos, em 1900, e em O ego e o id, em 1920. Como se sabe, a primeira tópica dividia o psiquismo, segundo o critério de sua relação com a consciência, em consciente, préconsciente e inconsciente, enquanto que a segunda propunha as instâncias do id, do ego e do superego. Monzani se empenha em mostrar como a segunda tópica se sobrepõe à primeira, cujos sistemas se encontram distribuídos nas novas estruturas: há segmentos do ego e do superego que são conscientes, pré-conscientes ou inconscientes e apenas o id é inteiramente inconsciente, embora, de forma alguma, se identifique conceitualmente com o inconsciente da primeira tópica. Um dos aspectos mais originais da análise de Monzani é mostrar como a verdadeira novidade da segunda tópica consiste na introdução do conceito de id. Ao passo que o ego e o superego já se encontrariam prefigurados em desenvolvimentos teóricos anteriores (a teoria do narcisismo, o conceito de ideal do ego, entre outros), o id representaria uma verdadeira inovação teórica, que não apenas representaria a dimensão pulsional da mente na estrutura do aparelho psíquico (o que faltaria nos modelos anteriores), mas também daria um novo sentido à ideia de um inconsciente originário, distinto do inconsciente reprimido que se manifesta nas neuroses, explicitando, entre outras coisas, seus vínculos com o corpo e os processos somáticos.

Finalmente, em suas conclusões (A espiral e o pêndulo), o autor sintetiza os resultados dessas quatro investigações particulares numa visão geral do desenvolvimento — ou, mais precisamente, do movimento — da obra freudiana, propondo uma metáfora para descrevê-lo e expressá-lo que acabou se consagrando na literatura nacional posterior. Essa metáfora caracteriza o movimento de constituição do pensamento de Freud como procedendo, por um lado, numa espiral, que avança no tratamento das questões, retomando- as continuamente em níveis mais elevados de complexidade e sofisticação conceitual, mas também, por outro lado, como um pêndulo, que oscila entre soluções opostas para os problemas renitentes com os quais Freud se defrontou e que expressa a resistência do objeto do conhecimento psicanalítico a sua plena elaboração teórica.

Depois de duas edições iniciais, esse livro seminal para a área de pesquisa em filosofia da psicanálise no Brasil se encontrava há longo tempo fora de catálogo, circulando apenas subterraneamente num sistema de empréstimos e fotocópias entre os cada vez mais numerosos pesquisadores e estudantes que se dedicam à pesquisa teórica e filosófica sobre a obra de Freud nos meios acadêmicos e psicanalíticos contemporâneos. A sua reedição pela Editora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) — acrescida de um novo prefácio de Miguel Bairrão, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo e ex-aluno de Monzani — é, assim, mais que oportuna. É justo admirar os clássicos e avaliar-lhes a importância, mas isso é sempre mais fácil quando é possível encontrá-los.

 

Referências

Freud, S. (1974a). Project for a scientific psychology. In: Strachey, J. (Ed.). The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (vol. 1, pp. 281-386). London: The Hogarth Press and the Institute of Psychoanalysis. (Original publicado em 1950)        [ Links ]

Freud, S. (1974b). Three essays on the theory of sexuality. In: Strachey, J. (Ed.). The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (vol. 7, pp. 123-243). London: The Hogarth Press and the Institute of Psychoanalysis. (Original publicado em 1905)        [ Links ]

Freud, S. (1974c). The interpretation of dreams. In: Strachey, J. (Ed.). The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (vols. 4 e 5 , pp. 1-715). London: The Hogarth Press and the Institute of Psychoanalysis. (Original publicado em 1900)        [ Links ]

Mezan, R. (1982). Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Monzani, L. R. (1989). Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora da Unicamp.         [ Links ]

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